Decisão Arbitral
I – Relatório
1.1. A… Sucursal em Portugal, Pessoa Colectiva n.º…, domiciliada na Rua …, …, Lisboa (doravante designada por «requerente»), na qualidade de incorporante, por fusão, da sociedade, entretanto extinta, B…– Instituição Financeira de Crédito, S.A. (doravante designada por “B…”), vem impugnar o despacho de indeferimento de 27/6/2016 da DF de Lisboa, que indeferiu a reclamação graciosa deduzida pela B… contra as autoliquidações de IUC e juros compensatórios relativas aos anos de 2009 a 2013, inclusive, no valor total de €54.579,23, tendo, para o efeito, apresentado, em 6/10/2016, um pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.º 1, al. a), do Dec.-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante somente designado por «RJAT»), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista “a) a anulação, por ilegalidade, do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa; b) a anulação das autoliquidações de IUC e JC aqui impugnadas, com a consequente restituição da totalidade do IUC/JC indevidamente pago pela B…, Euro 54.579,23; c) o reconhecimento do direito da Requerente a juros indemnizatórios, nos termos legais; d) a condenação da Requerida no pagamento da taxa arbitral e demais encargos, se os houver.”
1.2. Em 19/12/2016 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Singular.
1.3. Nos termos do art. 17.º, n.º 1, do RJAT, foi a AT citada, enquanto parte requerida, para apresentar resposta, nos termos e para os efeitos do mencionado artigo. A AT apresentou a sua resposta em 2/2/2017, tendo argumentado, em síntese, a total improcedência do pedido da Requerente. Na referida resposta, invocou, ainda, excepção por alegada extemporaneidade do pedido de constituição do Tribunal Arbitral: “tendo a reclamação graciosa sido apresentada quando já tinha sido ultrapassado o prazo legal para apresentação da mesma, então o prazo que vigora para a impugnação, ora apresentada neste tribunal arbitral, são os 90 dias após a data do termo do prazo de pagamento voluntário do IUC. Na situação em apreço, o pedido de constituição de tribunal arbitral apresentado pela Requerente deu entrada em 2016-10-06, pelo que é extemporâneo. A extemporaneidade constitui excepção peremptória, nos termos do art. 576.º do Código de Processo Civil (aplicável subsidiariamente pelo art. 29.º do RJAT), que importa a absolvição da A.T. do pedido, uma vez que impede o efeito jurídico dos factos articulados pela Requerente.”
1.4. A requerente, notificada da resposta da AT, respondeu, por escrito, à excepção invocada, em requerimento de 16/2/2017, o qual foi notificado à Requerida.
1.5. Considerando que as partes já se tinham pronunciado, por escrito, sobre eventuais excepções, o presente Tribunal considerou, ao abrigo do disposto no art. 16.º, al. c), do RJAT, ser dispensável a reunião do art. 18.º do RJAT e que o processo prosseguisse para decisão. Nos termos do disposto nos arts. 16.º, alíneas c) e e), e 19.º, do RJAT, o Tribunal considerou, também, no seu despacho de 13/3/2017, ser dispensável a produção de prova testemunhal, por entender que existiam nos autos os elementos suficientes, quer de facto, quer de direito, para proferir a decisão. Nestes termos, foi fixada, por despacho arbitral de 16/3/2017, a data de 27/3/2017 para a prolação da decisão arbitral.
1.6. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
1.7. Considerando que foi invocada excepção por alegada extemporaneidade (supra referida), justifica-se, previamente, a apreciação da mesma, i.e., justifica-se apurar se, como alega a Requerida, “o pedido de constituição de tribunal arbitral apresentado pela Requerente [...] é extemporâneo” – o que, a ocorrer, importaria “a absolvição da A.T. do pedido, uma vez que impede o efeito jurídico dos factos articulados pela Requerente”.
Vejamos, então. A Requerente apresentou, a 9/10/2015, reclamação graciosa contra as referidas autoliquidações de IUC e juros compensatórios, reclamação que foi indeferida por despacho datado de 27/6/2016, com base em alegada extemporaneidade. Como se pode ler na informação final que serviu de base ao mencionado despacho de indeferimento (vd. PA apenso), entendeu-se aí que, “sendo das liquidações reclamadas a data de pagamento mais recente é de 13/11/2013 e tendo em conta que a reclamação foi apresentada em 09/10/2015”, aplicar-se-ia “o prazo de 120 dias” (por se entender que se tratava “de uma reclamação de uma liquidação de um imposto, nos termos do art. 68.º do CPPT”), pelo que se concluiu que “fácil é verificar que o prazo [de 120 dias] se encontra largamente ultrapassado”.
Sucede, contudo, que, ao contrário do que se refere na informação final que serviu de base ao despacho de indeferimento, a então reclamante pode “lançar mão do art. 131.º do CPPT”, visto que aqui estão em causa autoliquidações de imposto (vd., a este respeito, o art. 16.º, n.º 2, do CIUC), pelo que, sendo o prazo de dois anos, a referida reclamação não era extemporânea – e, consequentemente, o presente pedido arbitral não poderá ser considerado extemporâneo (uma vez que foi apresentado dentro do prazo de 90 dias a contar da data do indeferimento da reclamação graciosa).
1.8. Pelo acima exposto (em 1.7.), conclui-se que o Tribunal Arbitral é competente, o processo não enferma de vícios que o invalidem e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas.
II – Alegações das Partes
2.1. Vem a Requerente alegar, na sua petição, que: a) “o despacho de indeferimento da reclamação graciosa aqui impugnado, bem como aquelas autoliquidações de IUC e JC, padecem de erro nos pressupostos de facto e de vício de violação de lei - pelo que deve ser declarada a ilegalidade daquele despacho e daquelas autoliquidações”; b) “contrariamente ao preconizado no despacho de indeferimento da Reclamação, esta não é intempestiva, total ou parcialmente. Com efeito, a Reclamação Graciosa foi apresentada contra as autoliquidações de IUC, dentro do prazo de 2 anos consignado no artigo 131.º, n.º 1, do CPPT. [...]. É [...] inquestionável que estamos perante um caso de autoliquidação de imposto”; c) “o prazo de reclamação graciosa, in casu, era de 2 anos e não de apenas 120 dias, dado estar em causa uma reclamação contra a autoliquidação de IUC, como resulta do texto da própria reclamação. Logo, a Reclamação Graciosa é tempestiva relativamente a todas as autoliquidações de IUC e JC aqui concretamente em discussão”; d) “nos contratos de locação estão claramente identificados os utilizadores dos veículos em questão. Pelo que foi escrupulosamente cumprido o disposto no artigo 19.º do CIUC”; e) “a B… é [...] uma instituição financeira especializada no ramo automóvel. Nesse sentido, adquire viaturas novas aos importadores nacionais … e … e por norma faz locações – leasing (locação financeira), ALD (aluguer de longa duração) ou renting/AOV/aluguer ou locação operacional - dessas mesmas viaturas a favor de terceiros. Após o termo de tais contratos, por regra a B… procede à transmissão da propriedade das viaturas aos correspondentes locatários ou a terceiros, por um valor residual. Nos restantes contratos de locação, a viatura é vendida a uma terceira entidade após a cessação desses contratos. [...]. Ora, sucede que nas datas da exigibilidade do IUC respeitante às viaturas em causa, a B… ou (1) havia locado esses veículos a favor de terceiros, ou (2) não era sequer a proprietária dos veículos em questão, por já os ter vendido aos locatários ou a terceiros, conforme alegou e demonstrou na dita Reclamação Graciosa, cuja cópia aqui se junta como doc. 5 e cujo teor dá aqui como inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais”; f) “nos períodos em apreço, e para as viaturas visadas pelas notas de (auto) liquidação ora impugnadas, verifica-se que a B… não era a proprietária das mesmas na data da exigibilidade do imposto, ou então, era na mesma data meramente a locadora financeira ou a locadora em contratos de locação operacional com promessa de compra e venda - tal como é possível observar pelas cópias dos contratos e das facturas de venda, entre outros documentos, que constam do dossier relativo a cada uma das viaturas em análise e que aqui se anexa como doc. 6, considerando a lei que, nestes últimos casos, para efeitos de IUC os “proprietários” dos veículos são os locatários financeiros ou os titulares de direitos de opção de compra por força de contrato de locação, consoante os casos”; g) “a B… não se conforma com as autoliquidações de IUC e JC em questão, na medida em que não era o sujeito passivo do imposto nas respectivas datas de exigibilidade. Com efeito, nessas datas a B… já tinha vendido as viaturas em questão a terceiros, ou já as tinha locado a terceiros – terceiros, estes, que eram assim os utilizadores dos veículos e em cujo interesse os veículos entraram em circulação rodoviária. [...]. São aqui juntas as facturas de venda das viaturas aos respectivos adquirentes, as quais documentam e demonstram precisamente a venda das viaturas em momento anterior ao da data da exigibilidade do IUC - data da matrícula ou respectivas datas de aniversário”; h) “também nos casos em que a B… locou as viaturas a favor de terceiros, e lhes concedeu a opção de compra das respectivas viaturas por força dos contratos de locação, a B… não era a responsável pelo pagamento do IUC. [...]. [...] os sujeitos passivos do IUC são os proprietários dos veículos, aos quais são equiparados os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade a favor do vendedor e quaisquer outros titulares do direito de opção de compra por força do contrato de locação. Sendo certo que, depois de os vender a terceiros, a B… nunca retoma a propriedade dos veículos”; i) “no que concerne aos veículos automóveis abrangidos por contratos de locação financeira ou por contratos de locação operacional com promessa de compra e venda - os quais estão detalhados no quadro que aqui se anexa como doc. 7, surgem duas [...] características [...] divergentes dos tradicionais contratos de locação operacional e/ou de aluguer: (a) o locatário financeiro de veículos automóveis é equiparado a proprietário segundo legislação do licenciamento de veículos automóveis e os seus reboques – vide Decreto-Lei n.º 11/84, de 7 de Janeiro; e (b) o CIUC, no n.º 2 do seu artigo 3.º, equipara os locatários financeiros a proprietários, bem como os titulares de direitos de opção de compra por força de contratos de locação, para efeitos da incidência subjectiva do IUC”; j) “ora, atendendo às características elencadas, alcança-se o sentido da equiparação, em sede de incidência subjectiva do IUC, dos locatários financeiros e dos titulares de direitos de opção de compra por força de contratos de locação, a proprietários das viaturas”; l) “considerando o elemento literal, lógico e teleológico da norma vertida no n.º 2 do artigo 3.º do CIUC, é por demais evidente que a lei tributária considera os locatários financeiros, bem como os titulares de direitos de opção de compra por força de contrato de locação como sujeitos passivos de IUC, equiparando-os a proprietários dos veículos. De facto, na vigência de um contrato de locação financeira, embora o locador continue a ser o proprietário jurídico do bem em causa, só o locatário tem o gozo exclusivo do bem locado, usando-o como se fosse ele o verdadeiro proprietário. [...]. Por outro lado, como anteriormente se referiu, o contrato de locação operacional com promessa de compra e venda aproxima-se mais do contrato de compra e venda e de mútuo do que do «vulgar» contrato de locação operacional, v.g., de aluguer, previsto nos artigos 1022.º e seguintes do CC, acabando por equiparar-se ao regime de locação financeira. [...]. [...] as referidas autoliquidações de IUC são ilegítimas, ilegais, por violação do artigo 1.º e do n.º 2 do artigo 3.º, ambos do Código de IUC, devendo por isso ser anuladas e reembolsado à B… o respectivo IUC indevidamente pago”; m) “o registo do automóvel por parte do adquirente mais não constitui do que a presunção de que o direito de propriedade pertence ao sujeito que o registou. Todavia, tal presunção é ilidível”; n) “atento o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do Código de IUC, o legislador demonstra – de forma clara e evidente – que o valor do registo é declarativo, i.e., o seu objectivo é meramente o de publicitar a propriedade e não constitutivo do direito. Com efeito, limitar os sujeitos passivos de IUC apenas aos proprietários das viaturas em nome das quais as mesmas se encontrem registadas – ignorando as situações em que estas já não coincidam com os reais proprietários ou os reais utilizadores das mesmas, - constitui uma restrição que, à luz dos fins do IUC, não encontra base de sustentação”; o) “sendo manifesta a abertura que a lei fiscal deu ao contribuinte de fazer prova de que não é titular do direito de propriedade, através das facturas de venda das viaturas em apreço [as que se alega que foram alienadas antes da data de exigibilidade do imposto], encontra-se, de forma indubitável, ilidida a presunção de titularidade do direito de propriedade por parte da B… sobre aqueles veículos”; p) “a ora B… jamais poderá ser considerada como sendo o sujeito passivo do imposto, nos termos do n.º 1 do artigo 3.º do Código de IUC, uma vez que nas datas de exigibilidade do imposto não era a proprietária das viaturas em apreço. De facto, se atentarmos ao quadro que se anexa como doc. 7, facilmente se conclui, através da comparação das datas mencionadas nas colunas 4.ª e 11.ª («Data da exigibilidade do imposto» e «Data da factura de venda», respectivamente) que a B… na data da exigibilidade do imposto já não era a proprietária das aludidas viaturas. Consequentemente, a exigibilidade do imposto nos períodos de tributação a que respeitam as referidas autoliquidações deveria ser atribuída ao efectivo proprietário das aludidas viaturas, nessas datas, o qual não era a B…”; q) “as referidas autoliquidações de IUC são ilegais, por violação dos artigos 1.º e do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, devendo por isso ser anuladas e reembolsado à B… o respectivo IUC indevidamente pago”; r) “a prova documental produzida demonstra, outrossim, que nessas datas os veículos já tinham sido vendidos ou já tinham sido locados a terceiros. Por conseguinte, as autoliquidações aqui impugnadas, relativas a estes veículos, são ilegais, quer por erro nos pressupostos de facto, quer por vício de violação de lei, designadamente do disposto nos artigos 1.º, 2.º n.º 1, a) e d), 3.º, 4.º, 6.º e 11.º do CIUC”; s) “a B… beneficia da presunção de veracidade e boa fé de que gozam os documentos apresentados para prova da transmissão da propriedade ou locação dos veículos – como é o caso dos contratos de locação e das facturas de venda das viaturas aqui juntas (cfr. artigo 75.º, n.º 1, da LGT)”; t) “as autoliquidações aqui impugnadas padecem [...] de vício de violação dos princípios do inquisitório e da descoberta da verdade material, consagrados no artigo 58.º da LGT”; u) “não sendo devido imposto, pelas razões sobreditas, não são igualmente devidos quaisquer JC, acessórios do imposto principal, com base no qual são liquidados e do qual dependem. [...]. [...] os juros compensatórios, no caso concreto, padecem de vício de violação do disposto nos artigos 94.º do CIRC e 35.º da LGT”; v) “dado que as autoliquidações aqui impugnadas foram pagas, para além da devolução do IUC e JC indevidamente pagos, a B… tem direito a juros indemnizatórios, por erro de facto e de direito da AT ao exigir esse IUC e JC à B…, nos termos dos artigos 43.º e 100.º da LGT.”
2.2. Solicita a Requerente, em face do supra exposto: “a) a anulação, por ilegalidade, do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa; b) a anulação das autoliquidações de IUC e JC aqui impugnadas, com a consequente restituição da totalidade do IUC/JC indevidamente pago pela B…, Euro 54.579,23; c) o reconhecimento do direito da Requerente a juros indemnizatórios, nos termos legais; d) a condenação da Requerida no pagamento da taxa arbitral e demais encargos, se os houver.”
2.3. Por seu lado, a AT alega, na sua contestação, que: a) “da análise da reclamação graciosa interposta, verifica-se que tendo a mesma sido apresentada em 2015-10-09 e a data de pagamento mais recente ser de 2013-11-13, se encontra largamente ultrapassado o prazo de 120 dias (artigo 102.º, n.º 1, do CPPT, ex vi artigo 70.º, n.º 1, do mesmo Código), para a apresentação da mesma. Ora, não pode nunca a Requerente pretender justificar a tempestividade do pedido de pronúncia arbitral com base no indeferimento de uma reclamação graciosa extemporânea, na sua totalidade. [...]. Ou seja, não pode a Requerente fundamentar a tempestividade do recurso ao tribunal arbitral com base na apresentação de uma petição de reclamação graciosa integralmente extemporânea. Nem pode o tribunal deixar de apreciar a questão da tempestividade da reclamação graciosa, para efeitos de apreciação e decisão relativamente à tempestividade do pedido de pronúncia arbitral, que a AT contesta, nos termos dos documentos constantes do processo administrativo. [...]. [...] tendo a reclamação graciosa sido apresentada quando já tinha sido ultrapassado o prazo legal para apresentação da mesma, então o prazo que vigora para a impugnação, ora apresentada neste tribunal arbitral, são os 90 dias após a data do termo do prazo de pagamento voluntário do IUC. Na situação em apreço, o pedido de constituição de tribunal arbitral apresentado pela Requerente deu entrada em 2016-10-06, pelo que é extemporâneo. A extemporaneidade constitui excepção peremptória, nos termos do art. 576.º do Código de Processo Civil (aplicável subsidiariamente pelo art. 29.º do RJAT), que importa a absolvição da A.T. do pedido, uma vez que impede o efeito jurídico dos factos articulados pela Requerente”; b) “ainda que se concluísse estarmos perante contratos de locação financeira outorgados pela Requerente, sempre cabia a esta última demonstrar ter dado cumprimento à obrigação acessória imposta pelo artigo 19.º do CIUC. Ora, nenhuma prova fez a Requerente quanto ao cumprimento desta obrigação no que respeita aos veículos automóveis ora em análise. [...]. Não obstante, a Requerente alegar ter celebrado contratos de locação financeira, certo é que aquela é responsável pelo pagamento dos respectivos IUC, uma vez que não comunicou a existência de locação financeira a que alude o artigo 19.º do CIUC”; c) “o entendimento propugnado pela Requerente incorre não só de uma enviesada leitura da letra da lei, como da adopção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e decorre ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC”; d) “é imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas] as pessoas em nome das quais os mesmos [os veículos] se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal. Entender que o legislador consagrou aqui uma presunção, seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem. Em face desta redacção não é manifestamente possível invocar que se trata de uma presunção, conforme defende a Requerente”; e) “o artigo 3.º do CIUC não comporta qualquer presunção legal”; f) “também o elemento sistemático de interpretação da lei demonstra que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio na lei”; g) “à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pela Requerente, no sentido de que o sujeito passivo do imposto é o proprietário efectivo, independentemente de não figurar no registo automóvel o registo dessa qualidade, é manifestamente errada”; h) “os actos tributários em crise não enfermam de qualquer vício de violação de lei, na medida em que à luz do disposto no artigo 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC e do artigo 6.º do mesmo código, era a Requerente, na qualidade de proprietária, o sujeito passivo do IUC”; i) “as facturas não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois tais documentos não revelam por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte dos pretensos adquirentes. [...]. [...] a Requerente não juntou cópias do referido modelo oficial para registo da propriedade automóvel quando podia e devia tê-lo feito, ou seja, no requerimento do pedido de pronúncia arbitral, encontrando-se agora precludida a possibilidade de o fazer em momento ulterior. Acresce que a falta do carácter sinalagmático das facturas poderia ser suprida mediante a prova do recebimento do preço nelas constante por parte da Requerente”; j) “a competência para o registo automóvel não se encontra na esfera da Requerida, mas sim atribuída a várias entidades exteriores, designadamente ao Instituto dos Registos e do Notariado a quem cabe transmitir à Requerida as alterações que se venham a verificar quanto à propriedade dos veículos automóveis. [...]. Por outro lado, a transmissão da propriedade de veículos automóveis não é suscetível de ser controlada pela Requerida, pois inexiste qualquer obrigação acessória declarativa quanto a esta matéria, contrariamente ao controlo que é passível de ser realizado, por exemplo, por via do prévio pagamento de Imposto Municipal Sobre Transmissão de Imóveis em matéria de transmissão de prédios. Significa isto, portanto, que o IUC é liquidado de acordo com a informação registral oportunamente transmitida pelo Instituto dos Registos e Notariado. Dito de outra forma, o IUC não é liquidado de acordo com informação gerada pela própria Requerida”; l) “deverá a Requerente ser condenada ao pagamento das custas arbitrais decorrentes do presente pedido de pronúncia arbitral, nos termos do artigo 527.º/1 do CPC ex vi do artigo 29.º/1-e) do RJAT”; m) “de tudo quanto supra se expôs resulta claro que os atos tributários em crise são válidos e legais, porque conformes ao regime legal em vigor à data dos factos tributários, pelo que, não ocorreu, in casu, qualquer erro imputável aos serviços [...]. Assim sendo, não se encontram reunidos os pressupostos legais que conferem o direito aos juros indemnizatórios. Mas mesmo que assim não se entenda [...] é inegável que a Requerida se limitou a dar cumprimento ao artigo 3.º/1 do CIUC [...], pelo que também por aqui necessariamente terá de falecer o reconhecimento do direito ao pagamento de juros indemnizatórios.”
Conclui a AT que “deve ser julgada procedente, por provada, a exceção invocada nos termos do disposto no artigo 577.º-e) do CPC, na redacção dada pela Lei 41/2013 de 26 de junho, a qual dá lugar à absolvição da instância nos termos do artigo 278.º/1-d) do mesmo diploma legal; [e que] deverá ainda ser julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica os atos tributários de liquidação impugnados e absolvendo-se, em conformidade, a Requerida do pedido.”
III – Factualidade Provada, Não Provada e Respectiva Fundamentação
3.1. Consideram-se provados os seguintes factos:
i) A Requerente é uma instituição financeira especializada no ramo automóvel. Nesse contexto, adquire viaturas novas aos importadores nacionais … e … e por norma faz locações – leasing (locação financeira), ALD ou renting/AOV/aluguer ou locação operacional – dessas mesmas viaturas a favor de terceiros. Após o termo de tais contratos, por regra a ora Requerente procede à transmissão da propriedade das viaturas aos correspondentes locatários ou a terceiros, por um valor residual. Nos restantes contratos de locação, a viatura é vendida a uma terceira entidade após a cessação desses contratos.
ii) A ora Requerente procedeu ao pagamento voluntário de IUC alegadamente em falta, relativo às viaturas identificadas no pedido de pronúncia arbitral e relativo aos anos de 2009 a 2013, no montante total, em causa, de €54.579,23 (vd. Doc. n.º 4 apenso aos autos).
iii) Em data anterior àquela a que o imposto respeitava, as viaturas aqui em causa não eram propriedade da ora Requerente, conforme se pode observar pela leitura do Doc. n.º 6 apenso à petição inicial – o qual, dada a sua extensão, aqui se dará por reproduzido. Todas as vendas encontram-se suportadas pelas respectivas facturas de venda, as quais se encontram devidamente identificadas (foram também juntas cópias dos contratos).
iv) A ora Requerente apresentou, a 9/10/2015, reclamação graciosa contra as referidas autoliquidações de IUC e juros compensatórios, reclamação que foi indeferida por despacho de 27/6/2016, com base em alegada extemporaneidade. Como se pode ler na informação final que serviu de base ao referido despacho de indeferimento (vd. PA apenso), entendeu-se que, “sendo das liquidações reclamadas a data de pagamento mais recente é de 13/11/2013 e tendo em conta que a reclamação foi apresentada em 09/10/2015”, aplicar-se-ia “o prazo de 120 dias” (por se entender que se tratava “de uma reclamação de uma liquidação de um imposto, nos termos do art. 68.º do CPPT”), pelo que se concluiu que “fácil é verificar que o [referido] prazo [...] se encontra largamente ultrapassado”. Sucede, contudo, que, ao contrário do que se refere na informação final, a então reclamante pode “lançar mão do art. 131.º do CPPT”, visto que estão em causa autoliquidações de imposto (vd. art. 16.º, n.º 2, do CIUC), pelo que, sendo o prazo de dois anos, a referida reclamação não era extemporânea e, consequentemente, o presente pedido arbitral não poderá ser considerado extemporâneo (visto ter sido apresentado dentro do prazo de 90 dias a contar da data do indeferimento da reclamação graciosa).
3.2. Não há factos não provados relevantes para a decisão da causa.
3.3. Os factos considerados pertinentes e provados (v. 3.1) fundamentam-se na análise das posições expostas pelas partes e da prova documental junta aos autos.
IV – Do Direito
No presente caso, são quatro as questões de direito controvertidas: 1) saber se o artigo 3.º do CIUC contém uma presunção e se a ilisão da mesma foi feita; 2) saber se, como alega a AT, a interpretação da ora Requerente não atende aos elementos sistemático e teleológico de interpretação da lei; 3) saber se, como alega a AT, para efeitos da ilisão da presunção do artigo 3.º do CIUC, é forçoso que os locadores financeiros (como a ora Requerente) cumpram a obrigação ínsita no artigo 19.º do CIUC para se exonerarem da obrigação de pagamento do imposto; e 4) saber se são devidos juros indemnizatórios à Requerente.
Vejamos, então.
1) e 2) As duas primeiras questões de direito confluem na direcção da interpretação do art. 3.º do CIUC, pelo que se mostra necessário: A) saber se a norma de incidência subjectiva, constante do referido art. 3.º, estabelece ou não uma presunção; B) saber se, ao considerar-se que essa norma estabelece uma presunção, tal viola a “unidade do regime”, ou desconsidera o elemento sistemático e o elemento teleológico; C) saber – admitindo que a presunção existe (e que a mesma é iuris tantum) – se foi feita a ilisão da mesma.
A) O artigo 3.º, n.os 1 e 2, do Código do Imposto Único de Circulação, tem a seguinte redacção, que aqui se reproduz:
“Artigo 3.º – Incidência Subjectiva
1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.
A interpretação do texto legal citado é, naturalmente, imprescindível para a resolução do caso em análise. Nessa medida, afigura-se necessário recorrer ao art. 11.º, n.º 1, da LGT, e, por remissão deste, ao art. 9.º do Código Civil (CC).
Ora, nos termos do referido art. 9.º do CC, a interpretação parte da letra da lei e visa, através dela, reconstituir o “pensamento legislativo”. O mesmo é dizer (independentemente da querela objectivismo-subjectivismo) que a análise literal é a base da tarefa interpretativa e os elementos sistemático, histórico ou teleológico são guias de orientação da referida tarefa.
A apreensão literal do texto legal em causa não gera - ainda que seja muito discutível a separação desta relativamente ao apuramento, mesmo que mínimo, do respectivo sentido - a noção de que a expressão “considerando-se como tais” significa algo diverso de “presumindo-se como tais”. De facto, muito dificilmente encontraríamos autores que, numa tarefa de pré-compreensão do referido texto legal, repelissem, “instintivamente”, a identidade entre as duas expressões.
Confirmando a indistinção (tanto literal como de sentido) das palavras “considerando” e “presumindo” (presunção), vejam-se, por ex., os seguintes artigos do Código Civil: 314.º, 369.º, n.º 2, 374.º, n.º 1, 376.º, n.º 2, e 1629.º. E, com especial interesse, o caso da expressão “considera-se”, constante do art. 21.º, n.º 2, do CIRC. Como assinalam Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, a respeito desse artigo do CIRC: “para além de esta norma evidenciar que o que está em causa em sede de tributação de mais valias é apurar o valor real (o de mercado), a limitação ao apuramento do valor real derivada das regras de determinação do valor tributável previstas no CIS não poder deixar de ser considerada como uma presunção em matéria de incidência, cuja ilisão é permitida pelo artigo 73.º da LGT” (Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª ed., 2012, pp. 651-2).
B) Estes são apenas alguns exemplos que permitem concluir que é precisamente por razões relacionadas com a “unidade do sistema jurídico” (o elemento sistemático) que não se poderá afirmar que só quando se usa o verbo “presumir” é que se está perante uma presunção, dado que o uso de outros termos ou expressões (literalmente similares) também podem servir de base a presunções. E, de entre estas, as expressões “considera-se como” ou “considerando-se como” assumem, como se viu, destaque.
Se a análise literal é apenas a base da tarefa, afigura-se, naturalmente, imprescindível a avaliação do texto à luz dos demais elementos (ou subelementos do denominado elemento lógico). Com efeito, a AT alega, também, que a interpretação da Requerente não atende ao elemento sistemático e que, à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pela ora Requerente é errada.
Justifica-se, portanto, averiguar se a interpretação que considere a existência de uma presunção no art. 3.º do CIUC colide com o elemento teleológico, i.e., com as finalidades (ou com a relevância sociológica) do que se pretendia com a regra em causa. Ora, tais finalidades estão claramente identificadas no início do CIUC: “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária” (vd. art. 1.º do CIUC).
O que se pode inferir deste artigo 1.º? Pode inferir-se que a estreita ligação do IUC ao princípio da equivalência (ou princípio do benefício) não permite a associação exclusiva dos “contribuintes” aí referidos à figura dos proprietários mas antes à figura dos utilizadores (ou dos proprietários económicos). Como bem se assinalou na DA proferida no proc. n.º 73/2013-T: “na verdade, a ratio legis do imposto [IUC] antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, o «proprietário económico» no dizer de Diogo Leite de Campos, os efectivos proprietários ou os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade.”
C) Do exposto retira-se a conclusão de que limitar os sujeitos passivos deste imposto apenas aos proprietários dos veículos em nome dos quais os mesmos se encontrem registados - ignorando as situações em que estes já não coincidam com os reais proprietários ou os reais utilizadores dos mesmos -, constitui restrição que, à luz dos fins do IUC, não encontra base de sustentação. E, ainda que se alegue a intenção do legislador foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários aqueles que, como tal, constem do registo automóvel, é necessário ter presente que tal registo, em face do que foi dito anteriormente, gera apenas uma presunção ilidível, i.e., uma presunção que pode ser afastada pela apresentação de prova em contrário. Neste sentido, vd., p. ex., o Acórdão do TCAS de 19/3/2015, processo 8300/14: “O [...] art. 3.º, n.º 1, do CIUC, consagra uma presunção legal de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário, sendo que tal presunção é ilidível”.
Seria, aliás, injustificada a imposição de uma espécie de presunção inilidível, uma vez que, sem uma razão aparente, estar-se-ia a impor uma (reconhecidamente discutível) verdade formal em detrimento do que realmente podia e teria ficado provado; e, por outro lado, a afastar o dever da AT de cumprimento do princípio do inquisitório estabelecido no art. 58.º da LGT, i.e., o dever de realização das diligências necessárias para uma correcta determinação da realidade factual sobre a qual deve assentar a sua decisão (o que significa, no presente caso, a determinação do proprietário actual e efectivo do veículo).
Acresce que, se não se permitisse ao vendedor a ilisão da presunção constante do art. 3.º do CIUC, estar-se-ia a beneficiar, sem uma razão plausível, os adquirentes que, na posse de formulários de contratos de aquisição correctamente preenchidos e assinados, e usufruindo das vantagens associadas à sua condição de proprietários, se tentassem eximir, por via de um “formalismo registral”, ao pagamento de portagens ou coimas.
A este propósito, convém notar, também, que o registo de veículos não tem eficácia constitutiva, funcionando, como antes se disse, como uma presunção ilidível de que o detentor do registo é, efectivamente, o proprietário do veículo. Neste sentido, vd., v.g., o Ac. do STJ de 19/2/2004, proc. 03B4639: “O registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao acto registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível, (presunção «juris tantum») da existência do direito (art.s 1.º, n.º 1 e 7.º, do CRP84 e 350.º, n.º 2, do C.Civil) bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constantes.”
No mesmo sentido, referiu, a este respeito, a DA proferida no proc. n.º 14/2013-T, em termos que aqui se acompanham: “a função essencial do registo automóvel é dar publicidade à situação jurídica dos veículos não surtindo o registo eficácia constitutiva, funcionando (apenas) como mera presunção ilidível da existência do direito, bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constante. A presunção de que o direito registado pertence à pessoa em cujo nome está inscrito pode ser ilidida por prova em contrário. Não preenchendo a AT os requisitos da noção de terceiro para efeitos de registo [circunstância que poderia impedir a eficácia plena dos contratos de compra e venda celebrados], não pode prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade para pôr em causa a eficácia plena do contrato de compra e venda e para exigir ao vendedor (anterior proprietário) o pagamento do IUC devido pelo comprador (novo proprietário) desde que a presunção da respectiva titularidade seja ilidida através de prova bastante da venda.”
Como bem salienta a DA proferida no proc. 845/2015-T, de 30/10/2015, “o artigo 72.º da Lei Geral Tributária permite a utilização «para o conhecimento dos factos necessários à decisão do procedimento todos os meios de prova admitidos em direito». A Requerida não suscitou qualquer incidente de impugnação da veracidade destes meios de prova. Aliás, a mesma não alegou que este meio de prova fosse falso, in casu, mas apenas que «as facturas juntas não são documentos aptos a comprovar, por si só, as supostas vendas dos veículos aqui em causa, uma vez que não passam de documentos unilateralmente emitidos pela Requerente». Não referindo especificamente nenhum caso em que não tivessem sido efectuadas as vendas. Ademais, todas as facturas têm de ser elaboradas através de software certificado, conforme a Portaria n.º 22-A/2012, de 24 de Janeiro. Sendo que as mesmas são utilizadas para contabilização de IVA e IRC. Portanto, se para efeitos destes impostos as facturas são aceites pela Autoridade Tributária, não há qualquer razão para, in casu, não permitir a sua utilização como meio de prova, tendo como base especulações genéricas.”
Note-se, ainda, a respeito da força probatória das facturas, a DA proferida no proc. n.º 27/2013-T, de 10/9/2013, onde se salienta que “os documentos apresentados, particularmente as cópias das facturas que suportam, desde logo, as vendas [dos] veículos [...] referenciados, [...] corporizam meios de prova com força bastante e adequados para ilidir a presunção fundada no registo, tal como consagrada no n.º 1 do art. 3.º do CIUC, documentos, esses, que gozam, aliás, da presunção de veracidade prevista no n.º 1 do art. 75.º da LGT.”
Neste mesmo sentido, veja-se, por último, a DA proferida no proc. n.º 230/2014-T, de 22/7/2014: “os elementos documentais, constituídos por cópias das respectivas facturas de venda [...] gozam da força probatória prevista no artigo 376.º do Código Civil e da presunção de veracidade que é conferida pelo art. 75.º, n.º 1, da LGT, tendo, assim, idoneidade e força bastante para ilidir a presunção que suportou as liquidações efetuadas. Estas operações de transmissão de propriedade são oponíveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, porquanto, embora os factos sujeitos a registo só produzam efeitos em relação a terceiros quando registados, face ao disposto no art. 5.º, n.º 1, do Código do Registo Predial [aplicável por remissão do Código do Registo Automóvel], a Autoridade Tributária não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que não se encontra na situação prevista no n.º 2 do referido art. 5.º do Código do Registo Predial, aplicável por força do Código do Registo Automóvel, ou seja: não adquiriu de um autor comum direitos incompatíveis entre si. Quanto à prova de venda de veículos, ela pode ser feita por qualquer meio, uma vez que a Lei não exige forma específica, designadamente, escrita.”
Nesta sequência, justifica-se, ainda, acrescentar que também se mostra evidente, em face da prova documental apresentada, que a Requerente não deve ser tida como proprietária, conforme se pode observar pela leitura do Doc. n.º 6 apenso à petição inicial – o qual, dada a sua extensão, aqui se dará por reproduzido. Todas as vendas encontram-se suportadas pelas respectivas facturas de venda, as quais se encontram devidamente identificadas (tendo sido também juntas cópias dos contratos) – dado que essa prova documental é decisiva para efeitos de aplicação do disposto no art. 3.º, n.º 2, do CIUC. Com efeito, a prova documental foi feita e não foi posta em causa a veracidade desses documentos por parte da Requerida, ainda que esta entenda que a ora Requerente deveria ter demonstrado o cumprimento da obrigação ínsita no (então vigente) art. 19.º do CIUC [sobre este argumento, vd. infra, 3)].
Convém notar, ainda, que, embora no caso da locação financeira o locador se obrigue a adquirir o bem a locar (e, no ALD, o locador só se obrigue a proporcionar o gozo da coisa), e o locatário, no fim do contrato, tenha o direito potestativo de adquirir o bem locado pelo preço previamente estipulado (e, no ALD, tal não se verifique) – ver, a este respeito destas diferenças, e.g., o Ac. do STJ de 20/11/2003, proc. 03B3725 –, certo é que, à luz da parte final do n.º 2 do art. 3.º do CIUC, são equiparados à condição de proprietários sujeitos de imposto, os “locatários financeiros”, “os adquirentes com reserva de propriedade”, e “outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação” (pode tratar-se de um leasing, um ALD ou um renting, mas sempre com o referido direito de opção de compra associado). Em suma: se os referidos contratos de aluguer contiverem este direito de opção (e tal sucede no presente caso, como bem assinalou a Requerente no ponto 54 da sua p.i.), é-lhes aplicável o disposto na parte final do n.º 2 do art. 3.º do CIUC.
Neste sentido, vd., p. ex., Agostinho Cardoso Guedes (em “A incidência subjectiva do imposto único de circulação no âmbito dos contratos de locação financeira ou outros contratos de locação com opção de compra”, in: Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas, 23, 2013, pp. 17-18): “O locatário financeiro é tratado pela lei como um quase-proprietário. [...]. Percebe-se, assim, que a obrigação de pagamento do IUC recaia sobre o locatário financeiro e não sobre o locador atentas as características da sua posição jurídica. O mesmo se passa relativamente ao adquirente com reserva de propriedade. [...]. Ainda semelhante à posição do locatário financeiro é a do locatário com opção de compra. Também aqui o locatário tem o gozo exclusivo do bem locado e tem o direito de adquirir a respectiva propriedade (sem que o locador se possa opor a essa aquisição). Ou seja, nas três situações referidas pelo legislador no art. 3.º, n.º 2, do CIUC, temos dois aspectos comuns: o locatário/adquirente tem o gozo exclusivo do bem e tem o direito (ou a expectativa) de se tornar proprietário a curto ou médio prazo.”
No mesmo sentido, veja-se a DA proferida no processo n.º 244/2014-T, de 2/10/2014: “Apesar da existência de contratos de aluguer relativamente a estes veículos, os contratos em causa não se subsumem no n.º 2 do art. 3.º do CIUC, uma vez que do conteúdo dos mesmos não emergem direitos de opção de compra, circunstância prevista na norma em questão para efeitos da sua aplicação, pelo que, em tais casos, o sujeito passivo não é o locatário mas sim o proprietário do veículo, nos termos do n.º 1 deste artigo.”
3) Alega, ainda, a Requerida (vd. pontos 30.º ss. da sua resposta) que, para efeitos da ilisão da presunção do art. 3.º do CIUC, é forçoso que os locadores financeiros (como a ora Requerente) cumpram a obrigação ínsita no artigo 19.º do CIUC para se exonerarem da obrigação de pagamento do imposto.
Não procede, contudo, o referido entendimento da AT, dado que, como bem se referiu, por exemplo, na DA proferida no proc. n.º 14/2013-T, de 15/10/2013, “o locatário financeiro é equiparado a proprietário para efeitos do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, o mesmo é dizer para ser sujeito passivo do IUC (Cfr. n.º 2 do art. 3.º). [...] não dispondo o locador, por imposição legal e contratual, do potencial de utilização do veículo e tendo o locatário o gozo exclusivo do automóvel, [e reafirmando-se] a conclusão a que já tínhamos chegado de que [...] manda a ratio legis do CIUC que, nos termos do referido n.º 2 do artigo 3.º deste Código, seja o locatário o responsável pelo pagamento do imposto, uma vez que é ele que tem o potencial de utilização do veículo e provoca os custos viários e ambientais a ele inerentes. À mesma conclusão se chega quando se verifica a importância dada aos utilizadores dos veículos locados no artigo 19.º do CIUC. Com efeito, nos termos do disposto neste artigo, as entidades que procedam, designadamente, à locação financeira de veículos ficam obrigadas a fornecer à AT (ex-DGCI), a identidade fiscal dos utilizadores dos veículos locados para efeitos do disposto no artigo 3.º do CIUC (incidência subjectiva), bem como do n.º 1 do artigo 3.º da Lei da respectiva aprovação, uma vez que nos termos desta norma da Lei n.º 22-A/2007, se a receita gerada pelo IUC for incidente sobre veículos objecto de aluguer de longa duração ou de locação operacional, deve ser afecta ao município de residência do respectivo utilizador (sublinhados nossos). [...] [Mas, apesar dessa obrigação, tal não impede que,] na data da ocorrência do facto gerador do imposto, vigor[e] um contrato de locação financeira que tem por objecto um automóvel, para efeitos do disposto no artigo 3.º, nºs. 1 e 2, do CIUC, [sendo que o] sujeito passivo do IUC é o locatário mesmo que o registo do direito de propriedade do veículo se encontre feito em nome da entidade locadora, desde que esta faça prova da existência do referido contrato.” (Itálicos nossos.)
Pelo exposto, improcede a alegação da AT relativa ao art. 19.º do CIUC, uma vez que a mesma visa sobrepor uma obrigação de cariz formal a uma realidade substancial claramente demonstrativa da condição da Requerente como entidade locadora nos contratos subjacentes.
4) Uma nota final para apreciar, ao abrigo do artigo 24.º, n.º 5, do RJAT, o pedido de pagamento de juros indemnizatórios a favor da Requerente (art. 43.º da LGT e 61.º do CPPT).
A este respeito, assinala a DA proferida no processo n.º 26/2013-T, de 19/7/2013 (que tratou de situação semelhante à ora em apreciação): “O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT. [...] ainda que se reconheça não ser devido o imposto pago pela requerente, por não ser o sujeito passivo da obrigação tributária, determinando, em consequência, o respectivo reembolso, não se lobriga que, na sua origem, se encontre o erro imputável aos serviços, que determina tal direito [a juros indemnizatórios] a favor do contribuinte. Com efeito, ao promover a liquidação oficiosa do IUC considerando a requerente como sujeito passivo deste imposto, a AT limitou-se a dar cumprimento à norma do n.º 1 do art. 3.º do CIUC, que, como acima abundantemente se referiu, imputa tal qualidade às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.” Neste mesmo sentido, ver, por exemplo, as DA proferidas nos processos: n.º 170/2013-T, de 14/2/2014; n.º 136/2014-T, de 14/7/2014; n.º 230/2014-T, de 22/7/2014; e n.º 140/2014-T, de 29/8/2014.
Atendendo à justificação citada, e com a qual se concorda, conclui-se, igualmente no presente caso, pela improcedência do referido pedido de pagamento de juros indemnizatórios.
***
V – DECISÃO
Em face do supra exposto, decide-se:
- Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a consequente anulação, com todos os efeitos legais, dos actos de liquidação em causa e o reembolso das importâncias indevidamente pagas;
- Julgar improcedente o pedido na parte que diz respeito ao reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor da requerente.
Fixa-se o valor do processo em €54.579,23 (cinquenta e quatro mil quinhentos e setenta e nove euros e vinte e três cêntimos), nos termos do art. 32.º do CPTA e do art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
Custas a cargo da Requerida, no montante de €2142,00 (dois mil cento e quarenta e dois euros), nos termos da Tabela I do RCPAT, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do disposto no art. 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique.
Lisboa, 27 de Março de 2017.
O Árbitro
(Miguel Patrício)
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Texto elaborado em computador, nos termos do disposto
no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.