Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 432/2016-T
Data da decisão: 2017-01-23  IRC  
Valor do pedido: € 657.551,62
Tema: IRC – Derrama estadual; Artigo 2º da Lei 12-A/2010, de 30/7; Artigo 87º-A do CIRC; Incompetência do tribunal; Intempestividade do pedido; Revisão oficiosa.
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Decisão Arbitral

 

 

I – RELATÓRIO

A…, com o NIF … e sede em Sintra, requereu, em 25 de julho de 2016, a constituição de tribunal arbitral, com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) que nomeou e adiante igualmente se identificarão.

Como nada dissesse sobre a eventual pretensão de designar árbitro, foram os signatários nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, nomeação que aceitaram e não teve oposição de qualquer das partes, ficando o tribunal constituído em 19 de outubro de 2016.

A Administração Tributária (AT) respondeu, no prazo legal, defendendo-se por exceção e impugnação e juntando cópia do processo administrativo.

Dispensada a reunião a que alude o artigo 18º do Regime Jurídico de Arbitragem Tributária (RJAT), foram as partes convidadas a produzir alegações escritas, o que fizeram, pronunciando-se sobre as questões controvertidas, reiterando e desenvolvendo as respetivas posições jurídicas, e anunciou-se a decisão para o dia 31 de janeiro de 2017.

 

II – MATÉRIA DE FACTO

 

Sem prejuízo da precedência que merece a apreciação das exceções deduzidas, há que, para conhecer delas, fixar os factos pertinentes:

 

a) A requerente é uma sociedade que se dedica a comercializar produtos alimentares e de consumo, restauração e bebidas, à prospeção, compra, venda, arrendamento e gestão de imóveis próprios, à construção, remodelação e gestão de propriedades e à edição, publicação e distribuição de imprensa, e prestação de serviços de apoio ao cliente.

b) Encontra-se sujeita ao regime geral de tributação, em sede de IRC, adotando um período de tributação compreendido entre 1 de março de cada ano e 28 de fevereiro do ano seguinte.

c) Procedeu, em 28 de julho de 2011, à entrega da declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC relativa ao exercício de 2010, na qual apurou um montante de derrama estadual de € 1.830.514,26.

d) Na sequência de uma posterior ação inspetiva, foi notificada, em data imprecisa de fevereiro de 2013, da liquidação adicional de IRC n.º 2013…, de 18 de fevereiro de 2013, a qual corrigiu o montante da derrama estadual a pagar para € 1.972.654,85, diferença que a Requerente foi notificada para pagar até 19 de abril de 2013, e pagou.

e) Entendendo que, nos termos do artigo 20.º da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho, as normas relativas à derrama estadual entraram em vigor em 1 de julho de 2010, pelo que apenas seria possível a sua liquidação sobre o lucro tributável apurado a partir desta última data, a Requerente apresentou pedido de revisão de ato tributário, em 14 de março de 2016, com vista à correção da derrama estadual em seu parecer erroneamente liquidada.

f) Tal pedido foi indeferido por despacho de 15 de Abril de 2016, notificado por ofício da mesma data, sem que, antes, a Requerente tenha usado do seu direito a audição prévia, porquanto «(…) o facto gerador do imposto considera-se verificado no último dia do período de tributação, por outras palavras, a obrigação de entregar o imposto constitui-se naquele momento», pelo que a AT, considerando que a referida norma entrara em vigor «antes do momento da verificação do facto gerador», concluiu «que o imposto é devido por inteiro, isto é, não passível de ser dividido e apurado proporcionalmente em virtude de estarmos perante, não de um imposto de obrigação única, mas sim, de formação sucessiva».

 

A convicção do tribunal resulta dos documentos juntos, todos aqui dados por reproduzidos, maxime, o processo administrativo.

 

II – SANEAMENTO

1.      Competência do tribunal

Importa começar pela apreciação da exceção da incompetência do tribunal, suscitada pela Requerida na sua resposta, porquanto, a verificar-se tal incompetência, o tribunal não será competente senão para declarar a sua incompetência.

 

A Requerida aponta que a pretensão da Requerente é «que o Tribunal Arbitral analise e se pronuncie sobre a decisão proferida em sede de pedido de revisão oficiosa apresentado contra o acto de liquidação adicional de IRC do ano de 2010», «Requerendo, a final, a anulação parcial do ato tributário de liquidação adicional de IRC n.º 2013 …».

Assinala que, «nos termos do disposto no art. 2º, alínea a) da Portaria nº 112/2011, de 22 de Março, a AT vinculou-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação de pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida, referidas no nº 1 do art. 2º do RJAT, “ com excepção de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa, nos termos dos artigos 131º a 133º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.”

Considera que «a Requerente não recorreu, em tempo, à reclamação graciosa prevista no nº 1 do art. 131º do CPPT que, no caso, era necessária visto a ora Requerente suscitar também questões de facto e juntar documentação, como se comprova pela revisão oficiosa apresentada, onde a mesma invocou que apenas seria possível proceder à liquidação da derrama estadual incidente sobre o lucro tributável a partir de 1 de Julho de 2010, data da entrada em vigor do artigo 87.º-A do CIRC, introduzida pela Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho».

Diz, ainda, que a «Requerente deixou precludir o prazo de 2 anos previsto no nº 1 do art. 131º do CPPT para apresentação de uma reclamação administrativa», pois «só em 14/03/2016 apresentou um pedido de revisão oficiosa contra a referida liquidação adicional».

Defende que «Tal procedimento administrativo não pode substituir a reclamação graciosa prevista no art. 131º do CPPT, ainda para mais quando o recurso ao mesmo é feito para além do prazo de 2 anos previsto no nº 1 de tal artigo», e que, «atenta a natureza voluntária e convencional da arbitragem, o intérprete não pode ampliar o objecto fixado pelo legislador no que concerne à vinculação da AT aos tribunais arbitrais».

Escreve que «(…) da simples leitura do art. 2.º, al. a) da Portaria n.º 112/2011, de 22/03 resulta que a via arbitral para a apreciação do litígio só pode ser aberta, em casos de autoliquidação, após prévia apresentação de reclamação graciosa, o que não se verifica nos presentes autos, onde se pretende a apreciação de um pedido de revisão oficiosa».

 

A Requerente contrapõe que a Portaria n.º 112-A/2011 refere, expressamente, o «recurso à via administrativa» e que «(…) indubitavelmente, o Pedido de Revisão de Ato Tributário consubstancia um meio administrativo de “impugnação” de atos tributários». Acrescenta que «A ratio daquela Portaria é, precisamente, conferir à AT a possibilidade de se pronunciar sobre a pretensão do contribuinte». Ora, «(…) através da decisão de indeferimento, a AT pronunciou-se sobre a legalidade da pretensão da ora Requerente, tendo demonstrado a sua discordância com a argumentação aduzida».

 

Decidindo,

De acordo com o artigo 2º nº nº 1 alínea a) do RJAT, a competência dos tribunais arbitrais inclui «a declaração de ilegalidade de actos de (…) autoliquidação (…)», acrescentando o artigo 131º nº 1 do CPPT que, «Em caso de erro na autoliquidação, a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa (…) no prazo de 2 anos após a apresentação da declaração».

Conclui-se, por esta via, que a impugnação judicial dos atos de autoliquidação, embora seja da competência dos tribunais arbitrais, só pode ser deduzida depois de percorrida a via administrativa. O que bem se compreende, se se atentar em que, na autoliquidação, a Autoridade Tributária não intervém, o que só acontece quando a questão lhe é colocada mediante a reclamação graciosa, para usar a expressão do artigo 131º do CPPT.

Mas acontece que, no nosso caso, o que vem questionado não é a ilegalidade da autoliquidação efetuada pela Requerente – que autoliquidou a derrama que entendeu devida -, mas a da liquidação adicional mais tarde efetuada pela Requerida, como, aliás, esta reconhece, logo no primeiro artigo da resposta, e como também resulta do pedido formulado e do valor atribuído ao processo, que corresponde à diferença entre a derrama autoliquidada e a liquidada adicionalmente.

De onde se conclui que o percurso da via graciosa não é, aqui, pressuposto do recurso aos tribunais.

Ou seja, a competência do tribunal abre-se independentemente da (re)apreciação da questão pela Autoridade Tributária.

Note-se que, em rigor, o que a AT questiona não é a competência dos tribunais arbitrais para apreciar os atos de autoliquidação, mas a falta de um pressuposto para tal apreciação.

O que vem a redundar no mesmo: o tribunal, sendo competente para apreciar o ato, só pode fazê-lo, tratando-se de uma autoliquidação, depois de percorrida a via graciosa.

Mas, repete-se, a impugnação do ato tributário de liquidação adicional, que é o aqui em causa, não depende desse pressuposto.

Acrescente-se, para finalizar este ponto, que a portaria nº 112-A/2011, de 22 de março, não tem a virtualidade de alargar ou restringir a competência dos tribunais arbitrais, regendo, apenas, sobre os limites da vinculação da AT à respetiva jurisdição.

E nessa jurisdição cabe a apreciação da legalidade de atos de liquidação, como se viu, e a AT acha-se vinculada por obra do corpo do artigo 2º da falada portaria, não cabendo o presente caso em nenhuma das exceções consagradas nas respetivas alíneas, designadamente, na a), como resulta de quanto se expandiu.

De onde se conclui pela improcedência da exceção e pela competência do tribunal para apreciar o pedido.

 

2.      Tempestividade do pedido

 

A Requerida entende que o pedido de «anulação parcial do ato tributário de liquidação adicional de IRC n.º 2013… e respectiva demonstração de juros compensatórios e de acerto de contas» não está em tempo, por ter sido «ultrapassado o prazo legalmente definido para a impugnação deste acto tributário de liquidação, em concreto, em sede arbitral», já que «O art.º 10.º do RJAT estabelece, quanto a actos de liquidação, que o prazo para apresentar o pedido de pronúncia arbitral é de 90 (noventa) dias, remetendo, quanto ao momento do início de contagem, para aquilo que se mostra preceituado nos n.ºs 1 e 2 do art.º 102.º, nºs 1 e 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT)», ou seja, contados «notificação da demonstração de liquidação ora impugnada – cf. alínea b) do n.º 1 do art.º 102.º, n.º 1 do CPPT», a qual «foi notificada (…) em Fevereiro de 2013, sendo que «o pedido tendente à constituição do tribunal arbitral foi apresentado a 2016-07-25».

 

A Requerente defende que «resulta (…) inequívoco do requerimento adicional que o ato impugnado (…) é a decisão de indeferimento do pedido de revisão de ato tributário e não a impugnação direta do ato tributário de liquidação».

«Aliás, tanto é percetível que o ato impugnado é a decisão de indeferimento – e não a impugnação direta da liquidação – que a própria AT admite que “(…) resulta do pedido de pronúncia arbitral que A…, pretende que o Tribunal Arbitral analise e se pronuncie sobre a decisão proferida em sede de pedido de revisão oficiosa(cfr. artigo 21 da Contestação)».

 

Decidindo,

Sendo pedida a revisão oficiosa, a impugnação deve ser apresentada no prazo de noventa dias contados da notificação do seu indeferimento, de acordo com o que dispõe o nº 1 alínea a) do artigo 10º do RJAT, conjugado com o nº nº 2 do artigo 102º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Esta notificação ocorreu através de ofício enviado em 15 de abril de 2016, cuja receção se presume em 18 seguinte (vd. o artigo 39º nº 1 do CPPT) e o pedido de constituição de tribunal arbitral – leia-se, a impugnação – foi deduzido em 25 de julho de 2016.

Estavam, então, decorridos mais do que os noventa dias fixados no artigo 10º nº 1 alínea a) do CPPT.

Sucede, porém, que esse prazo de noventa dias, cujo termo inicial foi em 19 de abril, caiu em férias judiciais, que foram de 15 de julho a 31 de agosto.

É verdade que nos tribunais arbitrais não há férias judiciais, mas verdade é, também, que o mesmo acontece nos serviços periféricos locais em que as petições dirigidas aos tribunais estaduais podem ser entregues, por permissão do artigo 103º nº 1 do CPPT. E, não obstante, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo vem entendendo, desde há muito, e uniformemente, que o artigo 279º alínea e) do Código Civil se aplica aos casos em que a petição seja apresentada à autoridade administrativa, isto é, que o prazo cujo dies a quo caia em férias judiciais se transfere para o primeiro dia útil seguinte.

A razão fundamental reside em nas férias judiciais se não praticarem atos processuais, excetuados os urgentes. Na verdade, as secretarias judiciais não encerram em férias, por isso nada impede a apresentação de um pedido nesse período (maxime, hoje, com os meios digitais disponíveis), mas não faria sentido impor à parte que apresentasse a petição numa altura em que lhe não seria dado seguimento.

Ora, este entendimento jurisprudencial deve aplicar-se, também, aos tribunais arbitrais, valendo, quanto a estes, uma razão adicional: não há motivo para discriminar os contribuintes que se decidam pela jurisdição arbitral, o que aconteceria se os pedidos de constituição do tribunal tivessem que ser apresentados em férias judiciais, ou seja, antes do que correspondente pedido o poderia ser nos tribunais estaduais.

 

A Autoridade Tributária defende, porém, que o prazo para o pedido de constituição do tribunal arbitral, sendo de noventa dias, se conta a partir da data da notificação da demonstração de liquidação, conforme a alínea b) do n.º 1 do art.º 102.º do CPPT», pelo que, ocorrida essa notificação em fevereiro de 2013, o pedido, apresentado em 25 de julho de 2016, sempre seria intempestivo.

É jurisprudência corrente do Supremo Tribunal Administrativo que, no caso de pedido de revisão oficiosa, o prazo para a impugnação (que o mesmo é dizer, para pedir a constituição de tribunal arbitral) se não conta da data limite para pagamento voluntário, mas daquela em que é notificada a decisão de indeferimento daquele pedido – vejam-se, por todos os acórdãos de 1 de outubro de 2003 e 12 de outubro de 2011, nos processos nºs. 893/03 e 449/11, respetivamente, aliás, citados pela Requerente.

Por outro lado, também é pacífico que a decisão que recai sobre o pedido de revisão oficiosa pode ser judicialmente impugnada e que, na medida em que conserve o ato de liquidação, este é igualmente objeto mediato dessa impugnação - cfr. os artigos 95º nºs. 1 e 2 alínea a) da Lei Geral Tributária e 102º nº1 alínea e) do CPPT.

Conclui-se, pelo exposto, que é tempestivo o pedido de constituição do tribunal arbitral.

 

IV - MATÉRIA DE DIREITO

 

1.      Questão a decidir e posição das Partes

 

A Lei n.º 12-A/2010, de 20 de junho, aprovou um “conjunto de medidas adicionais de consolidação orçamental que visam reforçar e acelerar a redução de défice excessivo e o controlo do crescimento da dívida pública previstos no Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC)”.  Entre essas medidas, encontram-se medidas de natureza tributária que consistem, fundamentalmente, em:

a)      Subida das taxas gerais do IRS;

b)      Subida das taxas liberatórias e de retenção na fonte do IRS;

c)      Criação de uma derrama estadual sobre a parte do lucro tributável superior a € 2.000.000; e

d)      Subida das taxas de IVA no Continente e nas Regiões Autónomas.

 

A norma que nos ocupa é a da criação da Derrama Estadual, por adição ao Código do IRC de três artigos, e consta do artigo 2.º da referida Lei n.º 12-A/2010. Esta norma criou uma Derrama Estadual – assim chamada para se diferenciar da derrama municipal quanto à titularidade das receitas geradas – com uma taxa de 2,5% incidente sobre a parte do lucro tributável superior a € 2.000.000,00 (artigo 2.º da Lei n.º 12-A/2010, que adita o artigo 87.º-A ao Código do IRC). Foram também previstas regras especiais para o pagamento da derrama no caso dos grupos de sociedades, bem como regras referentes ao pagamento (artigo 2.º da Lei n.º 12-A/2010, que adita os artigos 104.º-A e 105.º-A ao Código do IRC).

A questão jurídica que cumpre decidir é a de saber como se aplica o artigo 2.º da Lei n.º 12-A/2010, na parte em que cria a Derrama Estadual, ao exercício fiscal da Requerente que ocorreu entre 1 de março de 2010 e 28 de fevereiro de 2011 (o exercício fiscal da Requerente não coincide com o ano civil, mas este facto não tem relevância para o caso em apreço). 

No entender da Requerente, a Derrama Estadual apenas se pode aplicar à parte do lucro tributável correspondente ao período ocorrido a partir de 1 de julho de 2010, data de entrada em vigor da Lei n.º 12-A/2010. Segundo a Requerida, a Derrama Estadual deve aplicar-se a todo o exercício fiscal, ou seja, no caso da Requerente, desde 1 de março de 2010 que é, como vimos, o primeiro dia do período de tributação.

 

2. Apreciação

 

O primeiro passo metodológico para resolver a questão é o de saber qual a data de entrada em vigor do artigo 2.º da Lei n.º 12-A/2010, de 20 de junho, que cria a Derrama Estadual. A resposta a este facto deve ser procurada em primeiro lugar no próprio diploma legislativo que cria o tributo - e com efeito a Lei n.º 12-A/2010 contém um regime de direito transitório no seu artigo 20.º. Este artigo contempla uma regra geral de entrada em vigor – a lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação (n.º 1) – e uma norma de entrada em vigor especial – as alterações ao Código do IVA e ao Decreto-Lei n.º 347/85 entram em vigor a 1 de julho (n.º 2).

Ou seja, exceto nos casos especialmente regulados, a Lei n.º 12-A/2010, de 20 de junho entra em vigor a 1 de julho de 2010. Ora não havendo qualquer norma de direito transitório especial na Lei quanto ao seu artigo 2.º, que cria a Derrama Estadual, ele entra em vigor no dia 1 de julho de 2010.

O segundo passou metodológico é o de saber qual o âmbito de competência das normas da Lei n.º 12-A/2010, de 20 de junho. Ou seja, sabendo já quando entram em vigor trata-se agora de determinar quais os factos que vão regular, se apenas aqueles ocorridos depois da sua entrada em vigor, se também factos ocorridos antes dessa entrada em vigor.

A Lei n.º 12-A/2010, no referido artigo 20.º, estabeleceu regras especiais para duas situações específicas: no caso de operações de carater continuado, as novas taxas de IVA aplicam-se apenas às operações praticadas depois da sua entrada em vigor, derrogando-se o regime previsto no artigo 18.º, n.º 9 do Código do IVA (n.º 3); e as normas de redução de vencimentos de titulares de cargos políticos, gestores públicos e equiparados produzem efeitos a 1 de junho, ou seja um mês antes da entrada em vigor das normas (n.º 4). Quanto às restantes normas da Lei n.º 12-A/2010, não existe, nesse mesmo diploma, qualquer regra que determine o seu âmbito de competência intertemporal.

Ou seja, o legislador da Lei n.º 12-A/2010, quanto ao artigo 2.º, não dá qualquer indicação expressa aos sujeitos passivos, nem à Administração fiscal, sobre quais os factos que a Derrama Estadual deve abranger, se apenas aqueles ocorridos após a entrada em vigor se também aqueles ocorridos ou iniciados antes da sua entrada em vigor.

 

Não existindo uma regra expressa no próprio diploma onde se encontram as normas cujo âmbito de competência temporal procuramos definir, o terceiro passo é o de procurar fora do diploma uma norma que que regule a matéria, começando pelo ramo de Direito em causa. São assim os intérpretes-aplicadores remetidos para as regras contantes do artigo 12.º da Lei Geral Tributária que rege sem qualquer dúvida a aplicação aos casos concretos das normas tributárias (artigo 1.º da LGT). No sentido do emprego do artigo 12.º da LGT à aplicação no tempo das normas fiscais que não contenham normas especiais pode ver-se abundante jurisprudência da qual se destaca o Acórdão para Uniformização de Jurisprudência proferido pelo Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em 2 de Dezembro de 2015, no Proc. n.º 734/15, que anula a decisão arbitral do CAAD que, no Processo n.º 771/2014-T, seguira o entendimento oposto e cujo sumário  afirma que “a Lei nº 15/2010, de 26 de Julho, é omissa no que toca ao estabelecimento de regras específicas quanto à sua aplicação no tempo, pois não contém qualquer norma que deponha sobre a sua aplicação temporal, limitando-se a prescrever que “A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação”. Razão por que se impõe aplicar a regra geral que rege a aplicação da lei fiscal substantiva no tempo, plasmada no artigo 12º da LGT.”. Este argumento e metodologia são também acolhidos no recente Acórdão proferido no âmbito do CAAD no Processo n.º 26/2016, de 26/7/2016, a que presidiu o mesmo árbitro que também aqui age nessa qualidade ou, entre outros, no Processo n.º 135/2013, de 18/1/2014 e no Processo n.º 770/2014, de 31/3/2015.

Ora, e voltando ao artigo 12.º da Lei Geral Tributária, este contém quanto a este respeito dois tipos de regras. Uma regra de âmbito mais geral consta da 1.ª parte do artigo 12.º, n.º 1 e diz-nos que as normas se aplicam aos factos tributários ocorridos depois da sua entrada em vigor. Temos depois duas normas de âmbito especial: uma, constante do n.º 3 que determina a aplicação imediata de normas sobre procedimento e processo (sem prejuízo de direitos anteriormente constituídos), e uma outra norma que regula o âmbito de aplicação das normas tributárias no caso de factos tributários de formação sucessiva (artigo 12.º, n.º 2 da LGT).

Incidindo a Derrama Estadual sobre uma parte do lucro tributável das empresas, estamos perante um facto tributário de formação sucessiva, logo é a regra constante do artigo 12.º, n.º 2 da LGT que deve presidir à sua aplicação a casos concretos. Da aplicação do artigo 12.º, n.º 2 da LGT ao artigo 2.º da Lei n.º 12-A/2010, de 20 de junho, resulta que, quanto ao exercício fiscal que esteja a decorrer no dia 1 de julho de 2010 – a data da sua entrada em vigor -  se aplica apenas ao período decorrido a partir desse mesmo dia 1 de julho.

Pode até criticar-se o critério constante do artigo 12.º, n.º 2 da LGT, por implicar o esforço de uma tarefa adicional de cálculo do imposto para os contribuintes e a Administração, ou por porventura existirem outros critérios melhores para a resolução dos problemas sempre associados à aplicação de uma lei nova a um facto tributário em curso – mas trata-se de um critério plasmado na lei de modo absolutamente clarointeligível, praticável, e que não leva neste caso concreto a qualquer injustiça; é, além disso,  e repita-se, um critério que o legislador poderia expressamente ter afastado – e não fez.

Ora, resultando das normas sobre aplicação da lei no tempo e sobre o âmbito de competência temporal das normas fiscais que a Derrama Estadual criada pela Lei n.º 12-A/2010, de 20 de junho, apenas se aplica à parte do lucro tributável correspondente ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor não temos aqui uma situação de retroatividade cuja admissibilidade caiba apreciar. Apenas estaríamos perante um caso de retroatividade se a Derrama Estadual fosse aplicada a uma parte do lucro tributável que se tivesse criado antes da data da sua entrada em vigor – o que vimos não acontecer por ter o legislador resolvido esse conflito potencial através do critério pro rata temporis plasmado no artigo 1, n.º 2 da LGT.

Apenas estaríamos perante um caso de retroatividade – cuja legitimidade cumpriria analisar – se houvesse na  própria Lei n.º 12-A/2010, de 20 de junho, uma norma que derrogasse a regra constante do artigo 12.º, n.º 2 da LGT que é assim geral do Direito Tributário para os conflitos (ainda que aparentes) de normas fiscais no tempo no caso de factos tributários de formação sucessiva, norma essa que poderia, em tese atribuir a competência temporal da norma à totalidade do facto tributário que se estivesse a formar no dia da sua entrada em vigor (caso em que a norma seria parcialmente retroativa) ou apenas aos factos tributários continuados cuja formação se iniciasse após a sua entrada em vigor.

Tendo em conta que a Constituição da República Portuguesa (CRP) tomou uma posição expressa sobre a retroatividade das normas fiscais em 1997 – introduzindo no artigo 103.º n.º 3 a regra que ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que tenham natureza retroativa – e que em 1998 o legislador estipulou na LGT regras sobre a aplicação da lei fiscal no tempo – que apesar de não terem valor reforçado não podem deixar de se aplicar aos aplicadores da norma fiscal – o legislador da lei fiscal ordinária que queira dispor sobre a sua aplicação no tempo está vinculado a este quadro normativo, ou a tomar uma decisão expressa de derrogar as normas supletivas, como aqui poderia ter feito quanto ao artigo 12.º, n.º 2 (abrindo naturalmente depois a discussão sobre a legitimidade constitucional dessa opção em face do princípio de não retroatividade constante da CRP).

Nem se diga que o contexto de crise financeira é suficiente para fazer presumir a eficácia retroativa da criação da Derrama Estadual – repete-se que o quadro axiológico e normativo resultante da conjugação da proibição constitucional de retroatividade fiscal com a regra da aplicação pro rata temporis de normas que disponham sobre factos tributários de formação sucessiva imporia uma tomada de posição expressa sobre a questão. Aliás, quanto à alteração das taxas de IRS realizadas na igualmente pela Lei n.º 12-A/2010, de 20 de junho, o legislador admite ter incorporado na própria lei a regra pro rata temporis realizando apenas uma subida das taxas correspondente a 7/12 das subidas pretendidas, facto que foi relevante na apreciação que o Tribunal Constitucional fez sobre a retroatividade das normas que aumentaram as taxas de IRS no Acórdão n.º 399/2010, de 27 de outubro (“No que respeita à tributação adicional em sede de IRS, ela é concretizada através da fixação de uma nova tabela geral de taxas, que incidem formalmente sobre o todo dos rendimentos de 2010 e que, portanto, não afectam situações de tributação pretéritas consolidadas jurídico-fiscalmente. Além disso, de modo a garantir que os contribuintes apenas sofrem acréscimo correspondente a sete meses do ano, as taxas adicionais de 1% e de 1,5% são objecto de uma ponderação, aplicando-se em 2010 apenas em 7/12 do seu valor. Só no contexto do Orçamento do Estado para 2011 se introduzirão os ajustamentos necessários à tabela de modo a reflectir a aplicação plena das novas taxas no próximo ano”, Exposição de Motivos que acompanha a Proposta de Lei n.º 26/XI/1.ª).

Em conclusão, é ilegal a aplicação de Derrama Estadual sobre a parte do lucro tributável correspondente ao período ocorrido antes da sua entrada em vigor por violação do artigo 12.º da Lei Geral Tributária, que redunda numa liquidação sem base legal pois não havia norma jurídica em vigor que habilitasse a cobrança de Derrama para esse período.

 

3. Do Pagamento de Juros Indemnizatórios

 

Para lá da declaração da ilegalidade da liquidação, o Requerente peticiona ainda que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, matéria que se insere no âmbito das competências deste Tribunal, conforme expressamente prevê o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT.

 

Determinada a ilegalidade da liquidação e a sua consequente anulação, e encontrando-se paga a dívida tributária indevida, o direito a juros indemnizatórios subsiste, sempre que tal decorra de erro imputável aos serviços da AT, conforme prevê o n.º 1 do artigo 43.º da LGT.

No presente caso, está-se perante uma liquidação determinada pela AT e que veio a revelar-se legalmente injustificada, não por qualquer ato ou procedimento do Requerente, mas por um entendimento erróneo sobre os pressupostos da liquidação – um entendimento sustentado, imposto e veiculado pela própria AT.

Considera-se por isso verificado um erro imputável aos serviços, com a consequente obrigação de pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, 1 e 2, da LGT e do artigo 61.º do CPPT.

São, portanto, devidos juros indemnizatórios, à taxa legal, sobre a importância indevidamente liquidada e paga, contados a partir do dia seguinte ao do pagamento indevido até à data da emissão da respetiva nota de crédito.

 

 

V. DECISÃO

 

De harmonia com o exposto, decide este Tribunal Arbitral:

a)      Julgar procedente o pedido de anulação parcial do ato tributário de liquidação adicional de IRC n.º 2013 … e respetiva demonstração de juros compensatórios e de acerto de contas, condenando a Requerida ao reembolso do imposto indevidamente pago no montante de € 657.551,62;

b)      Julgar procedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios, condenando a requerida ao pagamento da quantia correspondente; e

c)      Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

VI. VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se em € 657.551,62 o valor do processo.

 

 

VII. VALOR DAS CUSTAS

 

Computam-se as custas no montante de € 9.792,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 23 de janeiro de 2017.

 

Os árbitros,

 

(José Baeta de Queiroz)

 

 

(João Taborda da Gama)

 

 

(José Nunes Barata)