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DECISÃO ARBITRAL
Processo nº 144/2012-T
A - RELATÓRIO
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No dia 17 de dezembro de 2012, A ..., SGPS S.A., pessoa coletiva n.º …, com sede no Porto (doravante a Requerente), solicitou, nos termos do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei 10/2011, de 20 de janeiro (doravante identificado como RJAT), a constituição de Tribunal Arbitral com árbitro singular, com vista à declaração de ilegalidade do ato tributário de autoliquidação da derrama municipal do exercício de 2011 do grupo fiscal de que a Requerente é sociedade dominante, no montante de € 13.427,95, com a consequente condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira (entidade que sucedeu à Direção-Geral das Contribuições e Impostos, doravante AT ou Requerida) e, consequentemente, na anulação do referido ato tributário e no reembolso da quantia indevidamente liquidada e paga, acrescida de juros indemnizatórios.
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A Requerente fundamenta a sua pretensão com base na inexistência de qualquer lucro tributável (pelo contrário, existiria um prejuízo fiscal de € 1.661.491,72) apurado nos termos do estatuído nos artigos 14.º, n.º 1 da Lei das Finanças Locais (LFL), na redação em vigor à data dos factos sub judice, e nos artigos 63.º e ss. do Código do IRC (equivalentes aos atuais 69.º e ss. do mesmo diploma), que, ao possibilitarem aos grupos a opção pela aplicação de um regime especial de determinação da matéria coletável (RETGS), permitiam à Requerente calcular o lucro tributável com base no lucro agregado do grupo.
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A Requerente tentou efetuar a autoliquidação da derrama tendo em conta o RETGS, mas a programação informática relativa ao recebimento das declarações de imposto desenhada com base nas instruções constantes do Ofício Circulado n.º 20132, de 14 de abril de 2008, da Direção de Serviços do IRC, inviabilizou a aplicação do RETGS e obrigou ao cálculo da derrama em função dos lucros apurados individualmente por cada sociedade do grupo, pelo que a autoliquidação forçada daí resultante seria ferida de ilegalidade, como tem, de forma constante e unânime, sido reconhecido pela jurisprudência da jurisdição estadual e da jurisdição arbitral.
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A Requerente juntou à sua petição 5 documentos (declaração de rendimentos modelo 22 do IRC, declaração de erros assinalados pelo sistema informático, reclamação graciosa ao abrigo do artigo 131.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), proposta de indeferimento da reclamação graciosa e seu indeferimento final), procuração forense e comprovativo de pagamento da taxa de arbitragem inicial.
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Em conformidade com o disposto nos artigos 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1 do RJAT, foi, por decisão do Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, designado como árbitro António Carlos dos Santos, signatário da presente decisão.
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O Tribunal foi constituído em 20 de fevereiro de 2013, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT.
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Em 15 de abril foi recebida a resposta da AT, nela sendo suscitadas várias questões prévias relativas à (in)competência do Tribunal Arbitral e à (i)legitimidade passiva da Requerida para intervir, em exclusivo, como única demandada no presente litígio, para além de, por cautela e sem conceder quanto à decisão das exceções, a Requerida ter apresentado resposta por impugnação onde defende a legalidade da liquidação que originou o pagamento da derrama por parte da Requerente.
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Em 26 de abril de 2013 teve lugar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, cuja ata consta do processo em análise.
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As partes apresentaram alegações por escrito, sendo as do sujeito passivo recebidas em 13 de maio e as da AT em 27 do mesmo mês.
B- QUESTÕES PRÉVIAS
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A Requerida suscitou várias exceções dilatórias que devem ser analisadas previamente: 1ª) assim, o Tribunal Arbitral seria incompetente para decidir do mérito da causa, uma vez que, segundo a AT, os sujeitos ativos do imposto são, em exclusivo, os Municípios e não a AT, a esta competindo apenas funções de arrecadação da receita junto dos sujeitos passivos (uma prestação de serviços de liquidação e cobrança, efetuada enquanto mero representante dos verdadeiros sujeitos ativos do imposto) e, subsequentemente, a sua entrega ao Município em questão; 2ª) os Municípios em cuja área geográfica tenham sido gerados rendimentos pelas sociedades do grupo da Requerente têm, na qualidade de sujeitos ativos e de co-administradores do imposto, um interesse próprio e direto em agir, um interesse em contradizer: serão assim eles e não a AT (ou, pelo menos, não exclusivamente a AT) quem tem legitimidade passiva para intervir no processo; 3.ª) não sendo os Municípios parte no processo arbitral nem estando nele representados, deveria ser levada a cabo, ao abrigo dos artigos 325.º e ss. do Código de Processo Civil (CPC), como forma de sanação do vício, uma “intervenção provocada” dos Municípios nas demandas que tenham por objeto a derrama.
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A primeira exceção, a da incompetência do Tribunal Arbitral, é a mais importante, pois a sua eventual rejeição fragiliza decisivamente a aceitação das restantes.
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Como ensina Casalta Nabais (Direito Fiscal, 7ª ed., Almedina, 2012, pp. 227 e ss.) a relação de imposto desdobra-se em três relações distintas, uma de natureza constitucional, outra de natureza administrativa, outra ainda de natureza obrigacional. Podemos dizer que a primeira prende-se com o poder de tributar ou não tributar e estabelece-se entre o Estado (incluindo os Municípios) e os contribuintes. Neste plano, é a Assembleia da República quem, através da LFL, habilita os Municípios a lançarem ou não a derrama. Na redação dos nºs 1 e artigo 14.º da LFL em vigor ao tempo dos factos (Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro), a derrama concretiza-se quando os municípios deliberem anualmente o seu lançamento até ao limite máximo de 1,5% sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e comuniquem tal deliberação à AT, por via eletrónica, até ao dia 31 de dezembro do ano anterior ao da cobrança por parte dos serviços competentes do Estado.
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Ou seja, no plano da criação, em concreto, do imposto que a derrama é, são os Municípios que têm o poder de lançar anualmente este imposto, definir a sua taxa dentro de certos limites ou criar taxas reduzidas (artigo 14.º, n.º 1 e n.º 4 da LFL) e conceder ou não isenções (artigos 11.º, alínea d) e 12.º, n.ºs 2 e 3 da LFL). Este poder decorre da autonomia financeira dos Municípios consagrada no artigo 238.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), autonomia esta que é inerente ao modelo de federalismo financeiro (imperfeito) vigente entre nós.
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É igualmente este poder que justifica que a titularidade da receita tributária proveniente da derrama municipal, líquida de encargos de cobrança, seja reservada, pela LFL, aos municípios (artigo 10.º, alínea b) da LFL). Não é, no entanto este tipo de relação de imposto de natureza político-constitucional que está em causa no presente litígio. Ele não transforma o titular do poder tributário (no caso derivado) ou o titular da receita em sujeito ativo da relação tributária, pois este sujeito é a entidade de direito público titular do direito de exigir o cumprimento das obrigações tributárias, quer diretamente, quer através de representante, conforme o artigo 18.º, n.º 1 da Lei Geral tributária (LGT). Daqui não decorre também qualquer legitimidade passiva dos Municípios em processos em que a administração do imposto não lhes compete.
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Uma segunda faceta da relação de imposto tem natureza obrigacional. É certo que a relação jurídica tributária se constitui com o facto tributário (artigo 36.º, n.º 1 da LGT). Mas só com a liquidação (incluindo a autoliquidação controlada), ato tributário por excelência, a dívida de imposto se torna certa, líquida e exigível. Nasce assim ”uma relação de direito obrigacional entre a Fazenda Pública e o devedor do imposto, uma relação de natureza paritária, em que aquela não dispõe de qualquer poder de autoridade, muito embora seja titular de um direito de crédito que tem de característico, face aos direitos de crédito comuns, apresentar-se rodeado de particulares garantias” (Nabais, ibidem). O sujeito ativo da relação jurídica tributária é o credor da prestação tributária. Esta faceta obrigacional da relação de imposto pressupõe, porém, uma prévia atividade administrativa que importa para efeitos de definição da competência dos tribunais arbitrais em matéria fiscal criados no âmbito do CAAD.
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Uma terceira faceta da relação jurídica de imposto dá-se entre a Administração Tributária e os sujeitos passivos. Nesta relação, a Administração Tributária (em sentido amplo, como o impõe a redação do artigo 1.º da Lei Geral Tributária (LGT) é uma relação de natureza administrativa, em que o sujeito ativo da relação age com poderes de império. Estamos perante “uma relação de supremacia / subordinação em que aquela se apresenta munida do correspondente poder administrativo (um poder funcional ou poder/ dever) para aplicar as leis fiscais, praticando os correspondentes atos de autoridade ou atos administrativos, isto é, os atos tributários, nos quais se incluem os próprios atos da competência da Administração Fiscal no processo de execução fiscal” (C. Nabais, ibidem, p. 229). O direito a exigir uma declaração do sujeito passivo, a liquidação (incluindo os casos de autoliquidação), a cobrança e a ação fiscalizadora ou inspetiva inserem-se neste domínio.
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No caso da derrama municipal, os municípios só seriam sujeitos ativos da relação administrativa se a eles competisse a administração direta do imposto, como a LFL possibilita nos termos do disposto no seu artigo 11.º, alínea b). Ora, no caso presente, esta administração pertence, em exclusivo, à AT. A esta compete não apenas as tarefas de liquidação (ou do seu controlo), de arrecadação e fiscalização, de receção e controlo das declarações fiscais, incluindo as autoliquidações, de emissão de liquidações substitutivas ou adicionais, de decisão de reclamações graciosas referentes a liquidações (como ocorreu, aliás, no presente caso), de emissão de orientações genéricas, de intervenção na cobrança coerciva, etc. A relação tributária administrativa (que permite concretizar a relação obrigacional) é aquela que fundamentalmente importa considerar para efeitos do presente caso. A faceta político-constitucional da relação fiscal não é relevante para este efeito. Como não o é a relação (de direito financeiro) existente entre a AT e os municípios, em virtude da qual a receita (líquida de encargos) por aquela cobrada reverte no final para os seus destinatários, os Municípios.
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A competência do Tribunal Arbitral “deve ser aferida em função do pedido formulado pelo autor e dos fundamentos (causa de pedir) que o suportam, tendo em conta o modo como surgem formulados na petição inicial, independentemente da sua procedência ou não” (Decisão arbitral de 26 de janeiro de 2012 proferida no Processo 5/2012-T) e está definida no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, nos termos do qual os tribunais arbitrais são competentes para apreciar as pretensões de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação e autoliquidação de tributos, de retenção na fonte e de pagamentos por conta. É certo que a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no âmbito do CAAD depende, de portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça (artigo 4.º, n.º 1 do RJAT), mas esta portaria existe (Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março) e estipula, nos seus artigos 1.º e 2.º, que a AT fica vinculada à referida jurisdição arbitral quando esteja em causa a apreciação de pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, com algumas exceções aqui inaplicáveis. Ora no presente caso não há dúvidas que quem administra o imposto não são os municípios, mas exclusivamente a Requerida, exercendo competências previstas, em termos gerais, no artigo 10.º do CPPT. Como bem refere o ponto 10 da Decisão arbitral no processo n.º 88/2012, a partir da comunicação à AT pelos Municípios da deliberação de lançamento da derrama, “toda a administração desse imposto local fica fora da sua competência”.
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A AT é, como se disse, o sujeito ativo da relação jurídica tributária, pois a ela compete, em exclusivo, a gestão administrativa do imposto (competência tributária), sendo ela igualmente quem, na relação obrigacional com o sujeito passivo, se encontra na posição de credor tributário (quem detém a capacidade tributária ativa). Daqui se infere que as restantes exceções invocadas pela Requerida ficam prejudicadas. Por um lado, a AT não é parte ilegítima por ser demandada isoladamente, pelo contrário é a única entidade com legitimidade passiva no processo. Por outro, não é aceitável, a qualquer título, a intervenção dos Municípios pois estes não são co-administradores do imposto nem verdadeiros credores do imposto perante os sujeitos passivos, mas sim perante a Requerida. Não tendo no processo um interesse legalmente protegido, não tem assim legitimidade para intervir nem procedimento administrativo nem no processo judicial (nos termos do artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT) nem no processo arbitral criado como alternativa ao processo judicial (preâmbulo do RJAT e artigo 124.º, n.º 2 da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril). Constituindo o n.º 4 do artigo 9.º do CPPT norma especial relativa à legitimidade em processo tributário, não tem aplicação a regra geral prevista no artigo 26.º do CPC. Do mesmo modo, também não se justifica a admissão da intervenção provocada de qualquer Município, ao abrigo do disposto nos artigos 325.º e ss do CPC. Não possuindo os Municípios competência para administrarem a derrama, nem dispondo de capacidade tributária ativa, não se vislumbra qual o interesse que possam ter em contradizer.
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A invocação do disposto nos artigos 7.º do Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro, e 54.º, n.º 2, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) também não procede, uma vez que estas disposições apenas se referem a tributos administrados pelas autarquias o que, manifestamente, não se passa no caso em questão.
C- SANEAMENTO
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Pelo exposto, conclui-se o seguinte:
- O Tribunal Arbitral é competente para apreciação do caso sub judice, nos termos do RJAT e da Portaria 112-A/2011;
- A Requerida tem, em exclusivo, legitimidade processual passiva,
Pelo que se julgam improcedentes as exceções por esta avançadas, importando, de seguida, conhecer do mérito da causa.
D- FACTOS PROVADOS DOCUMENTALMENTE
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A Requerente é a sociedade dominante de um grupo de sociedades que está sujeito ao RETGS.
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A Requerente procedeu, em 31 de maio de 2012, à autoliquidação do IRC e da Derrama referentes ao exercício de 2011, mediante a entrega da declaração de rendimentos Modelo 22 do IRC.
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Apesar de não ter apurado qualquer lucro tributável com base no RETGS, o sistema on line de entrega da declaração eletrónica forçou-a a calcular a derrama municipal tendo em conta o somatório das derramas individualmente apuradas por cada uma das sociedades sobre os respetivos lucros tributáveis, conforme as orientações genéricas da AT emitidas através do Ofício-Circulado n.º 20131, de 14 de abril de 2008, da Direção de Serviços do IRC.
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Daí decorreu uma autoliquidação no valor de € 13.427,95 e o consequente pagamento.
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Por considerar incorreta a liquidação efetuada e indevido o pagamento dela decorrente, a Requerente, ao abrigo do artigo 131.º, n.º 1 do CPPT, apresentou à AT em 25 de julho de 2012 reclamação graciosa da autoliquidação, tendo sido notificada, em 16 de novembro do mesmo ano, do seu indeferimento por despacho de 13 do mesmo mês do Chefe de Divisão da Justiça Administrativa e Contencioso da Direção de Finanças do Porto.
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Estes factos não foram contestados e não se provaram quaisquer outros com relevo para a decisão objeto do presente recurso.
E- LEGALIDADE OU ILEGALIDADE DA AUTOLIQUIDAÇÃO DA DERRAMA
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Defende a Requerente que a liquidação da derrama sofre de vício de violação de lei na modalidade de erro sobre os pressupostos de direito por contrariar o disposto nos artigos 69.º, n.º 1 e 70.º, n.º 1 do Código do IRC (ao tempo dos factos, artigos 63.º, n.1 e 64.º, n.º 1), aplicáveis ao cálculo do lucro tributável do grupo para efeitos de derrama. O primeiro dispõe que “Existindo um grupo de sociedades, a sociedade dominante pode optar pela aplicação do regime especial de determinação da matéria colectável em relação a todas as sociedades do grupo”, enquanto o segundo estabelece que “Relativamente a cada um dos períodos de tributação abrangidos pela aplicação do regime especial, o lucro tributável do grupo é calculado pela sociedade dominante, através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais de cada uma das sociedades pertencentes ao grupo”.
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Não existindo normas específicas na LFL (nem em qualquer outra lei) relativas aos procedimentos de apuramento da derrama, com exceção das regras de incidência, existindo, pois, uma omissão quanto às regras de determinação da matéria coletável, de liquidação, de pagamento, de obrigações acessórias, etc., e dada a estreita conexão entre este imposto e o IRC (para alguns, como a Requerente, a derrama é um imposto acessório), estes normativos aplicar-se-iam não apenas ao cálculo do IRC, mas também ao cálculo da derrama. As regras de incidência seguem diretamente as regras do IRC, pelo que o lucro tributável do grupo seria, havendo opção pelo RETGS, quer no caso do IRC, quer no da derrama municipal, o lucro agregado das empresas do grupo.
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A prova de que esta interpretação (sufragada unanimemente pela jurisprudência) era a interpretação correta está na necessidade que o poder político teve de, através da Lei do Orçamento de Estado (LOE) para 2011 (Lei n.º 64-B/2001), introduzir um novo número (o 8.º) ao disposto no artigo 14.º da LFL, nos termos do qual “Quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, a derrama incide sobre o lucro tributável individual de cada uma das sociedades do grupo, sem prejuízo do disposto no artigo 115.º do Código do IRC”.
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Diferente é a posição da Requerida. Partindo da configuração constitucional da autonomia financeira dos Municípios, de que a derrama será um dos principais expoentes, a AT qualifica este imposto como não estadual (cujo sujeito ativo seria o Município) e, a partir da LFL de 2007, como imposto autónomo, que apenas se socorreria das regras de cálculo do IRC para apuramento do lucro tributável (conceito distinto do de matéria coletável), não devendo ser acolhidas para efeitos de sujeição à derrama as especificidades da tributação em sede de IRC, como as que resultam do RETGS.
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Deste modo, não só haveria tantos sujeitos ativos quantos os Municípios em que uma sociedade tenha gerado rendimentos, como seriam sujeitos passivos as sociedades individualmente consideradas residentes na área geográfica daqueles Municípios, sem consideração pela figura do grupo em que estão inseridas: cada uma destas sociedades é sujeito passivo de IRC, sendo igualmente incontestável que todas elas geram rendimentos sujeitos a IRC.
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Segundo a Requerida, “tributar cada uma das sociedades que integram o perímetro, tendo por base o seu próprio lucro tributável” seria, aliás, a “melhor forma de conferir exequibilidade ao instrumento de financiamento dos Municípios que se consubstancia na derrama”. Além disso, defender a tributação pelo lucro agregado do grupo seria “denegar a concretização dos desígnios constitucionalmente consagrados, e legitimar o reforço das assimetrias entre Municípios, o que é contrário à lei fundamental”.
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A Requerida defende ainda que o novo n.º 8 do artigo 14.º da LFL introduzido pela LOE para 2012 não tem caráter inovatório, mas interpretativo: perante um ponto em que a regra de direito é incerta ou controvertida, e havendo divergências entre a doutrina administrativa e uma jurisprudência que, nas palavras da AT, “afrontava a doutrina administrativa”, esta alteração legislativa procurou “obstar à dimanação de jurisprudência eivada de inconstitucionalidade” em virtude da violação dos princípios constitucionais “ínsitos nos artigos 81.º e 238.º, ambos da Lei Fundamental”.
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O legislador, no entanto, não teve, segundo a Requerida, necessidade de proclamar a natureza interpretativa da lei, “porque a sua intenção na redação original do artigo 14.º da LFL era já a de a tributação se concretizar nos termos agora explicados”, ou seja, nos termos do referido Ofício Circulado n.º 20132, de 2008, e cujas instruções foram plasmadas nos programas informáticos do sistema declarativo e, consequentemente, estiveram na base da liquidação ora em litígio. Com efeito, segundo esta orientação administrativa, “para as sociedades que integram o perímetro do grupo abrangido pelo regime especial de tributação dos grupos de sociedades, a Derrama deverá ser calculada e indicada individualmente por cada uma das sociedades na sua declaração, sendo preenchido, também individualmente, o Anexo A, se for caso disso”.
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A argumentação da Requerida é frágil. Vimos que a AT é o único sujeito ativo da relação jurídica tributária, nas suas facetas administrativa e obrigacional. Deve ainda acrescentar-se que a questão conceitual da qualificação da derrama, como imposto autónomo, dependente ou acessório do IRC, não resolve, por si só, o litígio sub judice. Independentemente da qualificação, existe sempre uma estreita conexão entre o IRC e a derrama reconhecida pelo próprio artigo 14.º da LFL (na redação original ou na atual). No entanto este dispositivo não regula muitos dos procedimentos que a gestão da derrama necessariamente comporta e que não dizem respeito a elementos essenciais do imposto, obrigando assim a recorrer ao Código do IRC ou à LGT, sob pena daquela gestão administrativa poder ser efetuada de forma discricionária. Tudo se passa pois como, nesta matéria, houvesse uma remissão do artigo 14.º da LFL para as normas do Código do IRC.
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A AT está vinculada ao princípio da legalidade (artigos 266.º da CRP e 55.º da LGT). A versão inicial do artigo 14.º da LFL decorre de uma legítima opção política do legislador, tem expressão clara na letra da lei (a derrama incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC) e não se afigura ferida de qualquer inconstitucionalidade. A interpretação judicial da redação inicial do artigo 14.º da LFL visou salvaguardar os princípios da capacidade contributiva e da tributação das empresas pelo lucro real, é perfeitamente consentânea com os cânones estabelecidos da interpretação das normas jurídicas (artigos 9.º do Código Civil e 11.º da LGT) e não está eivada de qualquer inconstitucionalidade, designadamente por violação doas artigos 81.º e 238.º da CRP. Mesmo que esta existisse, deve recordar-se que, nesta matéria, “o princípio básico é o de recusar à administração em geral e aos agentes administrativos em particular qualquer poder de controlo da constitucionalidade das leis, mesmo se dessa aplicação resultar a violação dos direitos fundamentais. Aos agentes administrativos é sempre possível a representação – direito de representação – às entidades hierarquicamente superiores das consequências da aplicação das leis, mas até uma possível decisão judicial da inconstitucionalidade permanecerão vinculados às leis e às ordens concretas de aplicação dos órgãos colocados num grau superior da hierarquia (J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 2003, pp. 443-4).
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A doutrina contida no referido Ofício Circulado teve confessadamente por objetivo “conferir exequibilidade” à derrama, em particular quanto às relações (de direito financeiro) entre a AF e os Municípios. Mas tal exequibilidade poderia ser atingida por outros meios (por exemplo, pela existência de protocolos) que não a criação de regras administrativas corretivas da letra da lei.
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Julga-se assim correta a interpretação unanimemente reconhecida até hoje pela jurisprudência judicial e arbitral segundo a qual, havendo opção pela aplicação do RETGS em sede de IRC, esta opção projeta os seus efeitos em sede de derrama, pelo que a base da incidência repousa no lucro tributável global do grupo e não no lucro correspondente a cada sociedade individualmente considerada. De facto, os lucros individuais de cada sociedade não estão neste caso sujeitos a IRC, apenas servindo de fundamento para a determinação do lucro agregado do grupo. Só assim não seria se a lei dispusesse de outro modo, como veio a acontecer com a entrada em vigor do novo n.º 8 do artigo 14 da LFL na redação introduzida pela LOE para 2012, a qual parece indiciar uma opção de política tributária centrada no princípio do benefício.
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Este dispositivo legal tem claramente caráter inovatório, não apenas porque não veio decidir qualquer confronto entre correntes jurisprudenciais distintas, mas sobretudo porque após a revisão constitucional de 1997, com a expressa previsão no artigo 103.º da CRP do princípio da irretroatividade dos impostos deixou de ser possível haver leis interpretativas em sede fiscal com efeitos retroativos pelo menos quando, como é o caso, tais leis dissessem respeito a elementos essenciais do imposto.
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Em face do exposto, conclui-se que a autoliquidação da derrama relativa a 2011 está ferida de ilegalidade, por violação dos dispositivos conjugados, na redação em vigor ao tempo dos factos, previstos no artigo 14.º da LFL e no RETGS.
F- JUROS INDEMNIZATÓRIOS
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A Requerente pede também que lhe sejam concedidos juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT, referentes à quantia de € 13.427,95 a reembolsar.
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O n.º 1 do referido artigo 43.º dispõe que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, estatuindo o n.º 2 que se considera também “haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efetuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas”.
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No caso sub judice a requerente efetuou a liquidação, aplicando, por imposição do sistema informático e contra a sua vontade, o entendimento da AT constante do referido Ofício Circulado de 2008. Esta situação enquadra-se pois no disposto no artigo 43.º, n.º 2 da LGT, na medida em que a autoliquidação forçada foi feita com base em erro dos serviços.
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Tem assim a Requerente, nos termos dos artigos 43.º, n.º 3 e 35.º, n.º 10 da LGT, 61.º, n.ºs 2 a 5 do CPPT e 559.º, n.º 1 do Código Civil, direito a juros indemnizatórios, à taxa legal, entre a data em que procedeu ao pagamento do imposto e a data em que vier a ser efetuado o reembolso da derrama indevidamente paga.
G- CONCLUSÃO
Perante o exposto, decide-se pela improcedência quer das exceções suscitadas pela Requerida (uma vez que o Tribunal é competente e a AT parte legítima em exclusivo) ie do pedido de desencadeamento do incidente de intervenção provocada, julgando-se procedente o pedido de ilegalidade da autoliquidação efetuada pela Requerente, condenando-se assim a Requerida a restituir à Requerente o valor de € 13.427,95 (treze mil quatrocentos e vinte e sete euros e noventa e cinco cêntimos), acrescido de juros indemnizatórios calculados com base nesse montante, à taxa legal em vigor, desde a data do pagamento da referida quantia.
Valor do Processo: fixa-se o valor do processo em € 13.427,95, de acordo com o estipulado nos artigos 315.º, n.º 2 do CPC, 97.º-A, n.º 1 do CPPT e 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
Custas: fixa-se, nos termos do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I do RCPAT e tendo em conta o valor do pedido, o montante das custas em € 918,00, a correr por conta da Requerida.
Registe-se e notifique-se.
Parede, 8 de setembro de 2013
O ÁRBITRO
António Carlos dos Santos
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