DECISÃO ARBITRAL
1. RELATÓRIO
1.1 A…, S.A., pessoa coletiva…, com sede na Rua de …, … e …, em Lisboa, veio, ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (adiante RJAT) e da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, requerer a constituição de tribunal arbitral.
1.2 É Requerida nos autos a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
1.3 O Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou a ora signatária para formar o Tribunal Arbitral Singular, disso notificando as partes, e o Tribunal foi constituído a 14 de Julho de 2016.
1.4 O pedido de pronúncia arbitral tem por objeto “os atos de liquidação de IS respeitantes ao ano e 2015 identificados nos documentos de cobrança n.º 2016…, n.º 2016…, n.º 2016…, n.º 2016 … e n.º 2016 … todos praticados em 05 de Abril de 2016 pelo Serviço de Finanças de Lisboa-…”, que estão melhor identificados no pedido da Requerente e nos documentos a ele juntos, para os quais aqui se remete.
1.5 A Requerente invoca a ilegalidade dos atos de liquidação, contestando a aplicação da nova verba 28.1 da TGIS aos prédios urbanos não constituídos em propriedade horizontal, mas que incluam divisões suscetíveis de utilização independente, em que o valor mínimo de incidência fixado na lei seja atingido pelo somatório do VPT dos registos matriciais separados (ou autónomos) correspondentes àquelas várias divisões, mas não por qualquer uma delas individualmente considerada.
Entende que pelo facto de o prédio, apesar de não estar constituído em propriedade horizontal, ser constituído por partes suscetíveis de utilização independente, o VPT relevante para aferir do preenchimento do requisito de que depende a incidência da referida verba não se encontra preenchido, já que cada uma das partes do prédio suscetíveis de utilização independente tem um registo separado na correspondente matriz e, portanto, VPT individualizado inferior ao referido limite mínimo.
Sustenta, pois, a Requerente não ser proprietário de um prédio com VPT igual ou superior ao referido montante mínimo, mas sim proprietário de um prédio em propriedade vertical em que o VPT superior a esse valor apenas é alcançado pelo somatório do VPT das divisões suscetíveis de utilização independente afetas a habitação, sem que nenhuma delas, considerada individualmente, atinja esse montante mínimo de relevância tributária.
Por essa razão, para a Requerente, as liquidações em crise padecem de vício de violação de lei, o que as torna anuláveis.
Alega a Requerente que interpretação em sentido contrário ao que propugna culminaria “numa violação chocante e intolerável dos princípios da legalidade fiscal, da capacidade contributiva, da igualdade na tributação do património, da proporcionalidade e da justiça consagrados nos artigos 13.º, 103.º, n.º 1 e 2, 104.º, n.º 3 e 266.º, n.º 2” da CRP.
Conclui pedindo a anulação dos atos de liquidação em crise e a condenação da Requerida na devolução dos montantes pagos pela Requerente, bem como em juros indemnizatórios.
1.6 Por requerimento de 21.09.2016, veio a Requerente juntar aos autos os documentos de cobrança relativos à segunda prestação do imposto impugnado bem como os comprovativos do respetivo pagamento.
1.7 A AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA apresentou a sua Resposta a 30.09.2016, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Por exceção, a AT invoca a incompetência do Tribunal Arbitral, na medida em que, entende, a Requerida “não impugna o ato tributário de liquidação, mas sim o pagamento de duas prestações do ato de liquidação constantes da nota de cobrança”, matéria que “não consta, em absoluto, do conjunto da norma que delimita a competência dos tribunais arbitrais tributários”.
Invoca, ainda por exceção, a inimpugnabilidade das notas de cobrança do imposto de selo que, a seu ver, são o objeto do pedido de pronúncia arbitral.
Por impugnação, defendeu-se a Requerida sustentando a manutenção das liquidações, salientando, em síntese, que a propriedade total, ou vertical, corresponde a um prédio, sendo esta a realidade a atender para apurar da verificação do valor mínimo constante da norma de incidência.
Para a Requerida, o VPT relevante para efeitos de incidência tributária é, pois, o VPT do prédio urbano e não o VPT de cada uma das partes que o integram, ainda que estas sejam suscetíveis de utilização independente, posto que afetas a habitação. Em reforço desta tese salienta também que a unidade do prédio não é afetada, não podendo as suas partes distintas ser juridicamente equiparadas às frações autónomas de um prédio constituído em propriedade horizontal.
Acrescenta que entendimento diverso (i.e., que o VPT relevante para a norma de incidência corresponderia ao VPT de cada andar ou divisão suscetível de utilização independente) seria inconstitucional, por violação do princípio da legalidade tributária (ínsito no art.º. 103º, nº 2 da CRP), por diferenciar onde o legislador não distinguiu.
1.8 A Requerida não juntou aos autos o processo administrativo, tendo, na resposta apresentada, requerida a respetiva dispensa.
1.9 A 04.10.2016, o Tribunal proferiu despacho dando conta da intenção em dispensar a reunião do tribunal arbitral prevista no artigo 18.º do RJAT, e concedendo à Requerente o prazo de 10 dias para simultaneamente responder à defesa por exceção e apresentar alegações, e, à Requerida, igual prazo para apresentar alegações contados da data em que fosse notificada das apresentadas pela Requerente.
1.10 Em 14.10.2016, veio a Requerente apresentar alegações, nas quais, respondendo à matéria de exceção, defende que resulta claramente do seu pedido que os atos impugnados são os atos de liquidação de imposto de selo e não as notas de cobrança que juntou, pelo que conclui pela improcedência das exceções e, no mais, reitera o teor do pedido.
1.11 Nas alegações que apresentou a 28.10.2016 a Requerida insiste que os atos impugnados são as notas de cobrança e que, por isso, devem as invocadas exceções ser julgadas procedentes e a AT absolvida do pedido e conclui reiterando que não pode haver analogia com o regime da propriedade horizontal, sendo que outra interestação violaria o princípio da legalidade e seria, portanto, inconstitucional.
2. SANEAMENTO
O Tribunal foi regularmente constituído.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas.
O processo não sofre de quaisquer vícios que o invalidem.
Está colocada em questão a competência material do Tribunal Arbitral, cujo conhecimento, se relega para a matéria de direito – questões decidendas, por se entender que é essencial se profira previamente decisão quanto à matéria de facto.
3. MATÉRIA DE FACTO
Com relevância para a decisão de mérito, o Tribunal considera provada a seguinte factualidade:
1) A Requerente é proprietária do prédio urbano em propriedade vertical sito na Rua de …, … e …, em Lisboa, inscrito na matriz sob o artigo ...º da freguesia de …;
2) O prédio é composto por 6 andares ou divisões de utilização independente, identificados como “RC”, “RC56”, “S. 58”, “1.º56”, “2.º+S”, “2.º58”no rés-do-chão e no primeiro, segundo, terceiro e quarto andares;
3) A inscrição matricial identifica separadamente cada uma daquelas divisões, encontrando-se também relativamente a cada uma delas discriminado o respetivo VPT;
4) Todas aquelas divisões têm afetação habitacional, com exceção da identificada como “RC”, que é destinada a “estacionamento coberto e não fechado”;
5) O valor tributável de cada uma daquelas divisões, determinado ao abrigo do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI) varia entre 70.060,00€ e 343.960,00€, sendo todas, portanto, individualmente consideradas, inferiores a 1.000.000,00€, mas o valor de todas as divisões consideradas em conjunto perfaz 1.668.590,00€;
6) As liquidações em causa decorrem da aplicação do imposto do selo previsto na verba n.º 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS) anexa ao Código do Imposto do Selo (CIS) na redação que lhe foi dada pelo art.º 4.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, à taxa de 1% ao valor patrimonial tributário às cinco das divisões suscetíveis de utilização independente que têm afetação habitacional do referido prédio com referência ao ano de 2015, tendo sido considerado como fundamento de aplicação da norma o valor total de 1.598.530,00€;
7) A requerente pagou a primeira e a segunda prestação das liquidações em crise.
Factos não provados
Não foram alegados pelas partes quaisquer outros factos com relevo para a apreciação do mérito da causa, que não se tenham provado.
Fundamentação da Decisão sobre a Matéria de Facto
A convicção sobre os factos dados como provados fundou-se nas alegações da Requerente e da Requerida não contraditadas pela parte contrária, sustentadas na prova documental junta pela Requerente, cuja autenticidade e correspondência à realidade também não foram questionadas.
4. MATÉRIA DE DIREITO - QUESTÕES DECIDENDAS
As questões essenciais a decidir são:
1) O objeto do pedido de pronúncia arbitral são as notas de cobrança da primeira e da segunda prestações da liquidação do imposto de selo resultante da aplicação da verba 28.1 da TGIS ou é, pelo contrário, o ato de liquidação desse imposto e, sendo as notas de cobrança:
a) O Tribunal Arbitral é incompetente para se pronunciar acerca da ilegalidade destes atos de cobrança;
b) Os atos de cobrança são atos inimpugnáveis?
2) Com referência a prédios não constituídos em regime de propriedade horizontal, integrados por diversos andares e divisões com utilização independente, das quais algumas com afetação habitacional, o VPT relevante como critério de incidência do imposto é o correspondente ao somatório do valor patrimonial tributário atribuído às diferentes partes ou andares (VPT global) ou, antes, o VPT atribuído a cada uma das partes ou andares habitacionais?
3) Constitucionalidade:
a) A aplicação da nova verba 28.1 da TGIS aos prédios urbanos não constituídos em propriedade horizontal, mas que incluam divisões suscetíveis de utilização independente, em que o valor mínimo de incidência fixado na lei seja atingido pelo somatório do VPT dos registos matriciais separados (ou autónomos) correspondentes àquelas várias divisões, mas não por qualquer uma delas individualmente considerada, pela qual pugna a Fazenda, é inconstitucional por violação dos princípios da legalidade fiscal, da capacidade contributiva, da igualdade na tributação do património, da proporcionalidade e da justiça consagrados nos artigos 13.º, 103.º, n.º 1 e 2, 104.º, n.º 3 e 266.º, n.º 2”?
b) A interpretação contrária, pela qual pugna a Requerente, é inconstitucional, por violação do princípio da legalidade em matéria tributária?
Cumpre decidir:
1) Das exceções:
As questões relativas à competência são de conhecimento prioritário, como resulta do disposto no artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, subsidiariamente aplicável, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.
A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) - também limitada pelos termos em que Administração Tributária foi vinculada àquela jurisdição pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março - segundo a qual ela compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais (redação da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro).
Para além da apreciação direta da legalidade de atos deste tipo, incluem-se ainda nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD competências para apreciar atos de segundo ou terceiro grau que tenham por objeto a apreciação da legalidade de atos daqueles tipos, designadamente de atos que decidam reclamações graciosas e recursos hierárquicos, como resulta das referências expressas que se fazem no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT ao n.º 2 do artigo 102.º do CPPT (que se reporta à impugnação judicial de decisões de reclamações graciosas) e à «decisão do recurso hierárquico».
O facto de a alínea a) do n.º 1 do art.º 10 do RJAT fazer referência aos n.ºs 1 e 2 do artº. 102 do CPPT, em que se indicam os vários tipos de atos que dão origem ao prazo de impugnação judicial, deixa perceber que serão abrangidos no âmbito da jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD todos os tipos de atos passíveis de serem impugnados através processo de impugnação judicial, abrangidos por aqueles n.ºs 1 e 2, desde que tenham por objeto um dos tipos indicados naquele art. 2.º do RJAT.
Aliás, esta interpretação no sentido da identidade dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e do processo arbitral é a que está em sintonia com a referida autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo art. 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, em que se revela a intenção de o processo arbitral tributário constitua «um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária» (n.º 2).
Restringindo-se a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD ao campo de aplicação do processo de impugnação judicial, apenas se inserem nesta competência os pedidos que comportem a apreciação da legalidade de ato de liquidação.
A preocupação legislativa em afastar das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a apreciação da legalidade de atos administrativos que não comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação, para além de resultar, desde logo, da diretriz genérica de criação de um meio alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo, resulta com clareza da alínea a) do n.º 4 do art. 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, em que se indicam entre os objetos possíveis do processo arbitral tributário «os atos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação», pois esta especificação apenas se pode justificar por uma intenção legislativa no sentido de excluir dos objetos possíveis do processo arbitral a apreciação da legalidade dos atos que não comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação.
Acontece que, ao contrário do que alega a Requerida, a Requerente não efetuou pedidos de pronúncia arbitral relativos “a cada uma das prestações de per si (sic)”. Pelo contrário, resulta claro ao longo de todo o articulado pela Requerente e da formulação final do seu pedido que o pedido da Requerente é o de anulação do ato de liquidação do IS resultante da aplicação da verba n.º 28.1 da TGIS aos andares ou divisões suscetíveis de utilização independente do prédio lá melhor identificado (e na matéria dada como provada) com afetação habitacional.
Pelo que, sem necessidade de outras considerações, se julgam improcedentes as exceções aduzidas pela Requerida.
2) Nos prédios não constituídos em regime de propriedade horizontal, integrados por diversos andares e divisões com utilização independente, das quais algumas com afetação habitacional, qual é o o VPT relevante como critério de incidência do imposto de selo para efeitos de aplicação da verba 28.1 da TGI?
A segunda questão decidenda corresponde à aplicação, nas situações da denominada propriedade vertical, da nova tributação em IS incidente sobre prédios urbanos com afetação habitacional e VPT igual ou superior a um milhão de euros. Esta nova tributação foi introduzida em 2012 para reforço das medidas de controlo orçamental pelo lado da receita, num quadro de estado de necessidade financeira.
Sobre esta questão da determinação do VPT (mínimo) relevante para a aplicação da verba 28.1 da TGS nos casos de propriedade vertical, já se pronunciaram, de entre outras, as decisões do CAAD nos processos números 50/2013-T, 132/2013, 181/2013-T, 183/2013-T, 272/2013 2013-T, 280/2013-T, 26/2014-T, 30/2014-T, 88/2014-T, 177/2014-T, 206/2014-T e 349/2015-T.
Em todos a questão residia, tal como nestes autos, em saber se o VPT relevante para a norma de incidência (28.1 da TGIS) é o VPT correspondente a cada uma das divisões suscetíveis de utilização independente separadamente consideradas na matriz ou se, pelo contrário, o VPT relevante deverá corresponder ao somatório de todas essas divisões suscetíveis de utilização independentes, mas integrantes de um mesmo prédio e que se encontrem afetas a habitação.
E a resposta, naquelas decisões, foi sempre pela primeira opção, com a qual concordámos e já sustentámos em decisões anteriores.
Importa ter presente que cada andar ou parte de prédio suscetível de utilização independente é considerado separadamente na inscrição predial do prédio total, a qual discrimina também o valor patrimonial tributário daquelas (n.º 2 do art.º 12.º do CIMI), sendo o IMI liquidado individualmente em relação a cada andar ou parte de prédio suscetível de utilização independente (art.º 119.º, n.º 1 do CIMI), como aconteceu também no caso em apreço.
E, se assim é em IMI, também assim deverá ser em Imposto de Selo, até porque, como bem refere a Requerida, o CIS remete para o CIMI.
Como alerta a decisão tomada no processo 206/2014-T: “Dado que o CIS remete para o CIMI, há que concluir que a inscrição na matriz de imóveis em propriedade vertical, constituídos por diferentes partes, andares ou divisões com utilização independente, obedece às mesmas regras de inscrição do horizontal”. Sendo o IMI e o Imposto de Selo “liquidados individualmente em relação a cada uma das partes”, também “o critério legal para definir a incidência do novo imposto terá de ser o mesmo”. Em consequência, haverá incidência da verba 28.1 da TGIS (apenas) caso alguma dessas partes, andares ou divisões com utilização independente apresente um VPT, pelo menos, igual ao montante previsto na norma de incidência.
Como bem explica a decisão proferida pelo Tribunal Arbitral no processo 349/2015-T, “Assim, prédio será a área independente, considerada separada e autonomamente na matriz, sendo sujeito a IS se cumpridos dois requisitos: ser destinado a fins habitacionais e ter um VPT igual ou superior a um milhão de euros, critério de aferição dos imóveis habitacionais “de luxo”. De outro modo, criar-se-ia uma realidade não prevista pelo legislador: a de um, por assim dizer, “prédio habitacional”, eventualmente inserido dentro de um prédio mais vasto, eventualmente com várias finalidades, em que o VPT daquele, espúrio aos registos matriciais, consistiria na ficção de um VPT dado pela adição do VPT autónomo de cada divisão (independente e com finalidade habitacional) considerado na inscrição matricial. Ou seja, onde o legislador considerou duas realidades, teria agora o intérprete, sem apoio no texto legislativo, de ficcionar uma terceira realidade, híbrida, a meio caminho entre o prédio urbano e as suas divisões independentes a que o legislador do IMI, e do IS por remissão para o CIMI, entendeu dar relevo tributário.
Também na decisão proferida no processo 272/2013-T (CAAD) se refere que “considerando que a inscrição na matriz de imóveis em propriedade vertical, constituídos por diferentes partes, andares ou divisões com utilização independente, nos termos do CIMI, obedece às mesmas regras de inscrição dos imóveis constituídos em propriedade horizontal, sendo o respetivo IMI, bem como o novo Imposto de Selo, liquidados individualmente em relação a cada uma das partes, não oferece qualquer dúvida que o critério legal para definir a incidência do novo imposto tem de ser o mesmo”. Aliás, diz-se, a posição da AT “não encontra sustentação legal e é contrário ao critério que resulta aplicável em sede de CIMI e, por remissão, em sede de Imposto de Selo”, razão pela qual “a adoção do critério defendido pela AT viola os princípios da legalidade e da igualdade fiscal, bem assim como, o da prevalência da verdade material sobre a realidade jurídico-formal”.
E no mesmo sentido se refere na decisão arbitral do processo 30/2014-T encontrar-se na doutrina da AT uma “desconformidade com o elemento literal da parte final da norma de incidência (verba 28 da TGIS) que refere que o imposto incide sobre “o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI” e por isso, não deverá incidir sobre a soma de valores patrimoniais tributários de prédios, partes de prédios ou andares, não tendo suporte legal a operação de adição de valores patrimoniais tributários dos andares ou partes de prédio suscetíveis de utilização independente, de afetação habitacional, cindido do VPT dos demais com fins diferentes, por forma a atingir-se o limiar de tributação elegível de 1 000 000,00 de euros ou mais”.
Como também se refere naquela decisão arbitral, o que acontece no que respeita aos prédios urbanos com afetação habitacional, em propriedade vertical, com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, é que a AT procede, nas operações de liquidação do IS, à adaptação das regras do CIMI (adicionando os valores patrimoniais tributários de um mesmo prédio, sem considerar os que correspondam a partes do prédio com fim não habitacional, dando assim lugar a um novo e híbrido VPT). Com efeito, essa “adaptação” corresponde a “somar os VPT de cada andar ou divisão independente afeta a fins habitacionais (cindido do VPT dos andares ou divisões destinados a outros fins), criando uma nova realidade jurídica, sem suporte legal, que é um VPT global de prédios urbanos em propriedade vertical, com afetação habitacional”, o que atenta “contra o elemento literal da norma de incidência”.
Assim, “nos prédios urbanos com afetação habitacional, em propriedade vertical, com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente”, deverá considerar-se o valor patrimonial tributário “que resulta exclusivamente do nº 3 do artigo 12º do CIMI. Quer para o IMI, quer para este IS”.
Concretizando, como se concluiu na decisão proferida no processo 26/2014-T do CAAD, “para efeitos de aplicação da verba 28 do TGIS aos prédios em propriedade vertical, aplicam-se as mesmas regras do CIMI que ao prédios em propriedade horizontal, e no mesmo sentido o VPT para efeitos da aplicação da verba é o VPT individual de cada fração independente habitacional, sendo que no presente caso nenhuma das frações ultrapassa o critério de incidência de 1.000.000,00€”, o mesmo ocorrendo no caso dos presentes autos.
Partindo da mesma posição, a decisão arbitral proferida no processo 349/2015-T conclui que “como claramente decorre das decisões citadas, que a interpretação literal da nova verba da TGIS não poderá deixar de ser diversa da sustentada pela AT, aliás, a oposta, dada a clara e indiscutível remissão operada a propósito da nova verba da TGIS para as regras do CIMI, não podendo o interprete da norma “criar” um novo conceito de prédio para assim obter um VPT híbrido, não reconhecido na matriz e sem qualquer apoio no texto da lei.”
E fê-lo invocando também o critério da substância económica dos factos tributários: “a expressão “cada prédio urbano” usada no nº 7 do artigo 23º, por identidade de razões, abrange não apenas os prédios urbanos em propriedade horizontal, como também os andares, divisões ou partes de prédios urbanos em propriedade vertical, desde que afetos a fins habitacionais, partindo sempre, em qualquer dos casos, de uma só base tributável para todos os efeitos legais: o valor patrimonial tributário utilizado para efeitos de IMI (...). A realidade económica da detenção de partes independentes, e.g. suscetíveis de utilização ou de arrendamento autónomos, tal como as frações autónomas no caso da propriedade horizontal, e portanto suscetíveis permitir o uso ou a obtenção de rendimentos de modo similar e exteriorizando, por isso, igual capacidade contributiva (como o exteriorizaria o somatório do VPT de várias frações autónomas de um mesmo prédio em propriedade horizontal ou de vários prédios que no seu conjunto superassem o valor de um milhão de euros, sem que tal tenha sido considerado pelo legislador como exteriorização de capacidade contributiva relevante para efeitos de IS).”
Acresce que, como se refere no Acórdão proferido no processo 26/2014-T do CAAD, não se vislumbra qualquer censura do legislador à propriedade vertical. Com efeito, “dir-se-á, não sem razoabilidade, que o legislador, para efeitos de tributação em sede de IMI, optou por conferir autonomia, independência, a cada uma das partes ou a cada um dos andares de um único prédio, desde que umas e outros se mostrem de utilização independente, ao ponto de prever a inscrição individualizada na matriz de cada uma dessas partes independentes e de impor à tributação em sede de IMI uma cobrança também ela autónoma. Mau grado a existência jurídica de um único prédio, é o próprio legislador que não apenas recomenda mas impõe a consideração autónoma de cada uma das partes independentes, para efeitos de tributação do património”.
Com efeito, como se decidiu nos processos 26/2014-T e 272/2014-T e 349/2015-T, “o legislador é indiferente a uma ou outra forma de estruturação da propriedade de prédios urbanos no CIMI, não se perceberia que pretendesse agora favorecer uma em detrimento da outra, nomeadamente por considerar uma forma de estruturação mais avançada do que a outra”. “O regime jurídico atual não impõe a obrigação de constituição de propriedade horizontal”, razão pela qual “a discriminação operada pela AT traduz uma discriminação arbitrária e ilegal “, pois “não pode a AT distinguir onde o próprio legislador entendeu não o fazer, sob pena de violar a coerência do sistema fiscal, bem assim como o princípio da legalidade fiscal previsto no artigo 103º, nº2 da CRP, e ainda os princípios da justiça, igualdade e proporcionalidade fiscal.”
E o certo é que também nada induz o intérprete à conclusão que o concreto legislador da nova verba da TGIS, contrariamente ao legislador do IMI, que aliás permanece inalterado, tenha pretendido discriminar a propriedade vertical face à horizontal. Como bem se relembra no Acórdão proferido no já referido processo 26/2014-T do CAAD, também referida na já citada decisão do processo 349/2015-T “aquando da apresentação e discussão, no Parlamento, da proposta de lei n.º 96/XII (2.ª), o Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais referiu expressamente: “O Governo propõe a criação de uma taxa especial sobre os prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor. É a primeira vez que em Portugal é criada uma tributação especial sobre propriedades de elevado valor destinadas à habitação. Esta taxa será de 0,5% a 0,8% em 2012 e de 1% em 2013, e incidirá sobre as casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros” (cf. DAR I Série n.º 9/XII -2, de 11 de Outubro, pág. 32). Ora, como se salienta nesse Acórdão, “o Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais apresenta esta proposta de lei referindo sem tibiezas a expressão “casas”… de valor igual ou superior a 1 milhão de euros”, pelo que “resulta com meridiana clareza que a verba 28.1 da TGIS não pode ser interpretada no sentido de nela estarem abrangidos cada um dos andares, divisões ou partes suscetíveis de utilização independente quando apenas do respetivo somatório resulta um VPT superior ao que prevê a mesma verba”.
Sendo, portanto, claro, tal como se refere na referida decisão 272/2014-T, que para o legislador só aquele valor de um milhão de euros, desde que afeto “a uma habitação (casa, fração autónoma ou andar com utilização independente) traduz uma capacidade contributiva acima da média e, enquanto tal, suscetível de determinar um contributo especial para garantir a justa repartição do esforço fiscal”.
E se assim é, teremos então de atender ao conceito de “casa” enquanto realidade física que possibilita um fim habitacional, uma unidade suscetível de utilização independente, incluindo o seu arrendamento, pois é nessa realidade económica que encontraremos a exteriorização da capacidade contributiva associada a “habitações de luxo” que o legislador considerou relevante. Mais, se assim não fosse, procederia o legislador a uma discriminação que não se encontraria justificada, pois como já se viu não se encontra no sistema uma censura da propriedade vertical quando comparada com a horizontal. Mais, essa distinção chocaria com uma necessária equidade entre idênticas exteriorizações de uma mesma capacidade contributiva.
Ora, as capacidades contributivas exteriorizadas pela propriedade de um prédio composto por um conjunto de frações autónomas em propriedade horizontal ou por um conjunto de divisões de utilização independente em regime de propriedade vertical, não podem deixar de ser consideradas idênticas, se não mesmo, eventualmente, menores no caso da segunda hipótese. Ou seja, um prédio não tem, seguramente, um valor de mercado maior por estar organizado como propriedade vertical. Vale o mesmo (permitindo igual benefício pelo seu uso ou igual rendimento por via do seu arrendamento, como acima se referiu), ou terá mesmo um valor menor, já que as alternativas de transmissibilidade serão eventualmente menores. E sabemos que o VPT pretende ser uma aproximação, precisamente, ao valor de mercado dos prédios e será, portanto, a medida e o limite da capacidade contributiva relevante para a nova verba da TGIS. (cf. a decisão que vimos citando, proferida no processo 349/2015-T).
Assim, a interpretação pugnada pela AT, não encontrando justificação hermenêutica, conforme se viu até agora, conduziria ainda a uma manifesta desigualdade entre proprietários de imóveis em propriedade horizontal e em propriedade vertical (e também já se viu que não se vislumbra uma qualquer intenção penalizadora destes, mesmo que se admitisse que tal fosse constitucionalmente admissível).
Nesse mesmo sentido, como bem se salienta na decisão do processo 272/2014-T do CAAD, a “existência de um prédio em propriedade vertical ou horizontal não pode ser, por si só, indicador de capacidade contributiva. Pelo contrário, da lei decorre que uns e outros devem receber o mesmo tratamento fiscal em obediência aos princípios da justiça, da igualdade fiscal e da verdade material”.
Concluindo, “a verdade material é a que se impõe como critério determinante da capacidade contributiva e não a mera realidade jurídico-formal do prédio, visto que constituição da propriedade horizontal implica uma mera alteração jurídica do prédio não impondo sequer uma nova avaliação”, e esse facto “não se afigura coerente com a decisão da AT tributar as partes habitacionais de um prédio em propriedade vertical, em função do VPT global do prédio e não do que é efetivamente atribuído a cada parte.” Assim, “não pode a AT distinguir onde o próprio legislador entendeu não o fazer, sob pena de violar a coerência do sistema fiscal, bem assim como o princípio da legalidade fiscal … e ainda os princípios da justiça, igualdade e proporcionalidade fiscal” (cf. a decisão proferida no processo 26/2014-T do CAAD).
No caso em apreço encontrámos reforço desta ideia na própria atuação da administração tributária, que não liquidou imposto relativamente ao andar ou divisão suscetível de uso independente que não tem afetação habitacional, o identificado como “RC” destinado a estacionamento, tendo considerado como valor total do prédio que serviu de base à aplicação da verba 28.1 a soma dos valores individualmente considerados de cada uma daquelas divisões, perfazendo 1.598.530,00€, e não o valor patrimonial total do prédio que consta da matriz, que é de 1.668.590,00€.
Em conclusão, nos termos expostos, os atos tributários em crise enfermam de vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de direito e de facto, pois nenhuma parte do prédio possui um VPT de valor igual ou superior ao limiar decorrente da norma aplicada, o que torna os ditos atos tributários anuláveis.
3) Constitucionalidade:
Quanto à terceira e última questão decidenda, a conclusão a que supra chegámos deixa prejudicada a análise da inconstitucionalidade da norma, quer com base numa violação do princípio da igualdade e da capacidade contributiva, quer ainda com base no princípio da legalidade (fundamentos que conduziriam a conclusões opostas).
Isto, porque a interpretação pugnada decorre, precisamente, do texto da lei, e não de uma aplicação divergente do seu comando normativo imediato, por intervenção mediata e subsequente de um qualquer princípio constitucional, ou por intervenção inovadora do intérprete.
A ilegalidade dos atos decorre da norma invocada não ser aplicável à situação em causa, já que nenhuma das liquidações se reporta ao liminar mínimo exigido pela referida verba n.º 28, devendo assim ser anuladas com esse fundamento, o que constitui uma conclusão prévia à análise da constitucionalidade da norma.
E, por outro lado, corresponde à opção do legislador, não à do intérprete que se substituiria àquele com interpretação diversa, pelo que não está igualmente em causa a observância do princípio da legalidade.
Nenhumas das partes levantou qualquer questão que corresponda àquilo que o Tribunal Constitucional vem, na sua jurisprudência e de forma consistente, considerando como constituindo uma questão de constitucionalidade normativa.
Na verdade, de acordo com a jurisprudência sedimentada do Tribunal Constitucional, para se poder considerar estar em causa uma questão de constitucionalidade não é suficiente referir que a interpretação de um determinado preceito legal no sentido contrário ao propugnado pelo interessado viola a Constituição.
É necessário que seja discernível a autonomização da questão de constitucionalidade da norma relativamente ao tema da sua interpretação e aplicação aos factos da causa.
O que claramente não se verifica neste caso.
Na verdade, nem Requerente nem Requerida levantaram uma questão de inconstitucionalidade da norma em crise que cumprisse apreciar, antes se limitaram, uma e outra, ainda que em sentido inverso, a defender que uma interpretação diversa àquela que acolhem seria contrária ao princípio da igualdade, à uma, e da legalidade, à outra.
Pelo que se entende que não foi levantada qualquer questão de inconstitucionalidade da norma em crise que cumpra ao Tribunal apreciar.
5. DECISÃO
Nestes termos e com a fundamentação supra, decide-se:
Julgar improcedente as exceções da incompetência do Tribunal Arbitral e da inimpugnabilidade dos atos que são objeto do pedido de pronúncia arbitral deduzidas pela Requerida.
Julgar totalmente procedente o pedido do Requerente e, em consequência, anular os atos de liquidação em crise, com fundamento em violação de lei, decorrente de erro nos pressupostos.
Condenar a Requerida a devolver à Requerente as quantias por ela pagas em virtude dos atos de liquidação anulados, acrescidas dos juros indemnizatórios calculados nos termos do artigo 43.º da LGT desde as datas dos pagamentos de tais quantias até efetiva e integral devolução.
* * *
Fixa-se o valor do processo em 15.985,30€ (quinze mil, novecentos e oitenta e cinco euro e trinta cêntimos), de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º do CPC.
O montante das custas é fixado em 918,00€ (novecentos e dezoito euros) ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT, a cargo da Requerida, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT e 4.º, n.º 4 do RCPAT e 527.º do CPC.
Notifique-se.
Lisboa, 2 de Novembro de 2016
O Árbitro,
(Eva Dias Costa)
Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.