Decisão Arbitral
Processo n.º 239/2016-T
Os árbitros Dr. Jorge Manuel Lopes de Sousa (árbitro-presidente, designado pelos outros Árbitros), Dr. Ricardo da Palma Borges e Prof. Doutor Manuel Pires, designados, respectivamente, pela Requerente e pela Requerida, para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 08-06-2016, acordam no seguinte:
1. Relatório
A…, com sede em …, cidade de …, …, …, …, Estados Unidos da América, com o número de pessoa colectiva equiparada …, que tem por representante fiscal nomeado a sociedade B…, com sede no …, n.º…, …, …-… Lisboa (“Requerente”), veio, nos termos do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante “RJAT” - Regime Jurídico da Arbitragem Tributária), requerer a constituição de tribunal arbitral colectivo, com vista:
(i) à declaração da ilegalidade e consequente anulação das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) e juros compensatórios n.ºs 2015 … e 2015…, relativas aos exercícios de 2008 e 2009, respectivamente, das quais resultou um valor total de IRC e de juros compensatórios a pagar de € 693.480,53;
(ii) à condenação da Administração Tributária (“AT”) na indemnização das despesas incorridas pela Requerente com a prestação e manutenção de garantias bancárias para a suspensão dos processos de execução fiscal n.ºs …2015… e …2015… instaurados pela AT na sequência da alegada falta de pagamento voluntário de tais liquidações.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
A Requerente designou como Árbitro o Dr. Ricardo da Palma Borges, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea b), do RJAT.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 28-04-2016.
Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º e do n.º 3 do RJAT, e dentro do prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, o dirigente máximo do serviço da Administração Tributária designou como Árbitro o Prof. Doutor Manuel Pires.
Os Árbitros designados pelas Partes acordaram em designar o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa como árbitro presidente, que aceitou a designação.
Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes dessa designação em 23-06-2016.
Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 7 artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT sem que as Partes nada viessem dizer, o Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 11-07-2016.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que suscitou excepções de erro na forma de processo ou incompetência material do Tribunal Arbitral, de inutilidade/ prejudicialidade da questão da legalidade das liquidações e da caducidade do direito de acção.
A Autoridade Tributária e Aduaneira requereu ainda suspensão da instância por pendência de um processo de execução fiscal.
Para além disso, a Autoridade Tributária e Aduaneira defendeu que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente.
Por acórdão de 17-11-2016, foram julgadas, por maioria, improcedentes as excepções de erro na forma de processo ou incompetência do Tribunal Arbitral e da inutilidade ou prejudicialidade da questão da legalidade das liquidações e decidido não suspender a instância.
Por despacho de 22-12-2016, foi decidido que o processo prosseguisse com alegações sobre as questões da caducidade do direito de acção e da caducidade do direito de liquidação, sem prejuízo de ulterior instrução e continuação do processo para apreciação de outras questões, se for caso disso.
A Requerente apresentou alegações, a que juntou documentos supervenientes emitidos pela Autoridade Tributária e Aduaneira em que, em suma, reconheceu que não foram efectuadas à Requerente as liquidações impugnadas.
A Autoridade Tributária e Aduaneira pronunciou-se sobre estes documentos supervenientes dizendo, em suma, que os documentos terão sido notificados à Requerente pelo Serviço de Finanças de Lisboa … e que, por despacho da Senhora Directora Geral de 03-01-2017, foi determinado, ao Serviço de Finanças Lisboa…, a extinção do processo de execução fiscal, com fundamento na falta de notificação das liquidações.
Defende a Autoridade Tributária e Aduaneira que perante a assumida falta de notificação das liquidações em crise nos presentes autos arbitrais, afigura-se, nos termos da alínea e) do n.º 277.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º do RJAT, a existência de uma inutilidade superveniente da lide, facto que entende determinar, por força do mesmo artigo, a extinção da instância e que, caso assim não se entenda, «mantém na íntegra todos os argumentos expendidos no que diz respeito à legalidade da liquidação».
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
Como decorre do decidido no despacho de 22-12-2016, o processo prosseguiu com alegações sobre as questões da caducidade do direito de acção e da caducidade do direito de liquidação, sem prejuízo de ulterior instrução e continuação do processo para apreciação de outras questões, se for caso disso.
Para além destas questões importa apreciar previamente a questão da inutilidade superveniente da lide colocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira ao pronunciar-se sobre os documentos juntos com alegação da Requerente.
Uma vez que a Requerente já se pronunciou, na sua alegação, sobre o interesse processual que mantém após a extinção das execuções fiscais, entende-se desnecessário proporcionar-lhe nova oportunidade para se pronunciar.
2. Matéria de facto
A matéria de facto relevante para decisão das questões que importa apreciar são as seguintes:
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
a) A Requerente A… é uma sociedade não residente e que nunca assumiu, voluntariamente, a existência de qualquer estabelecimento estável em Portugal, a qual se dedica, entre outras actividades, à compra e venda e à gestão e recuperação de créditos malparados (créditos em incumprimento ou delinquentes);
b) No âmbito dessa actividade, a Requerente adquiriu ao Banco C…, S.A. (“C…”) três carteiras de créditos dessa natureza (“NPLs – Non Performing Loans”) cujos devedores eram residentes em Portugal;
c) A Requerente contratou nos anos de 2008 e 2009, a sociedade D…, S.A. (“D…” ou “D…”), uma empresa que presta serviços de gestão e recuperação de créditos malparados, para a assistir na gestão e recuperação dos NPLs adquiridos (“Loan Servicing” ou “Servicing”);
d) Na sequência de vários pareceres, a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu as liquidações e IRC n.ºs 2015 … e 2015 …, relativas à actividade da Requerente nos exercícios de 2008 e 2009, respectivamente, das quais resultou um valor total de IRC e de juros compensatórios a pagar de € 693.480,53;
e) Não tendo a Requerente pago as quantias liquidadas, a Autoridade Tributária e Aduaneira instaurou execuções fiscais para sua cobrança coerciva, que têm os n.ºs …2015… (exercício de 2008) e …2015… (exercício de 2009);
f) A Requerente apresentou oposições às execuções fiscais que não foram enviadas ao Tribunal Tributário;
g) Por despachos da Senhora Directora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira de 03-01-2017, foi decidida a extinção de ambos os processos de execução fiscal “por falta de notificação da liquidação”, por as cartas enviadas para um endereço na …, n.º…, …, …-…, Lisboa, terem sido devolvidas e não terem sido efectuadas novas tentativas de notificação (documentos n.ºs 51 e 52 juntos com a alegação da Requerente, cujos teores se dão como reproduzidos);
h) Na sequência dos referidos Despachos, em 10-01-2017, o Senhor Chefe do Serviço de Finanças, na qualidade de órgão de execução fiscal, determinou a extinção dos processos de execução fiscal e o levantamento das garantias bancárias prestadas pela Requerente para suspender os referidos processos de execução fiscal (documento n.ºs 53 junto com a alegação da Requerente, cujo teor se dá como reproduzido);
i) Em virtude do cancelamento das garantias bancárias apresentadas para suspender os processos de execução fiscal, o E… procedeu ao cancelamento das referidas garantias bancárias (documentos n.ºs 54 e 55 juntos com a alegação da Requerente, cujos teores se dão como reproduzidos);
j) Os Despachos da Senhora Directora-Geral referidos são omissos no que respeita a indemnização pelas despesas incorridas pela Requerente relacionadas com as garantias bancárias que apresentou para obter suspensão dos processos de execução fiscal referidos;
k) Com a constituição, apresentação, manutenção e cancelamento das garantias bancárias em apreço, incorreu a Requerente em despesas no valor total de € 11.140,01 (documentos n.ºs 56 e 57 juntos com a alegação da Requerente, cujo teor se dá como reproduzido);
l) Foi instaurado um inquérito criminal relacionado com os factos que estão subjacentes às liquidações impugnadas, que foi arquivado por despacho de 25-02-2015 (documento n.º 4 junto pela Autoridade Tributária e Aduaneira com a resposta);
m) A Requerente teve conhecimento das liquidações impugnadas quando o seu representante fiscal B… foi citado para as execuções fiscais referidas, através de cartas registadas com aviso de recepção expedidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira em 14-03-2016 (documentos n.ºs 38 e 39 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
n) Em 2012, foi instaurado contra a Requerente um inquérito criminal, que teve o n.º …, com base em «indícios de fraude fiscal» relacionados com os factos que estão subjacentes às liquidações impugnadas (documentos n.ºs 3 e 4 juntos pela Autoridade Tributária e Aduaneira com a sua Resposta, cujos teores se dão como reproduzidos);
o) Em 25-04-2016, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
2.2. Factos não provados
Não há factos relevantes para decisão das questões que importa apreciar que não se tenham provado.
2.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos ao pedido de pronúncia arbitral e com a alegação da Requerente, não havendo controvérsia sobre eles.
3. Matéria de direito
3.1. Questão da inutilidade superveniente da lide
Ao pronunciar-se sobre os documentos juntos pela Requerente com a sua alegação, a Autoridade Tributária e Aduaneira defende que deve ser extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, na sequência da extinção das execuções fiscais instauradas para cobrança coerciva das quantias liquidadas.
A Requerente, já com conhecimento da extinção das execuções fiscais, apresentou a alegação em que refere o seu interesse no prosseguimento do presente processo, que entende subsistir pelo facto de não ter sido indemnizada das garantias prestadas.
Como já se referiu no acórdão proferido em 17-11-2016, o artigo 278.º, alínea e), do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, estabelece que a instância se extingue por inutilidade superveniente da lide.
Esta causa de extinção da instância tem a ver com o interesse em agir ou interesse processual, que constitui um pressuposto processual ( [1] ) ou condição da acção ( [2] ) que «consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção». ( [3] )
Isto é, esse interesse tem de existir no momento em que o processo se inicia, mas tem de manter-se ao longo dele, justificando a sua falta a extinção da instância por inutilidade. ( [4] )
O interesse processual traduz a situação objectiva de carência de tutela jurisdicional por parte do autor. Implica tal pressuposto uma situação de necessidade real, justificada e razoável
( [5] ), autorizando que o autor recorra aos tribunais «quando o direito por ele alegado não lhe atribui por si só a faculdade de requerer essa tutela judicial.» ( [6] )
No caso em apreço, apesar da extinção das execuções fiscais, a Requerente mantém o interesse que referiu, que é de ser indemnizada pelas despesas em que incorreu com a prestação de garantias, pois formulou essa pretensão no pedido de pronúncia arbitral e não foi satisfeita, nem foi apreciada.
Por outro lado, o direito a indemnização por garantia indevida, nos casos em não são prestadas por período superior a três anos, depende da existência de erro imputável aos serviços, que se verifique em processo de reclamação graciosa ou impugnação judicial, como decorre do n.º 2 do artigo 53.º da LGT.
Por isso, o prosseguimento do processo (administrativo ou contencioso) em que são impugnadas as liquidações é indispensável para apurar se o contribuinte tem ou não direito a indemnização pelas despesas em que incorreu com as garantias prestadas.
Na mesma linha, o artigo 171.º, n.º 1, do CPPT estabelece que «a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda».
No caso em apreço, o presente processo arbitral é aquele em que é controvertida a legalidade da dívida exequenda e, por isso, é neste processo que tem de ser apreciada a legalidade das liquidações e a verificação da imputabilidade ou não aos serviços de erros que as afectem.
Assim, sendo o processo em que é controvertida o expressamente previsto na lei para apreciar esta questão do direito a indemnização por garantia indevida, tem de se concluir que a Requerente mantém interesse tutelável em ver apreciadas as questões da ilegalidade das liquidações, com a inerente determinação da imputabilidade ou não aos serviços dos erros que as afectem.
Pelo exposto, não ocorre inutilidade superveniente da lide, pelo que improcede a excepção invocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
3.2. Questão da caducidade do direito de acção
A Autoridade Tributária e Aduaneira suscitou a questão da caducidade do direito de acção.
Como decorre da prova produzida, as liquidações em causa não foram notificadas à Requerente, mas foram instauradas execuções fiscais para cobrança coerciva das quantias liquidadas, sendo nelas efectuadas as respectivas citações da Requerente, na pessoa do seu representante fiscal designado.
Nos termos do artigo 10.º, n.º 1, do RJAT, na parte que aqui interessa, «o pedido de constituição de tribunal arbitral é apresentado (...) «no prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, quanto aos actos susceptíveis de impugnação autónoma».
Os factos previstos no n.º 1 do artigo 102.º do CPPT são os seguintes:
a) Termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte;
b) Notificação dos restantes actos tributários, mesmo quando não dêem origem a qualquer liquidação;
c) Citação dos responsáveis subsidiários em processo de execução fiscal;
d) Formação da presunção de indeferimento tácito;
e) Notificação dos restantes actos que possam ser objecto de impugnação autónoma nos termos deste Código;
f) Conhecimento dos actos lesivos dos interesses legalmente protegidos não abrangidos nas alíneas anteriores.
No caso em apreço, não tendo sido efectuadas notificações das liquidações, está afastada a possibilidade de aplicar as alíneas a), b) e e), pois todas pressupõem a ocorrência de notificações.
Por outro lado, não se está perante situações enquadráveis nas alíneas c) e d), inexistindo impugnação por responsável subsidiário ou indeferimento tácito de qualquer impugnação administrativa.
Assim, a situação dos autos tem de enquadrar-se na alínea f), que tem campo de aplicação residual, sendo aplicável aos casos não abrangidos nas alíneas anteriores, em que se incluem os actos de liquidação não notificados.
Por isso, o termo inicial do prazo para apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral é a data do conhecimento dos actos lesivos.
Como resulta da matéria de facto fixada, a Requerente teve conhecimento das liquidações impugnadas quando o seu representante fiscal, B…, foi citado para as execuções fiscais referidas, através de cartas registadas com aviso de recepção expedidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira em 14-03-2016, pelo que foi com a recepção destas cartas que se iniciou o prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
Não está documentado no processo em que data ou datas foram recebidas as cartas, mas, mesmo que tivessem sido recebidas na data da expedição (14-03-2016), é manifesto que, tendo o pedido de constituição do tribunal arbitral sido apresentado em 25-04-2016, não foi excedido o prazo de 90 dias a contar do conhecimento dos actos lesivos, que decorre da aplicação do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, com para artigo 102.º, n.º 1, alínea f), do CPPT.
Improcede, assim, a excepção da caducidade do direito de acção.
3.3. Questão da caducidade do direito de liquidação
Estão em causa liquidações de IRC relativas aos exercícios de 2008 e 2009.
«O direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro» (artigo 45.º, n.º 1, da LGT).
«O prazo de caducidade conta-se, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário» (artigo 45.º, n.º 2, da LGT).
Sendo o IRC um imposto periódico, os quatro anos referidos no artigo 45.º, n.º 1, completaram-se em 31-12-2012 e 31-12-2013, quanto aos factos relativos aos exercícios de 2008 e 2009, respectivamente.
As liquidações não foram notificadas dentro dos prazos de quatro anos a contar daquelas datas, mas foi instaurado inquérito criminal relacionado com os factos que estão subjacentes às liquidações impugnadas, que foi arquivado por despacho de 25-02-2015.
O artigo 45.º, n.º 5, da LGT estabelece que «sempre que o direito à liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o prazo a que se refere o n.º 1 é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano».
Por isso, a aplicar-se esta regra, o prazo de caducidade do direito de liquidação estendeu-se, no máximo, até 25-02-2016, data em que se completou um ano a contar do despacho de arquivamento.
Não tendo as liquidações sido notificadas até àquela data, é forçoso concluir que ocorreu a caducidade do direito de liquidação.
Nestes termos, procede o pedido de pronúncia arbitral quanto aos pedidos de ilegalidade das liquidações.
3.4. Questão dos pedidos de indemnização por garantias indevidas
Com a constituição, apresentação, manutenção e cancelamento das garantias bancárias para suspender os processos de execução fiscal instaurados para cobrança coerciva das quantias liquidadas, a Requerente incorreu em despesas no valor total de € 11.140,01.
A Requerente pede que lhe seja paga indemnização deste valor.
Como já se referiu, o artigo 171.º do CPPT, estabelece que «a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda».
Assim, é inequívoco que o processo de impugnação judicial abrange a possibilidade de condenação no pagamento de garantia indevida e até é, em princípio, o meio processual adequado para formular tal pedido, o que se justifica por evidentes razões de economia processual, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação e sua imputabilidade.
O pedido de constituição do tribunal arbitral e de pronúncia arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a «legalidade da dívida exequenda», pelo que, como resulta do teor expresso daquele n.º 1 do referido artigo 171.º do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.
O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do artigo 53.º da LGT, que estabelece o seguinte:
Artigo 53.º
Garantia em caso de prestação indevida
1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.
2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.
3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.
4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou.
A referência à «liquidação» na expressão «houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo» deve ser entendida em sentido lato, como reportando-se ao procedimento de liquidação, constituído pelo conjunto de actos tendentes à definição de uma obrigação de pagamento do montante de um tributo por um determinado sujeito passivo, abrangendo não só a liquidação stricto sensu (constituída pelo acto em que se determina a colecta, efectuando as operações aritméticas de cálculo do tributo a pagar), mas também a fase de lançamento (em que se determinam os sujeitos passivos e a matéria colectável ou tributável e a taxa a utilizar no caso de serem potencialmente aplicáveis mais que uma) ( [7] ). É com esse sentido lato que a expressão «liquidação» é utilizada, por exemplo, nos artigos 54.º, n.º 1, alínea b), da LGT e 10.º, n.º 1, alínea a), do CPPT, em que não se indicam competências da Administração Tributária especificamente referentes ao lançamento dos tributos.
Mas, insere-se ainda no procedimento de liquidação a respectiva notificação ao destinatário, pois, antes da notificação, as operações realizadas são meros actos internos, livremente revogáveis, que não definem a posição da Administração Tributária em relação ao contribuinte. ( [8] )
Aliás, na maior parte dos casos, os erros dos actos de liquidação não resultam do próprio acto que concretiza as operações aritméticas de determinação do tributo a pagar, mas de outros actos do procedimento que lhe estão subjacentes pelo que não se compreenderia uma interpretação do termo «liquidação» utilizado no n.º 2 do artigo 53.º com o sentido restrito, pois não há razões para distinguir, para efeitos de indemnização pelos prejuízos sofridos com a prestação de garantia, entre as lesões provocadas por actos não renováveis em que os vícios se reportam ao próprio acto de liquidação e as que derivam de vícios de outros actos do respectivo procedimento de liquidação.
Para além disso, o sentido lato referido é a interpretação que melhor se compagina com a expressão «liquidação», a qual é adequada a referenciar todo o procedimento de liquidação - sendo antes utilizada para referenciar o sentido estrito, por mais precisa, a expressão «acto de liquidação».
A isto acresce que o artigo 53.º da LGT visa facilitar aos lesados por uma actuação ilegal da Administração Tributária a reparação a que constitucionalmente têm direito (artigo 22.º da CRP) e o princípio da igualdade impõe que esse direito seja reconhecido a todos os contribuintes que suportaram despesas com prestação de garantias, por ter sido praticado um acto de liquidação que enferme de uma ilegalidade que inviabiliza a sua renovação, como é o caso da caducidade do direito de liquidação.
Assim, tendo de presumir-se que o legislador consagrou a solução mais acertada e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), é de concluir que aquela expressão «erro imputável aos serviços na liquidação do tributo», abrange todas as ilegalidades que afectem a validade da liquidação, inclusivamente as relativas à sua notificação, que é o acto final do procedimento de liquidação, como está subjacente ao regime do artigo 45.º, n.º 1, da LGT.
Sendo assim, é de concluir que a Requerente tem direito à indemnização que pretende, pois, o erro que afecta a validade das liquidações é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, por não ter concretizado as notificações dentro do prazo de caducidade, e as garantias foram prestadas para suspender os processos de execução fiscal instaurados com base nessas liquidações inválidas.
Nestes termos, procede o pedido de condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente a quantia de € 11.140,01, a título de indemnização pelas despesas que suportou com a prestação das garantias bancárias.
4. Questões de conhecimento prejudicado
Em face da procedência do pedido de pronúncia arbitral, com fundamento em vício dos actos de liquidação que obsta a sua renovação, fica prejudicado, por ser inútil, o conhecimento das demais questões colocadas no presente processo.
5. Decisão
Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em:
– julgar improcedente a excepção da inutilidade superveniente da lide;
– julgar improcedente a excepção da caducidade do direito de acção;
– julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade das liquidações de IRC e juros compensatórios n.ºs 2015 … e 2015…;
– anular as liquidações referidas;
– julgar procedente o pedido de condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento à Requerente de uma indemnização das despesas incorridas com a prestação e manutenção de garantias bancárias para a suspensão dos processos de execução fiscal n.ºs …2015…e …2015…;
– condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a efectuar à Requerente o pagamento da quantia de € 11.140,01.
6. Valor do processo
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 693.480,53.
Lisboa, 16 de Fevereiro de 2017
Os Árbitros
(Jorge Lopes de Sousa)
(Ricardo da Palma Borges)
(Manuel Pires)
(com declaração de voto em anexo)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não acompanho as decisões proferidas porquanto entendo, pela motivação
fundamentada, constante de outra declaração de voto atempadamente
formulada no presente processo, que o Tribunal Arbitral não podia ter
apreciado o mérito das pretensões da Requerente.
(Manuel Pires)
( [1] ) Neste sentido, ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, volume II, 1982, páginas 253-254.
( [2] ) Neste sentido, MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, páginas 82-83.
( [3] ) ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 1.ª edição, 1981, página 55.
( [4] ) ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 1.ª edição, 1981, página 179.
( [5] ) J. P. Remédio Marques, Acção Declarativa, 3.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2011, página 406.
( [6] ) Nestes termos, M. Teixeira De Sousa, As Partes, O Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lisboa, Lex, 1995, página 106.
[7] Sobre este sentido lato de «liquidação» pode ver-se CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 7.ª edição, páginas 295, em que escreve:
«A liquidação lato sensu, ou seja, enquanto conjunto de todas a operações destinadas a apurar o montante do imposto, compreende: 1) o lançamento subjectivo destinado a determinar ou identificar o contribuinte ou sujeito passivo da relação jurídica fiscal, 2) o lançamento objectivo através do qual se determina a matéria colectável ou tributável do imposto e, bem assim, se determina a taxa a aplicar, no caso de pluralidade de taxas, 3) a liquidação (stricto sensu) traduzida na determinação da colecta através da aplicação da taxa à matéria colectável ou tributável».
Assinalando «a tendência, na mais recente legislação portuguesa para usar o termo «liquidação» por forma a abranger os actos de lançamento», pode ver-se SOARES MARTINEZ, Direito Fiscal, 7.ª edição, página 293.
Também utilizando este sentido lato, pode ver-se o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 24-04-1991, processo n.º 013209, publicado em Apêndice ao Diário da República de 30-09-1993, página 453, em que se refere que «o procedimento administrativo de liquidação tributária é um processo complexo integrado por actos que são consequência de actos anteriores, todos destinados ao resultado final o acto tributário, a liquidação».
[8] SOARES MARTINEZ, Direito Fiscal, 7.ª edição, página 309:
«Da liquidação, ou do acto final do lançamento, deverá ser notificado o contribuinte. Porquanto todo o processo de lançamento e liquidação, ou a maior parte dele, se situa no plano interno da Administração. Consequentemente, a validade exterior desse processo há-de depender da sua notificação ao contribuinte, ao qual se destina. Aliás, enquanto actos internos da Administração, todas as operações de lançamento e de liquidação serão livremente modificáveis, revogáveis. Esses actos só se tornarão perfeitos, definitivos, com a notificação respectiva, na base da qual o contribuinte poderá também reclamar, ou recorrer, de tais actos».