Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 160/2016-T
Data da decisão: 2016-11-23  IVA  
Valor do pedido: € 155.385,56
Tema: IVA - Competência dos tribunais arbitrais, âmbito da Isenção do artigo 9.º, nºs 1 e 2 do CIVA e Renúncia à isenção prevista na alínea b) do nº1 do artigo 12º do CIVA na atividade de radiologia.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Paulino Brilhante Santos e Filipa Barros, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral:

 

 

I – RELATÓRIO

 

  1. No dia 16 de Março de 2016, a sociedade A…, LDA, inscrita sob o NIPC …, com sede no …, …, …, …-… Porto, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade das seguintes liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios, referentes aos anos de 2011 a 2013, nos valores respectivamente, de € 133.752,23 e € 21.633,33, perfazendo um total de € 155.385,56:

 

 

PERÍODO

N.º LIQUIDAÇÃO

DATA LIQUIDAÇÃO

MONTANTE

DATA LIMITE PAGAMENTO

 

IVA

1103T

10-11-2015

     43.810,85 €

31-12-2015

 
 
 

IVA

1106T

10-11-2015

     41.615,20 €

31-12-2015

 
 
 
 
 

IVA

1109T

10-11-2015

     48.326,18 €

31-12-2015

 
 
 

 

 

PERÍODO

N.º LIQUIDAÇÃO

DATA LIQUIDAÇÃO

MONTANTE

DATA LIMITE PAGAMENTO

 

JC

1103T

10-11-2015

       7.542,67 €

31-12-2015

 
 
 

JC

1106T

10-11-2015

       6.745,08 €

31-12-2015

 
 
 
 
 

JC

1109T

10-11-2015

       7.345,58 €

31-12-2015

 
 
 
 

 

 

  1. Para fundamentar o seu pedido de declaração da ilegalidade e consequente anulação das liquidações de IVA e juros compensatórios respetivos, alega a Requerente, em síntese, que:

                                                              i.      A al. b) do n.º 1 do artigo 12.º do CIVA é plenamente aplicável ao caso da ora requerente, pelo que, assistia-lhe efectivamente o direito de renunciar à isenção;

                                                            ii.      Cabia-lhe assim, por consequência, o direito a deduzir o imposto suportado nas suas operações passivas e cuja aceitação vem recusada de forma ilegal pela AT;

                                                          iii.      A requerente pratica operações enquadradas no n.º 2 do artigo 9.º do CIVA podendo, assim, quanto a essas, renunciar à sobredita isenção — a fundamentação da AT padece, por isso, de manifesta falta de adesão à realidade dos factos e, bem assim, não faz uma correcta interpretação das disposições legais aplicáveis.

                                                          iv.      A argumentação assenta na leitura deliberadamente enviesada das normas aplicáveis e, concomitantemente, das fontes jurisprudenciais citadas em alegado benefício da sua tese — como é o caso do Acórdão Kugler;

                                                            v.      Está em aberta oposição à jurisprudência firmada no CAAD.

 

  1. No dia 17 de Março de 2016, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

  1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Ar0bitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 10 de Maio de 2016, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Colectivo foi constituído em 25 de Maio de 2016.

 

  1. No dia 24 de Junho de 2016, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta, defendendo-se por excepção e impugnação.

 

  1. Por despacho de 26 de Outubro de 2016 foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.

 

  1. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respetivas posições jurídicas.

 

  1. Foi fixado o prazo de 30 dias para a prolação de decisão final, após a apresentação de alegações pela AT.

 

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 1, do RJAT.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

 

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

  1. A Requerente está, e estava à data dos factos tributários, enquadrada no regime geral de determinação do lucro tributável em sede de IRC.
  2. No que ao IVA diz respeito, a Requerente enquadrou-se, originariamente, no regime de isenção constante do artigo 9.º do CIVA.
  3. Em 2008, a Requerente apresentou declaração de alterações em sede de IVA, onde renunciou à isenção e optou pelo enquadramento no regime normal de tributação.
  4. A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica, e dedicava à data dos factos tributários, à prestação de serviços na área da imagiologia (nomeadamente no que respeita a ressonância magnética (RMN), TAC, ecografias, ecodepler, RX e densiometria), dispondo, para o efeito, de vários estabelecimentos (clínicas), sendo a sua actividade principal a prestação de serviços de imagiologia em saúde – análise das imagens obtidas e elaboração dos respectivos relatórios médicos.
  5. A recolha e o processamento das imagens são, e eram à data dos factos tributários, feitos nos centros da ora Requerente, aos quais os seus clientes se deslocam para o efeito.
  6. As liquidações objecto da presente acção arbitral resultaram das conclusões alcançadas no âmbito do procedimento inspectivo efectuado pela Direcção de Finanças do Porto, iniciado e concluído em 2015, ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2014… .
  7. Do Relatório de Inspeção Tributária consta, para além do mais, o seguinte:
  8. Estão isentas de imposto “...as prestações de serviços efectuadas no exercício das profissões de médico, odontologista, parteiro, enfermeiro e outras profissões paramédicas”;
  9.  “Contudo, atendendo a que o CIVA não contempla nenhuma definição no que respeita às actividades paramédicas, afigura-se necessário recorrer ao Decreto-Lei n.º 261/93, de 24 de Julho, bem como ao Decreto-Lei n.º 320/99, de 11 de Agosto, uma vez que são estes diplomas que contêm os requisitos a observar para o exercício das respectivas actividades”.
  10. A lista anexa ao Decreto-Lei n.º 261/93, de 24 de Julho prevê “no seu item 1, a actividade de ANÁLISES CLÍNICAS E DE SAÚDE PÚBLICA”, e que, de acordo com a descrição aí apresentada, “...esta actividade traduz-se no “desenvolvimento de actividades ao nível da patologia clínica, imunologia, hematologia clínica, genética e saúde pública, através do estudo, aplicação e avaliação das técnicas e métodos analíticos próprios, com fins de diagnóstico e de rastreio”.
  11.  “a isenção prevista no referido n.º 1 do art.º 9.º do CIVA opera independentemente da natureza jurídica do prestador de serviços e, nomeadamente, do facto de se tratar de uma pessoa singular ou colectiva e, bem assim, que aquela isenção tem por base a alínea c) do n.º 1 do artigo 132.º da Directiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de Novembro [a “Sexta Directiva”]”.
  12. Estão isentas “as prestações de serviços médicos e sanitários e as operações com elas estreitamente conexas efectuadas por estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares”;
  13. O artigo 9.º/2 do CIVA “transpõe para a ordem jurídica interna a al. b) do n.º 1 do art.º 132.º da Directiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de Novembro, prevendo que estão isentas de imposto as seguintes actividades: A hospitalização e assistência técnica, e bem assim as operações com elas estreitamente relacionadas, asseguradas por organismos de direito público ou, em condições sociais análogas às que vigoram para estes últimos, por estabelecimentos hospitalares, centros de assistência médica e de diagnóstico e outros estabelecimentos da mesma natureza devidamente reconhecidos”.
  14. “esta isenção abrange as prestações de serviços médicos e sanitários (actos de saúde) que consistam em prestar assistência a pessoas, diagnosticando e tratando doenças ou quaisquer anomalias de saúde e as operações com elas conexas, efectuadas pelos estabelecimentos expressos na referida norma ou por estabelecimentos similares (hospitalização/internamento)”.
  15.  “consideram-se estabelecimentos similares, para efeitos da isenção referida, os estabelecimentos públicos ou privados, que diagnostiquem e tratem doenças ou qualquer outra anomalia de saúde, ou seja, os estabelecimentos que efectivamente realizem operações que revistam a natureza de serviços de saúde”.
  16. “o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, no seu acórdão de 10 de Setembro de 2002, proferido no processo C-141/00, referente ao caso Kugler (n.º 36), evidenciou que as al.s b) e c) do n.º 1 do art.º 132.º da Directiva do IVA, embora visem regular as isenções que são aplicáveis aos serviços de assistência médica, têm âmbitos distintos”;
  17. “enquanto a alínea b) [do n.º 1 do art. 132.º da Directiva IVA] – que corresponde ao n.º 2 do art. 9.º do Código do IVA – isenta as prestações de serviços de assistência efectuadas no meio hospitalar, incluindo operações estreitamente conexas, a alínea c) [do n.º 1 do art. 132.º da Directiva IVA] – destina-se a isentar as prestações de serviços de carácter médico e paramédico fornecidas fora desses locais, seja no domicílio privado do prestador, seja no domicílio do paciente, seja em qualquer outro lugar”;
  18. “Os diversos exames médicos são realizados nas instalações do sujeito passivo, situadas no Espaço Saúde Atlântica, pois a sua execução envolve a utilização de diversos equipamentos, alguns dos quais de grandes dimensões. Posteriormente, são analisadas as diversas imagens recolhidas e emitidos os competentes relatórios de exames”.
  19. “em caso algum os serviços prestados envolveram a hospitalização ou o internamento dos pacientes, bem como, pelo exposto no parágrafo anterior, se verifica que não são efectuados em meio hospitalar”;
  20. “o sujeito passivo não pode considerar as actividades exercidas isentas de imposto por enquadramento no n.º 2 do artigo 9.º do Código do IVA, mas somente por invocação do disposto no n.º 1 do mesmo articulado. Consequentemente, ao estar enquadrado no n.º 1 do artigo 9.º do Código do IVA, o sujeito passivo não poderia renunciar à isenção, por inexistência de norma legal que o permitisse fazer, porquanto a renúncia à isenção prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º do Código do IVA só se aplica à isenção do n.º 2 do artigo 9.º do Código do IVA”;

 

A.2. Factos dados como não provados

 

Inexistem.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

 

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

 

B. DO DIREITO

 

i. da matéria de excepção.

 

            Começa a Requerida por questionar a competência material do Tribunal Arbitral para apreciar a pretensão que lhe foi submetida, porquanto, considera, “a primeira questão a decidir prende-se com o facto de ser, ou não, reconhecido o direito de renúncia à isenção por parte da Requerente”, pelo que “os actos de liquidação adicional de IVA efectuados deverão ser qualificados como actos consequentes”.

            Esta mesma questão foi suscitada no processo 168/2015-T do CAAD[1], onde tratando sobre matéria em tudo idêntica à dos presentes autos, se escreveu o que ora, com a devida vénia, se transcreve:

“A Portaria n.º 112-A/2011, relativamente aos actos enquadráveis indicados no artigo 2.º, apenas afastou do âmbito da vinculação da Administração Tributária, em matéria não aduaneira, as pretensões relativas a actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidas de recurso à via administrativa e as pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão.

É manifesto que não se está perante qualquer das situações em que a Portaria n.º 112-A/2011 afasta a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, pelo que a competência tem de ser aferida apenas à face do RJAT.

Como se vê pelo artigo 2.º do RJAT, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD foi definida pelo RJAT apenas tendo em atenção o tipo de actos que são objecto das pretensões dos contribuintes e não em função do tipo de questões que é necessário apreciar para decidir se os actos são legais ou ilegais.

Não há, designadamente, qualquer proibição de apreciação de matérias relativas à verificação dos pressupostos do direito de renúncia à isenção de IVA ou quaisquer outras questões de legalidade relativas aos actos dos tipos referidos no artigo 2.º do RJAT. Uma liquidação de imposto que parta da desconsideração de uma isenção ou de uma renúncia a isenção não deixa de ser um acto tributário de liquidação. E a pretensão de apreciação da legalidade ou da ilegalidade dessa desconsideração subjacente a um acto de liquidação não deixa, portanto, de ser a apreciação de uma pretensão relativa à declaração de ilegalidade de actos de liquidação, em que se materializa essa desconsideração.

Assim, no processo arbitral, à semelhança do que sucede no processo de impugnação judicial, pode, em regra, ser imputada aos actos de liquidação qualquer ilegalidade, como decorre do artigo 99.º do CPPT, subsidiariamente aplicável.

Só não será assim nos casos em que a lei preveja a impugnabilidade autónoma de actos administrativos que são pressuposto dos actos de liquidação, sendo só nessa medida que fica afastada a apreciação da legalidade dos actos de liquidação em todas as vertentes. Mas, para haver essa impugnabilidade autónoma, é necessário que haja algum acto administrativo em matéria tributária, pois a impugnabilidade reporta-se a actos e não a posições jurídicas assumidas explícita ou implicitamente como pressupostos dos actos de liquidação, mas não materializadas em actos tributários autónomos.

Os actos consequentes, de que fala a Autoridade Tributária e Aduaneira, são consequentes de outros actos tributários ou administrativos anteriores e, no caso em apreço, não há notícia de que tenha sido praticado qualquer acto administrativo apreciando se a Requerente tem ou não direito a renunciar à isenção de IVA.

Isto é, para haver limitação à impugnabilidade dos actos de liquidação impugnados, teria de ser praticado, anteriormente, algum acto administrativo que fosse pressuposto destes actos de liquidação, o que não sucedeu no caso em apreço.

Por isso, sendo os actos de liquidação lesivos dos interesses da Requerente e sendo os únicos actos praticado pela administração tributária sobre a situação neles apreciada, tem de ser assegurada a sua impugnabilidade contenciosa com fundamento em qualquer ilegalidade, como decorre do princípio da tutela judicial efectiva, consagrado nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da CRP.

Por outro lado, quando não há qualquer acto autonomamente impugnável anterior a um acto de liquidação versando sobre os seus pressupostos, pode «ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida» (parte final do artigo 54.º do CPPT), pelo que todas as questões relativas à legalidade dos actos de liquidação podem ser apreciadas nos tribunais tributários em processo de impugnação judicial, como decorre da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º e do artigo 99.º do mesmo Código.

Na verdade, nos tribunais tributários, mesmo quando, tendo sido praticados actos de liquidação, se estiver perante uma situação em que poderia ser mais útil para o contribuinte o uso da acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo (por possibilitar, para além da apreciação da legalidade de actos a definição para o futuro dos direitos do contribuinte), o uso da acção em vez da impugnação judicial é uma mera faculdade, como decorre do próprio texto do artigo 145.º, n.º 3, do CPPT, ao dizer que «as acções apenas podem ser propostas sempre que esse meio processual for o mais adequado para assegurar uma tutela plena, eficaz e efectiva do direito ou interesse legalmente protegido». Isto é, o que se prevê nesta norma é limitação ao uso da acção e não limitação ao uso do processo de impugnação judicial.

Com efeito, é manifesto que o processo de impugnação judicial inclui a possibilidade de reconhecimento de direitos em matéria tributária, como o são o direito à anulação ou declaração de nulidade de liquidações, o direito a juros indemnizatórios e o direito a indemnização por garantia indevida, pelo que o facto de estar em causa o reconhecimento de direitos não é obstáculo à utilização do processo de impugnação judicial.

Assim, como refere a Autoridade Tributária e Aduaneira, tendo o processo arbitral tributário sido criado como alternativa ao processo de impugnação judicial, é de concluir que não há obstáculo a que a legalidade dos actos de liquidação em causa neste processo seja apreciada por este Tribunal Arbitral, pois nos tribunais tributários essa legalidade poderia ser apreciada em processo de impugnação judicial.

Por isso, quanto ao pedido de anulação dos actos de liquidação, improcede a excepção da incompetência material suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira com fundamento em estar em causa o reconhecimento de um direito em matéria tributária.”

            Não se vendo razão para divergir do doutamente expendido no aresto em causa, antes se subscrevendo integralmente o quanto ali se expôs, julga-se improcedente a excepção da incompetência material suscitada pela Requerida.

 

*

***

ii. do mérito da causa

 

Cabe assim a este Tribunal, competente para tal, verificar sobre a legalidade das liquidações de IVA impugnadas, acima identificadas.

Primeiramente, é necessário concluir sobre a legalidade do fundamento da decisão da Administração Tributária e Aduaneira, que enquadra a actividade da Requerente, porque desenvolvida fora do meio hospitalar, como insusceptível de renúncia.

Interessa atentar, para o que aqui está em causa, nos artigos 9.º e 12.º do CIVA:

Artigo 9.º

Isenções nas operações internas

Estão isentas do imposto:

1) As prestações de serviços efectuadas no exercício das profissões de médico, odontologista, parteiro, enfermeiro e outras profissões paramédicas;

 

2) As prestações de serviços médicos e sanitários e as operações com elas estreitamente conexas efectuadas por estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares;

 

(...)

Artigo 12.º

Renúncia à isenção

1 - Podem renunciar à isenção, optando pela aplicação do imposto às suas operações:

(...)

b) Os estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares, não pertencentes a pessoas colectivas de direito público ou a instituições privadas integradas no sistema nacional de saúde, que efectuem prestações de serviços médicos e sanitários e operações com elas estreitamente conexas;

(...)

2 - O direito de opção é exercido mediante a entrega, em qualquer serviço de finanças ou noutro local legalmente autorizado, da declaração de início ou de alterações, consoante os casos, produzindo efeitos a partir da data da sua apresentação.

3 - Tendo exercido o direito de opção nos termos dos números anteriores, o sujeito passivo é obrigado a permanecer no regime por que optou durante um período de, pelo menos, cinco anos, devendo, findo tal prazo, no caso de desejar voltar ao regime de isenção:

a) Apresentar, durante o mês de Janeiro de um dos anos seguintes àquele em que se tiver completado o prazo do regime de opção, a declaração a que se refere o artigo 32.º, a qual produz efeitos a partir de 1 de Janeiro do ano da sua apresentação;

b) Sujeitar a tributação as existências remanescentes e proceder, nos termos do n.º 5 do artigo 24.º, à regularização da dedução quanto a bens do activo imobilizado.

 

Estas isenções estão relacionadas com o artigo 132.º da Directiva n.º 2006/112/CE, de 28-11-2006, nomeadamente:

1. Os Estados–Membros isentam as seguintes operações:

(...)

b) A hospitalização e a assistência médica, e bem assim as operações com elas estreitamente relacionadas, asseguradas por organismos de direito público ou, em condições sociais análogas às que vigoram para estes últimos, por estabelecimentos hospitalares, centros de assistência médica e de diagnóstico e outros estabelecimentos da mesma natureza devidamente reconhecidos;

c) As prestações de serviços de assistência efectuadas no âmbito do exercício de profissões médicas e paramédicas, tal como definidas pelo Estado–Membro em causa; (…)

 

Assim, a alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º do CIVA permite apenas a renúncia à isenção das entidades isentas enquadradas no nº 2 do artigo 9.º desse mesmo código.

Na posição da Autoridade Tributária e Aduaneira, remetendo para o caso Kügler (acórdão do TJUE de 10 de Setembro de 2002, proferido no Processo C-141/00) é defendido que “a isenção prevista no nº1 do artigo 9º do CIVA, opera independentemente da natureza jurídica do prestador de serviços e, nomeadamente, do facto de se tratar de uma pessoa singular ou colectiva e, bem assim, que aquela isenção tem por base a alínea c) do nº1 do artigo 132º da Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de Novembro.(…)” e que destina-se a isentar as prestações de serviços de carácter médico e paramédico fornecidas fora desses locais, seja no domicílio privado do prestador, seja no domicílio do paciente, seja em qualquer outro lugar. E, por outro lado, que o n.º 2 do artigo 9.º do CIVA, que isenta as prestações de serviços de assistência efetuadas em meio hospitalar, incluindo operações estreitamente conexas, “transpõe para a ordem jurídica interna a alínea b) do nº1 do artigo 132º da referida Diretiva 2006/112/CE (…)”.

Considerando que a actividade da Requerente é exercida fora do meio hospitalar, defende a Autoridade Tributária e Aduaneira que a isenção que se lhe aplica, o é nos termos do n.º 1 do artigo 9.º do CIVA.

No entanto, não se retira do referido acórdão que, tal como a Autoridade Tributária e Aduaneira afirma, só os hospitais estejam abrangidos pelo alcance da alínea b) do artigo 132.º acima citado.

O TJUE, no acórdão L.u.P. (de 8 de Junho de 2006, proferido no processo n.º C-106/05), posterior ao acórdão Kügler, esclareceu que «O artigo 13.°, A, n.º 1, alínea b), da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, (...) deve ser interpretado no sentido de que análises clínicas que tenham por objecto a observação e o exame dos pacientes a título preventivo, que sejam efectuadas, como as que estão em causa no processo principal, por um laboratório de direito privado externo a um estabelecimento de assistência médica sob prescrição de médicos generalistas, são susceptíveis de ser abrangidas pela isenção prevista por essa disposição enquanto cuidados médicos dispensados por outro».

Neste acórdão L.u.P., o TJUE entendeu que «uma vez que as análises clínicas são abrangidas, tendo em conta a sua finalidade terapêutica, pelo conceito de «assistência médica» previsto no artigo 13. °, A, n.º 1, alínea b), da Sexta Directiva, um laboratório como o que está em causa no processo principal deve ser considerado um estabelecimento da «mesma natureza» que os «estabelecimentos hospitalares» e os «centros de assistência médica e de diagnóstico» na acepção dessa disposição» (ponto 35).

Vem em reforço, o que se retira do ponto 35 do acórdão do TJUE De Fruytier, de 02-07-2015, proferido no processo n.º C-334/14, em que se citam os acórdãos L.u.P., C‑106/05, pontos 18 e 35 e CopyGene, C‑262/08, ponto 60, «que um laboratório de direito privado que efetua análises clínicas deve ser considerado um estabelecimento «da mesma natureza» que os «estabelecimentos hospitalares» e os «centros de assistência médica e de diagnóstico» na acepção dessa disposição, uma vez que essas análises são abrangidas, tendo em conta a sua finalidade terapêutica, pelo conceito de «assistência médica».

É assim, suficientemente clara nesta matéria a jurisprudência comunitária, no sentido de que, como se escreveu na decisão do processo arbitral 168/2015-T, já citado, que “a isenção prevista na alínea b) do artigo 132.º abrange os serviços prestados por entidades dos tipos que presta a Requerente, independentemente de a prestação ocorrer ou não em meio hospitalar, interpretação que está em manifesta sintonia com o texto desta norma, ao fazer referência à isenção das operações estreitamente relacionadas com a hospitalização e a assistência médica asseguradas aos «centros de assistência médica e de diagnóstico».”.

Desta forma, a Requerente detém condições subjectivas que são fundamentais à isenção da alínea b) do n.º 1 do artigo 132.º da Directiva. Sendo que, tal como é defendido pela Requerente, esta não é um organismo que desempenhe a sua actividade, em condições sociais análogas à atividade de organismos de direito público.

Quanto ao seu enquadramento no direito nacional, a Autoridade Tributária e Aduaneira interpreta, erradamente, a referência a “dispensários e similares” na isenção prevista no n.º 2 do artigo 9.º do CIVA. Pois, deve ser nesta referência “dispensários e similares” que são incluídos outros estabelecimentos nos quais «centros de assistência médica e de diagnóstico e outros estabelecimentos da mesma natureza», também de acordo alínea b) do n.º 1 do artigo 132.º da Directiva n.º 2006/112/CE.

Reportando-nos, uma vez mais, ao Acórdão proferido no processo arbitral n.º 168/2015-T:

“A referência a «dispensários» abrange inequivocamente prestação de serviços de saúde fora desse meio hospitalar, pois o significado de «dispensário» é o de «estabelecimento de beneficência, para tratamento de doentes com dificuldades económicas, dando-lhes acesso a consultas e medicamentos gratuitos» (...), ou «estabelecimento para dar, gratuitamente, cuidados e medicamentos aos doentes pobres que podem ser tratados no domicílio» (...).

Por outro lado, a referência a «similares», interpretada em consonância com a norma paralela da alínea c) do artigo 132.º da Directiva n.º 2006/112/CE, que faz referência a «centros de assistência médica e de diagnóstico e outros estabelecimentos da mesma natureza», permite concluir que caberão também nesse conceito entidades do tipo da Requerente, que presta serviços de saúde de análises clínicas e de diagnóstico em conexão com estabelecimentos hospitalares.

Assim, não tem suporte textual a tese defendida pela Autoridade Tributária e Aduaneira de que a isenção aplicável aos estabelecimentos do tipo da Requerente não está prevista no n.º 2 do artigo 9.º do CIVA.”.

Por identidade de razão, o mesmo se há-de entender relativamente à actividade de imagiologia, a que se dedica a Requerente.

Sendo, assim, a norma aplicável o n.º 2 do artigo 9.º do CIVA, e porque vem aqui permitir o enquadramento num regime de sujeição, não se pode afastar a possibilidade de renúncia à isenção prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º do CIVA.

Assim, as liquidações efectuadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira enfermam em vício de erro de aplicação da lei.

Não obsta a esta conclusão a argumentação da Requerida em sede arbitral (cfr. pontos 61 e ss. da Resposta), relativa à eventual violação do princípio da neutralidade decorrente da opção pelo regime de isenção consagrado no artigo 12.º, n.º 1, alínea b) do CIVA, na medida em que tal não integra os fundamentos de facto e de direito dos actos tributários cuja legalidade ora cumpre sindicar, dado que tais actos assentaram na não aplicabilidade daquela norma, por considerar preenchidos os pressupostos de facto do n.º 1 do artigo 9.º do CIVA, e não do n.º 2 do mesmo artigo.

 

*

Cumula a Requerente, com o pedido anulatório dos actos tributários objecto dos presentes autos, o pedido de indemnização prevista nos artigos 171º do CPPT e 53º da LGT, caso venha a ser julgada indevida a garantia que a Requerente prestou com vista à suspensão do processo de execução fiscal entretanto instaurado.

Nada se tendo provado a este respeito, deve esta parte do pedido arbitral improceder.

 

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C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

a)      Anular as liquidações objecto da presente acção arbitral tributária;

b)      Condenar a Requerida nas custas do processo, no montante de €3.672,00.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 155.385,56, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €3.672,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Autoridade Tributária e Aduaneira, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa

 

23 de Novembro de 2016

 

O Árbitro Presidente

 

 

 

(José Pedro Carvalho - Relator)

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

 

(Paulino Brilhante Santos)

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

 

 

 

(Filipa Barros)

 



[1] Disponível para consulta em www.caad.org.pt