Decisão Arbitral
Os árbitros Fernanda Maçãs (árbitro presidente), Dr. António Martins e Dr.ª Manuela Roseiro, acordam o seguinte:
I.Relatório
1.A…, SGPS, S.A. (que também já foi denominada “B…, SGPS, S.A.” e “C…, SGPS, S.A.”), NIF/NIPC…, com sede na Rua…, n.º…, …, …-… Lisboa (“Requerente” ou “A…”), localizada no âmbito territorial do Serviço de Finanças de Lisboa…, veio, ao abrigo dos artigos 2.º e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na qualidade de sociedade dominante de um Grupo de sociedades, apresentar pedido de pronúncia arbitral contra o indeferimento da reclamação por si apresentada contra (i) a autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) relativa ao exercício de 2012, (ii) a demonstração de liquidação de IRC n.º2015… – com valor a reembolsar de € 192.353,12 – e a demonstração de acerto de contas n.º2015…, bem como a demonstração de liquidação do IRC n.º2014… e a demonstração de acerto de contas n.º2015… .
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 28-06-2016.
2.1.No exercício da opção de designação de árbitro prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT e em cumprimento do disposto na alínea g) do n.º 2 do artigo 10.º e no n.º 2 do artigo 11.º, do mesmo diploma, a Requerente designou como Árbitro o Prof. Doutor Martins.
2.2.Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º e do n.º 3 do artigo 11.º do RJAT, e dentro do prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, o dirigente máximo do serviço da Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) designou como Árbitro o Prof. Doutor João Ricardo Catarino.
2.3.De acordo com o disposto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do CAAD notificou a Requerente da designação do Árbitro pelo dirigente máximo do serviço da Administração Tributária a 05-08-2016 e notificou os árbitros designados pelas partes para designarem o terceiro árbitro que assume a qualidade de Árbitro presidente, tendo os Exmos. Árbitros designados pelas partes acordado, em 29-08-2016, na designação da Conselheira Maria Fernanda dos Santos Maçãs como Árbitro Presidente.
2.4.Em 29-08-2016, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes dessa designação, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT.
2.5.Em conformidade com o preceituado no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 13-12-2016.
2.6. Por renúncia do Árbitro Prof. Doutor João Ricardo Catarino, a Autoridade Tributária designou como substituto a Drª Manuela Roseiro.
2.7.Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.
3. A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral a Requerente alega, em síntese, o seguinte:
a) Não poder aceitar a correcção ao crédito de imposto por dupla tributação internacional, no montante de € 1.503,64, efectuado pela AT, porquanto “a Convenção entre a República de Cabo Verde e a República Portuguesa para Evitar a Dupla Tributação em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e Prevenir a Evasão Fiscal[1] (CDT PT/CV) deve prevalecer sobre o CIRC e (ii) qual o modo de cálculo do crédito de imposto por dupla tributação internacional – que visa precisamente atenuar e/ou eliminar a dupla tributação jurídica internacional – consagrado no artigo 23.º n.º 1 al. a) da CDT PT/CV.”, nos termos do artigo 8.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
b) Isto mesmo foi reconhecido pela AT no Ofício Circulado n.º 31051, de 28/05/1998
c) O artigo 23.º n.º 1 al. a) da CDT PT/CV estabelece que: «Quando um residente de um Estado Contratante obtiver rendimentos que, de acordo com o disposto nesta Convenção, possam ser tributados no outro Estado Contratante, o primeiro Estado deduzirá do imposto sobre os rendimentos desse residente uma importância igual ao imposto sobre o rendimento pago nesse outro Estado. A importância deduzida não poderá, contudo, exceder a fracção do imposto sobre o rendimento, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que podem ser tributados nesse outro Estado» (sublinhado nosso)
d) Para a Requerente “O cerne da questão encontra-se assim naquilo que deva ser entendido por rendimentos que podem ser tributados no Estado da fonte, expressão que corresponde à terceira, e última, das passagens transcritas”, o que nos remete, segundo a Requerente, para “a CDT PT/CV, designadamente à norma em que se determinam quais os rendimentos que podem ser tributados no Estado da fonte, isto é, em Cabo Verde”.
e) “No caso em apreço – e estando nós perante a tributação de royalties – teremos que recorrer ao artigo 12.º n.º 2 da CDT PT/CV, que estipula que: «essas royalties podem ser igualmente tributadas no Estado Contratante de que provêm [in casu, Cabo Verde] e de acordo com a legislação desse Estado, mas se a pessoa que receber as royalties for o seu beneficiário efectivo, o imposto assim estabelecido não excederá 10% do montante bruto das royalties» (sublinhado nosso)”.
f) “Assim, de acordo com este preceito, o imposto que o Estado de Cabo Verde pode lançar sobre as royalties incidirá sobre o montante/rendimento bruto das mesmas e não sobre o seu montante/rendimento líquido, não sendo assim deduzidas quaisquer quantias a título de gastos incorridos com a respectiva obtenção.”
g) “Ora, como vimos, a fracção do imposto sobre o rendimento a calcular nos termos do artigo 23.º n.º 1 al. a) da CDT PT/CV faz apelo aos rendimentos que podem ser tributados no outro Estado,
h) “pelo que correspondendo tais rendimentos ao montante bruto – e não líquido – das royalties, é esse montante que deve ser tido em conta para efeitos de determinação da fracção de imposto.” Solução acolhida, segundo a Requerente, pelo CAAD no processo n.º 369/2015-T.
i) Em relação aos benefícios fiscais instituídos pelo RFAI, a Requerente defende “que os mesmos podem ser deduzidos não apenas à colecta de IRC do Grupo e à derrama estadual da sociedade que os apurou – posição perfilhada pela AT – mas também à derrama estadual de todo o Grupo (...)”.
j) Segundo a Requerente “O RFAI 2009 – que opera pode dedução à colecta[2] - foi instituído pela Lei 10/2009, de 10/03, que criou um programa orçamental designado por Iniciativa para o Investimento e o Emprego, que visava «promover o crescimento económico e o emprego, contribuindo para o reforço da modernização e da competitividade do País, das qualificações dos Portugueses, da independência e da eficiência energética, bem como para a sustentabilidade ambiental e promoção da coesão social» (artigo 2.º n.º 2 do referido diploma)”, tendo sido levadas a efeito diversas alterações à legislação fiscal, designadamente em sede de IRC (artigos 8.º e 13.ºda Lei 10/2009).
k) “(…) o RFAI 2009 permitia que determinados investimentos realizados em activos imobilizados corpóreos e incorpóreos – artigo 2.º n.º 2 do RFAI 2009 - fossem deduzidos à colecta de IRC até à concorrência de 25% da mesma – artigo 3. n.º 1 do RFAI 2009 -, o que representa uma redução apreciável da taxa efectiva de imposto e nos demonstra cabalmente – se dúvidas ainda houvesse – que o objectivo essencial deste regime era fomentar o investimento empresarial.
l) De acordo com o artigo 90.º n.º 2 do CIRC “(…) desde que a dedução respeitante à dupla tributação internacional não esgote a possibilidade de dedução à colecta, os benefícios fiscais - in casu, o RFAI 2009 -, poderão ser deduzidos «ao montante apurado nos termos do número anterior».”
m) Ora, este preceito refere-se, sem margem para quaisquer dúvidas, à liquidação final de IRC, da qual consta o total do montante de imposto a pagar a este título e que inclui não só a colecta de IRC stricto sensu, mas também a derrama estadual e as tributações autónomas,
n) Segundo a Requerente como “(…) o n.º 1 do artigo 90.º menciona a liquidação do IRC que se processa com base na declaração de rendimentos apresentada pelos sujeitos passivos ao abrigo do artigo 120.º do CIRC, da qual consta não apenas a matéria colectável que servirá de base ao cálculo da colecta de IRC stricto sensu, mas também o lucro tributável a partir do qual será calculada a derrama estadual e os eventuais gastos aos quais serão aplicáveis as tributações autónomas.
o) “Assim, a interpretação literal do artigo 90.º n.º 2 – e que mais de acordo se encontra com a ratio na base do RFAI 2009 – é aquela que permite que os benefícios fiscais que operem por dedução à colecta – designadamente o RFAI 2009 – o sejam (deduzidos) à totalidade do IRC a pagar pelo sujeito passivo – e, portanto, também à derrama e tributações autónomas – e não apenas à colecta de IRC stricto sensu.”
p) Isto porque segundo a Requerente é reconhecido pela jurisprudência e doutrina que, apesar de conterem algumas especificidades face ao regime geral, “as tributações autónomas são componentes do IRC”.
q) Para a Requerente “se se considerar que a liquidação das tributações autónomas não tem enquadramento na norma de liquidação do IRC consagrada no artigo 90.º do CIRC, então a autoliquidação do IRC na parcela correspondente às tributações autónomas teria que se considerar nula, pelo simples facto de inexistir qualquer outra norma que estabeleça os termos pelos quais se deve processar a sua liquidação”.
r) A solução por si perfilhada é, segundo a Requerente, a que melhor permite conciliar os objectivos prosseguidos pelo legislador através da criação do RFAI e da figura das tributações autónomas, como ficou consignado no Acórdão do CAAD Processo n.º 369/2015-T.
s) Por outro lado, a existência de um Grupo pressupõe a existência de uma única colecta de IRC - que inclui naturalmente a derrama estadual e as tributações autónomas -, constituída pelo imposto a pagar por todas as sociedades que compõem o mesmo.
t) Assim sendo, conclui a Requerente que “assumindo que o RFAI 2009 poderá ser deduzido à colecta das tributações autónomas, não podemos deixar de entender que a colecta aqui em causa é a que resulta do apuramento das tributações autónomas pelo Grupo, o que, segundo a decisão proferida pelo CAAD no Processo n.º 369/2015-T, «decorre directamente da lei».”
u) Finalmente, no que respeita à fixação do limite nos termos do artigo 92.º do CIRC, defende a Requerente que “os benefícios fiscais que não são utilizados num determinado exercício em resultado da aplicação do artigo 92.° do CIRC continuam disponíveis para utilização nos exercícios posteriores -, já que o limiar da tributação efectiva instituído por esta norma se vê sempre respeitado.”
v) Com efeito, de acordo com o artigo 3.º n.º 3 do RFAI 2009, «quando a dedução referida no número anterior não possa ser efectuada integralmente por insuficiência de colecta, a importância ainda não deduzida pode sê-lo, nas mesmas condições, nas liquidações dos quatro exercícios seguintes».
w) Para a Requerente, “este preceito funciona, em substância, como uma excepção ao limite (à dedução à colecta) constante do artigo 3.º n.º 1 al. a) do RFAI 2009, permitindo assim que os benefícios que não puderam ser utilizados num determinado ano o sejam nos quatro exercícios seguintes, desde que haja colecta para tal.
x) Assim sendo, “o montante do RFAI 2009 que não seja utilizado no exercício de 2009 – ou do RFAI 2009 apurado no exercício de 2010 ou 2011 que não seja utilizado nos respectivos exercícios - por aplicação do artigo 92.º do CIRC, poderá ser utilizado ainda nos quatro exercícios seguintes – por aplicação do artigo 3.º n.º 3 do RFAI 2009 -, desde que, obviamente, o limite do artigo 92.º do CIRC seja respeitado.”
y) A Requerente termina pedindo: i) A anulação do acto tributário impugnado com as devidas consequências legais, nomeadamente, em sede de devolução do IRC indevidamente pago, e acerto dos respectivos benefícios fiscais a serem reportados para o futuro; ii) O pagamento dos juros indemnizatórios ao abrigo do artigo 43.º da LGT.
5. A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta e juntou processo instrutor, invocando em síntese, o seguinte:
5.1. Por excepção
a) A Requerida suscita a incompetência do Tribunal Arbitral para reconhecimento do direito de reportar o benefício fiscal RFAI para exercícios fiscais futuros, uma vez que a competência dos tribunais arbitrais é, desde logo, circunscrita às matérias indicadas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, conjugada com o disposto na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, ex vi artigo 4.º do RJAT.
b) Aquelas disposições normativas não contemplam a possibilidade de apreciação dos pedidos formulados pela Requerente.
c) Para a Requerida “Como decorre do previsto no artigo 24.º do RJAT, a definição dos actos em que se deve concretizar a execução de julgados arbitrais compete, em primeira linha, à AT, com possibilidade de recurso aos tribunais tributários para requerer coercivamente a execução, no âmbito do processo de execução de julgados, previsto no artigo 146.º do CPPT e artigos 173.º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos - Cfr. acórdão arbitral de 2015-01-15, proferido no processo n.º 587/2014-T (págs. 3 a 6)”.
5.2. Por impugnação
a) Quanto ao crédito de imposto por dupla tributação internacional, os serviços de Inspecção Tributária fundamentaram a correcção em apreço tendo por base a interpretação de que, nos casos de dupla tributação internacional, o art. 23º da CDT Portugal/ Cabo Verde estabelecia a possibilidade de o sujeito passivo deduzir no seu estado de residência o imposto pago no Estado fonte do rendimento, limitada, contudo, à proporção do imposto calculado no Estado da residência respeitante aos rendimentos obtidos no outro Estado.
b) As Convenções celebradas por Portugal para evitar a Dupla Tributação em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e o Capital baseiam-se, na sua generalidade, no Modelo de Convenção de Dupla Tributação proposto pela OCDE, o qual, como qualquer convenção-tipo, se limita a traçar uma minuta ou recomendação de redacção convencional que as partes deverão seguir na elaboração das Convenções que celebrem, pelo que esse Modelo nunca se pode sobrepor às condições bilaterais concretamente acordadas entre os Estados se o respectivo conteúdo não constar da convenção que estes celebrem.
c) A par dos artigos que formam o propriamente dito Modelo de Convenção da OCDE, fazem também parte dele os Comentários, que constituem um elemento interpretativo útil na descoberta do sentido das normas que aquele propõe.
d) Segundo a Requerida, “Nos comentários ao n.º 1 do Artigo 23.º-B da Convenção Modelo da OCDE – cujo texto foi acolhido na elaboração do artigo 23.º da CDT Portugal/Cabo Verde – é referido, no parágrafo 63, que «a dedução máxima é normalmente calculada do mesmo modo que o imposto sobre o rendimento líquido, ou seja, sobre o rendimento do Estado [da fonte do rendimento] menos as deduções autorizadas (específicas ou proporcionais) conexas com tais rendimentos (…). Por esse motivo, a dedução máxima, em muitos casos, pode ser inferior ao imposto efectivamente pago no Estado [da fonte do rendimento][3]».”
e) Para a Requerida, quer à luz da Convenção, quer do artigo 91.º, alínea b), do CIRC, os rendimentos a ter em conta são os rendimentos líquidos dos gastos suportados para a sua obtenção, interpretação que não é posta em causa pelo facto de no artigo 12.º, n.º2, da Convenção Portugal/Cabo verde, se referir a expressão “rendimento bruto”, como pretende a Requerente.
f) “Assim, a interpretação da requerente, porquanto não abrange a totalidade das situações que podem ocorrer a coberto da CDT Portugal/Cabo Verde, não é válida para a aplicação do art. 23º nº 1 al.a) da CDT Portugal/Cabo Verde.”
g) Quanto à pretensa dedução dos benefícios fiscais instituídos pelo RFAI 2009 à colecta da derrama estadual e das tributações autónomas de todo o grupo, argumenta a Requerida, entre o mais, que as tributações autónomas incidem sobre certas despesas e funcionam de modo diferente do que constitui o escopo essencial do IRC, que tributa rendimentos, não obstante a sua inserção sistemática e a ligação funcional ao IRC.
h) Para Requerida, as tributações autónomas são apuradas de forma autónoma e distinta do apuramento processado nos termos do artigo 90.º do CIRC.
i) Com efeito, “a integração das tributações autónomas, no Código do IRC (e do IRS), conferiu uma natureza dualista1, em determinados aspectos, ao sistema normativo deste imposto, que se corporizou, nomeadamente, no quadro da alínea a) do n.º 1 do art.º 90.º do CIRC, em apuramentos separados das respectivas colectas, por força de obedecerem a regras diferentes.
j) “E isso, pois, num caso, trata-se da aplicação da(s) taxa(s) do art.º 87.º do CIRC à matéria colectável determinada segundo as regras contidas no capítulo III do Código e, noutro caso, trata-se da aplicação das taxas aos valores das matérias colectáveis relativas às diferentes realidades contempladas no art.º 88.º do CIRC.”
k) Em defesa da sua tese sobre a diferente natureza e finalidades distintas das tributações autónomas em relação ao IRC invoca, para além de alguma doutrina, o voto de vencido inserto no Acórdão do CAAD processo n.º 5/2016-T, o qual, por sua vez, também se suporta na doutrina do Acórdão do CAAD processo n.º 722/2015-T.
l) “De igual modo”, para a Requerida, “o carácter autónomo das tributações previstas no art.º 88.º e conflituante com as normas do regime geral do IRC projecta-se também no quadro dos benefícios fiscais que assumem a modalidade técnica de deduções à colecta materializada nos termos do art.º 90.º, n.º 2, alínea b), como o SIFIDE II ou o RFAI, dada a articulação entre tais medidas e a matéria colectável determinada com base no lucro é indissociável (…)”.
m) “A dedução à colecta de uma certa percentagem das despesas com aplicações relevantes (cfr., alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 4.º do SIFIDE II e alínea a), n.º 1, art.º 3.º do RFAI) representa um “prémio” às empresas lucrativas, sendo tanto mais elevada quanto maior o lucro e, consequentemente, a matéria colectável.”
n) “Por conseguinte, inexistindo qualquer interconexão material entre tais benefícios fiscais e as realidades que corporizam os factos geradores das tributações autónomas em IRC, por contraste com a associação desses benefícios fiscais à grandeza “lucro” que serve de base à determinação da matéria colectável, só por uma interpretação simplificadora e feita em termos puramente abstractos poderia levar defender a tese de que as deduções ao abrigo do art.º 90.º, n.º 2, alínea b), por conta do SIFIDE II ou do RFAI, poderiam ser efectuados ao imposto resultante das tributações autónomas.”
o) Conclui a Requerida que “as deduções relativas ao RFAI são definidas tendo por referência a colecta da derrama estadual apurada pela sociedade individual a que, foi atribuído o beneficio e não, como pretende forçar a Requerente, ao somatório das derramas estaduais apuradas no grupo.”
p) No que se refere ao resultado da liquidação (artigo 92.º do CIRC) e o RFAI 2009, para a AT a posição da Requerente não qualquer suporte legal, porquanto, entre o mais,“o RFAI constitui-se como um benefício fiscal de carácter dinâmico, na medida em que pretende incentivar determinadas actividades, operando por dedução à colecta, e o artigo 92.° do CIRC teve na sua génese o intuito de limitar a redução da taxa efectiva de tributação de IRC por utilização de benefícios fiscais”.
q) “Assim, no âmbito do RFAI, às empresas que cumpram com os requisitos de elegibilidade é, designadamente, concedido o benefício fiscal de dedução à colecta de IRC, até à concorrência de 25% da mesma das seguintes importâncias: 20% do investimento relevante, relativamente ao investimento até ao montante de 5.000.000€ e 10% do investimento relevante, relativamente ao investimento de valor superior a 5.000.000€, cfr. art. 3º nº 1, al.a) do RFAI.
r) “O montante global dos incentivos fiscais concedidos nos termos do RFAI está ainda sujeito aos limites máximos aplicáveis ao investimento com finalidade regional para o período de 2007/2013, em vigor na região na qual o investimento seja realizado, cfr. nº 5 do art. 3º e art. 7º do RFAI.
s) “Refere ainda o nº 3 do art. 3º do RFAI que, quando a dedução de 25% à colecta não possa ser efectuada integralmente por insuficiência de colecta, a importância ainda não deduzida pode sê-lo, nas mesmas condições, nos quatro exercícios seguintes”.
t) “Donde, o valor do RFAI não deduzido, por força da aplicação do disposto no art.º 92.º do CIRC, não poderá integrar o saldo do benefício utilizável nos exercícios seguintes”, conforme o conteúdo da informação vinculativa n.º…, sancionada por despacho de 2012-06-20 do Subdirector-Geral, por delegação.
u) Conclui a Requerida que sendo válidos os atos tributários em crise, porque conformes ao regime legal em vigor à data dos factos tributários, não ocorreu, in casu, qualquer erro imputável aos serviços, não se encontrando, desta forma, reunidos os pressupostos legais que conferem o direito aos juros indemnizatórios.
6. Tendo havido lugar a contraditório em matéria de excepção e não havendo lugar a prova testemunhal, o Tribunal, por despacho, de 20 de Dezembro de 2016, prescindiu da reunião prevista no art. 18.º do RJAT, o que fez ao abrigo dos princípios da autonomia na condução do processo. Foi também fixado o dia 13 de Março para a prolação da decisão arbitral.
7. A Requerente e a Requerida apresentaram alegações reiterando os argumentos vazados nas anteriores peças processuais.
II.Saneamento
8. 1. Como vimos, a Requerente termina o pedido pedindo a anulação do acto tributário impugnado com as devidas consequências legais, nomeadamente, em sede de devolução do IRC indevidamente pago, “e acerto dos respectivos benefícios fiscais a serem reportados para o futuro” (sublinhado nosso).
Na resposta a Requerida veio suscitar a incompetência material para o reconhecimento do direito de reportar o benefício fiscal RFAI para exercícios fiscais futuros, uma vez que a competência dos tribunais arbitrais é, desde logo, circunscrita às matérias indicadas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, conjugada com o disposto na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, ex vi artigo 4.º do RJAT.
Vejamos.
Na autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, estatui-se, como directriz primacial da instituição da arbitragem como forma alternativa de resolução de conflitos em matéria tributária, que o “processo arbitral deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.
O processo de impugnação judicial é um meio processual que tem por objecto actos em matéria tributária, visando apreciar a sua legalidade e decidir se deve ser anulado ou ser declarada a sua nulidade ou inexistência, como decorre do artigo 124.º CPPT.
Pela análise dos artigos 2.º e 10.º do RJAT, verifica-se que apenas se incluíram nas competências dos tribunais que funcionam no CAAD questões de legalidade de actos de liquidação ou de actos de fixação da matéria tributável e actos de segundo grau que tenham por objecto a apreciação da legalidade de actos daqueles tipos, actos esses cuja apreciação se insere no âmbito dos processo de impugnação judicial, como resulta das alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT.
Constata-se, desta forma, que o legislador não implementou a autorização legislativa no que concerne à parte em que se previa a extensão das competências dos tribunais arbitrais a questões que são apreciadas nos tribunais tributários através de acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo.
No entanto, em sintonia com a intenção subjacente à autorização legislativa de criar um meio alternativo ao processo de impugnação judicial, a jurisprudência do CAAD tem entendido que, quanto aos pedidos de declaração de ilegalidade de actos dos tipos referidos, no seu artigo 2.º do RJAT, os tribunais arbitrais têm as mesmas competências que têm os tribunais em processo de impugnação judicial, dentro dos limites definidos pela vinculação que a Autoridade Tributária e Aduaneira veio fazer, através da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, ao abrigo do artigo 4.º, n.º1, do RJAT.
Perante o exposto, como ficou consignado no Acórdão n.º 28/2013-T, de 16 de Outubro de 2013, “[e]mbora o art. 2.º, n.º1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD e não faça referência a decisões constitutivas (anulatórias) e condenatórias, deverá entender-se, em sintonia com a referida autorização legislativa, que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários em relação aos actos cuja apreciação de legalidade se insere nas suas competências”.
Deste modo, se apesar de o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação – conforme o disposto nos artigos 99.º e 124.º do CPPT – pode nele ser proferida condenação da administração tributária no pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida, idêntica conclusão deverá resultar no âmbito do processo arbitral tributário.
Mas, como se pode ler no Acórdão do CAAD, processo n.º 587/2014-T, na falta de qualquer disposição legal que permita concluir em contrário, o âmbito do processo de impugnação judicial e dos processos arbitrais restringe-se às questões de legalidade dos actos dos tipos referidos no artigo 2.º que são abrangidos pela vinculação que foi feita na Portaria n.º 112-A/201, não podendo, designadamente, definir os termos em que devem ser executados julgados anulatórios que vierem a ser proferidos”.
A ser assim, por maioria de razão, é este tribunal incompetente para satisfazer o pedido da Requerente, o qual se consubstanciaria no reconhecimento do direito de reportar o benefício fiscal RFAI para exercícios futuros.
Termos em que procede a excepção de incompetência quanto ao pedido de acerto dos respectivos benefícios fiscais a serem reportados para o futuro, pelo que se absolve da instância a Autoridade Tributária e Aduaneira, quanto a este pedido, não ficando prejudicado o conhecimento dos restantes pedidos.
8.2.As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
8.3. O tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.
8.4.O processo não enferma de nulidades.
8.5.Não se verificam quaisquer outras circunstâncias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
III.Mérito
III.1. Matéria de facto
9. Factos provados
9.1.Com relevo para a apreciação e decisão da questão de mérito, dão–se como assentes e provados os seguintes factos:
a) No exercício fiscal de 2012, o Grupo encabeçado pela A…, SGPS, SA e ao qual se aplicava o Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS ) era composto por si, então designada B… SGPS, S.A, e pelas seguintes sociedades: D… SA; E…; F…, SA; G… SGPS, SA; H…, SA (…); I…, SA; J…, SA; K… SGPS, SA; L…, Lda; M…, SA e N…, SA (II, 3.2.do RIT).
b) Em 30 de Maio de 2013, a Requerente procedeu à entrega da primeira declaração de rendimentos Modelo 22 do IRC referente ao exercício de 2012 do grupo de sociedades sujeito ao RETGS de que era a sociedade dominante (doc. nº 5 junto com o Pedido).
c) A Requerente deduziu no Campo 353 do Quadro 10 da Declaração de Rendimentos Modelo 22 do Grupo o montante de €50.574,60, como correspondente ao crédito de imposto por dupla tributação internacional (CIDTI) relativamente ao imposto pago por retenção na fonte sobre rendimentos obtidos em Cabo Verde referente a direitos de transmissão de conteúdos (Royalties) (Doc. nº 2, junto com o Pedido).
d) Em 29 de Maio de 2014, a Requerente entregou uma declaração Modelo 22 do IRC de substituição, identificada com o código …-… -…, contendo alterações aos valores apresentados na autoliquidação original (Doc. nº 2 junto com o Pedido).
e) As alterações referidas no número anterior reflectiram-se: a) no campo 710 do anexo D, da declaração de substituição, devido à aceitação do montante de €58.366,37 pela Comissão Certificadora para os Incentivos Fiscais à I&D Empresarial de candidaturas apresentadas no âmbito do Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial (“SIFIDE II”) pela D…, S.A; b) dedução de montantes do benefício fiscal instituído pelo Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI 2009), apurados em exercícios anteriores e que até à data não haviam ainda sido deduzidos por insuficiência de colecta, e que considerou deverem ser deduzidos no exercício de 2012 não apenas à parcela da colecta de IRC como também à derrama estadual apurada pelo Grupo (artigo 4.º do Pedido).
f) Assim, a declaração de substituição corrigiu os seguintes campos: a) 355 (total dos benefícios fiscais deduzidos à colecta), que passou de €1.263.018,66 para €1.434.411,91, b) 357 (total das deduções à colecta), que passou de €1.313.593,26 para €1.484.986,51; c) 358 (IRC liquidado), que passou de €11.398.722,16 para €11.227.328,91; d) 367 (total de IRC a pagar), que passou de €853.933,10 para €682.539,85; e) 713 do Anexo D (saldo não deduzido do RFAI), que passou de €7.041.897,47 para €6.636.289,28; f) 715 do Anexo D (dedução do RFAI referente ao exercício de 2012), que passou de €1.263.018,66 para € 1.376.045,54; g) 716 do Anexo D (saldo de RFAI que transita em virtude de não ter sido deduzido no exercício de 2012), que passou de €8.161.663,09 para €7.643.028,02; h) 721 do Anexo D (total das deduções), que passou de €1.263.018,66 para €1.434.411,91 (artigo 6º do Pedido).
g) Na sequência desta declaração de substituição, foi emitida a demonstração de liquidação de IRC de 5 de Junho de 2014, n.º2014… e a demonstração de acerto de contas n.º2014… (doc. 6), traduzindo-se num reembolso de imposto que ascendeu a €171.393,25 (artigo 7.º do Pedido).
h) Em qualquer das liquidações referentes ao exercício de 2012, os montantes apurados de colecta, derrama estadual e tributações autónomas são, respectivamente: € 12.712.315,42, 1.499.774,71 e 688.437,87 (artigo 151º do Pedido e documentos 3, a) e 4) 2 entregues com o Pedido).
i) Em cumprimento da Ordem de Serviço nºOl2014… foi realizado, entre 11 de Novembro de 2014 e 30 de Dezembro de 2014, um procedimento de inspecção externo parcial ao período de 2012, relativo à aplicação do RETGS em sede de IRC, ao Grupo B… SGPS, S.A. (actual A… SGPS, S.A.) (PA, RIT, II,1).
j) Da acção inspectiva resultaram correcções no cálculo do imposto derivadas de: a) Redução do crédito de imposto por dupla tributação internacional previsto nos artigos 90º e 91º do Código do IRC b) Aumento dos benefícios fiscais dedutíveis; c) Aumento do imposto apurado no resultado da liquidação regulado pelo artigo 92° do Código do IRC em função dos ajustamentos referidos nos pontos anteriores (PA, PRIT, informação de 30/12/2014, Ponto I.4.1).
k) A E… e a M… prestaram serviços à empresa O… em Cabo Verde, nos montantes, respectivamente, de €335.989,70 e de €168.740,17, tendo nesse território sido objecto de tributação por aplicação de uma taxa de 10%, com retenção na fonte das importâncias, também respectivamente, de €16.975,62 e d e € 32.095,34 (ponto III, 1, a) do RIT).
l) A Requerente foi notificada, através do Ofício n.º…, de 16 de Janeiro de 2015, para, no prazo de 15 dias, exercer o direito de audição sobre o Projecto de Relatório de Inspecção Tributária, nos termos dos artigos 60.º da Lei Geral Tributária e 60.º do RCPIT, mas não exerceu esse direito (ponto IX do relatório final).
m) O Relatório foi aprovado, após correcção de erro detectado (VIII, RIT), tendo sido apurado imposto favorável ao sujeito passivo, no montante de €79.326,24, assim discriminado: a) Redução do crédito de imposto por dupla tributação internacional previsto nos artigos 90° e 91° do Código do IRC, no montante de €1.503,64. b) Aumento dos benefícios fiscais dedutíveis - RFAI regulado na Lei nº10/2009, de 10-03, prorrogado pela Lei 3-B/2010, de 28 de Abril (Orçamento de Estado para 2010) e, posteriormente, pela Lei n.º 55-N2010, de 31 de Dezembro (Orçamento de Estado para 2011) e para 2012 (Lei nº64-B/2011, de 30 de Dezembro) no montante de €.2.059. 180,67 c) Aumento do imposto apurado no resultado da liquidação regulado pelo artigo 92° do Código do IRC no montante de €2.036.717,16 em função dos ajustamentos referidos nos pontos anteriores. (PA, ponto I, 4, 1 do Relatório final).
n) As correcções efectuadas pela inspecção tributária conduziram à liquidação, datada de 18 de Março de 2015, nº 2015…, e compensação de 20/8/2015, com reembolso de € 192.353,12 (doc. 3, a) junto com o Pedido).
o) Em 15 de Dezembro de 2015 a Requerente deduziu reclamação, invocando o artigo 78º da LGT, contra a autoliquidação de IRC relativa ao exercício de 2012, apresentada em 29 de Maio de 2014 (declaração Modelo 22 nº…); e da demonstração de liquidação de IRC n.º 2015…, e da demonstração de acerto de contas n.º 2015…, bem como da demonstração de liquidação de IRC n.º2014 … e a demonstração de acerto de contas n.º 2015…, nos termos do artigo 54º da LGT. (PA, fls. 3 a 56).
p) A referida reclamação deu origem ao procedimento administrativo de revisão oficiosa, autuado com o nº …2015… (PA, fl. 1).
q) Os serviços da AT (Unidade de Grandes Contribuintes) propuseram o indeferimento do pedido de acordo com os fundamentos constantes da Informação n.º … /2016, de 5 Fevereiro de 2016 (PA, fls. 79 a 113 e Doc. nº 1 junto com o Pedido).
r) Do projecto de indeferimento foi a Requerente notificada através do ofício nº…, de 5 de Fevereiro de 2016, para no prazo de 15 dias exercer, querendo, o seu direito de participação, nos termos do artigo 60.º da LGT (PA, fls. 114, e doc. nº 1 junto com o Pedido, § 1, nºs 3 e 4).
s) Não tendo a Requerente exercido o seu direito, foi o projecto convolado em definitivo, por despacho de 4 de Março de 2016, notificado à Requerente através do ofício nº … de 7 de Março de 2015. (PA, fls. 120 e doc. nº 1 junto com o Pedido, § 1, nº 5).
t) O presente Pedido de Pronúncia Arbitral foi apresentado em 7 de Junho de 2016.
9.2. Inexistem outros factos com relevo para apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.
9.3. Fundamentação da matéria de facto
No tocante à matéria de facto provada, a convicção do Tribunal Arbitral fundou-se na livre apreciação das posições assumidas pelas Partes (em sede de facto) e no teor dos documentos juntos aos autos, não contestados pelas Partes, bem como na análise do processo administrativo anexado pela Requerida.
III.2. Matéria de Direito
Como vimos, são as seguintes as questões de direito a tratar:
-
Crédito de imposto por dupla tributação internacional;
-
Dedução dos benefícios fiscais instituídos pelo RFAI 2009 à colecta da derrama estadual do Grupo;
-
Dedução dos benefícios fiscais instituídos pelo RFAI 2009 à colecta das tributações autónomas;
-
Artigo 92.º do CIRC e montante do RFAI a deduzir em 2012;
-
Pagamento de juros indemnizatórios.
III.2. 1. Crédito de imposto por dupla tributação internacional
A Requerente entende, em termos sintéticos, que se deve aplicar a Convenção para Evitar a Dupla Tributação Portugal Cabo Verde e, ao contrário, a AT defende que se deve aplicar o artigo 91.º do CIRC, levando a montantes diversos de dedução.
Importa realçar que no Processo do CAAD n.º 369/2015-T foi esta questão também objecto de decisão para o exercício de 2011, para a mesma empresa, cuja jurisprudência seguiremos de perto.
No mencionado aresto ficou consignado, entre o mais, que, existindo, em vigor, à data dos fatos, uma Convenção sobre Dupla Tributação entre Portugal e Cabo Verde (aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 63/2000), temos que a apreciação da questão deve ser feita à luz do articulado convencional, dada a superioridade hierárquica das normas constantes de convenções internacionais relativamente às de origem interna, tal como resulta do art.º 8.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Do articulado da referida Convenção relevam diretamente para a apreciação do caso em análise as seguintes normas:
Artigo 12.º
Royalties
1 - As royalties provenientes de um Estado Contratante e pagas a um residente do outro Estado Contratante podem ser tributadas nesse outro Estado.
2 - Todavia, essas royalties podem ser igualmente tributadas no Estado Contratante de que provêm e de acordo com a legislação desse Estado, mas se a pessoa que receber as royalties for o seu beneficiário efetivo, o imposto assim estabelecido não excederá 10% do montante bruto das royalties.
As autoridades competentes dos Estados Contratantes estabelecerão, de comum acordo, a forma de aplicar este limite.
Artigo 23.º
Métodos (de eliminação da dupla tributação)
1 - a) Quando um residente de um Estado Contratante obtiver rendimentos que, de acordo com o disposto nesta Convenção, possam ser tributados no outro Estado Contratante, o primeiro Estado deduzirá do imposto sobre os rendimentos desse residente uma importância igual ao imposto sobre o rendimento pago nesse outro Estado. A importância deduzida não poderá, contudo, exceder a fração do imposto sobre o rendimento, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que podem ser tributados nesse outro Estado.
No tocante às royalties, a solução acolhida na CDT Portugal – Cabo Verde (e, também, na generalidade das convenções celebradas por Portugal) afasta-se do preconizado no MOCDE, porquanto este consagra a regra da competência exclusiva do estado da residência para tributar este tipo de rendimentos[4].
O problema do montante do crédito de imposto (do valor a ser deduzido pelo estado da residência, relativo ao imposto pago no estado de fonte) não se coloca, no âmbito do MOCDE, quanto às royalties. Esta constatação assume alguma relevância na análise do caso concreto, uma vez que os Comentários ao n.º 1 do Artigo 23.º-B da Convenção Modelo da OCDE, em que a AT se louva para estribar o seu entendimento, não poderão ser entendidos como referindo-se ao caso das royalties, pela simples razão que, na economia deste Modelo de Convenção, nenhuma questão de dupla tributação internacional se suscita quanto a estes rendimentos.
O “equilíbrio” entre o direito à tributação do estado da fonte e o do estado de residência, quando estão em causa convenções, como a celebrada com Cabo Verde – as que consagram a competência cumulativa dos dois estados contratantes para tributar as royalties - é conseguido da forma seguinte: o estado da fonte tributará os rendimentos brutos a uma taxa, que, no máximo, não pode exceder um valor convencionalmente fixado (no caso, 10%) e o estado da residência deduzirá o valor desta colecta à do seu imposto, calculado numa base mundial, no qual se incluem os rendimentos brutos obtidos no outro país (i. e., o rendimento efetivamente obtido acrescido do imposto aí pago).
Exatamente porque é assim é que “muito dos estados co-contratantes, quando exportadores importantes de tecnologia, tentam a inclusão de uma taxa de retenção na fonte baixa, avançando o argumento de que suportam a dedução das despesas necessárias à produção do bem ou ao nascimento do direito que dá origem às royalties[5] “.
Nenhuma dúvida parece, pois, existir, que pelo menos no caso das royalties, o imposto pago no país da fonte, incidente sobre rendimentos brutos, é dedutível à colecta do IRC, calculada com base no rendimento mundial do sujeito passivo[6], apuramento no qual são considerados todos os gastos fiscalmente relevantes, incluindo os originados pela produção dos rendimentos obtidos no estrangeiro.
O mesmo é dizer que, pelo menos relativamente às royalties, a parte final do art.º 23.º da CDT Portugal- Cabo Verde (a importância deduzida não poderá, contudo, exceder a fração do imposto sobre o rendimento, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que podem ser tributados nesse outro Estado) apenas terá aplicação no caso, improvável, de a taxa do IRC aplicável a um determinado contribuinte ser inferior à taxa a que os rendimentos foram sujeitos no estado da fonte: «a dedução máxima é equivalente à taxa do imposto do estado de residência aplicada sobre o rendimento obtido no outro estado» [7].
Esta interpretação da norma convencional é a mais conforme com o princípio da boa-fé que, nos termos do art.º 26.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, preside à interpretação dos acordos internacionais entre estados. Portugal e Cabo Verde celebram uma CDT visando a eliminação de situações de dupla tributação internacional relativamente a rendimentos que um residente em um desses estados obtenha no outro. A total eliminação da dupla tributação internacional é a regra, o objectivo prosseguido pelas partes, pelo que é neste sentido que deverão ser resolvidas eventuais dúvidas interpretativas do articulado convencional.
Um Estado que, em razão de uma alteração posterior das suas normas internas[8], pretenda limitar, unilateralmente, o sentido e objectivos do pactuado com o outro estado contratante não estará, certamente, a cumprir com os ditames da boa-fé.
No caso concreto, encontramos, na parte final do art.º 12 da Convenção Portugal-Cabo Verde, uma disposição algo “invulgar” em termos de articulados convencionais: as autoridades competentes dos Estados Contratantes estabelecerão, de comum acordo, a forma de aplicar este limite.
Podemos admitir que este parágrafo traduza uma abertura dos estados contratantes à consagração de regras especiais na determinação do crédito de imposto a ser aplicado pelo estado de residência. Só que um tal de tal acordo nunca existiu, pelo que a AT não o alega ao fundamentar a sua posição
Como segundo fundamento, há que referir que só a dedução integral do imposto pago no estado da fonte à colecta do imposto do estado da residência, (imposto cuja matéria coletável foi calculada tendo em consideração os gastos suportados para a obtenção dos rendimentos de fonte estrangeira) permite dar total concretização ao princípio da neutralidade na exportação de capitais que o método da imputação (crédito de imposto) visa lograr[9]: o imposto total a pagar pelo sujeito passivo (a soma do imposto a ser pago nos estados da fonte e da residência) deverá ser igual ao imposto que ele pagaria caso todo o seu rendimento tivesse origem (fonte) no estado de residência.
Assim, consideramos que, no caso concreto, não deve haver lugar à aplicação do disposto no artigo 91.º, n.º 1, al. b), desde logo porquanto a sua aplicação frustraria parcialmente o objectivo de total eliminação da dupla tributação em situações envolvendo Portugal e Cabo Verde, o objectivo principal prosseguido pela convenção subscrita pelos dois países.
Não podemos, pois, subscrever o entendimento administrativo de que o disposto nesta norma é, sem mais, aplicável quer nos casos de concessão unilateral (pela lei interna portuguesa) de crédito de imposto, quer quando exista uma CDT[10].
Assim sendo, a liquidação é, nesta parte ilegal, e, como, tal deve ser anulada.
Termos em que, procede o pedido da Requerente.
III.2.2.Dedução dos benefícios fiscais instituídos pelo RFAI 2009 à colecta da derrama estadual do Grupo
Nesta matéria, como ficou dito, a Requerente entende que a dedução dos referidos benefícios fiscais deve ser feita tomando em conta a derrama estadual e, adicionalmente, deve ser a derrama estadual do Grupo. Em sentido contrário, argumenta a AT que estes benefícios fiscais são deduzidos na colecta da derrama estadual de cada sociedade e não na colecta da derrama do grupo.
Também nesta questão iremos seguir a posição sustentada no referido Acórdão do CAAD n.º 369/2015-T, com as devidas adaptações normativas, uma vez que a presente liquidação diz respeito ao ano de 2012.
“Dispunha o n.º 1 do art.º 70.º do CIRC, na versão vigente em 2012: relativamente a cada um dos períodos de tributação abrangidos pela aplicação do regime especial, o lucro tributável do grupo é calculado pela sociedade dominante, através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais de cada uma das sociedades pertencentes ao grupo.
Por seu lado, o art.º 87.º-A do CIRC, aditado pela Lei n.º 12-A/2010, de 30/06, estipulava, sob a epígrafe Derrama Estadual, para o exercício de 2012:
Artigo 87.º-A
Derrama estadual
1 - Sobre a parte do lucro tributável superior a (euro) 1 500 000 sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas apurado por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e por não residentes com estabelecimento estável em território português, incidem as taxas adicionais constantes da tabela seguinte:
Lucro tributável
(em euros)
|
Taxas
(em percentagens)
|
De mais de 1 500 000 até 10 000 000
|
3
|
Superior a 10 000 000
|
5
|
2 - O quantitativo da parte do lucro tributável que exceda (euro) 1 500 000, quando superior a (euro) 10 000 000, é dividido em duas partes: uma, igual a (euro) 8 500 000, à qual se aplica a taxa de 3 %; outra, igual ao lucro tributável que exceda (euro) 10 000 000, à qual se aplica a taxa de 5 %.
3 - Quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, as taxas a que se refere o n.º 1 incidem sobre o lucro tributável apurado na declaração periódica individual de cada uma das sociedades do grupo, incluindo a da sociedade dominante.
4 - Os sujeitos passivos referidos nos números anteriores devem proceder à liquidação da derrama adicional na declaração periódica de rendimentos a que se refere o artigo 120.º “
O legislador previu expressamente a situação das sociedades sujeitas ao RETGS relativamente à derrama estadual. Este tributo, não obstante o seu carácter acessório relativamente ao IRC, ficou excluído do âmbito de aplicação do RETGS, uma vez que não incide sobre o lucro global de um grupo de sociedades (sobre a soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais das sociedades que o integrem), mas sim sobre o lucro tributável de cada uma das sociedades do grupo, incluindo a sociedade dominante (art. 87-A, nº 3). O que bem se compreende, se atentarmos nos objetivos da Lei 12-A/2010, a qual “aprova um conjunto de medidas adicionais de consolidação orçamental que visam reforçar e acelerar a redução de défice excessivo e o controlo do crescimento da dívida pública previstos no Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC)”.
É evidente que a soma dos lucros das sociedades integrantes de um grupo resultará em montante superior ao do montante da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais de tais sociedades.
Resulta, pois, claro, da letra e da ratio da lei, que à derrama estadual não são aplicáveis as regras gerais do RETGS, que a existência de um grupo de sociedades é irrelevante para efeitos deste imposto.
Assim, improcede a pretensão da requerente de deduzir o crédito de imposto relativo ao RFAI, de que é titular uma das sociedades do grupo por ela dominada, à “colecta da derrama estadual do grupo”, porquanto, pura e simplesmente, esta não existe, como bem entende a AT.
Termos em que improcede o pedido da Requerente, nesta parte, dando-se razão à AT.
III.2. 3. Dedução dos benefícios fiscais instituídos pelo RFAI à colecta das tributações autónomas (TA) do Grupo
A Requerente defende, ao contrário da tese da AT, que a dedução dos referidos benefícios fiscais deve ser feita tomando em consideração as tributações autónomas uma vez que estas são IRC.
Vejamos.
A) Da natureza das tributações autónomas na jurisprudência e na doutrina nacional
Conforme posição adoptada na Decisão Arbitral nº 722/2015-T, de 28 de Junho de 2016 (reiterada, entre outros, na Decisão Arbitral n.º 443/2016-T), acórdão cujo colectivo foi presidido pelo aqui também Árbitro Presidente (e para cujo teor da decisão desde já aqui remetemos), as tributações autónomas tributam a despesa e não o rendimento, posição que é assumida pelo Exmo. Senhor Conselheiro Vítor Gomes (voto de vencido aposto no Acórdão n.º 204/2010 do Tribunal Constitucional), nos termos do qual afirma, referindo-se às tributações autónomas, que “embora formalmente inserida no CIRC e o montante que permita arrecadar seja liquidado no seu âmbito e a título de IRC, a norma em causa respeita a uma imposição fiscal que é materialmente distinta da tributação nesta cédula (….)”.
“Com efeito, estamos perante uma tributação autónoma (…) e isso faz toda a diferença. Não se trata de tributar um rendimento no fim do período tributário, mas determinado tipo de despesas em si mesmas, pelas compreensíveis razões de política fiscal que o acórdão aponta”.[11]
E acrescenta que “deste modo, o facto revelador de capacidade tributária que se pretende alcançar é a simples realização dessa despesa, num determinado momento. Cada despesa é, para este efeito, um facto tributário autónomo, a que o contribuinte fica sujeito, venha ou não a ter rendimento tributável em IRC no fim do período, sendo irrelevante que esta parcela de imposto só venha a ser liquidada num momento posterior e conjuntamente com o IRC” (sublinhado nosso).
No mesmo sentido, foi igualmente reconhecido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (STA) “que sob a designação de tributações autónomas se escondem realidades muito diversas, incluindo, nos termos do n.º 1 do (então) art.º 81.º do CIRC, as despesas confidenciais ou não documentadas, que são tributadas autonomamente, à taxa de 50%, que será elevada para 70%, nos casos de despesas efectuadas por sujeitos passivos total ou parcialmente isentos, ou que não exerçam, a título principal, actividades de natureza comercial, industrial ou agrícola (n.º 2 do [então] art.º 81.º) e que não são consideradas como custo no cálculo do rendimento tributável em IRC. Refira-se contudo que já as despesas de representação e as relacionadas com viaturas ligeiras, nos termos do disposto no (então) art. 81.º n.º 3 do CIRC e ajudas de custo estão afectas á actividade empresarial e indispensáveis pelo que são fiscalmente aceites nalguns casos ainda que dentro de certos limites”.[12]
No que diz respeito à posição que era assumida pela Tribunal Constitucional, cite-se o Acórdão n.º 18/11, nos termos do qual se refere que “existem factos sujeitos a tributação autónoma, que correspondem a encargos comprovadamente indispensáveis à realização dos proveitos e (…) isto significa que a tributação autónoma também recai sobre encargos que correspondem ao núcleo do conceito de rendimento real, rendimento líquido e cumprimento de obrigações contabilísticas” (sublinhado nosso).
“Este argumento do Tribunal Constitucional (…) interessa-nos apenas salientar que o Tribunal reconhece que este regime constitui uma limitação à tributação do rendimento real (a qual é garantida pelo art.º 104.º n.º 2 da CRP”.
Mais recentemente, o Tribunal Constitucional vem reformular a doutrina do Acórdão n.º 18/11 (acima referido), aproximando-se do então voto de vencido do Conselheiro Vítor Gomes e do Acórdão do STA n.º 830/11 (acima também citado), no sentido de entender que “contrariamente ao que acontece na tributação dos rendimentos em sede de IRS e IRC, em que se tributa o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere), no caso tributa-se cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação. Assim, e no caso do IRC, estamos perante um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o facto gerador do imposto se tem por verificado no último dia do período de tributação (cfr. artigo 8.º,n.º 9, do CIRC). Já no que respeita à tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo” (sublinhado nosso).
Ora, ainda segundo este Acórdão do Tribunal Constitucional “esta característica da tributação autónoma remete-nos, assim, para a distinção entre impostos periódicos (cujo facto gerador se produz de modo sucessivo, pelo decurso de um determinado período de tempo, em regra anual, e tende a repetir-se no tempo, gerando para o contribuinte a obrigação de pagar imposto com caráter regular) e impostos de obrigação única (cujo facto gerador se produz de modo instantâneo, surge isolado no tempo, gerando sobre o contribuinte uma obrigação de pagamento com caráter avulso). Na tributação autónoma, o facto tributário que dá origem ao imposto, é instantâneo: esgota-se no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas de tributação aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha a efetuar no fim de um determinado período tributário). Mas o facto de a liquidação do imposto ser efetuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de caráter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efetuadas na determinação da taxa” (sublinhado nosso). [13]
No que diz respeito à doutrina, constatamos que, no essencial, o conceito e a natureza das tributações autónomas não se afasta substancialmente do entendimento da jurisprudência produzida pelo Tribunal Constitucional (acima sumariamente enunciada).
Na verdade, como refere RUI MORAIS, “está em causa uma tributação que incide sobre certas despesas dos sujeitos passivos, as quais são havidas com constituindo factos tributários. É difícil descortinar a natureza desta forma de tributação e, mais ainda, a razão pela qual aparece prevista nos códigos dos impostos sobre o rendimento”.[14]
No mesmo sentido, JOSÉ ALBERTO PINHEIRO PINTO afirma que “não se trata propriamente de IRC – que visa tributar o rendimento das pessoas colectivas e não despesa por elas efectuadas -, mas da substituição de uma tributação de rendimentos “implícitos” de pessoas singulares, que se considera não exequível directamente”.[15]
Em suma, alguma doutrina e a jurisprudência dos tribunais superiores nacionais e do Tribunal Constitucional consideram que as tributações autónomas são factos tributários autónomos, que incidem sobre a despesa pelo que, apesar de inseridas formalmente no Código do IRC, dizem respeito a uma tributação distinta do imposto sobre o rendimento.
Adicionalmente, refira-se que é também aceite pela generalidade da doutrina e jurisprudência que as tributações autónomas visam prevenir práticas abusivas de remuneração de trabalhadores, gerentes e sócios/accionistas da sociedade.
Com efeito, e como refere SALDANHA SANCHES, “neste tipo de tributação, o legislador procura responder à questão reconhecidamente difícil do regime fiscal de despesas que se encontram na zona de intersecção da esfera pessoal e da esfera empresarial, de modo a evitar remunerações em espécie mais atraentes por razões exclusivamente fiscais ou a distribuição oculta de lucros. Apresenta a norma uma característica semelhante à que vamos encontrar na sanção legal contra custos não documentados, com uma subida de taxa quando a situação do sujeito passivo não corresponde a uma situação de normalidade fiscal.”[16]
Nestes termos, “trata-se de uma tributação que se explica pela necessidade de prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição camuflada de lucros, sobretudo de dividendos que, assim, ficariam sujeitos ao IRC enquanto lucros da sociedade, bem como combater a fraude e evasão fiscais que tais despesas ocasionam (…)”.[17]
É pacífico que as tributações autónomas radicam, como se aflorou, na necessidade de evitar abusos quanto à relevação de certos encargos ou despesas e que poderão ser facilmente objeto de desvio para consumos privados ou que, de algum modo, são suscetíveis de configurar, formalmente, um gasto de uma pessoa colectiva, mas que, substancialmente, representam ou podem configurar abusos em ordem a minimizar a medida real do imposto.
Ciente desta dificuldade de, muitas vezes, se efetuar uma separação rigorosa destas duas realidades, foi sucessivamente “enxertado”, conforme supra descrito, no regime de tributação do lucro real e efectivo estabelecido no Código do IRC, como padrão geral, um regime autónomo de tributação de certos gastos, no todo ou em parte indesejados e indesejáveis que contaminam os termos do dever de imposto, que assim, surge configurado abaixo da real capacidade contributiva da entidade que a releva como tal.
Nestes termos, pode afirmar-se que as tributações autónomas surgem integradas no regime do IRC, são apuradas e devidas no âmbito da relação jurídica de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas e é, neste quadro, que se efetua o seu apuramento.
Mas não “são IRC”, tout court como a Requerente lapidar e definitivamente o afirma.
Com efeito, para que fossem assim consideradas teriam, desde logo, que tributar o rendimento e isso, como vimos, não é o que sucede, em momento algum. Na verdade, embora exista uma instrumentalidade evidente entre o IRC e o modelo de tributação da renda em Portugal e as tributações autónomas (facto de resto bem evidenciado na jurisprudência dos Tribunais Superiores e, em especial, do Tribunal Constitucional), prevalece o entendimento de que as tributações autónomas tributam despesas.
De facto, as tributações autónomas são um instrumento que (afastando-se e introduzindo alguma medida de entorse num sistema que declara tributar rendimentos reais e efetivos), afinal também tributa gastos, dedutíveis ou não em IRC, sem que com isso sejam violados os preceitos constitucionais já que a norma aplicável (art.º 104.º, n.º 2 da CRP) declara imperativa a tributação das empresas “fundamentalmente” sobre o seu rendimento real, sem prejuízo quer das situações de tributação segundo os lucros ou o rendimento real (quando seja apurado por métodos indiretos), quer das situações de tributação de gastos objeto de tributação autónoma (por expressa opção de lei), do estabelecimento de soluções técnicas (como é o caso do pagamento especial por conta) e das regras específicas visando a sua devolução.
Neste âmbito, vale a pena ainda recordar que, nem os sistemas fiscais, nem os modelos de imposição concreta correspondem a modelos puros, isentos de elementos de extraneidade ao próprio sistema fundacional, de valores, ou ao próprio regime geral de um qualquer imposto abstratamente considerado. Com efeito, todos os impostos possuem caraterísticas ou soluções que, quando vistas isoladamente, podem representar objetivamente uma descaraterização do modelo tal como na pureza dos conceitos foi concebido, mas que, quando articuladas com o modelo, se verifica que concorrem para a sua efetividade, e lhe conferem ou reforçam a sua coerência.
Essas soluções, mais pragmáticas ou específicas, não ferem tais ditames valorativos essenciais, sejam eles de proteção da receita ou de densificação dos ideais valorativos gerais (da ordem tributária) ou específicos do imposto (como é o caso da necessidade de evitamento de abusos) desde que, eles mesmos, não sejam de tal modo relevantes que abjurem o modelo de tributação-regra ou falseiem estruturalmente os valores em que radica.
No caso em análise, embora a opção da lei fundamental e da lei ordinária, por consequência, haja sido claramente no sentido de tributar o rendimento das pessoas colectivas e, nas formas possíveis de apuramento deste, se haja escolhido a tributação do rendimento real e efetivo como manifestação do mais elevado padrão de justiça fiscal, a verdade é que o sistema sempre conheceu desvios mais ou menos relevantes, seja porque certos gastos não são considerados como tal pela lei fiscal (embora objetivamente possam ser imputáveis a uma actividade comercial), seja porque a lei fiscal, reconhecendo essa essencialidade, teme a ocorrência de abusos (como é o caso das tributações autónomas, genericamente falando).
Em parte, este afastamento da pureza dos conceitos é uma consequência inevitável da complexidade das relações da vida, seja porque modelos de imposição fiscal puros são mais onerosos de implementar e gerir já que requerem informação relevante muito mais apurada, seja porque no campo dos impostos, como noutros campos da vida, há que temperar o ideal de justiça consagrado com soluções de razoabilidade normativa na qualificação dos factos relevantes e técnica nas soluções e exigências a estabelecer, com o objectivo de evitar que os modelos tributários sejam excessivamente complexos e onerosos deixando de atingir realidades e práticas que mitiguem a carga tributária ou concorram para uma má distribuição da mesma.
Ora, deste balanceamento dos valores que suportam o dever de estabelecer / suportar imposto com as realidades da vida pode resultar a necessidade de estabelecer limites (fiscais ou outros) ao comportamento dos sujeitos passivos, com o objectivo de manter dentro de padrões gerais de equilíbrio, as soluções legais do sistema.
Por outro lado, importa ter presente (porque isso releva para efeitos da decisão a tomar) que as tributações autónomas configuram normas anti-abuso dirigidas a racionalizar comportamentos específicos dos contribuintes (face ao dever de imposto) pelos quais, tradicionalmente, conseguiam alcançar uma medida de imposto inferior ao que o evidenciava a sua capacidade contributiva efetivamente revelada mas que, mercê, desses comportamentos abusivos era passível de ser mitigada ou eliminada, com evidente violação ou postergação do princípio da justiça, de justa repartição da carga fiscal por quem revela capacidade contributiva.
Consequentemente, faz sentido admitir que se façam deduções gerais à colecta do imposto, que são permitidas por lei para dar sentido efectivo ao princípio da tributação do rendimento real e efectivo. Contudo, no que diz respeito à colecta devida por tributações autónomas, essa dedução geral deixa de fazer sentido porque, não tributando os lucros, mas despesas, não se coloca, quanto a elas, a questão da justiça na repartição do encargo geral do imposto, pelo que seria ilógico permitir a dedução de encargos quando tal dedução, na prática, destruiria o sentido anti-abusivo que as impregna; o desincentivo de comportamentos desviantes que a sua instituição reprime ou dirime.
Ora, as tributações autónomas, como parece claro, não têm uma finalidade marcadamente reditícia, isto é, não visam, primacialmente, a obtenção de (mais) receita fiscal, embora este possa não ser um aspeto despiciendo, verificável.
Com efeito, elas visam dissuadir comportamentos, práticas ou opções das empresas radicadas em razões essencialmente de natureza de poupança fiscal, reditícia e, por outro lado, preservam os equilíbrios próprios do regime de tributação das pessoas colectivas, evitando distorções não apenas ao nível dos resultados tributáveis, como ondas de comportamentos desviantes, afetadores da expetativa jurídica da receita, em cada ano económico.
E, através destas cláusulas gerais anti abuso, forçam a manutenção de uma correlação saudável entre os volumes de negócios, os lucros tributáveis e o imposto devido a final pelas entidades sujeitas a IRC, em linha com os níveis médios de carga fiscal efectiva que recai sobre os diferentes grupos de contribuintes, dentro do sistema fiscal português e, até, comparativamente com a dos estados membros da OCDE ou fora dela.
Assim, as tributações autónomas, incluindo as previstas na alínea b), do n.º 13, do art.º 88.º do Código do IRC têm, pois, uma função disciplinadora geral que não é alheia às finalidades sistémicas do imposto, até porque, como mecanismo anti abuso, as tributações autónomas não são alheias aos fins gerais do sistema fiscal.
Nestes termos, a adopção de regimes legais que limitem os efeitos nefastos que resultem de comportamentos afetadores da equilibrada repartição da carga fiscal sobre os diferentes grupos de contribuintes não constitui apenas uma opção do legislador mas, é antes, uma obrigação estrita, em resultado na obrigatoriedade de gizar e fazer funcionar o sistema como um todo de forma equilibrada.
Com efeito, as tributações autónomas introduzem mecanismos de tributação que, naturalmente, desagradarão aos seus destinatários, mas impedem ou limitam os efeitos nefastos de práticas abusivas que prejudicariam outros e são, por isso, necessárias à preservação dos equilíbrios do sistema.
Ora, as empresas, tal como as pessoas singulares, também estão sujeitas e com a mesma intensidade ao dever geral de pagar impostos e, nesta medida, a lei fiscal não pode deixar de consagrar mecanismos que limitem procedimentos desviantes porquanto cada um deve suportar imposto segundo pode, isto é, segundo são as suas capacidades contributivas reveladas.
Importa ainda notar que, nos nossos dias, se adoptou, como regra geral, o regime da tributação segundo o rendimento real e efectivo para as pessoas colectivas, não constituindo este uma mera opção de funcionamento do sistema fiscal de entre várias outras possíveis.
Na verdade, ela é, antes, uma manifestação concreta da modernidade e da maturidade de um sistema fiscal que exige dos seus destinatários/beneficiários uma madureza da mesma estatura pois representa também uma nova forma de responsabilização ética e social perante o fenómeno do imposto. [18]
Como referiu, oportunamente, SALDANHA SANCHES (citado na Decisão arbitral 187/2013-T, pp. 28), as tributações autónomas constituem uma forma de obstar a actuações abusivas: “(...) que o normal funcionamento do sistema de tributação era incapaz de impedir, sendo que outras, incluindo formas mais gravosas para o contribuinte, eram possíveis. Este caráter anti abuso das tributações autónomas, será não só coerente com a sua natureza “anti sistémica” (como acontece com todas as normas do género), como com uma natureza presuntiva, apontada quer pelo Prof. Saldanha Sanches quer pela jurisprudência que o cita. Elas terão então materialmente subjacente uma presunção de empresarialidade parcial das despesas sobre que incidem, em função da supra apontada circunstância de tais despesas se situarem numa linha cinzenta que separa aquilo que é despesa empresarial, produtiva, daquilo que é despesa privada, de consumo, sendo que, notoriamente, em muitos casos, a despesa terá mesmo na realidade uma dupla natureza (parte empresarial, parte particular)”. [19]
Todas estas considerações convocam o que nos parece ser a verdadeira sententia legis, posto que a descoberta do verdadeiro sentido da lei constitui um imperativo, pois que importa assegurar que a actividade do intérprete atinja um sentido interpretativo pelo qual a lei exteriorize o seu sentido mais benéfico, mais profícuo e mais salutar, no dizer de FRANCESCO FERRARA.[20]
Por outro lado, o sentido lógico da interpretação não nos conduz senão no sentido de que as tributações autónomas assentam numa lógica segundo a qual a lei pretende evitar ou desincentivar tais pessoas colectivas de relevar (abusivamente) como gastos valores relativos a bónus ou remunerações variáveis. Assim, é a relevação como gasto para efeitos de IRC, na sua inteireza, que se pretende desincentivar.
Fazendo apelo à ratio legis fica claro que as tributações autónomas são cobradas no âmbito do processo de liquidação do IRC de acordo com uma raiz e uma dogmática próprias que levam a que a colecta total do imposto não seja uma realidade unitária mas composta.[21]
Assim, é nela possível descortinar a colecta de imposto propriamente dita, resultante da mecânica geral de apuramento do IRC, que é devida com fundamento constitucional assente no dever geral de cada um (neste se englobando as pessoas colectivas) de contribuir para as despesas públicas segundo os seus haveres (art.º 103.º, n.º 1 da CRP). Tudo no respeito e em cumprimento dos princípios da justiça, da igualdade e do dever de pagar imposto segundo a capacidade contributiva revelada. E a que se deduzem as importâncias referidas no artigo 90.º do Código do IRC e nos termos e modos ali referenciados.
A esta colecta geral, radicada neste fundamento de ordem fundacional, adiciona-se a colecta específica, devida por tributações autónomas, que tem, como se deixou claro, uma raiz, um sentido e um fundamento próprios, qual seja o de desincentivar a adopção dos comportamentos por elas tributados, elencados no art.º 88.º do código, que configura uma norma anti abuso, o que nos permite convocar aqui toda a dogmática própria em que se fundamenta.
Neste caso, por se tratar de cumprir finalidades que extravasam os fins puramente reditícios do imposto, para se situar no campo dos comportamentos que a lei considera abusivos e/ou não desejados, parece claro que não faz sentido que se lhe efetuem deduções, sob pena de se esvaziar, na prática, de qualquer sentido o regime anti abusivo criado.
Aqui chegados, estamos em condições de analisar o pedido da Requerente, quanto à legalidade da dedução do RFAI à parte da colecta de IRC de 2012 do Grupo, na parte relativa às tributações autónomas.
B) Da eventual dedutibilidade RFAI à colecta das tributações autónomas
Concluímos supra, seguindo a jurisprudência mencionada, que a colecta das tributações autónomas tem uma raiz diferente, que não pode, sob pena de subversão da ordem de valores, permitir a dedução de benefícios fiscais, sob pena de descaraterização dos princípios que especificamente se pretendem prosseguir.
Com efeito, tendo o regime das tributações autónomas uma função desincentivadora de comportamentos abusivos, não se vê por que motivo lógico esse desincentivo poderia, depois, desvanecer-se, o que sucederia se fosse possível deduzir à colecta das tributações autónomas, incentivos fiscais, como a Requerente pretende, porquanto essa possibilidade resultaria num duplo efeito estranho, ou seja, de um lado poderia, no limite, eliminar a colecta resultante das tributações autónomas e, de outro, propiciaria a dedução de certo benefício fiscal (no caso em concreto, está em causa o RFAI[22], pelo cumprimento dos objectivos ou adopção das condutas fixadas na norma consagradora do direito ao benefício fiscal) a imposto que tem uma função especificamente anti abuso, de mitigação de comportamentos fiscal e socialmente indesejados.
Da conjugação destas possibilidades resultaria um resultado contraditório, ilegal e antiético, justamente porque a mesma lei fiscal permitiria, no quadro do mesmo sistema fiscal, desonerar o contribuinte do encargo do pagamento de um imposto que é justamente devido pela adopção de condutas abusivas, indesejadas e desincentivadas (relevação como gastos das despesas previstas no art.º 88.º do Código do IRC).
O entendimento arbitral ora sufragado, no sentido da orientação seguida no Acórdão Arbitral n.º 722/2015-T, encontra-se em sintonia com o novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC aditado pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, ao estabelecer que ao montante apurado das tributações autónomas não são «efetuadas quaisquer deduções».
Também neste caso, o legislador se limitou a acolher, clarificando-o, uma solução que os tribunais, com recurso às regras vigentes e por aplicação dos critérios de hermenêutica jurídica estavam em condições de extrair do regime a aplicar, o que se limitou a fazer este colectivo, no caso dos autos.
Atento o acima exposto, conclui-se, desta forma, pela ilegalidade da dedutibilidade do RFAI à colecta das tributações autónomas, sem necessidade de se lançar mão do carácter interpretativo dado pelo artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março (OE para 2016), ao artigo 21.º do artigo 88.º do Código do IRC, nos termos do qual “a liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.”
Nestes termos, entende este Tribunal Arbitral que não assiste razão à Requerente, pelas razões e pelos fundamentos acima invocados, no que respeita à possibilidade de dedução do benefício fiscal relativo ao RFAI à colecta das tributações autónomas relativas ao exercício de 2012.
Termos em que, improcede, nesta parte, o pedido da Requerente.
III.2. 4. Artigo 92 CIRC e montante do RFAI a deduzir em 2012
Em relação a esta questão, como vimos, “A Requerente entende que não tem que proceder à dedução máxima permitida pelo artigo 3.º do RFAI 2009, pois considera que o n.º 2 do artigo 90.º do CIRC apenas exige que o sujeito passivo deduza parte dos benefícios fiscais a que tem direito e não a totalidade dos mesmos, pois, caso contrário, poderia perder o direito a deduzir determinados benefícios fiscais – o que poderia acontecer fruto da aplicação das regras que limitam temporalmente o reporte dos mesmos e de que o artigo 3.º n.º 3 do RFAI é um exemplo -, o que não poderia certamente ter sido a intenção do legislador.
Em concreto, do montante do RFAI 2009 que ainda permanecia disponível para dedução, a Requerente apenas pretende deduzir à colecta de IRC, relativa a 2012, a quantia suficiente para que o imposto liquidado nos termos do n.º 1 do artigo 90.º corresponda exatamente a 90% do montante que seria apurado se o sujeito passivo não usufruísse de benefícios fiscais.
Por seu lado, a AT entende que o legislador, ao prever a possibilidade de reporte do benefício fiscal referente RFAI para exercícios futuros, pressupôs que a dedução do benefício se fizesse até ao limite traçado na lei, isto é, 10% da colecta de IRC, porquanto o texto da lei (n.º 3 do art.º 3.º da Lei n.º 10/2009, de 10 de Março) refere claramente que apenas se pode reportar o benefício que não foi deduzido por insuficiência de colecta.
Esta conclusão resultaria também - segundo a AT - do disposto no n.º 2, do artigo 90.º, do Código do IRC, uma vez que aí é referido que à colecta de IRC são efetuadas as deduções relativas à dupla tributação internacional, aos benefícios fiscais, ao pagamento especial por conta e às retenções na fonte não suscetíveis de compensação ou reembolso, pela ordem indicada. Ou seja, havendo uma enumeração, fixada imperativamente em termos sequenciais, não pode o contribuinte escolher o exercício em que deduz os benefícios fiscais, de forma a evitar o ajustamento decorrente da aplicação do artigo 92.º do Código do IRC. Assim sendo cada uma das deduções previstas no n.º 2 do artigo 90.º deverão fazer-se pela ordem nele indicada, só se passando de uma dedução para a imediatamente seguinte no caso de ainda existir um valor remanescente de colecta, decorrente da insuficiência do montante da dedução anteriormente efetuado, pelo que a que a pretensão da Requerente no sentido de apenas pretende deduzir à colecta de IRC parte do montante corresponde ao RFAI, não encontra qualquer suporte no bloco legal.
Mais entende a AT, que o valor do RFAI não deduzido por força da aplicação do disposto no art.º 92.º do CIRC não pode ser reportado para os exercícios seguintes.
Começaremos por atentar no teor do artigo 92.º do CIRC, na redação vigente em 2012:
1- Para as entidades que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, bem como as não residentes com estabelecimento estável em território português, o imposto liquidado nos termos do n.º 1 do artigo 90.º, líquido das deduções previstas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do mesmo artigo, não pode ser inferior a 90 % do montante que seria apurado se o sujeito passivo não usufruísse de benefícios fiscais e dos regimes previstos no n.º 13 do artigo 43.º e no artigo 75.º
2- Excluem-se do disposto no número anterior os seguintes benefícios fiscais:
a) Os que revistam carácter contratual;
b) O sistema de incentivos fiscais em investigação e desenvolvimento empresarial II (SIFIDE II);
c) Os benefícios fiscais às zonas francas previstos nos artigos 33.º e seguintes do Estatuto dos Benefícios Fiscais e os que operem por redução de taxa;
d) Os previstos nos artigos 19.º, 32.º , 32-A, e 42.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais.
A primeira conclusão a extrair de tal norma é a de que o benefício fiscal em matéria de IRC previsto no RFAI estava subordinado, em 2012, ao limite global de deduções à colecta então previsto no n.º 1 do artigo 92.º do CIRC.
Porém, como vem concluindo a jurisprudência arbitral, cujo entendimento sufragamos[23], “esta conclusão não basta para resolver a questão, pois a possibilidade de reporte do benefício fiscal do RFAI não afeta necessariamente o limite do artigo 92.º, n.º 1. Basta que, no ano em causa, seja utilizado o montante do benefício fiscal que, aditado aos restantes benefícios fiscais e regimes aí previstos, não ultrapasse o limite de 25% [no caso, 10%] da colecta, de forma a permitir que o imposto liquidado não seja inferior a75% [no caso, 90%] do que seria apurado se o sujeito passivo não usufruísse de benefícios fiscais e dos regimes previstos no n.º 13 do artigo 43.º e no artigo 75.º.
Se para atingir os objetivos de garantir que, em cada ano, o imposto cobrado não resulte inferior a determinada percentagem daquele que seria devido se não existissem deduções relativas a benefícios fiscais (excetuados os elencados no n.º 2 do art.º 90) basta que a dedução à colecta não exceda 25% [no caso, 10%] da colecta.
Assim sendo, não advém do artigo 92.º, n.º 1, do CIRC qualquer obstáculo ao reporte de montantes dedutíveis, desde que, em cada ano, não se exceda o limite mínimo de imposto liquidado que se pretende”.
Analisemos, agora, o disposto no n.º 3 do artigo 3.º do RFAI, quando estabelece que : quando a dedução referida no número anterior não possa ser efetuada integralmente por insuficiência de colecta, a importância ainda não deduzida pode sê-lo, nas mesmas condições, nas liquidações dos quatro exercícios seguintes.
“É manifesto que esta norma tem subjacente uma intenção legislativa de que os benefícios fiscais de apoio ao investimento sejam aproveitados pelos contribuintes, numa medida razoável, que serão os quatro anos subsequentes àquele em que ocorre o investimento.
Esta possibilidade de dedução nos quatro períodos subsequentes constitui uma importante garantia para o contribuinte, por aumentar as possibilidades de este usufruir integralmente do benefício fiscal, libertando-o da contingência de não haver colecta suficiente para a dedução integral no ano do investimento, a possibilidade de reporte deve ser considerada como um fator importante ou mesmo decisivo para motivar decisões de investimento.
Presumindo-se que o legislador consagrou a solução mais acertada (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil) para atingir o objectivo visado de incentivar o investimento, a referência à possibilidade de reporte em caso de insuficiência de colecta não deverá ser interpretada com o alcance de dificultar aos contribuintes usufruírem do benefício fiscal, pois o objectivo da norma é precisamente o contrário, aumentar as possibilidades de os contribuintes poderem vir efectivamente a usufruir do benefício, que legislativamente se entende ser uma contrapartida justa do investimento.
Assim sendo, numa interpretação teleológica, que permita encontrar na lei forma de assegurar os objetivos visados legislativamente e não prejudicá-los, a possibilidade de dedução deverá existir na generalidade das situações em que a colecta de IRC disponível para usufruir do benefício fiscal não seja suficiente para o seu aproveitamento integral, o que não deixa de ser uma interpretação com correspondência na letra da lei, pois do artigo 92.º, n.º 1, do CIRC resulta uma diminuição da colecta disponível para usufruir de benefícios fiscais em IRC. E, por isso, quando esta colecta disponível for insuficiente para deduzir a totalidade do benefício fiscal resultante do investimento, estaremos perante uma situação de «insuficiência de colecta» para efeitos do artigo 3.º, n.º 3, do RFAI.
Assim, conclui-se que a posição defendida pela Requerente encontra na letra da lei, mesmo por interpretação meramente declarativa, correspondência verbal na letra do artigo 3.º, n.º 3, do RFAI, suficientemente expressa, tal como exigida pelo artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil. Para além disso, mesmo que fosse necessária uma interpretação extensiva, ela seria permitida pelo artigo 10.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, pois é claro que a intenção legislativa subjacente ao n.º 3 do artigo 3.º do RFAI é permitir ao contribuinte utilizar o benefício fiscal a que tem direito em anos subsequentes, até ao limite de quatro, quando não puder utilizá-lo em anos anteriores.
Por outro lado, esta interpretação é a que assegura congruência valorativa do sistema jurídico, pois não seria coerente admitir no artigo 3.º, n.º 1, alínea a), do RFAI uma dedução à colecta de IRC até 25% e, ao mesmo tempo, restringir definitivamente o benefício por via do artigo 92.º, n.º 1, do CIRC.
Por isso, se é certo que as preocupações de consolidação das finanças públicas podem justificar que, em cada ano, se sobreponha a obtenção da receita mínima de IRC ao benefício fiscal, aquelas preocupações já não podem explicar que não haja a possibilidade de utilização do benefício fiscal num dos quatro anos subsequentes, se tal utilização em algum deles não afetar aquela consolidação.
Conclui-se, assim, que o benefício fiscal resultante do RFAI em matéria de IRC apenas pode ser utilizado na medida em que não ponha em causa o limite previsto no artigo 92.º, n.º 1, do CIRC, mas não se vislumbra obstáculo legal a que a parte que não seja utilizada no ano do investimento possa ser utilizada para dedução à colecta de IRC nos anos subsequentes, até ao limite previsto no n.º 3 do artigo 3.º do RFAI.
Por isso, no caso em apreço, não permitindo o limite previsto no artigo 92.º, n.º 1, do CIRC a dedução à colecta do montante total do investimento efetuado que beneficia do regime do RFAI, esta não tinha de imputar todo esse investimento a esse ano, ficando sem direito a dedução na parte em que se ultrapassaria esse limite, podendo usar da faculdade prevista no n.º 3 do artigo 3.º do RFAI”[24].
No sentido da conclusão a que chegámos aponta-se, entre outros, os Acórdãos do CAAD processos n.ºs. 369/2015-T e 285/2016-T.
III. 2.5. Dos juros indemnizatórios
Alega a Requerente que, caso obtenha ganho de causa na presente acção, o montante do reembolso apurado em seu benefício terá que ser revisto e, nesta sequência, assentando a liquidação adicional de IRC 2012 impugnada baseada em erro imputável aos serviços, tal facto origina a obrigação de pagamento de juros indemnizatórios por parte da AT, nos termos do artigo 43.º da LGT.
De acordo com o disposto no artigo 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT «[a] decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, alternativa ou cumulativamente, consoante o caso:
[…]
b) Restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito.
[…]».
No mesmo sentido, o artigo 100.º da LGT prevê que «[a] administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei».
A doutrina e jurisprudência têm defendido que se enquadra no âmbito das competências dos tribunais arbitrais a fixação dos efeitos das suas decisões, nos mesmos termos previstos para a impugnação judicial, designadamente, quanto à condenação em juros indemnizatórios ou a condenação por indemnização por garantia indevida (Cf. Carla Castelo Trindade (2016), “Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado”, 121 e Jorge Lopes de Sousa (2013), “Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária”, 116).
Com efeito, na autorização legislativa concedida ao Governo para aprovação do RJAT, constante do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril proclama-se, indubitavelmente, a intenção de uma verdadeira alternatividade entre o processo judicial e o processo arbitral tributários, ali se lendo que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.
Assim, pese embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais tributários, não fazendo referência expressa a decisões constitutivas (anulatórias) e decisões condenatórias, deverá entender-se, de harmonia com a autorização legislativa supra transcrita e, bem assim, com os efeitos assacados às decisões arbitrais previstos no artigo 24.º do RJAT, que se compreendem nas competências dos tribunais arbitrais tributários os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais judiciais tributários em relação aos actos cuja apreciação de (i)legalidade se insere nas suas competências.
Deste modo, se apesar de o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação – conforme o disposto nos artigos 99.º e 124.º do CPPT – pode nele ser proferida condenação da administração tributária no pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida, idêntica conclusão deverá resultar no âmbito do processo arbitral tributário.
Quanto aos juros indemnizatórios, prevê o artigo 43.º, n.º 1, da LGT que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido».
No caso sub judice, como ficou demonstrado, a liquidação adicional impugnada enferma (ainda que parcialmente) de erro sobre os pressupostos de direito imputável à Requerida.
Por outro lado, é manifesto que, na sequência da ilegalidade parcial da liquidação impugnada, há lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago, por força dos artigos 24.º, n.º1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado».
Por isso, a Requerente tem direito ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º1, da LGT, relativamente à quantia que, ilegalmente, não lhe foi reembolsada, a calcular à taxa legal desde a data em que tal reembolso deveria ter acontecido (artigo 104.º, n.º6, do CIRC).
Os juros indemnizatórios são, assim, devidos, no que diz respeito à ilegalidade da liquidação correspondente ao crédito de imposto por dupla tributação e ao montante do RFAI 2009 que ainda permanecia disponível para deduzir em 2012.
No que se refere às outras quantias pagas, improcedendo o pedido de pronúncia arbitral, improcedem também os pedidos de reembolso e juros indemnizatórios, pois pressupunham a ilegalidade das liquidações.
IV. Decisão
Termos em que se acorda neste Tribunal Colectivo:
a) Julgar procedente a excepção de incompetência quanto ao pedido de acerto dos respectivos benefícios fiscais a serem reportados para o futuro, absolvendo-se da instância a Autoridade Tributária e Aduaneira, quanto a este pedido;
b) Julgar parcialmente procedente o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação, no que se refere às correcções relativas ao crédito de imposto por dupla tributação internacional e ao montante de RFAI 2009 a deduzir em 2012, anulando-se, em consequência, na parte correspondente, o acto de liquidação de IRC objecto de impugnação;
c) Anular parcialmente o despacho que decidiu pelo indeferimento total do pedido de reclamação graciosa formulado pela Requerente;
d) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios, a calcular sobre o montante de imposto indevidamente não reembolsado, às taxas legais, contados desde a data limite em que tal reembolso deveria ter tido lugar, até integral pagamento;
e) Julgar improcedente o pedido arbitral de declaração de ilegalidade das autoliquidações de IRC 2012 da Requerente, na parte das correcções referentes à dedução dos benefícios fiscais instituídos pelo RFAI 2009 à colecta da derrama estadual do Grupo e à dedução das tributações autónomas, do exercício de 2012, e, nesta sequência,
f) Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira dos pedidos de anulação, reembolso e juros indemnizatórios respeitantes a esta parte da liquidação impugnada.
V.Valor do Processo
De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, e 297.º, n.º 2 do C.P.C., do artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do C.P.P.T. e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 91.154,58.
Notifique-se.
Lisboa, 13 de Março de 2017
Os árbitros,
Fernanda Maçãs (presidente)
António Martins (com declaração de voto)
Manuela Roseiro (com voto de vencida)
Declaração de voto
Embora concordando com o sentido da decisão a que se chegou neste Processo 311-T-2016 quanto ao facto às tributações autónomas não ser de admitir a dedução dos benefícios fiscais a que o pedido arbitral se refere, é meu entendimento, até em face da decisão que subscrevi nos Processos 369/2015-T e 122/2016-T, que é necessário utilizar o disposto no artigo 88º, nº 21, do CIRC, e considerar a sua natureza interpretativa, para fundamentar a não dedutibilidade de tais benefícios ao montante resultante das tributações autónomas da requerente.
O árbitro
António Martins
Declaração de voto
Não subscrevo inteiramente a presente decisão, afastando-me da análise dos Ilustres Colegas Árbitros relativamente à questão “crédito de imposto por dupla tributação internacional” (ponto III.2.1).
Fundamentando a minha interpretação no sentido de negação de provimento:
1. A tributação de royalties e interconexão com vários territórios nacionais – o modelo de convenção da OCDE e a posição de Portugal
O artigo 12º do Modelo de Convenção da OCDE prevê, como regra, a atribuição da competência para tributar as royalties só ao país da residência do beneficiário (nº1) [mas prevê a tributação também pelo Estado da fonte no caso de o beneficiário efectivo das royalties exercer nesse Estado actividade através de estabelecimento estável aí situado (nº3)].
De forma diferente do previsto naquele nº 1 do art. 12º MOCDE, e seguindo o Modelo das Nações Unidas[25], “nas convenções celebradas por Portugal, foi erigido em princípio, que o facto de o país da residência ter direito à tributação dos royalties, não excluía o direito à tributação na fonte do país da origem do rendimento” [26], ou seja, não se prevê a exclusividade da competência do Estado da residência para tributar as royalties (não pagas a estabelecimento estável no território da fonte).
Da análise do artigo 12º, nºs 1, 2, e 4, e do artigo 23º da CDT com Cabo Verde resulta que se atribui aos dois Estados contratantes, da fonte e da residência, competência para tributar os rendimentos das royalties[27]. E, no caso de o beneficiário ter estabelecimento estável no Estado da fonte, esse rendimento é aí tributado a título de Imposto sobre sociedades sendo tributado também em Portugal (art. 4º, nº 1, CIRC), com eliminação da dupla tributação através do disposto no art. 23º-B da Convenção e do art. 91º do CIRC.
Atentos os diferentes tipos de solução acima referidos, verifica-se que, quer no caso da CDT com Cabo Verde quer no MOCDE, o pagamento de royalties a empresas de outro Estado pode originar situações de dupla tributação, acontecendo que no modelo da OCDE apenas não existe dupla tributação quando o pagamento de royalties num Estado não é efectuado através de estabelecimento estável em outro Estado, já que, nesse caso, é atribuída competência apenas ao Estado da residência. Nos diferentes casos de CDT celebradas por Portugal que, como referido, se afastou neste ponto do MOCDE, adoptando antes o Modelo das NU, o Estado Português tem aplicado no caso de rendimentos provindos de royalties, a norma prevista nas CDTs “para eliminar as duplas tributações”, equivalente ao artigo 23ºB do MOCDE e ao artigo 23º da CDT com Cabo Verde (e numerada também em muitos casos como art. 23º).
2. A eliminação da dupla tributação
No caso presente, tratando-se de definir qual é o montante do rendimento que é tributado no país de residência do beneficiário, a Requerente considera que “o cálculo da fracção de imposto ao abrigo do artigo 23.º n.º 1 al. a) da CDT PT/CV terá que ter por referência o rendimento bruto e não o rendimento líquido (dos gastos e perdas incorridos para a sua obtenção) ”(art. 50º do Pedido), e a Requerida defende que quer à luz da Convenção quer à luz do art. 91º nº 1, al. b) do CIRC, os rendimentos a considerar são líquidos dos gastos suportados para a sua obtenção.
Aos casos abrangidos pelas outras Convenções (que, tal como a CDT com CV, não consagram, quanto à tributação das royalties, a exclusividade da competência do Estado da residência) Portugal tem vindo a aplicar o crédito de imposto nos termos previstos no art. 91º do CIRC, e não vejo razão para sustentar interpretação diferente no caso da CDT com Cabo Verde[28].
3. A hierarquia das fontes de direito
Esta interpretação não traduz uma violação da hierarquia das fontes das fontes de direito (supremacia do direito convencional internacional sobre o direito interno), nem viola o princípio da boa-fé porque não há incompatibilidade entre o artigo 91º do CIRC e as normas da CDT, interpretados os artigos 12º e 23º como defendido supra. E, ainda que tendo em conta a não pertença de Cabo Verde à OCDE, tudo aponta para que os artigos da CDT Portugal Cabo Verde possam e devam ser interpretados de forma idêntica à praticada relativamente às restantes Convenções outorgadas por Portugal. Tendo em conta a similitude das normas convencionais, parece não haver qualquer impedimento a que os elementos de interpretação utilizados relativamente a disposições semelhantes às contidas nas outras CDTs valham relativamente à CDT com Cabo Verde, sendo de crer que existe uma mesma intenção política de Portugal nas várias negociações, sem que haja qualquer indício de que a vontade da outra parte (República de Cabo Verde) a ela se tenha oposto.
O artigo 23º da CDT Portugal/Cabo Verde consagra o método da imputação ordinária de forma semelhante a normas incluídas na generalidade das outras convenções celebradas por Portugal não sendo incompatível com o método consagrado na lei interna por Portugal, como país da residência, para eliminar a dupla tributação.
Por outro lado, sempre que as regras operativas e o significado de termos utilizados nas disposições convencionais não se encontram previstas ou definidas na Convenção, pode e deve recorrer-se, nos termos do n.º 2 do art.º 3.º da CDT, à legislação interna[29]. É nessa concretização que a lei interna dá uma indicação precisa de que os rendimentos sujeitos a tributação em Portugal são os rendimentos líquidos das despesas conexas com a sua obtenção (“da fracção do imposto sobre o rendimento, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que podem ser tributados em Portugal”).
Quanto ao argumento de que a aplicação do artigo 91º do CIRC na redacção então vigente violaria a regra da boa- fé por se ter verificado alteração da própria lei do Estado Português face à que vigorava na altura da assinatura da Convenção, objectar-se-á que a admissão na CDT de que o crédito de imposto tem o duplo tecto, previsto no artigo 23º, traduz a aceitação da aplicação das leis internas na sua concretização, não significando uma rejeição da alteração dessas condições (as CDT vigoram por muitos anos, as legislações nacionais oscilam de acordo com as políticas económicas, p.ex. também as taxas de royalties podem variar, embora abaixo do limite previsto). Por outro lado, não parece, mais uma vez, que a questão se deva colocar de forma diferente da situação das outras CDT, com norma idêntica à do art. 12º da CDT/Cabo Verde, e que estatuem relativamente a royalties que “(…) o imposto assim estabelecido não excederá (percentagem variável) do montante bruto das royalties”.
4. Conclusão
Com base no que fica exposto, julgo que não resulta do texto da CDT com Cabo Verde, nem de outros elementos de interpretação, que o seu objectivo principal tenha sido a “total eliminação de dupla tributação”, com “dedução integral do imposto pago no estado da fonte à colecta do imposto do estado da residência”. [30]
Como explica Alberto Xavier, “no que tange ao direito convencional, o método da imputação ordinária foi o adoptado, via de regra, por Portugal para atenuar a dupla imposição dos rendimentos percebidos pelos seus residentes, sendo que, nos casos da Argélia, Cabo Verde, China, Coreia, Cuba, Índia, Macau, Malta, Moçambique e Tunísia (para dividendos) se aceita uma cláusula tax sparing”[31], explicitando que “O método de imputação ordinária, directa e efectiva, foi adoptado por Portugal, através de norma interna, unilateral, no artigo 83º, nº 2, alínea “b”, e no artigo 85º do CIRC. A dedução correspondente à dupla tributação internacional é, porém, apenas aplicável quando na matéria colectável tenham sido incluídos rendimentos obtidos no estrangeiro e corresponderá à menor das seguintes importâncias: (i) imposto sobre o rendimento pago no estrangeiro; (ii) fracção do imposto sobre o rendimento calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que no país em causa possam ser tributados, líquidos dos custos ou perdas, directa ou indirectamente suportados para a sua obtenção. “[32].
Em relação ao método de imputação ordinária na eliminação da dupla tributação, o Autor verifica que conduz a uma dedução apenas parcial do imposto estrangeiro, se este for superior ao que o Estado da residência aplica aos mesmos rendimentos, comentando “A razão de ser deste limite está na atitude dos Tesouros nacionais, condescendentes em anular o seu próprio imposto, mas desfavorável a reembolsar os seus contribuintes de impostos pagos a Estados estrangeiros”[33].
Lisboa, CAAD, 13 de Março de 2017
Manuela Roseiro
[1] Subscrita em 22 de Março de 1999 e aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 63/2000, de 27 de Abril de 2000.
[2] Nos termos do artigo 3.º, n.º 1 al. a) do RFAI 2009: «… são concedidos os seguintes benefícios fiscais: a) dedução à colecta de IRC».
[3] Vide Modelo de Convenção Fiscal sobre o Rendimento e o Património, CTF n.º 172, pág. 237 e 246 e CTF n.º 192, pág. 360 e 372 (parágrafo 63 na redacção de 28 de Janeiro de 2003.
[4] Artigo 12.º do MOCDE (Royalties): 1. As royalties provenientes de um Estado contratante e pagas a um residente do outro Estado contratante só podem ser tributadas nesse outro Estado.
[5] MARIA MARGARIDA CORDEIRO DE MESQUITA, As Convenções sobre Dupla Tributação, Cadernos de Ciência Fiscal, n.º 179, 1988, pág. 203.A Autora considera que a fixação de taxas de 10% como limite máximo do imposto passível de ser cobrado pelo estado da fonte corresponde ao interesse dos estados que, no contexto bilateral, sejam “exportadores importantes de tecnologia”. Tal é – acrescentamos nós – o caso de Portugal relativamente a Cabo Verde.
[6] Assim era, obrigatoriamente, no quadro legal vigente antes da reforma do IRC de 2014.
[7] MARIA MARGARIDA CORDEIRO DE MESQUITA... cit., pág. 290.
[8] O que seria o caso, pois a CDT Portugal – Cabo Verde data de 2000 e a consideração dos gastos suportados para a obtenção do rendimento de fonte estrangeira (hoje constante da al. b) do n.º 2 do art.º 91.º-A do CIRC), foi introduzida, ainda que com diferente redação, pela Lei 39-A/2005, de 29 de Julho.
[9] Por todos, RUI DUARTE MORAIS, Imputação de Lucros de Sociedades Não Residentes..., 2005, pág. 146-151.
[10] O entendimento administrativo que, também no presente processo, é feito do disposto no artigo 91.º, n.º 1, al. b), do CIRC aparece explicitado no relatório que MARIA DOS PRAZERES LOUSA apresentou ao Congresso da IFA de 2011, em Paris, o qual se encontra publicado em Cahiers de Droit Fiscal International, vol. 96b, pág. 541 a 550. Não cumpre aqui apreciar da substância de tal entendimento que, em vários aspetos, entendemos não ser de subscrever.
[11] No mesmo sentido vide também voto vencido do mesmo Árbitro Presidente, aposto na Decisão Arbitral nº 5/2106-T, de 27 de Julho de 2016 (e para cujo teor da decisão desde já aqui também remetemos).
[12] Vide processo nº 830/11, de 21-03-2012 (2ª secção).
[13] Neste sentido, vide Acórdão n.º 310/12, de 20 de Junho (Relator Conselheiro João Cura Mariano), jurisprudência reiterada pelo Acórdão do Plenário, no Acórdão n.º 617/2012 (processo n.º 150/12, de 31 de Janeiro de 2013) e no Acórdão n.º 197/2016 (processo n.º 465/2015, de 23 de Maio de 2016).
[14] Vide RUI DUARTE MORAIS, in “Apontamentos ao IRC”, Almedina, 2009, pp. 202-203.
[15] Também CASALTA NABAIS considera que se “trata de uma tributação sobre a despesa e não sobre o rendimento” (in “Direito Fiscal, 6.ª Ed., p. 614) e, no mesmo sentido, cfr. ANA PAULA DOURADO (in “Direito Fiscal, Lições”, 2015, p. 237).
[16] Vide SALDANHA SANCHES, in “Manual de Direito Fiscal”, 3.ª Ed., Coimbra Editora, 2007, p. 406.
[17] Vide CASALTA NABAIS, Idem, p. 614.
[18] A propósito das questões sobre os limites da moral face ao imposto vejam-se SUSANNE LANDREY, STEF VAN WEEGHEL e FRANK EMMERINK). No que diz respeito à interligação profunda e indiscutível entre o direito e a moral, vide JOÃO BAPTISTA MACHADO, Introdução do Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 9.ª Reimp. pp. 50 e segs.
[19] A Decisão Arbitral do CAAD nº 210/13-T refere que as “despesas (…) partilham entre si um risco de não empresarialidade, isto é, um risco de não serem realizadas com fins empresariais, mas sim extra-empresariais ou privados”.
[20] In “Interpretação e Aplicação das Leis”, Arménio Amado, editores, 1978, p. 137 e segs.
[21] Vide MANUEL DE ANDRADE, Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis.
[22] O Código Fiscal do Investimento (originalmente aprovado pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de Setembro e alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de Outubro), procurou sintetizar um conjunto de apoios de índole fiscal ao investimento produtivo e também à investigação e desenvolvimento, pretendendo contribuir para a promoção da competitividade da economia nacional e para a manutenção de um contexto fiscal favorável ao investimento, à criação de emprego e ao reforço dos capitais próprios das empresas. No âmbito daquele Código foram estabelecidos diversos regimes de incentivos / benefícios fiscais, nomeadamente o Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI). Este regime instituiu um benefício fiscal ao investimento em ativos fixos tangíveis e ativos intangíveis, consubstanciado em deduções à colecta de IRC (do período de tributação em que sejam realizadas as aplicações relevantes e, quando não possa ser efectuada na totalidade, por insuficiência de colecta, pode sê-lo nas liquidações relativas aos dez períodos seguintes, com determinados limites), isenção de Imposto de Selo e isenção ou redução de IMI e IMT relativamente a imóveis adquiridos ou construídos neste âmbito, sendo aplicável aos sujeitos passivos de IRC, que exerçam a título principal uma actividade em determinados sectores [classificados conforme a Classificação Portuguesa de Actividades Económicas, Revisão 3 (CAE-Rev.3), de acordo com o definido na Portaria n.º 282/2014 de 30 de Dezembro].
O RFAI não é cumulável com outros benefícios da mesma natureza, para as mesmas aplicações relevantes, salvo os previstos no regime da DLRR (dedução por lucros retidos e reinvestidos), com os limites máximos aplicáveis aos auxílios com finalidade regional.
[23]Ac. CAAD n.º 693/2014, árbitros Jorge de Sousa, Henrique Nogueira Nunes e Nuno Pombo.
[25] “Como “reflexo de reservas formuladas por vários países ao artigo 12º e na linha do Modelo das NU, grande número de convenções bilaterais, prevê, porém, a tributação quer pelo Estado da residência quer pelo Estado da fonte, mas, neste último caso, sujeita a limitação, cabendo ao Estado da residência a eliminação da dupla tributação” (Maria Margarida Cordeiro Mesquita, Cadernos CTF nº 179, p.197 e 198).
[26] Cf. Alberto Xavier, Direito Tributário Internacional, 2ª edição, 2016, p. 732, referindo as poucas excepções previstas quanto a alguns tipos de royalties nas Convenções com EUA e Holanda.
[27] O nº 1 prevê que as royalties podem ser tributadas no Estado da residência e o nº 2 que podem também ser tributadas no Estado da fonte.
[28] Cristalizando uma longa prática, os comentários (2010) ao artigo 23-B da convenção modelo OCDE (regras principais para o método de imputação), dizem que a falta de apresentação de regras detalhadas está de acordo com o esquema geral da convenção – porque a experiência demonstra vários problemas existindo regras detalhadas e “quando o método de imputação não é usado na legislação interna de um Estado Contratante, este Estado deverá estabelecer normas de aplicação do art. 23º-B, se necessário depois de consultada a autoridade competente do outro Estado Contratante (nº 3 do art. 25º)” (Cf. Cadernos CTF210, pp. 540 e 541).
[29] Nem considero que a disposição final do nº 2 do art.º 12 da Convenção Portugal-Cabo Verde, “as autoridades competentes dos Estados Contratantes estabelecerão, de comum acordo, a forma de aplicar este limite”, contenha uma «disposição algo “invulgar” em termos de articulados convencionais, já que se verifica que os outros textos de CDT outorgadas por Portugal também incluem essa referência que, de resto, julgo não ter a ver propriamente com o método de eliminação da dupla tributação mas com os procedimentos de aplicação do limite de imposto aí previsto (p. ex. se a redução é feita na retenção na fonte ou se é feita por reembolso, matéria regulada pela lei interna nos artigos 98.º do CIRC e 101.º-C do CIRS).].
[30] A finalidade de eliminação de dupla tributação jurídica internacional não significa a eliminação total de dupla tributação como deriva da consagração do método de imputação ordinária ou normal em vez do método de imputação integral. Cf. Freitas Pereira, Fiscalidade, Almedina, 5.ª ed., págs. 271-273.
[31] Prevista por um período de sete anos, prorrogável, no caso da CDT Cabo Verde (art. 23º, nº 5).
[32] In Direito Tributário Internacional, 2ª edição, pp. 749 e 750.