Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 286/2016-T
Data da decisão: 2016-10-17  IMT  
Valor do pedido: € 10.162,81
Tema: IMT – Isenção prevista no n.º 2 do artigo 270.º, do CIRE; competência do tribunal
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DECISÃO ARBITRAL

1.    RELATÓRIO

A…, com o NIF … e mulher, B…, com o NIF …, casados sob o regime de comunhão de adquiridos, residentes na Rua … n.º … Hab …, …, …-…, ..., da área do Serviço de ... … (doravante designados por Requerentes), vêm, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral com a intervenção de árbitro singular, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT) n.º…, no valor de € 10 162,81, referente à aquisição da fração autónoma designada pela letra “A” do prédio urbano inscrito na matriz da freguesia de …, concelho de ..., sob o artigo… .

 

Pedem ainda os Requerentes a condenação da Requerida na restituição da quantia indevidamente paga, acrescida de juros indemnizatórios nos termos legais, desde a data do pagamento do imposto, até à data da sua efetiva restituição.

Baseiam-se os pedidos dos Requerentes nos fundamentos que, em síntese, se passam a enunciar:

a.     Em outubro de 2009, os Requerentes, na qualidade de promitentes-compradores, celebraram com a sociedade C…, Ld.ª, com o NIPC …, na qualidade de promitente-vendedora, contrato-promessa de compra e venda da fração autónoma já identificada, destinada a habitação, tendo-lhe entregado diversas quantias a título de sinal e princípio de pagamento;

b.    Em data anterior à celebração do contrato definitivo, a designar pela promitente-vendedora, viria esta a ser declarada insolvente no processo que corre termos sob o n.º … J2 da 2.ª Secção de ..., anteriormente distribuído no 1.º Juízo Cível de ..., sem que tivesse sido realizada a escritura de compra e venda;

c.     Os Requerentes reclamaram o seu crédito, reconhecido pelo Administrador da Insolvência da sociedade promitente-vendedora, também reconhecido por sentença transitada em julgado;

d.    No âmbito da liquidação da massa insolvente, os Requerentes adquiriram a fração autónoma identificada, tendo, previamente à escritura de compra e venda, requerido a liquidação de IMT, junto da Administração Fiscal;

e.     A AT emitiu liquidação de IMT pela quantia de € 10 162,81, que os Requerentes pagaram em 28 de abril de 2016, embora com ela se não conformando, por entenderem que a liquidação ora impugnada viola o disposto no n.º 2 do artigo 270.º, do CIRE;

f.      Terminam os Requerentes com os pedidos de anulação da liquidação de IMT e de condenação da Requerida na restituição do imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, atribuindo aos autos o valor económico correspondente ao da liquidação impugnada.

 

Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou resposta, defendendo-se por exceção e por impugnação, com os seguintes fundamentos:

Por Exceção:

a.     A pretensão dos Requerentes consiste no reconhecimento de que reunia os pressupostos para usufruir da isenção prevista no n.º 2 do artigo 270.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE);

b.    No entanto, trata-se de matéria não abrangida no âmbito da competência material do Tribunal Arbitral, como resulta do disposto no artigo 2.º do RJAT, não constando da Portaria de Vinculação;

c.     É que os atos relativos ao reconhecimento das isenções tributárias constituem atos destacáveis do procedimento tributário, não podendo a liquidação de imposto dela decorrente ser posta em causa através de impugnação judicial ou, no caso que ora interessa, através de pedido de pronúncia arbitral, conforme se decidiu no acórdão do STA n.º 0188/09, de 09/09/2009;

d.    “A incompetência do tribunal constitui uma excepção dilatória de conhecimento oficioso que determina a absolvição da instância nos termos do artigo 576.º e alínea a) do art.º 577.º do Código de Processo Civil (CPC) aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, o que desde já se requer”.

Por impugnação:

e.     A pretensão dos Requerentes é infundada, face à atual redação do n.º 2 do artigo 270.º, do CIRE, pois a isenção ali prevista abrange todos os atos integrados no âmbito de planos de insolvência, ou de pagamentos, ou de liquidação da massa insolvente, com a reserva, no entanto, de, caso o objeto da transmissão isenta ser a empresa ou o estabelecimento e não, um ou dois bens do seu ativo.

 

Por despacho arbitral de 3 de outubro de 2016, foram os Requerentes notificados para, no prazo de 10 dias, responderem, por escrito, à exceção invocada pela AT na sua resposta, fixando-se a data de 28 de outubro de 2016 para prolação da decisão arbitral, com advertência de que, até àquela data, deveriam proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente.

 

Os Requerentes responderam, defendendo não se verificar a exceção de incompetência do Tribunal Arbitral para conhecimento da sua pretensão que, em suma, se reconduz à declaração de ilegalidade da liquidação impugnada, não obstante a mesma ter subjacente o não reconhecimento da isenção prevista no n.º 2 do artigo 270.º, do CIRE.

 

2.    SANEAMENTO:

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral deu entrada no CAAD em 23 de maio de 2016, tendo sido aceite pelo Exm.º Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.

A Requerente informou que não pretendia utilizar a faculdade de designar árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º, do RJAT, foi a signatária nomeada árbitro pelo Exm.º Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, encargo que aceitou no prazo legalmente previsto, sem oposição das Partes.

O Tribunal Arbitral Singular foi regularmente constituído em 10 de maio de 2016, para apreciar e decidir o litígio objeto dos presentes autos.

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades que de todo o invalidem.

 

3.    FUNDAMENTAÇÃO

3.1.   MATÉRIA DE FACTO

3.1.1.          Factos que se consideram provados:

a.    Em 30 de outubro de 2009, os Requerentes, na qualidade de promitentes-compradores, celebraram com a sociedade C…, Ld.ª, com o NIPC…, na qualidade de promitente-vendedora, contrato-promessa de compra e venda da fração autónoma com designação provisória …, destinada a habitação, a construir nos lotes de terreno da propriedade da sociedade promitente-vendedora, conforme alvará de licença de construção n.º …/09, emitido pela Câmara Municipal de ..., em … de abril de …, posteriormente designada fração “A” do prédio urbano inscrito na matriz da freguesia de…, concelho de ..., sob o artigo …;

b.    Aquando da celebração do referido contrato-promessa de compra e venda, os Requerentes entregaram a quantia de € 10 000,00, a título de sinal e princípio de pagamento, sinal que viria a ser reforçado, conforme os sucessivos aditamentos ao contrato-promessa inicial;

c.     A sociedade promitente-vendedora viria a ser declarada insolvente no processo que corre termos na 2.ª Secção Comércio, de ... (anteriormente pelo 1.º Juízo do Tribunal Judicial de ...), sem que tivesse sido celebrado o contrato definitivo;

d.    Os Requerentes, titulares do direito de retenção sobre a fração autónoma prometida vender, reclamaram o seu crédito no processo de insolvência da promitente-vendedora, tendo o mesmo sido reconhecido pelo Administrador da Insolvência e graduado em primeiro lugar (sentença de graduação de créditos de 25 de setembro de 2015);

e.    Tendo os credores determinado a liquidação dos bens da insolvente, os Requerentes formularam proposta de aquisição da fração autónoma identificada (verba 21), que lhes foi adjudicada e de cujo termo de adjudicação consta que os Requerentes requereram “isenção de pagamento de IMT e de imposto selo, nos termos dos arts 269.º e 270.º CIRE);

f.     Em 27 de abril de 2016, apesar de os Requerentes terem solicitado isenção, a AT emitiu a liquidação de IMT n.º…, no valor de € 10 162,81, referente à aquisição da fração autónoma “U-…-A” da freguesia do…, ..., de cujo termo consta em “Observações”: “Processo ... ... J2 2.ª Secção Comércio/..., Comarca de Aveiro”, com identificação da alienante C…, LDA, com o NIF…;

g.    Em 28 de abril, data da celebração da escritura de compra e venda da fração autónoma identificada, os Requerentes procederam ao pagamento do IMT liquidado.

 

3.1.2. Fundamentação da matéria de facto provada:

A convicção do Tribunal quanto à matéria de facto dada como provada resultou da análise crítica da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral, expressamente aceite pela Requerida.

3.1.3. Factos não provados

Não existem factos relevantes para a decisão da causa que devam considerar-se não provados.

 

3.2.  MATÉRIA DE DIREITO

3.2.1.                    Da (in)competência do Tribunal Arbitral

A questão controvertida nos presentes autos respeita à interpretação do disposto no n.º 2 do artigo 270.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), em especial no que diz respeito a saber se todas as aquisições de imóveis no âmbito de processos de insolvência e recuperação de empresas estão isentas de IMT ou se apenas aquelas que ocorram no âmbito da aquisição de empresas ou estabelecimentos comerciais.

Vem a AT invocar, à luz do disposto no artigo 2.º, alínea a), do RJAT e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março (Portaria de Vinculação), a exceção da incompetência dos Tribunais Arbitrais que funcionam junto do CAAD para apreciar pretensões relativas ao reconhecimento de isenções, uma vez que tais atos são atos destacáveis do procedimento tributário, não sindicáveis através de impugnação judicial ou, no caso concreto, através de pedido de pronúncia arbitral.

Sendo a incompetência do tribunal uma exceção dilatória que impede a apreciação do mérito da causa e conduz à absolvição da instância, deve a mesma ser apreciada prioritariamente, como determina o n.º 1 do artigo 608.º, do Código de Processo Civil (CPC), de aplicação subsidiária ao processo arbitral tributário, ex vi do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

Vejamos então:

Dispõe o n.º 1 do artigo 5.º, do Estatuto dos Benefícios Fiscais, aplicável a todos os benefícios fiscais, ainda que inseridos em diplomas avulsos, que os benefícios fiscais são automáticos, quando “resultam direta e imediatamente da lei”, e dependentes de reconhecimento, quando “pressupõem um ou mais atos posteriores de reconhecimento”.

Resulta, por outro lado, do artigo 10.º, n.º 8, alínea d), do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), que o benefício fiscal de que tratam os presentes autos é automático, não dependente de reconhecimento.

Assim sendo, não existe ato destacável do procedimento de liquidação, sendo no momento da prática do ato tributário de liquidação que a AT deve apreciar se o sujeito passivo usufrui do benefício fiscal.

Não existindo ato destacável prévio à liquidação, ato que seria sindicável através de ação administrativa especial, anterior recurso contencioso (cfr. o artigo 97.º, n.º 1, alínea p) e n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), e traduzindo-se a liquidação num ato diretamente lesivo da esfera jurídica do contribuinte, a mesma é suscetível de impugnação judicial, com qualquer um dos fundamentos previstos no artigo 99.º, do CPPT.

Assim, a pretensão do contribuinte não será a apreciação da legalidade de um qualquer ato destacável do procedimento de liquidação, traduzindo-se antes na apreciação da legalidade do ato de liquidação, para o que os tribunais arbitrais são materialmente competentes, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

Pelos motivos expostos, improcede, por não verificada, a exceção invocada pela Requerida, nada obstando à apreciação do mérito da causa.

 

3.2.2.                    Do mérito da liquidação impugnada

 

O atual n.º 2 do artigo 270.º, do CIRE, na redação que lhe foi dada pelo artigo 234.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, prevê que “2 – Estão igualmente isentos de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis os atos de venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimentos desta, integrados no âmbito de planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.

 

Consideram os Requerentes que esta norma deve ser interpretada no sentido de que a isenção de IMT deve ser concedida, por um lado, no âmbito de operações de aquisição integral ou parcial da empresa objeto do processo de insolvência, e, por outro, a simples atos de aquisição de bens imóveis isoladamente considerados, ocorridos na fase de liquidação do ativo da mesma.

E assim deverá ser, no seu entender, porque o legislador, ao consagrar aquele benefício fiscal em sede de IMT no âmbito dos processos de insolvência, visou viabilizar a venda rápida e atrativa dos bens imóveis integrantes do património do devedor, por forma a satisfazer os interesses dos credores ou a promover a recuperação da empresa, razão pela qual não faria sentido excluir do âmbito da isenção os atos de alienação de bens imóveis compreendidos na massa insolvente da empresa quando se trate de uma venda isolada.

 

Alegam ainda que a aprovação do CIRE, através do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, visou proceder a uma reforma estruturante do processo de recuperação de empresas e falência – contemplada no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF) – que promovesse a agilização e reestruturação dos procedimentos de liquidação de bens e pagamentos aos credores. Em paralelo com a criação de medidas uniformizadoras dos diferentes procedimentos existentes, o novo diploma adotou um modelo alicerçado, essencialmente, na primazia da vontade dos credores na tramitação do processo, como que resulta evidente, desde logo, da redação do artigo 1.º do CIRE, que determina como finalidade do processo de insolvência “a satisfação dos credores”.

Para concretização do referido objetivo, o legislador esclareceu que, caso não se afigure possível alcançar o mesmo através da recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, tal objetivo deverá ser obtido pela “liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores” – cfr. n.º 1 do artigo 1.º, do CIRE.

Deste modo, e configurando o património dos devedores (insolventes) a garantia de satisfação dos créditos existentes, cumprirá aos credores decidir quanto à efetivação dessa garantia, que poderá ser viabilizada seja por meio de liquidação integral do património dos devedores, seja através da manutenção da atividade e consequente reestruturação da empresa insolvente, sendo “por essa via que, seguramente, melhor se satisfaz o interesse público da preservação do bom funcionamento do mercado” - cfr. ponto 3 do Preâmbulo que antecede o CIRE.

No que respeita à regulamentação de matéria tributária no âmbito do processo de insolvência, o princípio basilar da prevalência da vontade dos credores encontra-se patente nas disposições normativas relativas à atribuição dos “Benefícios emolumentares e fiscais”, inseridas no Título XIII do CIRE.

Já no entendimento da AT, a norma em causa apenas consagra a isenção de IMT para os casos em que os imóveis são adquiridos no âmbito de uma empresa ou estabelecimento comercial, sendo que a venda de imóveis da empresa, isoladamente, não está abrangida pela isenção, estando, por consequência, sujeita a IMT nos termos gerais.

Impõe-se, portanto, decidir.

A norma prevista no n.º 2 do artigo 270.º, do CIRE, consagra um benefício fiscal, como decorre do n.º 2 do artigo 2.º, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), em que se estabelece que são “benefícios fiscais as medidas de carácter excecional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores aos da própria tributação que impedem” (n.º 1) e que “são benefícios fiscais as isenções, as reduções de taxas, as deduções à matéria coletável e à coleta, as amortizações e reintegrações aceleradas e outras medidas fiscais que obedeçam às características enunciadas no número anterior” (n.º 2).

À interpretação das normas tributárias são aplicáveis, de acordo com o n.º 1 do artigo 11.º, da LGT, as regras e princípios gerais de interpretação das leis, designadamente o artigo 9.º, do Código Civil (CC), com a tónica especial, quando persista “a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar”, na “substância económica dos factos tributários” (cf. o n.º 3 do artigo 11.º, da LGT). Por outro lado, dispõe o artigo 10.º, do EBF, que “as normas que estabeleçam benefícios fiscais não são suscetíveis de integração analógica, mas admitem interpretação extensiva.”

Para o intérprete, a letra da lei é o limite mínimo da tarefa interpretativa (no sentido de que é do texto legislativo que tem que se partir para determinar o sentido da norma), mas é também o seu limite máximo (no sentido de que não é possível atribuir à norma um sentido que não esteja minimamente previsto na sua letra).

Porém, no caso em apreço, partindo do elemento literal, o resultado da interpretação não é unívoco.

De facto, se, por um lado, o preceito em causa se refere aos atos de venda de “empresa” e de “estabelecimento”, também é certo que inclui ainda as operações de “permuta” ou “cessão”, que parecem abrir a porta a transmissões de outra coisa que não de uma empresa ou estabelecimento – na medida em que não se conhecem permutas de empresas ou estabelecimentos – e que a cessão, sendo onerosa porque só assim poderá estar em causa a aplicação do IMT, não tem autonomia concetual face à venda.

Portanto, o elemento literal não nos permite tirar conclusões firmes acerca de que operações o legislador quis incluir na norma de isenção. E, sendo assim, determina o artigo 9.º, n.º 2, do CC, que deverão ser tidos em conta os elementos teleológico, sistemático e histórico da norma em questão, como auxiliares interpretativos.

No que respeita ao elemento histórico, o CPEREF, que antecedeu o CIRE, previa, no n.º 2 do artigo 121.º, uma isenção de sisa para “as transmissões de bens imóveis, integradas em qualquer das providências de recuperação de empresa, que decorram (…) da venda, permuta ou cessão de elementos do ativo da empresa (…)”. Não havia, portanto, dúvidas de que a isenção se aplicava à venda isolada de imóveis, no âmbito de processos de recuperação de empresa.

Posteriormente, a Lei n.º 39/2003, de 22 de agosto, veio autorizar o Governo a legislar sobre a insolvência de pessoas singulares e coletivas, revogando o CPEREF. O novo regime jurídico deveria colocar a tónica na satisfação dos credores, fosse pela via da liquidação do património, fosse pela via de um plano de insolvência (cf. o artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 39/2003).

Em matéria de benefícios fiscais, o n.º 3 do artigo 9.º, da Lei n.º 39/2003, autorizou o Governo “a isentar de imposto municipal de sisa as seguintes transmissões de bens imóveis, integradas em qualquer plano de insolvência ou de pagamentos ou realizadas no âmbito da liquidação da massa insolvente: (…) as que decorram (…) da venda, permuta ou cessão da empresa, estabelecimentos ou elementos dos seus ativos (…)”.

Assim, a Lei n.º 39/2003 era ainda mais favorável à transmissão de imóveis incluídos na massa insolvente do que o CPEREF, uma vez que não limitava a isenção às transmissões de imóveis que pudessem ter lugar no âmbito da recuperação de empresa, estendendo-a também às transmissões que ocorressem no âmbito da liquidação da empresa insolvente ou dos seus estabelecimentos.

Quanto ao elemento teleológico, importa apurar a razão de ser da isenção de IMT prevista no n.º 2 do artigo 270.º, do CIRE, e, nomeadamente, se essa razão de ser justifica a isenção das operações de transmissão isolada de imóveis ou apenas daquelas que tenham lugar no contexto mais amplo da transmissão da empresa ou do estabelecimento.

No que a este aspeto concerne, já o STA teve oportunidade de, por diversas vezes, esclarecer o que deve ter-se como ratio legis da disposição legal em análise, citando-se aqui, a título de exemplo, o Acórdão de 17 de dezembro de 2014, recurso 01085/13, em que aquele Tribunal refere que “haverá que ter em conta o fim que o legislador pretende alcançar com a concessão de tal isenção, - «fomentar e apoiar a venda rápida dos bens que integram a massa insolvente por óbvias razões de interesse dos credores, mas, também do interesse público de retoma do normal funcionamento do mundo empresarial em que cada processo de insolvência se apresenta como elemento perturbador», dando incentivos fiscais a quem adquirir os bens imóveis que integram a massa insolvente e que serão vendidos em fase de liquidação. Não havendo que diferenciar, para tal fim, as situações em que se esteja a vender globalmente a empresa com todo o seu ativo e o seu passivo, das situações em que se esteja a vender um ou mais dos estabelecimentos comerciais que a integravam, ou em que se estejam a vender bens imóveis que integravam o seu ativo. O objetivo que preside à teleologia da norma será igualmente prosseguido quando a aquisição tem por objeto elementos do ativo da empresa, não se tornando necessário que o objeto seja a empresa ou estabelecimentos desta integrados no âmbito de plano de insolvência.[1]

Finalmente, importa ainda atender ao elemento sistemático para determinar o sentido da norma em causa, desde logo porque a isenção de IMT prevista no n.º 2 do artigo 270.º, do CIRE, não é a única prevista para as operações de transmissão onerosa de imóveis que tenham lugar no âmbito do processo de insolvência, sendo acompanhada pela isenção também de IMT prevista no n.º 1 do mesmo artigo e pela isenção de imposto do selo prevista nas alíneas d) e e) do artigo 269.º, do CIRE.

Sucede que tanto uma como a outra se aplicam, claramente, quer à transmissão de imóveis efetuada em conjunto com a empresa ou o estabelecimento de que fazem parte, quer à transmissão isolada de imóveis.

Também deste ponto de vista parece, portanto, que a interpretação segundo a qual a isenção de IMT prevista no n.º 2 do artigo 270.º, do CIRE, abrange a transmissão de imóveis quer quando efetuada em conjunto com a empresa ou estabelecimento de que fazem parte, quer quanto efetuada isoladamente, é a mais consentânea com o espírito global do ordenamento jurídico.

Assim, perante as dúvidas suscitadas pela falta de clareza do enunciado verbal da norma em causa, o recurso aos elementos histórico, teleológico e sistemático permitem concluir, com segurança, que a isenção de IMT prevista pelo n.º 2 do artigo 270.º, do CIRE, se aplica não apenas às vendas ou permutas de empresas ou estabelecimentos, enquanto universalidade de bens, mas também às vendas e permutas de imóveis (enquanto elementos do seu ativo), desde que enquadradas no âmbito de um plano de insolvência ou de pagamento, ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.

Este tem sido também o sentido da jurisprudência maioritária dos tribunais arbitrais constituídos no CAAD, de que é exemplo o acórdão proferido em 1 de setembro de 2015, no processo n.º 123/2015-T, em que se pode ler, sobre a interpretação que aqui se defende, que “Para além de esta interpretação, permitida pelo teor literal do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, ser manifestamente a que se sintoniza com a teleologia da modalidade de isenção identificada, que é incentivar as aquisições de bens da empresa insolvente, no caso em apreço a venda foi efetuada a credores da empresa insolvente, pelo que se está perante uma situação cuja substância económica é essencialmente idêntica à das situações de dação em cumprimento de bens da empresa ou de cessão de bens aos credores, que estão expressamente previstas na alínea c) do n.º 1 do mesmo artigo 270.º, como casos de isenção de IMT. Por isso, nos casos em que a venda é efetuada a credores da empresa insolvente, a substância económica, a que o artigo 11.º, n.º 3, da LGT manda atender na interpretação das normas de incidência tributária, sempre imporia que se entendesse se trata de situações abrangidas pela isenção, pelo que, a não se enquadrar a situação no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, ela sempre caberia, por interpretação extensiva no n.º 1 do mesmo artigo.”.

Conclui-se, assim, no mesmo sentido da jurisprudência maioritária do STA e dos tribunais arbitrais constituídos junto do CAAD, de que a norma prevista no n.º 2 do artigo 270.º, do CIRE, abrange as operações de transmissão de imóveis da massa insolvente que tenham lugar de forma isolada, isto é, não integrada na transmissão da empresa ou de um estabelecimento comercial, assim como aquelas que tenham lugar no contexto destas transmissões mais abrangentes.

 

Pelo exposto, conclui-se que a liquidação impugnada enferma de vício de erro sobre os pressupostos de direito, consubstanciado em violação do artigo 270.º, n.º 2, do CIRE, o que justifica a sua anulação.

 

3.2.3.                    Do pedido de juros indemnizatórios

No que respeita ao pedido de pagamento de juros indemnizatórios, é patente que o processo arbitral tributário foi concebido como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (cfr. a autorização legislativa concedida ao Governo pelo artigo 124.º, n.º 2 (primeira parte) da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril – Lei do Orçamento do Estado para 2010).

Assim, apesar de o artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, utilizar a expressão “declaração de ilegalidade” como delimitativa da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, deverá entender-se que se compreende nessa competência os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, como é o de apreciar o erro imputável aos serviços.

Por outro lado, determina a alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º, do RJAT, que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos precisos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que incluiu “o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.”.

Nos termos do n.º 1 do artigo 43.º, da LGT, “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”.

Demonstrado o erro da AT sobre os pressupostos de direito, por “errada interpretação ou aplicação das normas legais, como as normas de incidência objetiva e subjetiva (…)[2], justificativo da declaração de ilegalidade e de anulação da liquidação impugnada, terá de reconhecer-se o direito dos Requerente a juros indemnizatórios sobre o valor indevidamente pago, desde a data do respetivo pagamento, conforme se estatui no n.º 5 do artigo 61.º, do CPPT, já que tal ilegalidade é exclusivamente imputável à Administração Tributária.

 

4.        DECISÃO

Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados e, nos termos do artigo 2.º do RJAT, decide-se em, julgando inteiramente procedente o presente pedido de pronúncia arbitral:

4.1.Declarar a ilegalidade da liquidação de IMT n.º…, por erro nos pressupostos de direito, determinando a sua anulação;

4.2.Condenar a AT à restituição da quantia de € 10 162,81, indevidamente paga pelos Requerentes, acrescida de juros indemnizatórios desde a data do pagamento até à emissão da respetiva nota de crédito.

 

VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 10 162,81 (dez mil, cento e sessenta e dois euros e oitenta e um cêntimos).

CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 918,00 (novecentos e dezoito euros), a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

Notifique-se.

 

Lisboa, 17 de outubro de 2016.

O Árbitro,

 

/Mariana Vargas/

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990. 



[1] Cfr., além deste, os acórdãos de 03.07.2013, recurso 0765/13, de 11.11.2015, recurso 968/13, de 18.11.2015, recursos 01067/15 e 0575/15, respetivamente, de 16.12.2015, recurso 1345/15 e de 20.01.2016, recurso 1350/15, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

[2] SOUSA, Jorge Lopes de “Código de Procedimento e de Processo Tributário – anotado e comentado”, II

Volume, Áreas Editora, 6.ª Edição, 2011, pág. 115.