Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 182/2016-T
Data da decisão: 2017-01-05  IVA  
Valor do pedido: € 68.600,68
Tema: IVA – Direito à Dedução; Faturas; Requisitos
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Decisão Arbitral

 

 

Requerente: A… S.A. – (doravante “Requerente”)

Requerido: AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “AT”, “Autoridade Tributária” e “Requerida”)

 1. Relatório

A…, S.A., com o número de pessoa coletiva…, com sede em Rua …, n.º…, lote…, …-… … …, doravante designado por Requerente, submeteu ao Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) pedido de pronúncia arbitral com vista à anulação da liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), n.º 2016…, referente ao período 1410, no valor de € 33.996,24, e respetiva liquidação de juros compensatórios no valor de € 1.378,47; Liquidação de IVA n.º 2016…, no valor de € 8.348,06; liquidação de Juros moratórios no valor de € 450,88; Liquidação e IVA nº 2016…, referente ao período 1501, no valor de € 16.962,46, liquidação de Juros Compensatórios e moratórios com o n.º 2016…, no valor de € 102,23 e € 631,22, respetivamente; liquidação de IVA n, º 2016…, referente ao período 1503, no montante de € 6.496,24 e liquidação de juros moratórios no valor de € 234,88.

A Requerente fundamenta a ilegalidade da liquidação de IVA e dos concomitantes juros moratórios e compensatórios e consequente anulação desses mesmos atos tributários, assente na seguinte argumentação:

A)               Não subsunção dos factos ao disposto no n.º 4 do artigo 19º do CIVA, invocando que o raciocínio trilhado pela Autoridade Tributária segundo o qual o Administrador de Insolvência não tem estrutura empresarial para exercer a sua atividade e consequentemente, para proceder à alienação de bens é erróneo, pugnando a Requerente, ao invés, no sentido de a administradora de insolvência reunir todos os meios e estrutura para o desempenho das suas funções, tendo esta emitido fatura ou documento equivalente de transmissão que cumpre todos os requisitos legais;

B)                Violação do direito à dedução, tal como entendido pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), na medida em que, no caso em apreço, inexistem indícios de conluio visando a evasão fiscal, pelo que o direito à dedução não poderá ficar dependente do comportamento a posteriori do transmitente relativamente ao montante do imposto entregue por força da operação efetuada, pelo que a aplicação do n.º 4 do artigo 19º do CIVA em casos de inexistência de conluio entre adquirente e transmitente é violadora da Diretiva IVA no que ao direito à dedução concerne, tal como é entendido pela jurisprudência do TJUE;

C)               Violação do n.º 2 do artigo 68º-A do CIVA, na medida em que a Autoridade Tributária impôs na sua aferição para a dedutibilidade do IVA, exigências não constantes na instrução genérica em vigor (Circular n.º 1/2010), exigências essas advenientes da emissão da Circular n.º 10/2015;

D)               Mesmo na hipótese de existência de antecipação do direito à dedução do imposto pela Requerente, apenas seriam devidos juros compensatórios e não o imposto, uma vez que o IVA sempre seria dedutível aquando da entrega do imposto pela entidade transmitente;

Por seu turno, a Autoridade Tributária defendeu a total improcedência do pedido, com base na inexistência de qualquer ilegalidade dos atos tributários, defendendo, em síntese, que a Requerente não podia deduzir o imposto referente à transmissão, sustentando que:

- A Requerente não tinha na sua posse, aquando da dedução do imposto, o comprovativo da entrega do IVA pela entidade transmitente;

- O documento que titulou contabilisticamente a transmissão de bens não era documento legal bastante, nem emitida na forma prescrita pelo n.º 5 do artigo 36º do CIVA, não podendo desconhecer que tratando-se de venda por arrematação judicial, o IVA teria de ser liquidado de harmonia com o n.º 5 do artigo 28º do CIVA, pelo que teria de assegurar que o imposto se encontrava entregue nos cofres do Estado;

 

Os árbitros foram designados e nomeados em 18.05.2016.

Em conformidade com o previsto no artigo 11º n.º 1 alínea c) do RJAT, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 03.06.2016.

Atento o posicionamento das partes, a não verificação de nenhuma das finalidades legalmente previstas, acordou este tribunal arbitral em dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT e, bem assim, a apresentação de alegações pelas partes.

 

2. Saneamento

O tribunal arbitral coletivo é materialmente competente, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a) do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT).

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade nos termos do art.º 4.º e do n.º 2 do art.º 10.º do RJAT, e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não padece de qualquer nulidade, não existem exceções que obstem à apreciação do mérito da causa, o pedido é tempestivo, pelo que se mostram reunidas as condições para a prolação de decisão arbitral.

 

3. Matéria de facto

3. 1. Factos provados:

Analisada a prova documental produzida e o posicionamento das partes, consideram-se provados e com interesse para a decisão da causa os seguintes factos:

1.      A Requerente, encontrava-se no período fiscal de 2014, enquadrada no regime geral de tributação em IRC e, em sede de IVA, no regime normal de periodicidade mensal.

2.      A Requerente, encontra-se inscrita para efeitos fiscais com a atividade principal de "Comércio de Camiões e seus derivados; comércio de automóveis usados e novos e seus derivados, comércio de sucata, importação e exportação”.

3.      A Requerente, no âmbito da sua atividade, adquiriu à Massa Insolvente de B…, S.A. diversos bens apreendidos pelo administrador de insolvência, nomeadamente viaturas, um empilhador, equipamentos e outras peças-auto.

4.      Tal aquisição pela Requerente foi titulado por um documento de venda denominado “FACTURA N.º 1”, datado de 09.10.2014, com a seguinte descrição: “Compra de bens apreendidos conforme mapa anexo”, com um preço de € 286.100,00, acrescido de IVA no montante de € 65.803,00, totalizando um valor de € 351.903,00 (cfr. Anexo 3 do Relatório de Inspeção).

5.      Do documento a que se refere o número anterior não consta o número de identificação fiscal (NIPC) da entidade emitente/transmitente dos bens – Massa insolvente de B…, S.A..

6.      Os bens adquiridos pela Requerente foram pagos em três tranches de € 196.800,00, € 56.703,00 e € 98.400,00, em 28 e 30 de Julho de 2014 e em 9 de Outubro de 2014, respetivamente.

7.      A Requerente procedeu à dedução do IVA suportado no documento identificado em 4. Com referência ao período mensal de Outubro do ano de 2014.  

8.         A Massa Insolvente de B…, S.A., representada pelo Administrador de Insolvência, veio a entregar nos cofres do Estado o IVA liquidado relativo a tal transmissão, em 21.09.2015, através de uma Modelo P2 (cfr. Anexo 4 do Relatório de Inspeção). 

9.      Na sequência de divergência no sistema e-fatura do período de 2015/02, a Autoridade Tributária emitiu Ordem de Serviço interna com o n.º OI2015…, em 19.11.2015, com vista a procedimento de inspeção interna e parcial relativamente ao IVA do período de 2014/10.

10.  Através do ofício emitido em 24 de Novembro de 2015, a Autoridade Tributária procedeu à notificação da Requerente relativamente ao teor do Projeto de Relatório inspetivo, não tendo esta exercido o seu direito de audição prévia.

11.  Por ofício de 17.12.2015, a Direção de Finanças de … procedeu à notificação da Requerente do teor do Relatório de Inspeção levado a efeito, através do qual a AT apurou correções no valor de € 65.803,00 em sede de IVA.

12.   A Requerente foi notificada do ato de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), n.º 2016…, referente ao período 1410, no valor de € 33.996,24, e respetiva liquidação de juros compensatórios no valor de € 1.378,47; Liquidação de IVA n.º 2016…, no valor de € 8.348,06;  liquidação de Juros moratórios no valor de € 450,88; Liquidação e IVA nº 2016…, referente ao período 1501, no valor de € 16.962,46, liquidação de Juros Compensatórios e moratórios com o n.º 2016…, no valor de € 102,23 e € 631,22, respetivamente; liquidação de IVA n, º 2016…, referente ao período 1503, no montante de € 6.496,24 e liquidação de juros moratórios no valor de € 234,88; todas com data limite de pagamento voluntário em 07.03.2016.

13.  Em 22.03.2016 foi apresentado, via plataforma informática, o pedido de pronúncia e de constituição de tribunal arbitral pela Requerente, o qual tem por objeto os atos tributários constantes do número que antecede.

14.  A Requerente procedeu ao pagamento da taxa de justiça inicial e subsequente;

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa.

 

3.2. Factos não provados

A matéria dada como provada revela-se suficiente para apreciação das questões erigidas nestes autos, as quais se reconduzem a questões de direito, inexistindo factos não provados relevantes para a solução do presente litígio.

 

3.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada:

Quanto à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o quanto as partes alegam, cabendo-lhe antes, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Nestes moldes, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (cfr. artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Em relação ao facto dado como provado no ponto 7, embora a Requerente tenha alegado, inicialmente, que a dedução havia sido efetuada no período 2/2015, veio a retificar tal alegação, reconhecendo expressamente que a mesma ocorreu no período 10/2014.

 

4. Matéria de direito:

A questão de fundo submetida a este Tribunal Arbitral centra-se em aferir da legalidade jurídico-tributária das correções e concomitantes liquidações já supra elencadas, o que passará, necessariamente, pelo sopesar quanto à dedutibilidade ou não do IVA, no período mensal de Outubro de 2014, relativamente ao imposto suportado na aquisição e titulado pelo documento identificado em 4.e 5. dos factos dados como provados.

O exercício do direito à dedução do I.V.A. consubstancia uma das principais características do Imposto sobre o Valor Acrescentado, em conformidade com o regime consagrado na Sexta Diretiva (Diretiva 77/388/CEE, do Conselho, de 17/5/1977), entretanto revogada pela diretiva 2006/112/CE do Conselho de 28.11.2006), mais exatamente no seu artigo 178º, preceito que consagra as regras de exercício do direito à dedução do imposto, contemplando diversos requisitos objetivos e subjetivos do exercício do mesmo direito à dedução.


No plano interno os mecanismos de dedução do imposto estão consagrados nos artigos19º a 25º do Código do IVA (CIVA), assentando este imposto num sistema de pagamentos fracionados e destinados a tributar o consumo final, onde a dedução do imposto pago nas operações intermédias do circuito económico é indispensável ao funcionamento deste mesmo sistema.

Assim, quer a dedução, quer o próprio reembolso, estão sujeitos à verificação de condicionalismos erigidos pelo legislador interno para o CIVA.

Em matéria de dedução de IVA, este consiste na faculdade que o sujeito passivo tem de poder deduzir ao imposto incidente sobre as operações tributáveis que efetuou o imposto que lhe foi faturado nas suas aquisições de bens ou serviços por outros sujeitos passivos de IVA.

Na ordem interna nacional, o regime do direito à dedução encontra-se previsto nos artigos 19º a 26º do CIVA, importando aqui, pela sua pertinência atentar no teor do artigo 19º:

Para a apreciação da questão a decidir, importará levar em consideração a fundamentação em que a AT assentou para efeito da emissão dos atos tributários ora arbitralmente sindicados, porquanto é à luz destes, no confronto com a causa de pedir formulada pela Requerente, que terá de ser efetuada a aferição da legalidade em concreto das liquidações sub judice.

Alinhou a AT, em defesa da não dedutibilidade do IVA pela Requerente no período de 2014/10 dois distintos fundamentos: a inexistência de documento legitimador para a dedução do imposto e o facto de, com base na situação de insolvência, a massa insolvente não dispor de adequada estrutura empresarial suscetível de exercer a atividade declarada.

Sustenta a Requerente, pelo contrário, que tem em sua posse fatura ou documento equivalente passível de dedutibilidade do respetivo imposto nela contido e, bem assim, pugna pela inaplicabilidade do n.º 4 do artigo 19º do CIVA.

Cumpre então analisar, 

 

Da existência ou não de documento a que alude o n.º 2 do artigo 19º do CIVA:

A este respeito, impõe-se, desde já, ter presente o disposto no normativo em que se fundou a AT para proceder à emissão dos atos tributários sindicados: o n.º 2 do artigo 19º do CIVA.

Preceitua o versado normativo o seguinte:

“2 - Só confere direito a dedução o imposto mencionado nos seguintes documentos, em nome e na posse do sujeito passivo:

a)         Em faturas passadas na forma legal;

b)         No recibo de pagamento do IVA que faz parte das declarações de importação, bem como em documentos emitidos por via eletrónica pela Autoridade Tributária e Aduaneira, nos quais constem o número e a data do movimento de caixa.

c)         Nos recibos emitidos a sujeitos passivos enquadrados no «regime de IVA de caixa», passados na forma legal prevista neste regime.”

Resulta da leitura do preceito em análise que o legislador fez prever três situações distintas em que determinados documentos tipificados podem respaldar a respetiva dedução do imposto suportado pelo seu adquirente/transmissário.

Retirando da presente apreciação a situação a que se reporta a alínea c) supra citada, porquanto nada foi comprovado ou alegado nesta matéria quanto ao enquadramento da Requerente no «regime de IVA de caixa», o legislador admite o direito à dedução com base em faturas emitidas na forma legal ou no recibo de pagamento de IVA nas declarações de importação ou com base em documentos emitidos por via eletrónica pela Autoridade Tributária e Aduaneira, nos quais constem o número e a data do movimento de caixa.

 

Ora, retornando aos factos em análise e tendo presente o teor do documento denominado “Factura n.º 1” constante do Anexo 3 ao relatório de inspeção, no que concerne à cabimentação do documento em análise numa das três referidas alíneas, importa aferir da mesma à luz da alínea a) da norma em apreço.

Exige o legislador, para efeito de dedutibilidade do IVA, através da versada alínea a), que o sujeito passivo tenha na sua posse fatura passada na forma legal, sendo que, esclarece o legislador no n.º 6 do referido preceito, que a noção de «passadas na forma legal» obriga a que tais documentos contenham os elementos previstos no artigo 36º do CIVA, posta a manifesta inaplicabilidade do documento em causa na noção de fatura simplificada ao abrigo do artigo 40º do referido compêndio legal, desde logo pelo facto do documento ter um valor manifestamente superior ao limite máximo constante das alíneas a) e b) do seu n.º 1.

Não se estando perante a hipótese de inclusão desse documento na categoria de fatura simplificada a que alude o artigo 40º do CIVA, importará verificar se tal documento cumpre ou não os requisitos legalmente erigidos para que se possa estar perante fatura emitida «na forma legal», isto é, em conformidade com o artigo 36º do CIVA.

Decorre do estabelecido no n.º 5 deste último normativo, os elementos que imprescindivelmente as faturas devem conter:  

5 - As faturas devem ser datadas, numeradas sequencialmente e conter os seguintes elementos:

a) Os nomes, firmas ou denominações sociais e a sede ou domicílio do fornecedor de bens ou prestador de serviços e do destinatário ou adquirente, bem como os correspondentes números de identificação fiscal dos sujeitos passivos de imposto;

b) A quantidade e denominação usual dos bens transmitidos ou dos serviços prestados, com especificação dos elementos necessários à determinação da taxa aplicável; as embalagens não efectivamente transaccionadas devem ser objecto de indicação separada e com menção expressa de que foi acordada a sua devolução;

c) O preço, líquido de imposto, e os outros elementos incluídos no valor tributável;

d) As taxas aplicáveis e o montante de imposto devido;

e) O motivo justificativo da não aplicação do imposto, se for caso disso;

f) A data em que os bens foram colocados à disposição do adquirente, em que os serviços foram realizados ou em que foram efectuados pagamentos anteriores à realização das operações, se essa data não coincidir com a da emissão da factura.”

De entre os requisitos formais e cumulativos estabelecidos pelo legislador e ora vindos de citar, resulta, desde logo, o constante da alínea b) relativo à obrigatoriedade de menção dos números de identificação fiscal dos sujeitos passivos intervenientes.

Cotejado atentamente o teor da denominada “Fatura n.º 1”, resulta que é efetuada menção do número de identificação fiscal do adquirente dos bens, a ora Requerente, mas o mesmo já não sucede relativamente ao número de identificação fiscal da entidade emitente da fatura: a sociedade insolvente “B…”.

A declaração da insolvência não acarreta, por si só, a extinção da personalidade jurídica, uma vez que tal extinção apenas ocorre com o encerramento da liquidação nos termos do n.º 2 do artigo 160º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), sendo que a insolvência equivale apenas a uma das formas de dissolução da sociedade, tal como decorre da al. e) do n.º 1 do artigo 141º do CSC.

Assim, enquanto não se encontrar encerrada a liquidação da sociedade emitente e entretanto insolvente, mantinha esta a sua personalidade jurídica e necessariamente o seu número de pessoa coletiva (NIPC) a que identicamente corresponde o seu número de identificação fiscal (NIF), número este a que a insolvente teria de fazer menção quando, durante o período em liquidação, pretendesse emitir uma fatura.

Ora, tal menção expressa do NIPC/NIF da emitente no documento em apreço resulta imprescindível (entre outros requisitos) para que se possa qualificar, do ponto de vista do regime de dedução do imposto em sede de IVA, enquanto fatura «passada na forma legal».

Tal afirmação de imprescindibilidade decorre do facto de tais elementos formais a constar das faturas constituírem um verdadeiro requisito formal para efeitos do exercício do direito à dedução do imposto.

Entendimento esse que vem uniformemente dimanando da jurisprudência dos tribunais superiores, podendo a este respeito, de entre outros, citar-se trecho do acordado pelo Supremo Tribunal Administrativo[1] (o qual, embora se reportando à redação anterior à alteração legislativa trazida pelo D.L.nº 197/2012, de 24 de Agosto, no essencial se mantém na redação à data do facto tributário):  “Dispõe o artº 19º, nº 1 deste diploma legal, que, para apuramento do imposto devido os sujeitos passivos deduzem, ao imposto incidente sobre as operações tributáveis que efectuaram, o imposto devido ou pago anteriormente, nomeadamente, na aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos (al. a)).

Por sua vez, estabelece o n.º 2 do mesmo artigo que “só confere direito à dedução o imposto mencionado em facturas e documentos equivalentes passados em forma legal, bem como no recibo de pagamento de IVA que faz parte das declarações de importação, em nome e na posse do sujeito passivo”.
E acrescenta no seu nº 6 que “para efeitos do exercício do direito à dedução, consideram-se passados em forma legal as facturas ou documentos equivalentes que contenham os elementos previstos no artigo 35.º”. 

Como se escreve no acórdão desta Secção do STA de 31/1/08, in rec. nº 902/07, “para evitar a fraude fiscal, o legislador determinou que só seria dedutível o imposto mencionado em facturas, documentos a estas equivalentes passados em forma legal ou no recibo de pagamento de IVA que faz parte das declarações de importação, e desde que tais documentos estivessem em nome e na posse do sujeito passivo.
E, atento aquele objectivo, o legislador foi especialmente exigente – n.º 6 do dito artigo 19.º: “para efeitos do exercício do direito à dedução, consideram-se passados em forma legal as facturas ou documentos equivalentes que contenham os elementos previstos no artigo35.º…
A factura ou documento equivalente deve ser emitida pelo sujeito passivo “por cada transmissão de bens ou prestação de serviços, tal como vêm definidas nos artigos 3.º e 4.º do presente diploma, bem como pelos pagamentos que lhe sejam efectuados antes da data de transmissão de bens ou prestação de serviços” – artigo 28.º, n.º 1, alínea b), do CIVA…
Na verdade, é reconhecido o carácter formalista do IVA, em ordem nomeadamente, a evitar, o mais possível, a evasão fiscal, pelo que as respectivas formalidades o são ad substanciam, que não meramente ad probationem”.

(…)

Na verdade e repetindo o que acima referimos, é reconhecido o carácter formalista do IVA, em ordem nomeadamente, a evitar, o mais possível, a evasão fiscal, pelo que as respectivas formalidades o são ad substanciam, que não meramente ad probationem.”

Tendo presente o sufragado no aresto vindo de citar, o qual aqui se secunda, é forçoso concluir que o documento denominado “Factura n.º 1” não cumpre todos os requisitos substanciais presentes no n.º 5 do artigo 36º do CIVA.

Requisitos esses, que quando em conformidade com tal preceito legal permitem a qualificação das faturas emitidas para efeitos de suporte do exercício do direito à dedução previsto na al. a) do n.º 2 do artigo 19º do CIVA.

Não se verificando um desses elementos formais e essenciais para poder qualificar o documento enquanto fatura passada na forma legal, prejudicado se encontrava o direito da Requerente poder, relativamente ao período mensal de Outubro de 2014, deduzir o IVA suportado através desse mesmo documento.

Ante o vindo de expender, restará perscrutar da eventual subsunção factual à previsão legal decorrente da alínea b) do n.º 2 do artigo 19º do CIVA, o qual dispõe:

“2 - Só confere direito a dedução o imposto mencionado nos seguintes documentos, em nome e na posse do sujeito passivo:

(…)

b) No recibo de pagamento do IVA que faz parte das declarações de importação, bem como em documentos emitidos por via eletrónica pela Autoridade Tributária e Aduaneira, nos quais constem o número e a data do movimento de caixa.”

Infere-se deste normativo a possibilidade de dedução do IVA suportado quando o sujeito passivo tenha em seu poder recibo de pagamento de IVA, quer na hipótese de importação através da respetiva declaração, quer no caso de documentos eletrónicos emitidos pela AT dos quais conste o número e data do movimento de caixa.

Ora, como a própria Requerente acaba por reconhecer no seu Pedido de Pronúncia Arbitral[2], esta estava ciente de que a Administradora de Insolvência da sociedade insolvente não teria ainda entregue, no período referente a 2014/10, o respetivo imposto nos cofres do Estado, relativamente a tal transmissão de bens e objetivamente mais relevante, a Requerente não dispunha, no período do imposto em que procedeu à dedução do IVA (período de Outubro de 2014), do recibo de pagamento do IVA pela Massa Insolvente transmitente dos bens, documento esse que permite a que a Requerente proceda à respetiva dedução desse imposto, nos termos do artigo 22.º, n.ºs 2 e 3, ou seja, no período em que a emissão daquele documento teve lugar.

Destarte, ante o facto da Requerente não dispor de tal documento a que alude a alínea b) do n.º 2 do artigo 19º do CIVA, ter-se-á de concluir pela impossibilidade desta proceder à dedução do imposto relativamente ao período de Outubro de 2014.

De resto, do teor do n.º 2 do artigo 19º do CIVA, o qual versa sobre os documentos de suporte necessários para o exercício do direito à dedução, não se visualiza que os critérios e opções legislativas internas tenham erigido qualquer restrição desproporcionada ou injustificada ou mesmo qualquer inviabilização absoluta de tal finalidade, mas antes o estabelecimento de requisitos formais em ordem a assegurar essa dedução, como seja, por exemplo, o ter o sujeito passivo na sua posse uma fatura emitida na forma legal, a qual permitiria a imediata dedução do imposto.

Não têm assim os arestos do TJUE invocados, qualquer aderência ao caso vertente, porquanto não se retira que os elementos documentais exigidos pelo legislador nacional contendam injustificada ou desproporcionadamente com essa dedução ou mesmo inviabilizem de forma absoluta tal exercício do direito à dedução, tal qual se demonstra pela situação vinda de exemplificar.

Com efeito, e conforme reafirmado recentemente no Ac. do TJUE de 15 de Setembro de 2016, proferido no processo C‑516/14 (Ac. Barlis):

“38      O Tribunal de Justiça declarou reiteradamente que o direito a dedução do IVA previsto nos artigos 167.° e seguintes da Diretiva 2006/112 faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado. Esse direito é imediatamente exercido em relação à totalidade dos impostos que tenham onerado as operações efetuadas a montante (v., neste sentido, acórdão de 13 de fevereiro de 2014, Maks Pen, C18/13, EU:C:2014:69, n.° 24 e jurisprudência aí referida).

39      O regime das deduções visa libertar inteiramente o empresário do peso do IVA devido ou pago no âmbito de todas as suas atividades económicas. O sistema comum do IVA garante, por conseguinte, a neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, quaisquer que sejam os fins ou os resultados dessas atividades, na condição de as referidas atividades estarem, em princípio, elas próprias sujeitas ao IVA (acórdão de 22 de outubro de 2015, PPUH Stehcemp, C277/14, EU:C:2015:719, n.° 27 e jurisprudência aí referida).

40      No que se refere aos requisitos materiais exigidos para a constituição do direito a dedução do IVA, resulta do artigo 168.°, alínea a), da Diretiva 2006/112 que os bens e serviços invocados para fundamentar esse direito devem ser utilizados pelo sujeito passivo a jusante para os efeitos das suas próprias operações tributadas e que, a montante, esses bens ou serviços devem ser prestados por outro sujeito passivo (v., neste sentido, acórdão de 22 de outubro de 2015, PPUH Stehcemp, C277/14, EU:C:2015:719, n.° 28 e jurisprudência aí referida).

41      No que respeita aos requisitos formais relativos ao exercício do referido direito, resulta do artigo 178.°, alínea a), da Diretiva 2006/112 que o seu exercício está subordinado à posse de uma fatura emitida nos termos do artigo 226.° desta diretiva (v., neste sentido, acórdãos de 1 de março de 2012, Kopalnia Odkrywkowa Polski Trawertyn P. Granatowicz, M. Wąsiewicz, C280/10, EU:C:2012:107, n.° 41, e de 22 de outubro de 2015, PPUH Stehcemp, C277/14, EU:C:2015:719, n.° 29).

42      O Tribunal de Justiça declarou que o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução deste imposto pago a montante seja concedida se os requisitos materiais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Por conseguinte, quando a Administração Fiscal dispõe dos dados necessários para saber que os requisitos materiais foram cumpridos, não pode impor condições suplementares ao direito do sujeito passivo de dedução do imposto que possam ter por efeito eliminar esse direito (v., neste sentido, acórdãos de 21 de outubro de 2010, Nidera Handelscompagnie, C385/09, EU:C:2010:627, n.° 42; de 1 de março de 2012, Kopalnia Odkrywkowa Polski Trawertyn P. Granatowicz, M. Wąsiewicz, C280/10, EU:C:2012:107, n.° 43; e de 9 de julho de 2015, Salomie e Oltean, C183/14, EU:C:2015:454, n.os 58, 59 e jurisprudência aí referida).” (sublinhado nosso).

Ora, conforme já se aludiu, as exigências formais acolhidas pelo ordenamento jurídico nacional, no Código do IVA, acima analisadas, e observadas pela AT nas liquidações objeto da presente ação arbitral, não tem por efeito eliminar o direito à dedução da Requerente, cujos pressupostos materiais incontestadamente se verificam, condicionando-o apenas a ser exercido em período diferente (9/2015), nos termos das disposições conjugadas dos artigos 19.º/2/b), e 22.º/2 e 3, ambos do CIVA, estando em tempo a Requerente de apresentar declaração de substituição relativamente à sua autoliquidação de IVA do período correto (9/2015), nos termos das disposições conjugadas dos artigos 59.º/3/b)/II e 131.º/1 do CPPT. Daí que, manifestamente, as condições impostas pelo ordenamento jurídico português e aplicadas pela AT nos actos tributários sub iudice, não tenham por efeito eliminar o direito à dedução da Requerente.

Por outro lado, ante tudo o quanto se vem firmando relativamente aos documentos a que aludem as alíneas dos n.º 2 e 6 do artigo 19º do CIVA, não pode obter vencimento a sustentação da Requerente relativa à violação do artigo 68º-A da LGT, porquanto, como bem se demonstra a desconformidade do exercício à dedução no período em que a Requerente a operou, assenta, desde logo, na violação desses mesmos n.º 2 e 6 do artigo 19º e não alegada violação da doutrina expressa pela Circular 10/2015, embora se reconheça que a Autoridade Tributária a esta última também fez apelo no seu relatório inspetivo.

Por último, atendendo à argumentação também expendida pela Requerente[3] no sentido de apenas serem devidos juros compensatórios, considerando o facto do imposto ter sido efetivamente entregue pela transmitente dos bens no decurso de 2015 e, em última análise, aí sempre se dever ter por corretamente deduzido o IVA suportado, não pode tal raciocínio merecer acolhimento.

Isto porque, se bem se percebe o alcance do invocado, pretenderia a Requerente que a AT tivesse procedido à realocação do IVA deduzido, fazendo-o transitar do período em que o imposto foi deduzido para o período em que o IVA foi efetivamente entregue nos cofres do Estado pelo emitente/transmitente.

Ora, tal solução não vislumbra ter qualquer cobertura legal no âmbito do funcionamento dos mecanismos do direito à dedução previstos no Código do IVA (imposto de recorte formalista), nem na diretiva europeia já supra identificada que lhe está na base, visto tal dedução constituir uma faculdade cujo exercício se encontra exclusivamente a cargo do sujeito passivo e não da Autoridade Tributária, ao que não é alheio o facto deste imposto assentar no princípio da neutralidade e não da capacidade contributiva (como sucede, genericamente, nos impostos sobre o rendimento).

Assim, à Requerida AT cabia tão-somente o dever de aferir da conformidade ou não da dedução tal imposto no período em que o mesmo havia sido deduzido pela Requerente (daí retirando as respetivas consequências) e não o de se substituir ao sujeito passivo nessa faculdade que só ao próprio cabe exercer dentro do princípio da autonomia da sua vontade, necessariamente considerando o respetivo quadro jurídico-tributário aplicável.

Perante a fundamentação vinda de alinhar no sentido da desconformidade legal da dedução do IVA no período de 2014/10, inútil se torna apreciar da invocada inaplicabilidade ao caso vertente do n.º 4 do artigo 19º do CIVA, censura alguma merecendo a atuação da Autoridade Tributária ao emitir os atos tributários aqui sindicados.

 

 

5. DECISÃO:

 

Nestes termos e com a fundamentação que se deixa exposta, decide este tribunal arbitral:

  1. Julgar totalmente improcedente o pedido de declaração de ilegalidade dos atos tributários de liquidação de IVA e juros compensatórios e moratórios, por não verificação de qualquer dos vícios que lhe vinham apontados pela Requerente.
  2. Condenar a Requerente ao pagamento das custas nos termos da Tabela I do RCPTA, calculadas em função do valor da causa - arts. 4º-1, do RCPTA e 6º, n.º 2, al. a) e 22º, n.º4, do RJAT.

 

Valor do processo: De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 68.600,68, correspondendo-lhe a taxa de arbitragem, a pagar pela Requerente, a € 2.442,00.

 

Notifique-se a presente decisão arbitral às partes e, oportunamente, arquive-se o processo.

Lisboa, 5 de Janeiro de 2017.

Os Árbitros

 

 

(Dr. José Pedro Carvalho) - Presidente

 

 

 

 

(Dr. Paulo Lourenço)

 

 

 

(Dr. Luís Ricardo Farinha Sequeira) - Relator

 

Texto elaborado por computador, nos termos do artigo 138º, n.º 5 do Código do Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29º, n.º 1, alínea e) do Regime de Arbitragem Tributária, com versos em branco e revistos.

 



[1] Cfr. Ac. STA, de 15.04.2009, processo n.º 0951/08, disponível em www.dgsi.pt

[2] Vide alíneas d) e e) do artigo 3º do Pedido de Pronúncia Arbitral;

[3] vide artigos 37 a 40 do Pedido de Pronúncia Arbitral;