Decisão Arbitral
I. Relatório
1. A…, S.A. (doravante “Requerente”), com o número de identificação fiscal (“NIF”) …, com sede na Av. …, n.º…, …, …-… Lisboa, apresentou, no dia 17 de julho de 2015, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, i.e., Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), pedido de constituição de tribunal arbitral, de forma a serem declarados ilegais os atos de liquidação de Imposto do Selo (“IS”), no valor global de € 5.255,89 (vide tabela infra);
Sendo demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (“Requerida” ou “AT”).
A) Constituição do Tribunal Arbitral
2. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitro singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação no dia 22 de outubro de 2015.
3. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, e mediante a comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído no dia 6 de novembro de 2015.
B) História processual
4. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente peticionou a declaração de ilegalidade das liquidações de IS mencionadas supra, respeitantes ao ano de 2014, por referência a um prédio urbano, constituído em propriedade total, sito na Av…, n.º…, em Lisboa, o qual se encontra inscrito na matriz predial urbana da freguesia de … sob o artigo matricial n.º... .
5. Note-se que, no âmbito do pedido de pronúncia arbitral referido supra, a Requerente já pagou os montantes referentes à 1.ª prestação de IS, no montante global de € 5.255,89.
6. A AT apresentou resposta, peticionando a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, em primeiro lugar, por exceção, já que, no seu entendimento, os tribunais arbitrais não têm competência para decidir sobre o pedido elaborado pela Requerente e, também, por não se verificar qualquer vício de violação de lei, solicitando que os atos tributários em análise, por não violarem qualquer preceito legal ou constitucional, fossem mantidos.
7. Por despacho de 18 de janeiro de 2016, o Tribunal Arbitral Singular, ao abrigo do disposto na alínea c) do artigo 16.º do RJAT, e no seguimento do requerido pela AT, decidiu, sem oposição das partes, que não se mostrava necessário promover a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, em resultado da simplicidade das questões em apreço, bem como por considerar que tinha em seu poder todos os elementos necessários para tomar uma decisão clara e imparcial.
8. Decidiu igualmente, em conformidade com o n.º 2 do artigo 18.º do RJAT, não ser necessária a produção de alegações orais, por estarem perfeitamente definidas as posições das partes nos respetivos articulados, e fixou como prazo para a decisão arbitral o dia 26 de fevereiro de 2016.
9. O Tribunal foi regularmente constituído e é competente para apreciar as questões indicadas (artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT), as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade plena (artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). Não ocorrem quaisquer nulidades pelo que nada obsta ao julgamento de mérito.
10. Encontra-se, assim, o presente processo em condições de nele ser proferida a decisão final.
II. Questão a decidir
11. A questão fulcral a apreciar e decidir relativamente ao mérito da causa, tal como se retira das peças processuais das partes, é a seguinte: por referência a prédios não constituídos em regime de propriedade horizontal, integrados por diversos andares e divisões suscetíveis de utilização independente (e com afetação habitacional), qual é o Valor Patrimonial Tributário (“VPT”) relevante para efeitos do apuramento do IS a pagar, nos termos da Verba n.º 28 da Tabela Geral do IS (“TGIS”).
12. Ou seja, visa o presente tribunal aferir se, tal como alega a Requerente, o montante a considerar é o VPT atribuído, individualmente, a cada uma das partes suscetíveis de utilização autónoma, ou, ao invés, o valor total resultante do somatório dos VPTs daquelas frações autónomas, como sugere a Requerida.
13. Em paralelo, e no seguimento da questão levantada pela AT, cumpre ainda apurar se se verifica, tal como sugere a primeira, a exceção da inimpugnabilidade do ato impugnado relativamente às liquidações que a Requerente procura impugnar?
14. Neste sentido, caso venha a ser esse o entendimento do presente tribunal, o mesmo terá necessariamente que se abster de apreciar o respetivo pedido de pronúncia arbitral, devido à sua incompetência em razão da matéria, nos termos do artigo 2.º do RJAT.
III. Decisão da matéria de facto e sua motivação
15. Examinada a prova documental produzida, o tribunal julga provados, com relevo para a decisão da causa, os seguintes factos:
I. A Requerente é a proprietária de um prédio urbano, constituído em propriedade total, sito na Av…, n.º…, o qual se encontra inscrito na matriz predial urbana da freguesia de … sob o artigo n.º…, com 7 andares suscetíveis de utilização independente e todos afetos a fins habitacionais e um VPT global de € 1.558.250.
II. A Requerente recebeu, por respeito ao exercício de 2014, e em resultado do exposto na Verba n.º 28 da TGIS, as notas de liquidação da AT, mencionadas supra, referentes à 1.ª prestação, no montante de € 5.255,89.
III. No âmbito das liquidações recebidas, por respeito à 1.ª prestação, a Requerente pode conhecer logo o montante global devido, a título de IS, em 2014, de € 15.582,50 (por respeito ao IS devido em 2014, por referência aos 7 andares indicados supra).
III. A Requerente, à data da interposição do pedido de constituição de tribunal arbitral, tinha já procedido ao pagamento dos montantes correspondentes à 1.ª prestação de IS (i.e., € 5.255,89).
16. A convicção do Tribunal sobre os factos dados como provados resultou dos documentos anexados aos autos e constantes do pedido e das alegações, não impugnadas, das partes, conforme se especifica nos pontos da matéria de facto acima enunciados.
17. Não existe factualidade relevante para a decisão da causa dada como não provada.
IV. Do Direito
A) Quadro jurídico
18. Tendo em consideração o tema em discussão no presente processo, importa, em primeiro lugar, elencar as normas que compõem o quadro jurídico relevante, à data da ocorrência dos factos.
19. A sujeição a IS dos prédios com afetação habitacional resultou do aditamento da Verba n.º 28 à TGIS, efetuado pelo artigo 4.º da Lei 55-A/2012, de 29 de outubro, que tipificou os seguintes factos tributários:
“28 – Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (Código do IMI), seja igual ou superior a € 1.000.000,00 – sobre o valor patrimonial tributário para efeito de IMI:
28.1 – Por prédio com afetação habitacional – 1%
28.2 – Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças – 7,5%.”
20. A aludida lei aditou, igualmente, no Código do IS, o n.º 7 do artigo 23.º, respeitante à liquidação do IS: “tratando-se do imposto devido pelas situações previstas na verba n.º 28 da Tabela Geral, o imposto é liquidado anualmente, em relação a cada prédio urbano, pelos serviços centrais da Autoridade Tributária e Aduaneira, aplicando-se, com as necessárias adaptações, as regras contidas no Código do IMI”, e o artigo 67.º, n.º 2 que dispõe que “às matérias não reguladas no presente código respeitantes à verba 28 da Tabela Geral aplica-se subsidiariamente o Código do IMI”.
21. Neste contexto, e tendo em consideração a indicação supra, debrucemo-nos, agora, sobre o Código do IMI.
22. Primeiramente, atente-se ao artigo 2.º, n.º 4 do Código do IMI que nos diz que “para efeitos deste imposto, cada fração autónoma, no regime de propriedade horizontal, é havida como constituindo um prédio”.
23. Por sua vez, o n.º 3 do artigo 12.º do Código do IMI, estabelece que “cada andar ou parte de prédio suscetível de utilização independente é considerado separadamente na inscrição matricial, a qual discrimina também o respetivo valor patrimonial tributário”.
24. Adicionalmente, e tendo em consideração a exceção evocada pela Requerida, cumpre, da mesma forma, especificar o quadro legal conexo.
25. Assim, o artigo 2.º do RJAT estabelece o âmbito da competência dos tribunais arbitrais, nos seguintes termos:
“1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) a declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.
2 - Os tribunais arbitrais decidem de acordo com o direito constituído, sendo vedado o recurso à equidade”.
26. Em paralelo, o artigo que tutela a verba em discussão, no Código do IS, é o artigo 23.º,
n.º 7, respeitante à liquidação do IS, que prevê o seguinte: “tratando-se do imposto devido pelas situações previstas na verba n.º 28 da Tabela Geral, o imposto é liquidado anualmente, em relação a cada prédio urbano, pelos serviços centrais da Autoridade Tributária e Aduaneira, aplicando-se, com as necessárias adaptações, as regras contidas no Código do IMI”.
27. Por último, atente-se igualmente no artigo 89.º, n.º 1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT, que obsta ao conhecimento do mérito das causas, nas seguintes situações:
“1 - Para o efeito do disposto nos artigos anteriores, obstam nomeadamente ao prosseguimento do processo:
a) Ineptidão da petição;
b) Falta de personalidade ou capacidade judiciária do autor;
c) Inimpugnabilidade do ato impugnado;
d) Ilegitimidade do autor ou do demandado;
e) Ilegalidade da coligação;
f) Falta da identificação dos contrainteressados;
g) Ilegalidade da cumulação de pretensões;
h) Caducidade do direito de ação;
i) Litispendência e caso julgado”.
28. Assim, é no presente quadro jurídico que importa, em primeiro lugar, decidir se a exceção evocada pela Requerente deverá prosseguir, abstendo-se o presente tribunal de apreciar o pedido da Requerente.
29. Paralelamente, e caso assim não se entenda, apreciar-se-á ainda se nos casos em que a propriedade horizontal de um prédio urbano com diversas frações autónomas não se encontra constituída, o VPT, para efeitos da Verba n.º 28 da TGIS, é calculado, individualmente, por fração suscetível de ser utilizada autonomamente, ou, alternativamente, apurado mediante o somatório dos VPTs daquelas frações.
B) Argumentos das partes
30. A este respeito, a Requerente, no seu pedido, alega, em síntese, o seguinte:
31. “A sujeição ao IS contido na Verba n.º 28.1 da TGIS, é determinado pela conjugação de dois critérios. A afetação habitacional e o VPT constante da matriz igual ou superior a € 1.000.000,00”.
32. Nesse sentido, “no caso de um prédio urbano com características idênticas às descritas nos presentes autos, a sujeição a IS é determinada não pelo VPT do prédio, mas pelo VPT atribuído a cada um dos andares ou divisões”.
33. Isto porque, na opinião da Requerente, o legislador não fez nenhuma distinção entre os prédios constituídos em propriedade total e em propriedade horizontal. Pelo que, “no caso em apreço só pode relevar a verdade material subjacente ao prédio e à respetiva utilização”.
34. Do ponto de vista da Requerente, “a AT não pode considerar como valor de referência do novo imposto o valor total do prédio, uma vez que o próprio legislador estabeleceu regra diferente em sede de Código do IMI, sendo este o Código aplicável às matérias não reguladas no que toca à verba n.º 28 da TGIS”.
35. Em paralelo, considera a Requerente que é “ilegal e institucional considerar como valor de referência o somatório dos valores patrimoniais atribuídos a cada um dos andares, na medida em que se traduz numa nítida violação do princípio da igualdade e proporcionalidade fiscal. O Legislador fiscal não pode tratar situações iguais de forma diferenciada, pois se fosse um prédio submetido ao regime da propriedade horizontal, nenhuma das frações estaria sujeita ao novo IS”.
36. Em conclusão, peticionou então a Requerente que as liquidações previamente mencionadas fossem anuladas, “por serem manifestamente ilegais, tudo com as legais consequências”.
37. Adicionalmente, e já em sede de alegações finais, a Requerente veio ainda contestar a exceção levantada pela AT, enumerando várias decisões arbitrais nas quais se tinha apreciado a questão solicitada, não obstante o pedido respeitar apenas a um dos três atos de liquidação de imposto.
38. Por seu turno, a Requerida, depois de devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta na qual, começou por considerar que “o Tribunal Arbitral é materialmente incompetente, face ao disposto no artigo 2.º do RJAT, para apreciar a legalidade de uma prestação do ato de liquidação, que não é sem si nenhum ato tributário, não havendo qualquer dúvida, até por todos os documentos a ele juntos, que a Requerente impugna, exclusivamente, as notas de cobrança que constituem a 1.ª prestação do imposto do ano de 2014, relativo ao imóvel”.
39. Neste sentido, a Requerida cita, de forma extensa, a decisão relativa ao processo arbitral n.º 726/2014-T, que versa no entendimento da mesma, sobre questão semelhante àquela agora apreciada no presente tribunal.
40. Na decisão mencionada supra, citada pela Requerida, ter-se-á concluído que “não sendo cada uma das prestações das liquidações de IS identificadas nos autos autonomamente impugnáveis, pelos motivos antes expostos, estar-se-á perante um caso de incompetência do Tribunal Arbitral para apreciação e declaração da sua ilegalidade e consequente anulação”.
41. Desta forma, concluiu preliminarmente a Requerida que, em virtude do previamente referido, era manifesta a incompetência do Tribunal Arbitral para apreciar a questão em apreço, devendo proceder a exceção por si evocada.
42. Em paralelo, e à cautela (nas suas próprias palavras), a Requerida preconizou, ainda, o seu entendimento relativamente à ilegalidade das liquidações por si emitidas, começando por afirmar que “as notas de cobrança resultam da aplicação direta da norma legal, que se traduz em elementos objetivos, sem qualquer apreciação subjetiva ou discricionária”.
43. Com efeito, no seu entendimento, um prédio em propriedade total com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente é, inequivocamente, diverso de um imóvel em regime de propriedade horizontal, constituído por frações autónomas, ou seja, vários prédios, pelo que, quanto à liquidação de IMI, e subsidiariamente de IS, “o VPT que serve de base ao seu cálculo, será indiscutivelmente o VPT que a ora Requerente define como valor global”.
44. Quanto à violação do princípio da legalidade, entende a Requerida que a tese defendida pela Requerente falece de sustentação legal, “pois muito embora a liquidação de IS, nas situações previstas na Verba n.º 28.1 da TGIS, se processe de acordo com as regras do Código do IMI, a verdade é que o legislador ressalva os aspetos que careçam das devidas adaptações, a saber aqueles em que, como é o caso dos prédios em propriedade total, ainda que com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente (muito embora o IMI seja liquidado relativamente a cada parte suscetível de utilização independente) para efeitos de IS releva o prédio na sua totalidade pois que, as divisões suscetíveis de utilização independente não são havidas como prédio, mas apenas as frações autónomas no regime de propriedade horizontal conforme n.º 4 do art. 2.º do Código do IMI”.
45. Concluindo, relativamente àquele ponto, que o legislador quis tributar, com a Verba n.º 28.1 da TGIS, os prédios enquanto uma única realidade jurídico-tributária.
46. No que se refere à violação do princípio de igualdade tributária, entende a Requerida, que a Verba n.º 28.1 da TGIS “não consubstancia qualquer violação ao princípio da igualdade, inexistindo qualquer discriminação na tributação de prédios constituídos em propriedade horizontal e prédios em propriedade total com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, ou entre prédios com afetação habitacional e prédios com outras afetações”.
47. De facto, para a Requerida, a propriedade horizontal e a propriedade vertical são institutos jurídicos diferenciados e, “a lei fiscal respeita-os!”.
48. Por último, já no âmbito do princípio da capacidade contributiva, entende a Requerida que a referida tributação obedece “ao critério da adequação, na exata medida em que visa a tributação da riqueza consubstanciada na propriedade de imóveis de elevado valor, surgindo num contexto de crise económica que não pode ser de todo ignorado”.
49. Entende assim a Requerida que as liquidações por si promovidas resultam de uma correta interpretação e aplicação do direito aos factos, pedindo, dessa forma, que, caso a exceção por si evocada não seja considerada procedente, então que a pretensão aduzida pela Requerente seja julgada improcedente e a primeira absolvida do pedido.
50. Já no âmbito das suas alegações finais, a Requerida apensou ao processo um Acórdão do Tribunal Constitucional com o n.º 590/2015, de 11 de novembro, por considerar que o mesmo fundamentava os argumentos preconizados pela mesma no âmbito da sua resposta à petição inicial apresentada pela Requerente.
C) Apreciação do tribunal
51. Em primeiro lugar, cumpre ao presente tribunal analisar a exceção levantada pela Requerida no âmbito do presente processo.
52. Neste sentido, importa primeiramente aferir se as prestações referentes a uma liquidação de IS, constantes das notas de cobrança, poderão ser consideradas autonomamente como atos de liquidação de tributos? Ou, alternativamente, estamos, tal como defende a AT, perante uma exceção da inimpugnabilidade do ato impugnado?
53. Para fundamentar a sua decisão, o presente tribunal servir-se-á da decisão arbitral mencionada pela AT, a decisão arbitral n.º 726/2014-T, de 10 de março, a qual, pela sua pertinência, passa a transcrever.
54. “Outra das exceções invocadas pela AT é a da incompetência do tribunal arbitral para a decisão do litígio, com o fundamento de que “a Requerente não impugna um ato tributário, mas impugna, antes, o pagamento de uma prestação de um ato tributário constante de uma nota de cobrança”, ou seja, que “o objeto do processo é a anulação não de um ato tributário, mas sim de uma nota de cobrança para o pagamento da 2.ª prestação de um imposto, matéria esta que não consta, em absoluto, do conjunto da norma que delimita a competência dos tribunais arbitrais tributários, constante do art.º 2.º do RJAT”. A competência dos tribunais arbitrais tributários que funcionam junto do CAAD é fixada pelos artigos 2.º, n.º 1, e 10.º, n.º 1, do RJAT.
Concretamente, refere o artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, que tal competência compreende a apreciação de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, enquanto a alínea a) do n.º 1 do seu artigo 10.º, estabelece o prazo de 90 dias para apresentação do pedido de constituição do tribunal, “contado a partir dos factos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, quanto aos atos suscetíveis de impugnação autónoma e, bem assim, da notificação da decisão ou do termo do prazo legal de decisão do recurso hierárquico”.
Determinar a competência do tribunal arbitral para decidir a pretensão objeto dos presentes autos, passará, necessariamente, por averiguar se o pedido de declaração de ilegalidade e consequente anulação de uma das prestações de uma liquidação de IS, efetuada ao abrigo da verba 28, da TGIS, equivale a um pedido de anulação total ou parcial da mesma liquidação ou, não equivalendo, se uma daquelas prestações poderá configurar um ato suscetível de impugnação autónoma.
Quanto à primeira questão, poderá afirmar-se que uma prestação não equivale a uma liquidação de imposto, porquanto, nos termos do n.º 7, do artigo 23.º, do Código do IS, na redação que lhe foi dada pelo artigo 3.º, da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, “7 - Tratando-se do imposto devido pelas situações previstas na verba n.º 28 da Tabela Geral, o imposto é liquidado anualmente, em relação a cada prédio urbano, pelos serviços centrais da Autoridade Tributária e Aduaneira, aplicando-se, com as necessárias adaptações, as regras contidas no Código do IMI”.
Ora, a expressão “o imposto é liquidado anualmente” indicia que é efetuada uma única liquidação anual, embora a mesma possa ser dividida, para efeitos de pagamento, em prestações, e não tantas liquidações quantas as prestações em que o débito deva ser satisfeito – a divisão de uma liquidação em prestações não passará, assim, de uma mera técnica de arrecadação de receitas.
Por outro lado, a questão de saber se uma prestação pode ser havida como parte autonomamente impugnável da liquidação, remete-nos para a da divisibilidade do ato tributário de liquidação e consequente possibilidade da sua anulação parcial.
A este respeito, tem a jurisprudência entendido que a liquidação é um ato divisível, quer por natureza, por respeitar a uma obrigação de natureza pecuniária, quer por definição legal, uma vez que o artigo 100.º, da Lei Geral Tributária (LGT) admite a “procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo”, situação em que a administração fiscal, fica obrigada “à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei”.
No entanto, para que haja anulação parcial do ato tributário, necessário se torna que a ilegalidade o afete apenas em parte (cfr., neste sentido, o Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA, proferido em 10 de abril de 2013, no (…) em cujo sumário se lê: “Sumário: I - O ato tributário, enquanto ato divisível, tanto por natureza como por definição legal, é suscetível de anulação parcial. II - O critério para determinar se o ato deve ser total ou parcialmente anulado passa por determinar se a ilegalidade afeta o ato tributário no seu todo, caso em que o ato deve ser integralmente anulado ou apenas em parte, caso em que se justifica a anulação parcial.”
Assim, nos casos em que o ato tributário é divisível, “se for pedida a anulação parcial de um ato tributário, o tribunal não poderá, em princípio, anulá-lo totalmente”[1]; se for pedida a sua anulação integral e o ato for apenas parcialmente anulável, o pedido será parcialmente improcedente.
Sobre a questão da indivisibilidade de uma liquidação de IS a que se refere a verba 28 da TGIS, já se pronunciou o CAAD, no processo n.º 205/2013-T, conforme o extrato que se transcreve: “11. Vem ainda a Requerida impugnar o valor da causa considerando que o mesmo é de 8.940,94€ e não de 28.822,80€, conforme indicado pela requerente.
Sustenta a requerente que “o ato impugnado nestes autos é o ato de liquidação com o nº ...de 22/02/2013, referente à primeira prestação de IS, do ano de 2012, no montante de € 8.940,94, junta pelo requerente ao pedido de pronuncia arbitral como Doc. 1”.
Acontece, porém, que o valor da liquidação nº ... de 22/02/2013, como consta do referido documento é, na realidade, de 26.822,00 € e não de € 8.940,94. Note-se que, não existe qualquer liquidação de € 8.940,94. Este valor é apenas a primeira prestação duma liquidação que foi desde logo efetuada e no valor indicado pela Requerente.
Da circunstância do valor da liquidação poder ser pago em várias prestações, não decorre que existam três liquidações. Trata-se, diferentemente, duma liquidação que pode ser paga em várias prestações (sublinhado nosso), não estando o sujeito passivo impedido de impugnar a mesma devido ao facto de ainda só ter decorrido o prazo de pagamento de uma delas.
O sujeito passivo impugnou o ato de liquidação com o nº ... de 22/02/2013, no valor de 26.822,00€, que lhe havia sido notificada e é esse o valor correto da causa.”. Também o processo arbitral n.º 120/2012-T (…) e do qual se extraem os fragmentos que seguem, se havia já pronunciado sobre a indivisibilidade de uma liquidação de IMI, matéria de aplicação subsidiária às liquidações de IS da verba 28, da TGIS, por remissão do n.º 2 do artigo 67.º do Código do IS:
“De acordo com o disposto no artigo 113.º, n.º 2 do Código do IMI, a liquidação deste imposto é efetuada nos meses de fevereiro e março do ano seguinte àquele a que o imposto diz respeito.
Nos termos do n.º 1 do artigo 120.º do mesmo diploma, o imposto deve ser pago em duas prestações, nos meses de abril e setembro, desde que o seu montante seja superior a Euros 250, devendo o pagamento, no caso de esse montante ser igual ou inferior àquele limite, ser efetuado de uma só vez, durante o mês de abril.” (…) “Conforme resulta, assim, do disposto nos referidos artigos, embora o ato autonomamente sindicável seja o ato de liquidação de IMI (sublinhado nosso), o prazo para contestar a sua legalidade apenas deverá ser contado a partir do termo do prazo de pagamento do imposto nele apurado.
Devendo este ser pago, nos termos da lei, em mais do que uma prestação, apenas com o termo da última daquelas (pressupondo, naturalmente, a não verificação de situações de vencimento antecipado) é que se poderá assim iniciar a contagem do prazo referido no artigo 102.º, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável, no âmbito do processo arbitral, ex vi o disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei nº. 10/2011, de 20 de janeiro (“RJAT”)”.
“(…)Tal conclusão resulta, aliás, clara da natureza indivisível do ato de liquidação, bem como da necessidade – de resto, enfatizada pela própria Requerida – de, relativamente à mesma liquidação de IMI - que, nos termos da lei deva ser paga em duas prestações - não serem proferidas decisões administrativas ou judiciais contraditórias.” (…) “É que – reiteremos –, não sendo qualquer das prestações de pagamento de IMI autonomamente sindicável – mas apenas o ato de liquidação a que aquelas se refiram”.
As prestações de pagamento de uma liquidação de IMI ou, na situação em análise, de uma liquidação de IS, nos termos da Verba 28, da TGIS, não são autonomamente sindicáveis, por terem origem numa única obrigação anual, de acordo com a lição de Braz Teixeira: “é necessário não confundir as prestações periódicas, que, embora realizando-se por atos sucessivos, em momentos diversos, têm origem numa mesma obrigação e constituem as várias parcelas de uma mesma prestação que se cindiu, com as prestações que devem efetuar-se periodicamente, não devido a uma divisão da prestação global, mas sim ao nascimento, também periódico, de novas obrigações, pela permanência dos pressupostos de facto da tributação.”
Concluindo-se que as prestações de uma liquidação de imposto não são autonomamente impugnáveis, por consubstanciarem parcelas de uma prestação global, com origem numa mesma obrigação, cumpre averiguar se uma daquelas prestações pode ser considerada como um “ato de impugnação autónoma”, a que se refere o artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, com remissão para os n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º, do CPPT.
Em anotação ao artigo 102.º, do CPPT, e relativamente à alínea e) do seu n.º 1, em que se prevê o termo inicial do prazo de impugnação judicial na data da “notificação dos restantes atos que possam ser objeto de impugnação autónoma nos termos deste Código”, escreve Jorge Lopes de Sousa: “(…) aplica-se esta regra não só aos casos de impugnação autónoma previstos neste Código [decisões de recurso hierárquico que comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação (art. 76.º, n.º 2), atos de autoliquidação (art. 131.º), atos de retenção na fonte (art. 132.º) e atos de fixação de valores patrimoniais (art. 134.º), mas também aos outros casos de impugnação de atos de avaliação direta (artigo 86.º, n.º 1, da LGT)” .
O facto de a declaração de ilegalidade dos atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, os atos de determinação da matéria coletável e de fixação de valores patrimoniais, integrarem a competência dos tribunais arbitrais, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, devendo o pedido de constituição do tribunal arbitral, quanto a eles, ser apresentado no prazo de 30 dias a contar da data da respetiva notificação, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, leva à conclusão necessária de que os atos de impugnação autónoma a que se refere o artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, são os atos de liquidação, de autoliquidação e de pagamentos por conta, ainda que, relativamente a estes, tenha sido apresentada reclamação graciosa ou recurso hierárquico, expressa ou tacitamente indeferidos.
Tendo-se excluído a possibilidade de uma prestação configurar um ato tributário de liquidação, muito menos se lhe poderá atribuir a natureza de autoliquidação ou de pagamento por conta. Não sendo cada uma das prestações das liquidações de IS identificadas nos autos autonomamente impugnáveis, pelos motivos antes expostos, estar-se-á perante um caso de incompetência do tribunal arbitral para apreciação e declaração da sua ilegalidade e consequente anulação”.
55. Com efeito, não obstante, por diversas vezes, a jurisprudência se ter manifestado no sentido da cindibilidade dos atos de liquidação de tributos, tal como anteriormente se referiu, note-se que a mesma (cindibilidade) só será considerada, para efeitos de uma eventual impugnação de atos de liquidação de tributos, nos casos em que a anulabilidade parcial seja possível.
56. Ora, apesar do enquadramento vertido supra, o presente tribunal considera que a situação em crise tem, naturalmente, diversas especificidades que deverão ser igualmente consideradas, no âmbito desta decisão arbitral, com o propósito de garantir a legitimidade da mesma.
57. Em primeiro lugar, note-se que, apesar de afirmar veemente que os atos de liquidação de tributos são indivisíveis, a AT, ao emitir as notas para o pagamento do IS, dá espaço ao contribuinte para, caso pretenda, se opor, de forma separada, ao pagamento das mesmas (i.e., por prestação), reconhecendo a divisibilidade e a impugnabilidade autónoma de cada um dos atos de liquidação de tributos, neste caso de IS.
58. De facto, em cada uma das aludidas notas, é possível ler “poderá reclamar ou impugnar a liquidação nos termos e prazos estabelecidos nos artigos 70.º e 102.º do CPPT”.
59. E, neste sentido, não obstante a posição que defende, a verdade é que a própria Requerida tem, no âmbito da sua atuação no ordenamento jurídico-fiscal português, se comportado como se os atos de liquidação de tributos fossem passíveis de ser cindíveis, nomeadamente quando respeitam a IS.
60. Assim sendo, que dizer das expetativas legitimamente formadas pelo contribuinte (e da sua confiança na AT), quando a AT refere expressamente que este fica legitimado a reagir, contra cada uma das notificações, individualmente?
61. Isto porque, e é especialmente importante salientar, o sujeito passivo, neste caso a Requerente, assume, naturalmente, o caráter autónomo de cada prestação, enquanto ato de liquidação de tributos individual.
62. A este respeito, atentemos agora nas palavras do Professor Rui Duarte Morais.
63. “As notificações têm que conter a indicação dos meios de reação utilizáveis contra o ato notificado. E se tal indicação estiver errada? Começamos por notar que este tipo de situações é algo vulgar”.
64. Questiona então o Professor se nestes casos se justifica “que o Tribunal se abstenha de conhecer da questão e o contribuinte obrigado a apresentar uma tal reclamação?”
65. Ora no seu entendimento, tal comportamento não é necessário.
66. Com efeito, “a reclamação em causa é, no essencial, uma forma de recurso judicial. Ou seja, se o litígio implica uma decisão judicial e o “processo” já subiu ao Tribunal (ainda que por via imprópria, por erro da Administração), não se vislumbra qualquer interesse em recomeçar toda a tramitação a partir do “zero”. Haveria, sim, que proceder à correção da forma processual utilizada”[2].
67. Por último, refira-se igualmente que esta perspetiva encontra apoio em diversas decisões arbitrais, nomeadamente na decisão arbitral n.º 618/2014-T, de 7 de fevereiro, na qual, ao ser reconhecida autonomamente a ilegalidade da 3.ª prestação de IS, considerando como procedente a respetiva impugnação, se validou consequentemente a possibilidade das liquidações de IS serem cindíveis e, dessa forma, as prestações em que, por regra, se decompõem, individualmente impugnadas.
68. Veja-se ainda, a título de exemplo, a decisão arbitral proferida no Processo n.º 757/2014-T, na qual o contribuinte tinha solicitado a impugnação da 2.ª e 3.ª prestações referentes ao ato de liquidação de IS.
69. Nesse caso concreto, o respetivo tribunal reconheceu e declarou no mesmo processo que, quanto ao ato de liquidação de IS apenas anularia a 3.ª prestação, já que, para efeitos daquela petição inicial, o pedido correspondente à 2.ª prestação já se encontrava intempestivo (confirmando, uma vez mais, que impugnabilidade autónoma de cada uma das prestações, individualmente consideradas, é legítima).
70. Neste contexto, não pode o presente tribunal concordar com a exceção levantada pela Requerida, considerando-se, dessa forma, competente para analisar, de seguida, o pedido da Requerente.
71. A título introdutório, cumpre referir que, no entendimento do presente tribunal, e tendo em consideração o quadro jurídico previamente apresentado, a proposição normativa essencial a ter em consideração para a decisão do caso é a que resulta da Verba n.º 28 da TGIS.
72. Refira-se, igualmente, que, aos olhos do tribunal arbitral, a questão decidenda prende-se, exclusivamente, com matéria de direito, nomeadamente compreender, para efeitos da aplicação da aludida verba, qual o VPT relevante.
73. Em primeiro lugar, esclareça-se que é claro, à letra da lei, que o VPT a considerar, para efeitos da aplicação da Verba n.º 28 da TGIS, só pode ser o que é apurado no âmbito do Código do IMI.
74. É, aliás, isto que nos diz, ipsis verbis, a referida verba “(…) cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (Código do IMI), seja igual ou superior a € 1.000.000,00”.
75. Assim sendo, atente-se, uma vez mais, ao que decorre do artigo 2.º, n.º 4 do Código do IMI que nos diz que “para efeitos deste imposto, cada fração autónoma, no regime de propriedade horizontal, é havida como constituindo um prédio”.
76. Reforçado, não obstante, pelo artigo 12.º, n.º 3 do mesmo Código, o qual estabelece que “cada andar ou parte de prédio suscetível de utilização independente é considerado separadamente na inscrição matricial a qual determina também o respetivo valor patrimonial tributário”.
77. Conclui-se, assim, que, para efeitos do cálculo do IMI a pagar, o VPT é considerado, individualmente, para cada andar ou parte suscetível de utilização independente.
78. E se este é o método de apuramento seguido para o IMI, terá necessariamente que ser o modelo igualmente aplicado no âmbito da Verba n.º 28 da TGIS, nos termos que supra se explanaram.
79. Não obstante, e caso as dúvidas suscitadas ainda subsistam, o presente tribunal apoia-se em algumas decisões arbitrais previamente proferidas, que abordaram o assunto em análise.
80. Assim, primeiramente, atentemos na decisão n.º 50/2013-T, de 29 de outubro, mencionada igualmente pela Requerente, e que dispõe o seguinte.
81. “A Lei n.º 55-A/2012 nada diz quanto à qualificação dos conceitos em presença, nomeadamente, quanto ao conceito de «prédio com afetação habitacional». No entanto o artigo 67.º, nº 2 do Código do IS, aditado pela referida Lei, dispõe que «às matérias não reguladas no presente código respeitantes à verba 28 da Tabela Geral aplica-se subsidiariamente o Código do IMI».
A norma de incidência refere-se, pois, a prédios urbanos, cujo conceito é o que resulta do disposto no artigo 2º do Código do IMI, obedecendo a determinação do VPT aos termos do disposto no artigo 38º e seguintes do mesmo código.
Consultado o Código do IMI verifica-se que o seu artigo 6º apenas indica as diferentes espécies de prédios urbanos, entre os quais menciona os habitacionais (…).
Daqui podemos concluir que, na ótica do legislador, não importa o rigor jurídico-formal da situação concreta do prédio mas sim a sua utilização normal, o fim a que se destina o prédio. Concluímos ainda que para o legislador a situação do prédio em propriedade vertical ou em propriedade horizontal não relevou, pois que nenhuma referência ou distinção é efetuada entre uns e outros. O que releva é a verdade material subjacente à sua existência enquanto prédio urbano e à sua utilização.
(…)
Utilizando o critério que a própria lei introduziu no artigo 67.º, n.º 2 do Código do IS, «às matérias não reguladas no presente código respeitantes à verba 28 da Tabela Geral aplica-se subsidiariamente o Código do IMI»” (sublinhado nosso).
82. Ou seja, tendo em consideração que a inscrição na matriz de imóveis em propriedade vertical, para efeitos do Código do IMI, segue as mesmas regras de inscrição dos imóveis constituídos em propriedade horizontal, sendo o respetivo IMI, bem como o novo IS, liquidados individualmente em relação a cada uma das partes, não parece, ao presente tribunal, que exista qualquer dúvida que o critério legal para definir a incidência do novo imposto tem de ser o mesmo.
83. Neste contexto, se a lei exige, relativamente ao IMI, a emissão de notas de liquidação individualizadas para as partes autónomas dos prédios em propriedade vertical, nos mesmos moldes em que o estabelece para os prédios em propriedade horizontal, exigirá, nos mesmos termos, relativamente à regra de incidência da Verba n.º 28 da TGIS.
84. Pelo que, o IS, no âmbito da Verba n.º 28 da TGIS, só poderia incidir em determinada fração se esta, eventualmente, tivesse um VPT superior a €1.000.000,00.
85. E, mais se diga, que foi esse inclusive o entendimento adotado pela AT.
86. Com efeito, esta (AT) também emitiu notas de liquidação individualizadas, referentes a cada uma das frações suscetíveis de utilização autónoma, demonstrando que, na sua opinião, as aludidas frações, apesar de juridicamente não constituídas em propriedade horizontal, seriam, para todos os efeitos, independentes entre si.
87. Todavia, olvidou a AT que não poderia, em virtude do enquadramento previamente vertido, proceder ao somatório dos VPTs individuais das frações previamente mencionadas, almejando um valor que já caísse na base de incidência da Verba n.º 28 da TGIS.
88. Isto quando o próprio legislador estabeleceu uma regra diferente no âmbito do Código do IMI que, tal como previamente referido, é o Código aplicável às matérias não reguladas no Código do IS, no que se refere à Verba n.º 28 da TGIS.
89. Resumindo, o critério estabelecido pela AT, de considerar o valor do somatório dos VPT individuais atribuídos às partes, andares ou divisões com utilização independente, servindo-se do facto de que o prédio não se encontra constituído em regime de propriedade horizontal, não encontra, aos olhos do presente tribunal, sustentação legal, sendo, nomeadamente, contrário ao critério aplicável em sede de IMI e, por remissão (nos termos mencionados supra), em sede de IS.
90. Neste contexto, considera o presente tribunal que o critério defendido pela AT viola os princípios da legalidade e da igualdade fiscal, e, bem assim, o da prevalência da verdade material sobre a realidade jurídico-formal.
91. Paralelamente, note-se que o artigo 12.º, n.º 3 do Código do IMI não efetua qualquer distinção quanto ao regime dos prédios que se encontrem em propriedade horizontal ou vertical.
92. Como tal, e uma vez que se o prédio se encontrasse em regime de propriedade horizontal, nenhuma das suas frações habitacionais sofreria incidência do novo imposto, a AT não pode tratar situações materialmente iguais de forma diferente.
93. A este respeito, veja-se aquilo que foi dito a propósito deste tema na decisão arbitral proferida no âmbito do Processo n.º 132/2013-T, de 16 de dezembro, cujo entendimento o presente tribunal acolhe.
“Com efeito, não faz sentido distinguir na lei aquilo que a própria lei não distingue (ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus).
Acresce que distinguir, neste contexto, entre prédios constituídos em propriedade horizontal e em propriedade total seria uma «inovação» sem um suporte legal associado, até porque, como se tem aqui afirmado, nada denuncia, nem na verba n.º 28, nem no disposto no Código do IMI, uma justificação para essa particular diferenciação.
Note-se, exemplarmente, o que diz o artigo 12.º, n.º 3, do Código do IMI: cada andar ou parte de prédio suscetível de utilização independente é considerado separadamente na inscrição matricial, a qual discrimina também o respetivo valor patrimonial tributário.
O critério uniforme que se impõe é, assim, o que determina que a incidência da norma em causa apenas tenha lugar quando alguma das partes, andares ou divisões com utilização independente de prédio em propriedade horizontal ou total com afetação habitacional, possua um VPT superior a €1.000.000,00.
Fixar como valor de referência para a incidência do novo imposto o VPT global do prédio em causa, como pretendia a ora requerida, não encontra base na legislação aplicável, que é o Código do IMI, dada a remissão feita pelo citado artigo 67.º, n.º 2 do Código do IS.
(…)
Acresce, ainda, que admitir a diferenciação de tratamento poderia produzir resultados incompreensíveis do ponto de vista jurídico e atentatórios dos objetivos que o legislador dizia ter para aditar a verba n.º 28. A título exemplificativo, suponha-se a seguinte hipótese, que parece plausível à luz da interpretação que foi feita pela ora requerida: um cidadão que é proprietário de um prédio constituído em propriedade total destinado a habitação, sendo o valor global das unidades autónomas igual ou superior a €1.000.000,00 e o VPT de cada uma inferior a €1.000.000,00, sujeita-se a uma tributação anual de 1% desse valor (como sucedeu na situação em análise); já um outro cidadão que detenha um prédio com as mesmas exatas características do anterior mas que tenha sido constituído em propriedade horizontal, sendo, igualmente, o valor global das frações autónomas igual ou superior a €1.000.000,00 e o VPT de cada uma inferior a €1.000.000,00, não será sujeito a tributação nos termos da mencionada verba n.º 28.
Por outro lado, poder-se-ia perguntar: se tais frações têm o mesmo proprietário, por que é que não faz sentido agregar, para efeitos de tributação, os respetivos VPTs? A resposta pode ser ilustrada através de uma outra hipótese: um cidadão que é proprietário de um prédio em propriedade horizontal, em que cada uma das suas 20 frações possui um VPT inferior a €1.000.000,00, seria sujeito a tributação se – caso se admitisse tal agregação – o VPT global ultrapassasse aquele valor; já um outro cidadão com idênticas 20 frações distribuídas por 5, 10 ou 20 prédios não estaria sujeito a qualquer tributação nos termos da referida verba n.º 28.
Se esta linha de raciocínio faz sentido – justificando-se, portanto, a não agregação dos VPTs das frações de prédios em propriedade horizontal –, não se vê razão plausível para que a mesma não seja aplicada às unidades autónomas de prédios em propriedade total.
Observando, agora, o caso em análise, constata-se que os VPTs dos andares (unidades autónomas) do prédio com afetação habitacional variam entre (…), pelo que qualquer um deles é inferior a €1.000.000,00.
Daqui se conclui, em resultado do que foi referido, que sobre os mesmos não pode incidir o IS a que se refere a verba n.º 28 da TGIS, sendo, portanto, ilegais os atos de liquidação impugnados pelo requerente" (sublinhado nosso).
94. Também interessa destacar (não obstante o prévio enquadramento ser bastante para reconhecer a ilegalidade dos atos de liquidação praticados pela AT), assenta no entendimento preconizado, quer pelo legislador quer pelo próprio governo, aquando do aditamento da Verba n.º 28 à TGIS.
95. A este respeito, foquemo-nos agora na decisão arbitral proferida no âmbito do processo
n.º 48/2013-T, de 9 de outubro, que analisa, de forma extensiva, os objetivos subjacentes ao aditamento da aludida verba.
96. “A Lei nº 55-A/2012, de 29/10, não tem qualquer preâmbulo, daí que da mesma não é possível retirar a intenção do legislador.
Tal lei da Assembleia da República teve origem na proposta de lei nº 96/XII (2ª), a qual, na exposição de motivos fala na introdução de medidas fiscais inseridas num conjunto mais vasto de medidas de combate ao défice orçamental.
Na exposição de motivos da referida proposta de lei, é dito que, «estas medidas são fundamentais para reforçar o princípio da equidade social na austeridade, garantindo uma efetiva repartição dos sacrifícios necessários ao cumprimento do programa de ajustamento. O Governo está fortemente empenhado em garantir que a repartição desses sacrifícios será feita por todos e não apenas por aqueles que vivem do rendimento do seu trabalho. Em conformidade com esse desiderato, este diploma alarga a tributação do capital e da propriedade, abrangendo equitativamente um conjunto alargado de sectores da sociedade portuguesa».
Nessa exposição de motivos é ainda dito que, além do agravamento da tributação dos rendimentos de capitais e das mais-valias mobiliárias, é criada uma taxa em sede de IS incidente sobre os prédios urbanos de afetação habitacional cujo valor patrimonial tributário seja igual ou superior a um milhão de euros.
Ou seja, em tal exposição de motivos, também não é clarificado o que se entende por prédios urbanos com afetação habitacional.
Na sua intervenção na Assembleia da República, na apresentação e discussão da referida proposta de lei, o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais afirmou o seguinte:
«O Governo elegeu como princípio prioritário da sua política fiscal a equidade social. Esta é ainda mais importante em tempos de rigor como forma de garantir a justa repartição do esforço fiscal.
No período exigente que o país atravessa, durante o qual se encontra obrigado a cumprir o programa de assistência económica e financeira, torna-se ainda mais premente afirmar o princípio da equidade. Não podem ser sempre os mesmos - os trabalhadores por conta de outrem e os pensionistas, a suportar os encargos fiscais.
Para que o sistema fiscal seja mais justo é decisivo promover o alargamento da base tributável exigindo um esforço acrescido aos contribuintes com rendimentos mais elevados e protegendo dessa forma as famílias portuguesas com menores rendimentos.
Para que o sistema fiscal promova mais igualdade é fundamental que o esforço de consolidação orçamental seja repartido por todos os tipos de rendimentos abrangendo com especial ênfase os rendimentos de capital e as propriedades de elevado valor. Esta matéria recorde-se, foi amplamente abordada no acórdão do Tribunal Constitucional.
Finalmente, para que o sistema fiscal seja mais equitativo, é crucial que todos sejam chamados a contribuir de acordo com a sua capacidade contributiva, conferindo à administração tributária poderes reforçados para controlar e fiscalizar as situações de fraude e evasões fiscais.
Neste sentido o Governo apresenta, hoje, um conjunto de medidas que reforçam efetivamente uma justa e equitativa distribuição do esforço de ajustamento por um conjunto alargado e abrangente de sectores da sociedade portuguesa.
Esta proposta tem três pilares essenciais: a criação de uma tributação especial sobre prédios urbanos de valor superior a 1 milhão de euros; o agravamento da tributação sobre rendimentos de capital e sobre as mais-valias mobiliárias e o reforço das regras de combate à fraude e evasão fiscais.
Em primeiro lugar o Governo propõe a criação de uma taxa especial sobre os prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor. É a primeira vez que em Portugal é criada uma tributação especial sobre propriedades de elevado valor destinadas à habitação. Esta taxa será de 0,5% a 0,8% em 2012, e de 1%, em 2013, e incidirá sobre as casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros. Com a criação desta taxa adicional o esforço fiscal exigido a estes proprietários será significativamente aumentado em 2012 e 2013»”.
97. De seguida, cumpre reunir as conclusões que permitam, sem margem para dúvidas, decidir sobre o tema em discussão (ou seja se, para efeitos da aplicação da Verba n.º 28 da TGIS, nos casos em que um prédio com várias frações autónomas, suscetíveis de utilização independente, não se encontre constituído em propriedade horizontal, o VPT relevante é apurado mediante o somatório dos VPTs individuais, ou, alternativamente, é individualmente considerado).
98. Neste sentido, refira-se, em primeiro lugar, que a presente temática está, desde logo, por força do artigo 67.º, n.º 2 do Código do IS, sujeita às normas do Código do IMI, “às matérias não reguladas no presente código respeitantes à verba 28 da Tabela Geral aplica-se subsidiariamente o Código do IMI”.
99. Como tal, e como já tantas vezes se mencionou, no entendimento do presente tribunal, o mecanismo para o apuramento do VPT relevante para efeitos da aludida verba, é o que se encontra estatuído no Código do IMI.
100. Ora, o artigo 12.º, n.º 3 do Código do IMI estabelece que “cada andar ou parte de prédio suscetível de utilização independente é considerado separadamente na inscrição matricial, a qual discrimina também o respetivo valor patrimonial tributário”.
101. Desvalorizando o legislador, nos termos anteriormente mencionados, qualquer prévia constituição de propriedade horizontal ou vertical.
102. Com efeito, para este (legislador), o que releva é a verdade material subjacente à sua existência enquanto prédio urbano e à sua utilização.
103. Refira-se que a própria AT parece concordar com o critério exposto, razão pela qual as liquidações que a própria emite são muito claras nos seus elementos essenciais, donde resulta o valor de incidência ser o correspondente ao VPT de cada um dos andares e as liquidações individualizadas.
104. Logo, se o critério legal impõe a emissão de liquidações individualizadas para as partes autónomas dos prédios em propriedade vertical, nos mesmos moldes em que o estabelece para os prédios em propriedade horizontal, claramente estabeleceu o critério, que tem de ser único e inequívoco, para a definição da regra de incidência do novo imposto.
105. Assim, só haveria lugar a incidência de IS (no âmbito da Verba n.º 28 da TGIS) se alguma das partes, andares ou divisões com utilização independente apresentasse um VPT superior a € 1.000.000,00.
106. Não podendo a AT considerar como valor de referência para a incidência do novo imposto o valor total do prédio, quando o próprio legislador estabeleceu regra diferente em sede de IMI (e, tal como anteriormente mencionado, este é o código aplicável às matérias não reguladas no que toca à Verba n.º 28 da TGIS).
107. Em conclusão, o regime jurídico atual não impõe a obrigação de constituição de propriedade horizontal, pelo que a atuação da AT traduz-se numa discriminação arbitrária e ilegal.
108. De facto, não pode a AT distinguir onde o próprio legislador entendeu não o fazer, sob pena de violar a coerência do sistema fiscal, bem assim como o princípio da legalidade fiscal previsto no artigo 103º da Constituição da República Portuguesa, e ainda os princípios da justiça, igualdade e proporcionalidade fiscal.
109. No caso em apreço, o prédio em causa encontrava-se, à data relevante dos factos, constituído em propriedade total e tinha 7 frações com utilização independente, como resulta dos documentos apensados pela Requerente, todas com afetação habitacional.
110. Dado que nenhuma dessas frações, individualmente considerada, tem valor patrimonial igual ou superior a €1.000.000,00, como resulta dos documentos juntos aos autos, conclui-se pela não verificação do pressuposto legal de incidência.
111. No âmbito das suas alegações finais, a AT apensou ao presente processo um Acórdão do Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 590/2015, de 11 de novembro), no qual foi preterida a suposta inconstitucionalidade da norma contida na Verba n.º 28 da TGIS, suscitada por um contribuinte.
112. Ora, neste sentido, a AT considera que aquela jurisprudência tem especial relevância para o caso apreço, apoiando-se na mesma para reforçar o entendimento que a sua prática supra descrita é totalmente legal e conforme à constituição.
113. Com efeito, este tribunal também não pretende (nem pode) aferir a constitucionalidade da referida norma.
114. Todavia, o que se encontra atualmente em discussão não é a eventual inconstitucionalidade da Verba n.º 28 da TGIS mas, alternativamente, a ilegalidade do comportamento discriminatório da AT que, de forma totalmente discricionária, dá um tratamento diferenciado aos prédios constituídos em propriedade horizontal e em propriedade total.
115. E, nesse sentido, o aludido Acórdão, no entendimento do presente tribunal, perde a sua relevância no caso concreto (já que o mesmo versa sobre a inconstitucionalidade da norma em abstrato e não sobre a aplicação da mesma por parte da AT).
V. Decisão
116. Termos em que este Tribunal Arbitral decide:
A) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, declarar ilegal e anular as liquidações de IS supra mencionadas, por referência aos exercícios de 2014, dos quais resultou imposto a pagar no montante de € 5.225,89, valor que deverá agora ser reembolsado, respeitante à tributação de prédios urbanos com VPT igual ou superior a €1.000.000, nos termos do disposto na Verba n.º 28 da TGIS;
B) Condenar a Requerida, nos termos do artigo 43.º, n.º 1 da LGT e 61.º, n.ºs 2 e 5 do CPPT, no pagamento dos juros indemnizatórios, à taxa resultante do n.º 4 do artigo 43.º da LGT, calculados sobre a quantia paga, desde o dia em que foram pagas as liquidações mencionadas supra e até o integral reembolso do montante referido; e
C) Condenar a Requerida nas custas do processo.
VI. Valor do processo
117. Fixa-se o valor do processo em € 5.255,89, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, al. a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).
VII. Custas
118. De harmonia com o disposto no artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerida, dada a procedência integral do pedido.
Notifique-se.
Lisboa, CAAD, 22 de fevereiro de 2016
O Árbitro
________________________________________________________________________
(Sérgio Santos Pereira)
[1] SOUSA, Jorge Lopes de, “Código de Procedimento e de Processo Tributário – anotado e comentado” I Volume, Áreas Editora, 2006, pág. 875.
[2] Cfr. Manual de Procedimento e de Processo Tributário, Edições Almedina, 1.ª Edição, Coimbra, setembro de 2012, pág. 24.