Decisão Arbitral
I – Relatório
1.1. A…, S.A. – Sucursal em Portugal, Pessoa Colectiva n.º…, com sede em…, …, … (doravante designada por «requerente»), vem impugnar o despacho de indeferimento datado de 7/7/2016 da Unidade dos Grandes Contribuintes (AT), que indeferiu a reclamação graciosa deduzida contra 76 autoliquidações de IUC e juros compensatórios relativas aos anos de 2013 e 2014, no total de €10.331,54, tendo, para o efeito, apresentado, em 28/10/2016, pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante somente designado por «RJAT»), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista “a) a anulação, por ilegalidade, do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa; b) a anulação das autoliquidações de IUC e JC aqui impugnadas, com a consequente restituição da totalidade do IUC/JC indevidamente pago, Euro 10.331,54; c) o reconhecimento do direito da Requerente a juros indemnizatórios, nos termos legais; d) a condenação da Requerida no pagamento da taxa arbitral e demais encargos, se os houver.”
1.2. Em 16/1/2017 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Singular.
1.3. Nos termos do art. 17.º, n.º 1, do RJAT, foi a AT citada, enquanto parte requerida, para apresentar resposta, nos termos e para os efeitos do mencionado artigo. A AT apresentou a sua resposta em 15/2/2017, tendo argumentado, em síntese, a total improcedência do pedido da Requerente.
1.4. Ao abrigo do disposto no art. 16.º, al. c), do RJAT, o presente Tribunal considerou ser dispensável a reunião do art. 18.º do RJAT e que o processo prosseguisse para decisão. Nos termos do disposto nos arts. 16.º, alíneas c) e e), e 19.º, do RJAT, o Tribunal considerou, também, no seu despacho de 13/3/2017, ser dispensável a produção de prova testemunhal, por entender que existiam nos autos os elementos suficientes, quer de facto, quer de direito, para proferir a decisão. Nestes termos, foi fixada, por despacho arbitral de 16/3/2017, a data de 27/3/2017 para a prolação da decisão arbitral.
1.5. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é materialmente competente, o processo não enferma de vícios que o invalidem e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas.
II – Alegações das Partes
2.1. Vem a Requerente alegar, na sua petição, que: a) “o despacho de indeferimento da reclamação graciosa aqui impugnado, bem como aquelas autoliquidações de IUC e JC, padecem de erro nos pressupostos de facto e de vício de violação de lei - pelo que deve ser declarada a ilegalidade daquele despacho e daquelas autoliquidações”; b) “a Requerente é a sociedade importadora, em exclusivo, de todos os veículos automóveis da marca B… para o mercado nacional”; c) “todas as viaturas importadas são-no mediante prévio pedido dos concessionários, apresentado por via informática (via webpage) à Requerente – e, consequentemente, pela C… junto da fábrica. Uma vez importados, todos os veículos são imediatamente vendidos aos concessionários da marca, que por sua vez os vendem aos clientes finais. Ou seja, quando se importa um veículo, o mesmo já possui um comprador. Uma vez chegadas a Portugal, as viaturas são de imediato faturadas pela Requerente aos concessionários e imediatamente entregues nas instalações dos concessionários - ora para entrega imediata ao cliente final, ou simplesmente para ficarem em showroom, no stand do concessionário, para fins meramente exibicionais (casos de lançamento de novos modelos) e/ou a aguardar cliente interessado. [...]. Quando as viaturas são enviadas dos concessionários para os clientes, é efectuada a alteração do registo do proprietário para o nome do cliente final. [...]. [...] à data do pedido das matrículas as viaturas em questão já foram facturadas/vendidas pela Requerente aos concessionários”; d) “assim, uma vez importados, todos os veículos são imediatamente vendidos aos concessionários da marca, alguns deles integrantes do mesmo grupo económico, que por sua vez os vendem aos clientes finais - os quais serão os utilizadores dos veículos e em cujo interesse entram em circulação rodoviária”; e) “nos termos do artigo 3.º do CIUC (Incidência Subjectiva), redacção aplicável a 2013 e 2014, [...] os sujeitos passivos do IUC são os proprietários dos veículos, aos quais são equiparados os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade a favor do vendedor. Sendo certo que, depois de os vender a terceiros, a Requerente nunca retoma a propriedade dos veículos - já que não é um mero comerciante de automóveis, mas sim o importador nacional da marca”; f) “para efeitos de IUC, tendo as viaturas em questão sido vendidas pela Requerente antes da data da respectiva matrícula, é evidente que a Requerente não era a proprietária das mesmas nas datas das matrículas – pelo que não está sujeita a IUC e respectivos JC. Note-se que as vendas da Requerente aos concessionários ocorrem precisamente na data da emissão das facturas pela Requerente aos concessionários – as quais, portanto, titulam essas mesmas vendas. E aqui são juntas as facturas de venda das viaturas aos concessionários, as quais documentam e demonstram precisamente a venda das viaturas aos concessionários em momento anterior ao da matrícula das mesmas”; g) “do acima exposto resulta que a Requerente não é o utilizador dos veículos que o IUC pretendeu onerar – a Requerente, na sua actividade de importador das viaturas, não produz qualquer “custo ambiental e viário” ou “desgaste de bens públicos”, não sendo o “poluidor - pagador” que o legislador do IUC pretendeu tributar (cfr. artigo 1.º do CIUC)”; h) “como acima se referiu, os veículos em questão, discriminados na lista ora anexa como doc. 5 (cujo teor, por brevidade de exposição, se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais), não eram propriedade da Requerente nas datas das respectivas matriculas, contrariamente ao presumido pela AT. Com efeito, nas datas de matrícula destes veículos já a Requerente os havia vendido a terceiros (aos sobreditos concessionários), conforme se demonstra a partir das cópias das respectivas facturas de venda (e subsequentes débitos do ISV, como acima se explanou e exemplificou), aqui juntas agregadamente como doc. 6 - cujo teor, por brevidade de exposição, se dá aqui também como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais”; i) “as autoliquidações aqui impugnadas, relativas a estes veículos, são ilegais, quer por erro nos pressupostos de facto, quer por vício de violação de lei, designadamente do disposto nos artigos 1.º, 2.º n.º 1 a) e d), 3.º, 4.º, 6.º e 11.º do CIUC”; j) “embora o IUC seja devido pelos proprietários dos veículos – no caso, à data da matrícula, por se tratar do IUC relativo ao ano da matrícula - é Jurisprudência unânime do CAAD que as pessoas em nome de quem os veículos estejam matriculados ou registados podem ilidir a (mera) presunção legal de propriedade que decorre dessa matrícula ou registo automóvel”; l) “a transmissão da propriedade automóvel efectua-se por mero efeito do acordo de compra e venda, não ficando dependente de qualquer acto posterior para que se constitua ou para que se torne efectiva, legal e juridicamente, tal como a tradição da coisa ou o registo”; m) “a mesma Jurisprudência do CAAD não deixa de frisar que «Os documentos apresentados, particularmente as cópias das facturas que suportam, desde logo, as vendas relativas aos trinta e sete veículos atrás referenciados, ou seja, os veículos cuja propriedade se transferiu para os ex-locatários em datas anteriores àquelas em que o IUC era exigível, corporizam meios de prova com força bastante e adequados para ilidir a presunção fundada no registo, tal como consagrada no n.º 1 do art. 3.º do CIUC, documentos, esses, que gozam, aliás, da presunção de veracidade prevista no n.º 1 do art. 75.º da LGT.» Com efeito, a Requerente beneficia da presunção de veracidade e boa fé de que gozam os documentos apresentados para prova da transmissão da propriedade dos veículos – como é o caso das facturas de venda das viaturas aqui juntas (cfr. artigo 75.º, n.º 1, da LGT)”; n) “por meio das facturas de venda que aqui se juntam, a Requerente demonstra que vendeu os veículos em questão antes da data da matrícula dos mesmos – o que, nos termos referidos, constitui factualidade impeditiva do direito de tributação (legalmente presumido) da AT, já que o IUC, no ano da matrícula, incide sobre o proprietário (ou equivalente) na data da matrícula”; o) “não sendo devido imposto, pelas razões sobreditas, não são igualmente devidos quaisquer JC, acessórios do imposto principal, com base no qual são liquidados e do qual dependem. [...]. [...] os juros compensatórios, no caso concreto, padecem de vício de violação do disposto nos artigos 94.º do CIRC e 35.º da LGT”; p) “dado que as autoliquidações aqui impugnadas foram pagas, para além da devolução do IUC e JC indevidamente pagos, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, por erro de facto e de direito da AT ao exigir esse IUC e JC, nos termos dos artigos 43.º e 100.º da LGT.”
2.2. Solicita a Requerente, em face do supra exposto: “a) a anulação, por ilegalidade, do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa; b) a anulação das autoliquidações de IUC e JC aqui impugnadas, com a consequente restituição da totalidade do IUC/JC indevidamente pago, Euro 10.331,54; c) o reconhecimento do direito da Requerente a juros indemnizatórios, nos termos legais; e d) a condenação da Requerida no pagamento da taxa arbitral e demais encargos, se os houver.”
2.3. Por seu lado, a AT alega, na sua contestação, que: a) “os argumentos invocados pela Requerente não podem de todo proceder, porquanto faz uma errada interpretação e aplicação das normas legais subsumíveis ao caso sub judice notoriamente errada”; b) “da articulação entre o âmbito da incidência subjetiva do IUC e o facto constitutivo da correspondente obrigação de imposto, decorrem inequivocamente do artigo 6.º do CIUC as situações jurídicas que geram o nascimento da obrigação de imposto, ou seja, a matrícula ou o registo em território nacional”; c) “é perentório que, nos termos do artigo 24.º do RRA, o importador figura no registo como primeiro proprietário do veículo e nesse sentido é, de acordo com o estatuído nos artigos 3.º e 6.º do CIUC, sujeito passivo de imposto”; d) “o facto gerador do imposto é aferido pela matrícula ou pelo registo, consagrando expressamente o artigo 24.º do RRA que, tendo sido pago o ISV e pedida a matrícula, fica o veículo automaticamente registado em nome do importador, ou seja, da Requerente. Logo, tendo a Requerente solicitado preenchido a DAV, pago o ISV e pedido o certificado de matrícula, ela preenche inelutavelmente o facto gerador do imposto (incidência objetiva/subjetiva), sendo-lhe exigível o seu pagamento nos termos do artigo 3.º do CIUC. Ou seja, independentemente de a Requerente proceder à venda do veículo para os seus clientes, tal facto, à luz do facto gerador consignado no artigo 6.º do CIUC, é manifestamente inócuo, na medida em que o legislador consagrou expressamente que o facto gerador é atestado pela atribuição da matrícula e registo”; e) “é inequívoco que, emergindo o facto tributário com a atribuição da matrícula nos termos do artigo 6.º do CIUC e sendo a Requerente enquanto importadora dos veículos que solicita o pedido de atribuição de matrícula, preenche a norma de incidência, sendo sujeito passivo de imposto. Ainda que, pese embora a Requerente alegue que na data da atribuição da matrícula ela já havia procedido à venda dos veículos aos seus clientes, tal facto é irrelevante para efeitos de aplicação do artigo 6.º do CIUC”; f) “estabelecendo-se no artigo 6.º do CIUC a matrícula como facto gerador do imposto, este é exigível com a sua emissão independentemente de ocorrer registo em nome de outro proprietário”; g) “o entendimento propugnado pela Requerente incorre não só de uma enviesada leitura da letra da lei, como da adopção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e decorre ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC”; h) “é imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas] as pessoas em nome das quais os mesmos [os veículos] se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal. Entender que o legislador consagrou aqui uma presunção, seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem. Em face desta redacção não é manifestamente possível invocar que se trata de uma presunção, conforme defende a Requerente”; i) “o artigo 3.º do CIUC não comporta qualquer presunção legal”; j) “também o elemento sistemático de interpretação da lei demonstra que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio na lei”; l) “à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pela Requerente, no sentido de que o sujeito passivo do imposto é o proprietário efectivo, independentemente de não figurar no registo automóvel o registo dessa qualidade, é manifestamente errada”; m) “os actos tributários em crise não enfermam de qualquer vício de violação de lei, na medida em que à luz do disposto no artigo 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC e do artigo 6.º do mesmo código, era a Requerente, na qualidade de proprietária, o sujeito passivo do IUC”; n) “as pretensas facturas não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois tais documentos não revelam por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte dos pretensos adquirentes”; o) “todas as faturas subministradas pela Requerente não demonstram, expressa e inequivocamente por si só (face aos dizeres nelas constantes), a suposta transferência da propriedade automóvel”; p) “não contendo as faturas referentes às pretensas vendas quaisquer matrículas, então obviamente que não há sistema informático algum que, através do cruzamento da informação contida naquelas faturas com a informação proveniente do IMT e do IRN, consiga determinar transferências de propriedade”; q) “analizando as liquidações colocadas em crise constata-se que também todos os elementos referentes à liquidação de juros compensatórios foram notificados à Requerente, quais sejam: as disposições legais aplicáveis, a natureza e quantificação do ato tributário, o período de tributação, período de cálculo, valor base, taxa e valor de juros apurado. [...]. Assim, como resulta do exposto, a notificação de juros compensatórios em causa foi efetuada e devidamente fundamentada de acordo com a lei, esclarecendo o sujeito passivo das razões de facto e de direito que determinaram a liquidação. [...]. Em suma, à luz de todo o exposto forçoso é concluir que as liquidações de juros compensatórios se encontram devidamente fundamentadas em conformidade com a lei, não padecendo de qualquer vício”; r) “o entendimento propugnado pela Requerente com vista a afastar a incidência subectiva e tributação do IUC não tem acolhimento legal e viola os princípios constitucionais da legalidade e justiça tributária, da capacidade contributiva, da igualdade, da certeza e da segurança jurídicas”; s) “ainda que por hipótese académica e sem conceder o Tribunal Arbitral Singular venha a concluir pela procedência do pedido de pronúncia arbitral deduzido pela Requerente, importa salientar o seguinte: [...] a competência para o registo automóvel não se encontra na esfera da Requerida, mas sim atribuída a várias entidades exteriores, designadamente ao Instituto dos Registos e do Notariado a quem cabe transmitir à Requerida as alterações que se venham a verificar quanto à propriedade dos veículos automóveis. [...]. Por outro lado, a transmissão da propriedade de veículos automóveis não é susceptível de ser controlada pela Requerida, pois inexiste qualquer obrigação acessória declarativa quanto a esta matéria, contrariamente ao controlo que é passível de ser realizado, por exemplo, por via do prévio pagamento de Imposto Municipal Sobre Transmissão de Imóveis em matéria de transmissão de prédios”; t) “de tudo quanto supra se expôs resulta claro que os atos tributários em crise são válidos e legais, porque conformes ao regime legal em vigor à data dos factos tributários, pelo que, não ocorreu, in casu, qualquer erro imputável aos serviços. Assim sendo, não se encontram reunidos os pressupostos legais que conferem o direito aos juros indemnizatórios. Mas mesmo que assim não se entenda [...] é inegável que a Requerida se limitou a dar cumprimento ao artigo 3.º/1 do CIUC [...], pelo que também por aqui necessariamente terá de falecer o reconhecimento do direito ao pagamento de juros indemnizatórios.”
Conclui a AT que “deverá ser julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica os atos tributários de liquidação impugnados e absolvendo-se, em conformidade, a Requerida do pedido.”
III – Factualidade Provada, Não Provada e Respectiva Fundamentação
3.1. Consideram-se provados os seguintes factos:
i) A ora Requerente é a sociedade importadora, em exclusivo, de todos os veículos automóveis da marca B… para o mercado nacional. Todas as viaturas importadas são-no mediante prévio pedido dos concessionários, apresentado por via informática (via webpage) à Requerente – e, consequentemente, pela C… junto da fábrica. Uma vez importados, todos os veículos são imediatamente vendidos aos concessionários da marca, que por sua vez os vendem aos clientes finais.
ii) A ora Requerente procedeu ao pagamento voluntário de IUC alegadamente em falta, relativo às viaturas identificadas no pedido de pronúncia arbitral e relativo aos anos de 2013 e 2014, no montante total, em causa, de €10.331,54 (vd. Doc. n.º 3 apenso aos presentes autos).
iii) Em data anterior àquela a que o imposto respeitava, as viaturas aqui em causa não eram propriedade da ora Requerente, conforme se pode observar pela leitura do Doc. n.º 6 apenso aos presentes autos – o qual, dada a sua extensão, aqui se dará por reproduzido. Todas as vendas encontram-se suportadas pelas respectivas facturas de venda, as quais se encontram devidamente identificadas.
iv) Quando as viaturas são enviadas dos concessionários para os clientes, é efectuada a alteração do registo do proprietário para o nome do cliente final. Embora numa primeira fase a matrícula e o registo das viaturas seja feito em nome da Requerente, à data do pedido das matrículas o concessionário já é o proprietário das mesmas. Ou seja, à data do pedido das matrículas as viaturas em questão já foram facturadas/vendidas pela aqui Requerente aos concessionários. Uma vez que as viaturas foram vendidas aos concessionários antes da data da matrícula das mesmas, essas facturas de venda não podem conter as respectivas matrículas, contendo apenas os números de chassis dos veículos vendidos aos concessionários, conforme resulta do teor das facturas cujas cópias constam do Doc. n.º 6 apenso aos presentes autos.
v) A ora Requerente apresentou reclamação graciosa (n.º …2016…), a qual foi expressamente indeferida. A 28/10/2016, a Requerente apresentou, da mencionada decisão de indeferimento e dos (76) actos de liquidação de IUC referidos (veículos discriminados no Doc. n.º 5 apenso aos presentes autos), o presente pedido de pronúncia arbitral.
3.2. Não há factos não provados relevantes para a decisão da causa.
3.3. Os factos considerados pertinentes e provados (v. 3.1) fundamentam-se na análise das posições expostas pelas partes e da prova documental junta aos autos.
IV – Do Direito
No presente caso, são quatro as questões de direito controvertidas: 1) saber se o artigo 3.º do CIUC contém uma presunção e se a ilisão da mesma foi feita; 2) saber se, como alega a AT, a interpretação da ora Requerente não atende aos elementos sistemático e teleológico de interpretação da lei; 3) saber se, como alega a AT, “a interpretação veiculada pela Requerente [...] mostra-se contrária à lei fundamental”; e 4) saber se são devidos juros indemnizatórios à Requerente.
Vejamos, então.
1) e 2) As duas primeiras questões de direito confluem na direcção da interpretação do art. 3.º do CIUC, pelo que se mostra necessário: A) saber se a norma de incidência subjectiva, constante do referido art. 3.º, estabelece ou não uma presunção; B) saber se, ao considerar-se que essa norma estabelece uma presunção, tal viola a “unidade do regime”, ou desconsidera o elemento sistemático e o elemento teleológico; C) saber – admitindo que a presunção existe (e que a mesma é iuris tantum) – se foi feita a ilisão da mesma.
A) O artigo 3.º, n.os 1 e 2, do Código do Imposto Único de Circulação, tem a seguinte redacção, que aqui se reproduz:
“Artigo 3.º – Incidência Subjectiva
1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.
A interpretação do texto legal citado é, naturalmente, imprescindível para a resolução do caso em análise. Nessa medida, afigura-se necessário recorrer ao art. 11.º, n.º 1, da LGT, e, por remissão deste, ao art. 9.º do Código Civil (CC).
Ora, nos termos do referido art. 9.º do CC, a interpretação parte da letra da lei e visa, através dela, reconstituir o “pensamento legislativo”. O mesmo é dizer (independentemente da querela objectivismo-subjectivismo) que a análise literal é a base da tarefa interpretativa e os elementos sistemático, histórico ou teleológico são guias de orientação da referida tarefa.
A apreensão literal do texto legal em causa não gera - ainda que seja muito discutível a separação desta relativamente ao apuramento, mesmo que mínimo, do respectivo sentido - a noção de que a expressão “considerando-se como tais” significa algo diverso de “presumindo-se como tais”. De facto, muito dificilmente encontraríamos autores que, numa tarefa de pré-compreensão do referido texto legal, repelissem, “instintivamente”, a identidade entre as duas expressões.
Confirmando a indistinção (tanto literal como de sentido) das palavras “considerando” e “presumindo” (presunção), vejam-se, por ex., os seguintes artigos do Código Civil: 314.º, 369.º, n.º 2, 374.º, n.º 1, 376.º, n.º 2, e 1629.º. E, com especial interesse, o caso da expressão “considera-se”, constante do art. 21.º, n.º 2, do CIRC. Como assinalam Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, a respeito desse artigo do CIRC: “para além de esta norma evidenciar que o que está em causa em sede de tributação de mais valias é apurar o valor real (o de mercado), a limitação ao apuramento do valor real derivada das regras de determinação do valor tributável previstas no CIS não poder deixar de ser considerada como uma presunção em matéria de incidência, cuja ilisão é permitida pelo artigo 73.º da LGT” (Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª ed., 2012, pp. 651-2).
B) Estes são apenas alguns exemplos que permitem concluir que é precisamente por razões relacionadas com a “unidade do sistema jurídico” (o elemento sistemático) que não se poderá afirmar que só quando se usa o verbo “presumir” é que se está perante uma presunção, dado que o uso de outros termos ou expressões (literalmente similares) também podem servir de base a presunções. E, de entre estas, as expressões “considera-se como” ou “considerando-se como” assumem, como se viu, destaque.
Se a análise literal é apenas a base da tarefa, afigura-se, naturalmente, imprescindível a avaliação do texto à luz dos demais elementos (ou subelementos do denominado elemento lógico). Com efeito, a AT alega, também, que a interpretação da Requerente não atende ao elemento sistemático e que, à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pela ora Requerente é errada.
Justifica-se, portanto, averiguar se a interpretação que considere a existência de uma presunção no art. 3.º do CIUC colide com o elemento teleológico, i.e., com as finalidades (ou com a relevância sociológica) do que se pretendia com a regra em causa. Ora, tais finalidades estão claramente identificadas no início do CIUC: “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária” (vd. art. 1.º do CIUC).
O que se pode inferir deste artigo 1.º? Pode inferir-se que a estreita ligação do IUC ao princípio da equivalência (ou princípio do benefício) não permite a associação exclusiva dos “contribuintes” aí referidos à figura dos proprietários mas antes à figura dos utilizadores (ou dos proprietários económicos). Como bem se assinalou na DA proferida no proc. n.º 73/2013-T: “na verdade, a ratio legis do imposto [IUC] antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, o «proprietário económico» no dizer de Diogo Leite de Campos, os efectivos proprietários ou os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade.”
C) Do exposto retira-se a conclusão de que limitar os sujeitos passivos deste imposto apenas aos proprietários dos veículos em nome dos quais os mesmos se encontrem registados - ignorando as situações em que estes já não coincidam com os reais proprietários ou os reais utilizadores dos mesmos -, constitui restrição que, à luz dos fins do IUC, não encontra base de sustentação. E, ainda que se alegue a intenção do legislador foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários aqueles que, como tal, constem do registo automóvel, é necessário ter presente que tal registo, em face do que foi dito anteriormente, gera apenas uma presunção ilidível, i.e., uma presunção que pode ser afastada pela apresentação de prova em contrário. Neste sentido, vd., p. ex., o Acórdão do TCAS de 19/3/2015, processo 8300/14: “O [...] art. 3.º, n.º 1, do CIUC, consagra uma presunção legal de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário, sendo que tal presunção é ilidível”.
Seria, aliás, injustificada a imposição de uma espécie de presunção inilidível, uma vez que, sem uma razão aparente, estar-se-ia a impor uma (reconhecidamente discutível) verdade formal em detrimento do que realmente podia e teria ficado provado; e, por outro lado, a afastar o dever da AT de cumprimento do princípio do inquisitório estabelecido no art. 58.º da LGT, i.e., o dever de realização das diligências necessárias para uma correcta determinação da realidade factual sobre a qual deve assentar a sua decisão (o que significa, no presente caso, a determinação do proprietário actual e efectivo do veículo).
Acresce que, se não se permitisse ao vendedor a ilisão da presunção constante do art. 3.º do CIUC, estar-se-ia a beneficiar, sem uma razão plausível, os adquirentes que, na posse de formulários de contratos de aquisição correctamente preenchidos e assinados, e usufruindo das vantagens associadas à sua condição de proprietários, se tentassem eximir, por via de um “formalismo registral”, ao pagamento de portagens ou coimas.
A este propósito, convém notar, também, que o registo de veículos não tem eficácia constitutiva, funcionando, como antes se disse, como uma presunção ilidível de que o detentor do registo é, efectivamente, o proprietário do veículo. Neste sentido, vd., v.g., o Ac. do STJ de 19/2/2004, proc. 03B4639: “O registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao acto registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível, (presunção «juris tantum») da existência do direito (art.s 1.º, n.º 1 e 7.º, do CRP84 e 350.º, n.º 2, do C.Civil) bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constantes.”
No mesmo sentido, referiu, a este respeito, a DA proferida no proc. n.º 14/2013-T, em termos que aqui se acompanham: “a função essencial do registo automóvel é dar publicidade à situação jurídica dos veículos não surtindo o registo eficácia constitutiva, funcionando (apenas) como mera presunção ilidível da existência do direito, bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constante. A presunção de que o direito registado pertence à pessoa em cujo nome está inscrito pode ser ilidida por prova em contrário. Não preenchendo a AT os requisitos da noção de terceiro para efeitos de registo [circunstância que poderia impedir a eficácia plena dos contratos de compra e venda celebrados], não pode prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade para pôr em causa a eficácia plena do contrato de compra e venda e para exigir ao vendedor (anterior proprietário) o pagamento do IUC devido pelo comprador (novo proprietário) desde que a presunção da respectiva titularidade seja ilidida através de prova bastante da venda.”
Como bem salienta a DA proferida no proc. 845/2015-T, de 30/10/2015, “o artigo 72.º da Lei Geral Tributária permite a utilização «para o conhecimento dos factos necessários à decisão do procedimento todos os meios de prova admitidos em direito». A Requerida não suscitou qualquer incidente de impugnação da veracidade destes meios de prova. Aliás, a mesma não alegou que este meio de prova fosse falso, in casu, mas apenas que «as facturas juntas não são documentos aptos a comprovar, por si só, as supostas vendas dos veículos aqui em causa, uma vez que não passam de documentos unilateralmente emitidos pela Requerente». Não referindo especificamente nenhum caso em que não tivessem sido efectuadas as vendas. Ademais, todas as facturas têm de ser elaboradas através de software certificado, conforme a Portaria n.º 22-A/2012, de 24 de Janeiro. Sendo que as mesmas são utilizadas para contabilização de IVA e IRC. Portanto, se para efeitos destes impostos as facturas são aceites pela Autoridade Tributária, não há qualquer razão para, in casu, não permitir a sua utilização como meio de prova, tendo como base especulações genéricas.”
Note-se, ainda, a respeito da força probatória das facturas, a DA proferida no proc. n.º 27/2013-T, de 10/9/2013, onde se salienta que “os documentos apresentados, particularmente as cópias das facturas que suportam, desde logo, as vendas [dos] veículos [...] referenciados, [...] corporizam meios de prova com força bastante e adequados para ilidir a presunção fundada no registo, tal como consagrada no n.º 1 do art. 3.º do CIUC, documentos, esses, que gozam, aliás, da presunção de veracidade prevista no n.º 1 do art. 75.º da LGT.”
Neste mesmo sentido, veja-se, por último, a DA proferida no proc. n.º 230/2014-T, de 22/7/2014: “os elementos documentais, constituídos por cópias das respectivas facturas de venda [...] gozam da força probatória prevista no artigo 376.º do Código Civil e da presunção de veracidade que é conferida pelo art. 75.º, n.º 1, da LGT, tendo, assim, idoneidade e força bastante para ilidir a presunção que suportou as liquidações efetuadas. Estas operações de transmissão de propriedade são oponíveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, porquanto, embora os factos sujeitos a registo só produzam efeitos em relação a terceiros quando registados, face ao disposto no art. 5.º, n.º 1, do Código do Registo Predial [aplicável por remissão do Código do Registo Automóvel], a Autoridade Tributária não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que não se encontra na situação prevista no n.º 2 do referido art. 5.º do Código do Registo Predial, aplicável por força do Código do Registo Automóvel, ou seja: não adquiriu de um autor comum direitos incompatíveis entre si. Quanto à prova de venda de veículos, ela pode ser feita por qualquer meio, uma vez que a Lei não exige forma específica, designadamente, escrita.”
Nesta sequência, justifica-se, ainda, acrescentar que também se mostra evidente, em face da prova documental apresentada, que a Requerente não deve ser tida como proprietária, conforme se pode observar pela leitura do Doc. n.º 6 apenso à petição inicial – o qual, dada a sua extensão, aqui se dará por reproduzido. Todas as vendas encontram-se suportadas pelas respectivas facturas de venda, as quais se encontram devidamente identificadas – dado que essa prova documental é decisiva para efeitos de aplicação do disposto no art. 3.º, n.º 2, do CIUC. Com efeito, a prova documental foi feita e não foi posta em causa a veracidade desses documentos por parte da Requerida.
3) Conclui-se, em face do supra exposto [vd. 1) e 2), para onde aqui se remete], não ter existido “interpretação [...] contrária à lei fundamental”, ao contrário do que foi alegado pela Requerida nos pontos 226.º a 238.º da sua resposta.
4) Uma nota final para apreciar, ao abrigo do artigo 24.º, n.º 5, do RJAT, o pedido de pagamento de juros indemnizatórios a favor da Requerente (vd. art. 43.º da LGT e 61.º do CPPT).
A este respeito, assinala a DA proferida no processo n.º 26/2013-T, de 19/7/2013 (que tratou de situação semelhante à ora em apreciação): “O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT. [...] ainda que se reconheça não ser devido o imposto pago pela requerente, por não ser o sujeito passivo da obrigação tributária, determinando, em consequência, o respectivo reembolso, não se lobriga que, na sua origem, se encontre o erro imputável aos serviços, que determina tal direito [a juros indemnizatórios] a favor do contribuinte. Com efeito, ao promover a liquidação oficiosa do IUC considerando a requerente como sujeito passivo deste imposto, a AT limitou-se a dar cumprimento à norma do n.º 1 do art. 3.º do CIUC, que, como acima abundantemente se referiu, imputa tal qualidade às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.” Neste mesmo sentido, ver, por exemplo, as DA proferidas nos processos: n.º 170/2013-T, de 14/2/2014; n.º 136/2014-T, de 14/7/2014; n.º 230/2014-T, de 22/7/2014; e n.º 140/2014-T, de 29/8/2014.
Atendendo à justificação citada, e com a qual se concorda, conclui-se, igualmente no presente caso, pela improcedência do referido pedido de pagamento de juros indemnizatórios.
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V – DECISÃO
Em face do supra exposto, decide-se:
- Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a consequente anulação, com todos os efeitos legais, dos actos de liquidação em causa e o reembolso das importâncias indevidamente pagas;
- Julgar improcedente o pedido na parte que diz respeito ao reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor da requerente.
Fixa-se o valor do processo em €10.331,54 (dez mil trezentos e trinta e um euros e cinquenta e quatro cêntimos), nos termos do art. 32.º do CPTA e do art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
Custas a cargo da Requerida, no montante de €918,00, nos termos da Tabela I do RCPAT, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do disposto no art. 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique.
Lisboa, 27 de Março de 2017.
O Árbitro
(Miguel Patrício)
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Texto elaborado em computador, nos termos do disposto
no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.