Decisão Arbitral
I – RELATÓRIO
A…, S. A., com o NIF … e sede no Porto, e B…, S.G.P.S., com o NIF…, e sede na mesma cidade, vieram, em 13 de maio de 2016, requerer a constituição de tribunal arbitral, com vista à declaração de ilegalidade da decisão da reclamação hierárquica deduzida na sequência da liquidação de IRS que nomearam e adiante igualmente se identificará, bem como do ato de liquidação reclamado.
Como dissessem não pretender designar árbitro, foram os signatários nomeados pelo Conselho Deontológico, nomeação que aceitaram e não teve oposição de qualquer das partes, ficando o tribunal constituído em 25 de julho de 2016.
A Administração Tributária (AT) respondeu, no prazo legal, defendendo-se por impugnação e juntando cópia do processo administrativo.
Dispensada que foi a reunião a que se refere o artigo 18ºdo Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), por se entender, no caso, inútil, o tribunal anunciou que proferiria decisão até 15 de dezembro de 2016 e convidou as partes a produzir alegações por escrito, o que elas fizeram.
II – SANEAMENTO
O tribunal é competente, as partes são legítimas, dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, e acham-se devidamente representadas, sendo lícita a coligação, de acordo com o disposto no artigo 3º nº 1 do RJAT.
Não há nulidades, exceções ou questões prévias que impeçam o conhecimento do pedido.
III – MATÉRIA DE FACTO
1) FACTOS PROVADOS
a) A Requerente A…, S. A., é uma sociedade anónima integrada no Grupo C… desde dezembro de 2005, grupo empresarial com elevado grau de implantação no mercado europeu das análises clínicas. O processo de integração da Requerente no Grupo C… conheceu diferentes estágios decorrentes do grau de implantação do Grupo no mercado português.
b) Em momento anterior a dezembro de 2005, as participações sociais da Requerente eram diretamente detidas em 85% pela sociedade B… e em 15% pela Família D… . Em dezembro de 2005, o Grupo C… entrou no mercado português através da aquisição das participações sociais da B… ao A… .
c) Naquela data, o “braço português” do Grupo apresentava a seguinte estrutura:
i. Na cúpula do Grupo encontrava-se a sociedade suíça “E…, S.A.”.
ii. A E…, S.A. detinha 100% das participações sociais na sociedade de direito holandês “F…, BV”.
iii. A F… detinha 100% das participações sociais da B… .
iv. A B… detinha 85% das participações sociais da G… e 85% das participações sociais da sociedade H…, S.A.
d) Em finais de 2007, o Grupo levou a cabo uma reestruturação que se iniciou com a constituição da I…, detida a 100% pela F… . Em momento posterior, a F… vendeu à I… todas as participações sociais que detinha em Portugal (de entre as quais se encontravam as participações sociais na B…), no valor global de € 52.409.640,00.
e) A aquisição daquelas participações sociais pela I… foi, inicialmente, financiada pela F…, concretizada através de empréstimo intragrupo.
f) Já em 2008, sociedades não residentes constituintes do Grupo C… financiaram-se junto do J… para satisfação de necessidades de várias participadas, incluindo da I… . Em consequência, tal financiamento possibilitou à I… liquidar à F… a quase totalidade dos montantes em dívida, tendo, ainda, permitido injetar liquidez na B…, através de prestações acessórias.
g) Em julho de 2008 a B… adquiriu à Família D…, pelo valor global de € 5.600.000,00, 15% das participações sociais na G… e 15% das participações sociais na H…, passando, assim, a deter a totalidade das participações sociais das duas sociedades.
h) Por outro lado, em setembro de 2008, sociedades não residentes constituintes do Grupo C… efetuaram um refinanciamento junto de um consórcio liderado pelo K… incluindo os montantes de que beneficiou a I… .
i) No final de 2008, o braço português do Grupo C… sofreu nova reestruturação tendo em vista o reforço da sua competitividade, procurando, para tal, concentrar estruturas e racionalizar gastos, melhorar a definição de políticas de desenvolvimento e gestão, maximizar os recursos e concentrar o financiamento das operações numa só entidade. Neste contexto, a gestão do grupo entendeu que a operação em Portugal, então constituída por diversas sociedades do ramo das análises clínicas, devia ser encabeçada pela G… atendendo, nomeadamente, ao prestígio e reputação de que esta gozava no mercado português.
j) Tal operação visava preparar o braço português do Grupo C… para os novos desafios do mercado de análises clínicas, onde se revelou de capital importância a necessidade de redução de estruturas e redefinição dos centros de decisão. Assim, por contrato assinado em 5 de dezembro de 2008, a B… vendeu à F… 100% das participações sociais detidas na G… .
k) Posteriormente, o capital social da G… foi aumentado para € 200.000,00 através de uma entrada em espécie correspondente à totalidade do capital social da I… . Finalmente, a 29 de dezembro de 2008, a G… fundiu-se com a I… através da incorporação da I… na G…, operação que foi efetuada ao abrigo do regime de neutralidade fiscal previsto no Código do IRC.
l) Os encargos financeiros que até à data da produção de efeitos jurídicos da fusão eram suportados na esfera da I…, passaram, por efeito da operação de fusão, a ser suportados pela G… .
m) A B… foi alvo de uma inspeção tributária parcial, credenciada pela Ordem de Serviço OI2012…, dirigida à análise do IRC relativo aos exercícios de 2009 e 2010 e, posteriormente, alargada ao exercício de 2011, motivada pela “necessidade de avaliar a não contabilização de juros relativamente a créditos detidos sobre a entidade relacionada não residente à luz do regime dos preços de transferência, consagrado no artigo 63.º do Código do IRC”.
n) A ação inspetiva decorreu entre os dias 13 de setembro de 2012 e 12 de setembro de 2013, tendo sido ampliado o prazo do procedimento inspetivo por dois períodos adicionais de três meses, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 36.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária (“RCPIT”), conforme despachos de 11 de fevereiro de 2012 e 20 de maio de 2013.
o) A B… integra o Grupo C… que, para o que releva no presente caso, apresentava a seguinte estrutura, a 5 de dezembro de 2008:
p) A B…, enquanto Sociedade Gestora de Participações Sociais (“SGPS”), era titular da totalidade das participações sociais da G… .
q) A 5 de dezembro de 2008, a B… celebrou um contrato de compra e venda com a Sociedade F… BV, residente na Holanda (“F…”), através do qual vendeu a totalidade das participações sociais detidas na G… pelo valor de € 29.862.000,00.
r) De acordo com os termos estabelecidos no contrato, o pagamento do preço deveria ser efetuado nos seguintes termos:
(i) € 20.500.000,00 seriam pagos até ao final de 2009 e
(ii) € 9.362.000,00 seriam pagos até ao final de 2010.
s) A DFP não contestou o preço de venda da totalidade das participações sociais na G… pelo preço de € 29.862.000,00 estabelecidas no contrato. A DFP considerou, no entanto, que o “diferimento” do pagamento acordado no contrato configurava um financiamento gratuito suscetível de ser corrigido à luz das regras de preços de transferência, constantes do artigo 63.º do Código do IRC, da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro (“Portaria”) e do artigo 9.º das Convenções para Evitar a Dupla Tributação celebradas entre Portugal e a Holanda e entre Portugal e a Suíça (“CDT”).
t) A DFP procedeu à aplicação do método do preço comparável de mercado tendo identificado como operação comparável contratos de financiamento celebrados entre entidades do Grupo e um sindicato bancário composto por diversos bancos internacionais.
u) A referida operação comparável apresentava uma taxa de juro indexada à taxa Euribor a 3 meses até abril de 2010 e, posteriormente, à taxa Euribor a 1 mês e um spread médio ponderado no valor de 2,977%.
v) Por aplicação das condições de financiamento de entidades do Grupo junto de um sindicato de bancos internacionais à operação de compra e venda em crise, a DFP procedeu, ao abrigo do artigo 63.º do Código do IRC, à correção da matéria coletável da B…, relativa ao exercício de 2011, no valor de € 1.256.166,60.
2) FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
A convicção do tribunal assentou no exame dos documentos juntos ao processo e nas afirmações de parte não contrariadas pela contraparte.
3) FACTOS NÃO PROVADOS
De entre os alegados, relevantes para a decisão, nenhum ficou por provar.
IV – POSIÇÃO DAS PARTES
O processo em apreciação refere-se a duas operações que aqui se designarão por "Ajuste ao lucro tributável da G… " e "Correções à matéria coletável da B…"
A) DO AJUSTE AO LUCRO TRIBUTÁVEL DA G…
IV - 1. 1. Posição da Requerente
O Relatório de inspeção (RIT) da G… procedeu à correção do lucro tributável da G…, nomeadamente, no exercício de 2011 em análise, tendo tal correção resultado da desconsideração da dedutibilidade fiscal de juros relativos a um financiamento incorrido pela sociedade I…, S.A. (“I…”), entretanto absorvida, por fusão, na G… para a aquisição de um conjunto de participações sociais de entre as quais as participações sociais da sociedade B…, SGPS, S.A. (“B…”).
A principal questão jurídica que se suscita na presente ação é saber se a dedutibilidade de encargos de um dado financiamento contraído no passado deverá ser aferida:
(i). por referência ao momento em que o agente económico contraiu o financiamento (posição defendida pela Requerente); ou
(ii). por referência ao momento em que os encargos financeiros são deduzidos, tendo nomeadamente em consideração alterações na estrutura societária do grupo, posteriores ao momento do financiamento.
Existem já duas decisões arbitrais transitadas em julgado que se pronunciaram sobre a mesma questão jurídica, no contexto do mesmo financiamento aqui em causa, tendo somente como diferença o exercício em análise.
Dessas decisões arbitrais resulta claro que o momento relevante a considerar para aferir da suscetibilidade de dedução de encargos financeiros é o momento em que o agente económico agiu (i.e., no momento em que foi celebrado o contrato de financiamento), não podendo a ocorrência de uma fusão posterior à obtenção do financiamento pôr em causa este entendimento.
Refere a requerente a Decisão Arbitral n.º 101/2013-T2, do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”): teve como objeto a liquidação oficiosa de IRC relativa ao mesmo contrato de financiamento, só que relativa ao exercício de 2008 da Requerente Neste caso, considerou o Tribunal Arbitral que a dedutibilidade fiscal de encargos relativos a um dado financiamento dependerá de averiguar se, à data em que o financiamento foi contraído, era potencialmente adequado a proporcionar proveitos ou ganhos, independentemente do êxito ou inêxito que em concreto proporcionou: «a perspetiva adequada para apreciar a indispensabilidade das despesas para a obtenção dos proveitos é do agente económico no momento em que agiu, quando apenas há a possibilidade de as opções empresariais a tomar virem a produzir proveitos e não a da fiscalização tributária, agindo na presença dos resultados obtidos, apreciando a relevância que as despesas tiveram efectivamente para eles serem atingidos» (realçado nosso).
Adicionalmente, salienta a requerente a Decisão Arbitral n.º 281/2015-T,3 do CAAD: teve como objeto a liquidação oficiosa de IRC relativa à mesma situação fáctica, só que relativa ao exercício de 2010 da Requerente. Acresce que, a liquidação em crise neste processo arbitral teve origem no mesmo Relatório de Inspeção Tributária que determinou as correções ao lucro tributável da Requerente na presente ação. Decidiu o Tribunal Arbitral que «resulta deste preceito que para que os encargos financeiros sejam considerados como custos, basta que sejam em abstracto idóneos para assegurar a realização de rendimentos ou para assegurar a manutenção da sua fonte produtora. Nada impede por isso que os encargos relativos à aquisição de participações sociais previamente a uma fusão sejam considerados dedutíveis». Aderindo expressamente aos Acórdãos do CAAD n.os 29/2012-T e 101/2013-T o Tribunal decidiu que o momento relevante para aferir da indispensabilidade do gasto é o momento em que o financiamento é contraído, considerando que tanto a natureza jurídica da fusão como o princípio da neutralidade fiscal impedem a correção ao lucro tributável nos termos efetuados.
Entende a Requerente que, à semelhança do decidido nas Decisões arbitrais n.os 101/2013-T e 281/2015-T e da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, relativa à interpretação do artigo 23.º do Código do IRC (cf. Acórdão de 24 de setembro de 2014, processo n.º 0779/12), o momento relevante a atender para efeitos da dedutibilidade de encargos financeiros, é o momento em que o financiamento a eles associados foi contraído, pois só com referência a este se pode aferir da potencialidade geradora de lucro, isto é, do escopo empresarial do financiamento obtido.
A requerente nota, em primeiro lugar, que em nenhum momento é posta em causa a dedutibilidade fiscal dos encargos financeiros suportados pela I…, antes de ter ocorrido a fusão. Por conseguinte, terá de aceitar-se a indispensabilidade fiscal dos encargos em causa, quando ocorridos na esfera da I… .
Não tendo sido alterada a alocação do financiamento — o que é aceite pela Requerida (independentemente da discussão de saber se está alocado à aquisição de participações sociais na G… ou na B…, SGPS) — o momento a ter por referência para aferir da suscetibilidade de dedução dos encargos financeiros associado ao referido financiamento, é o momento em que tal financiamento ocorreu.
Assim, tendo o ato que gera o custo um escopo empresarial (i.e., tendo o financiamento potencialidade para gerar um proveito), também os gastos financeiros a ele associados o terão, o que implica a admissão fiscal da sua dedução.
A requerente salienta a posição de Rui Morais e Gustavo Lopes Courinha no Parecer Jurídico que anexou e em que se escreve:
«Com efeito, só no momento em que um determinado gasto é juridicamente assumido é que passa a ser exigível ao sujeito passivo; e é nesse momento, e só nesse momento, que o juízo sobre a sua indispensabilidade pode ser aferido: foi então que o órgão de administração, com maior ou menor acerto, deliberou vincular a sociedade à assunção da obrigação jurídica".
Se, no momento em que o financiamento ocorreu, os gastos financeiros a ele associados eram fiscalmente dedutíveis, tais encargos financeiros deverão ser igualmente dedutíveis na esfera da sociedade resultante da fusão (a G…), especialmente num contexto em que tal fusão ocorreu ao abrigo do regime de neutralidade fiscal.
Assim, constituindo a fusão uma forma de transformação societária (teoria do ato modificativo) em que se verifica a continuidade da sociedade fundida na sociedade resultante da fusão, não seria compreensível que, no momento prévio à fusão, um determinado gasto fosse fiscalmente dedutível e que, por efeito dessa mesma fusão, tal gasto passasse a ser fiscalmente desconsiderado.
Do ponto de vista jurídico a fusão implica a continuidade da I… na G… . É, pois, de todo incongruente, para a requerente, com a natureza da fusão que se diga que um gasto fiscalmente dedutível na sociedade fundida, deixa de o ser na sociedade resultante da fusão (neste caso, na G…).
Tal consideração sai tanto mais reforçada quanto está em causa uma operação de fusão ao abrigo do regime de neutralidade, pois, se tal neutralidade não é contestada, uma vez que existiram razões comerciais válidas para a realização da operação de fusão em causa, não é possível onerar fiscalmente tal operação em violação dos objetivos de continuidade e diferimento, daquele mesmo regime de neutralidade.
Refere, ainda, a requente que o atual artigo 75.º-A, n.º 2 do Código do IRC vem estabelecer expressamente (no que se deve entender ser uma norma interpretativa) que «os gastos de financiamento líquidos das sociedades fundidas por estas não deduzidos […] podem ser considerados na determinação do lucro tributável da sociedade beneficiária numa operação de fusão a que seja aplicado o regime especial previsto no artigo 74.º»
Quer dizer, é o próprio legislador que assume que o regime de neutralidade fiscal da fusão não é compatível com a consequência de, após a fusão, juros anteriormente dedutíveis deixarem de o ser.
Não existem fundamentos jurídicos que sustentem que a indispensabilidade de um gasto, à luz do artigo 23.º do Código do IRC, possa considerar factualidade superveniente ao momento em que o gasto se verificou. Na verdade, a factualidade superveniente é o critério de determinação relevante para a aplicação do artigo 38.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária que, in casu, não se verificou, nem se poderia ter verificado.
Com efeito, escudando-se na suposta utilização do método tracing approach — que na sua aceção própria não conduz ao resultando pretendido pela Requerida — a DFP mimetiza em pleno âmbito de aplicação do artigo 23.º do Código do IRC, o método vocacionado para combater práticas elisivas constante do artigo 38.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária, o que não pode suceder.
IV- 1.2. POSIÇÃO DA AT
A AT faz notar que a aquisição, em 21 de Julho de 2008, pela B… SGPS, participada da I… S.A., de 15% de capital social da 1ª Requerente e de 15% do capital social da H…(que ainda estavam na posse dos acionistas ‘Família D…’) pelos valores de € 5.546.000,00 e € 54.000,00, respetivamente, no valor total de €5.600.00,00, operação que foi financiada, inicialmente, pela F… BV.
Em resultado da fusão ocorrida em 2008, a 1ª Requerente contabilizou, no exercício de 2011, um gasto relativo aos juros dos referidos empréstimos no valor de €2.543.972,76, o que teve um peso significativo no que respeita aos rendimentos registados no exercício de 2011.
Para a AT restam dúvidas de que o gasto contabilizado, no exercício de 2011 no montante de €2.543.972,76, constituiu um encargo referente aos empréstimos contraídos inicialmente pela I… S.A. e que, por via da fusão da 1ª Requerente com aquela sociedade, passou a ser da responsabilidade da 1ª Requerente.
Assim, se concluiu que os gastos contabilizados pela 1ª Requerente com os empréstimos contraídos para a aquisição das participações sociais e que, por via da fusão, ficaram à sua responsabilidade, relativos a juros, ascenderam, no exercício de 2011, a €2.543.972,76. Em suma, a 1ª Requerente encontra-se a suportar, desde 1 de Janeiro de 2008, encargos financeiros relativos a um empréstimo bancário obtido pela I…, S.A. destinado:
a) À aquisição da totalidade do capital social da sociedade B… SGPS, S.A., a qual por sua vez, detinha 85% do capital social da 1ª Requerente e 85% do capital social da H…, S.A.
b) A efetuar prestações acessórias na B… SGPS, as quais foram utilizadas por esta para adquirir os remanescentes 15% do capital da 1ª Requerente e 15% do capital da H…, S.A.
Do exposto resulta, que a 1ª Requerente se encontra a suportar encargos financeiros relativos a um empréstimo que «in fine» se destinou a financiar a sua própria aquisição, já que a obtenção daquele empréstimo teve como objetivo principal permitir a aquisição da 1ª Requerente, ainda que através da B… SGPS.
Mais refere a AT que o objeto social da 1ª Requerente corresponde à prestação de serviços de análises clínicas, não tendo como atividade a gestão de participações sociais, pelo que, os gastos/rendimentos não estão mutuamente relacionados com a atividade da 1ª Requerente. Não se identificando, também, qualquer rendimento que lhe possa advir diretamente por via dos gastos supra referidos.
Os gastos relativos à aquisição da 1ª Requerente, ainda que efetuada através da B… SGPS, não poderão ser considerados dedutíveis fiscalmente, por manifestamente não serem imprescindíveis à obtenção dos seus proveitos ou para a manutenção da fonte produtora.
Saliente-se que, a determinação do lucro correspondente à atividade da 1ª Requerente foi afetada pelos encargos decorrentes dos empréstimos contraídos pela I…, S.A. para efetuar a aquisição da própria 1ª Requerente.
Pelas razões ante elencadas, o montante de €1.444.938,68, relativo aos encargos financeiros imputáveis à aquisição do capital social da própria 1ª Requerente, não são aceites fiscalmente nos termos do artigo 23º do CIRC. Pelo que, aquele montante deve ser acrescido para efeitos de determinação do lucro tributável do exercício de 2011.
Acresce que, no âmbito do processo nº 87/2014-T1, que correu termos no Centro de Arbitragem Administrativa, foi proferida decisão arbitral, referente à mesma matéria e à mesma Requerente, mas respeitante ao exercício de 2009 (após a data da fusão), que julgou o pedido de pronúncia arbitral improcedente.
Refere a douta decisão arbitral que «Note-se, então, que, em síntese muitas vezes reiterada, o Supremo Tribunal Administrativo declarou quanto ao sentido e funcionamento do requisito da indispensabilidade dos custos para efeitos fiscais que: “o requisito de indispensabilidade de um custo tem de ser interpretado como um conceito indeterminado de necessário preenchimento casuístico, em resultado de uma análise de perspectiva económica empresarial, na percepção de uma relação de causalidade económica entre a assunção de um custo e a sua realização no interesse da empresa, atento o objecto societário do ente comercial em causa.” (cfr. por exemplo, os acórdãos do STA de 15.6.2011, proc. nº 049/11. Nº III e de 29.3.2006, proc. nº 01236/05. Nº 3,4; vd. ainda recentemente o acórdão do TCA Sul de 16.10.2014).
Pois bem, em atenção ao objeto destes autos, importa sublinhar a necessidade, para o juízo de indispensabilidade dos custos, de a “percepção de uma relação de causalidade económica entre a assunção de um custo e a sua realização no interesse da empresa” se ter de concretizar em relação ao “ente comercial em causa”. Com efeito, na relação de causalidade económica do custo com o interesse da empresa, o interesse empresarial que se afere é o da própria empresa que deduz fiscalmente o custo.
Tendo o Tribunal Arbitral concluído que: «17- Significa isto que os encargos financeiros suportados no exercício de 2009 imputáveis à aquisição do capital do Laboratório A… não encontram nexo de causalidade económica com o interesse e a actividade da própria Requerente, não tendo potencialidade para geração de lucros na esfera jurídica desta.»
A dedutibilidade fiscal dos juros suportados depende de um juízo quanto à sua indispensabilidade para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, explicitando a alínea c) do nº 1 do artigo 31º do CIRC que esses juros de capitais alheios são “aplicados na exploração”.
A dedutibilidade fiscal do gasto deve depender apenas de uma relação justificada com a atividade produtiva da empresa, verificando-se a indispensabilidade do custo na obtenção dos proveitos quando, por funcionamento da teoria da especialidade das pessoas coletivas, as operações societárias se inserem na sua capacidade por subsunção ao respetivo escopo societário, desde que conectadas com a obtenção de lucro, através da atividade exercida.
A relevância fiscal de um custo depende, assim, da prova da sua necessidade, adequação, normalidade ou da produção do resultado sendo que a falta destas características poderá gerar dúvidas sobre se a causa é ou não empresarial. O gasto/custo é uma despesa com um fim empresarial o que não quer dizer que tenha desde logo um fim imediato e diretamente lucrativo, mas que tem, na sua origem e na sua causa, um fim empresarial, concedendo a lei à AT poderes bastantes para recusar a aceitação como custo fiscal de despesas que se não possam considerar compatíveis com as finalidades a prosseguir pela empresa.
O Acórdão Arbitral de 4 de Janeiro de 2013, processo n.º 14/2011-T, refere, também, que: «Noutra vertente, encontra-se igualmente devidamente explicitado que é pressuposto na aplicação do art. 23.º do CIRC “a consideração individualizada de cada empresa ou instituição pelo que não podem interferir aqui raciocínios daqueles em que se faz apelo a critérios de gestão do “grupo” ou mesmo dos financiamentos – ainda que gratuitos – dos seus sócios ou mesmo a vontade destes que nessa matéria é irrelevante, visto que se trata de um critério legal, sendo unicamente relevante a pessoa coletiva cujos custos estão em apreciação”.
E, ainda, que: «Temos, pois, que os custos incorridos com o empréstimo em apreciação não são aplicados na exploração da própria Requerente, na sua atividade empresarial, nem servem à manutenção da fonte produtora de rendimentos. Tais custos, embora inscritos na contabilidade da Requerente, não beneficiam a sua atividade nem o respetivo interesse empresarial...».
Salienta a AT uma diferença de posições no que se refere à análise da indispensabilidade do custo: se no Acórdão Arbitral referente ao Processo n.º 101/2013-T se efetua a análise da indispensabilidade dos encargos financeiros à luz do objeto societário e interesses da sociedade que contraiu o empréstimo (no caso em concreto a sociedade incorporada),
No Acórdão Arbitral referente ao Processo n.º 14/2011-T defende-se que, através de uma metodologia de apuramento e rastreamento do uso e destino do financiamento, a referida análise deverá ser efetuada na esfera da sociedade que passou a suportar efetivamente esses custos (i.e. a sociedade incorporante).
De facto, a referida diferença jurisprudencial está bem patente no presente processo, uma vez que os Serviços de Inspeção Tributária efetuaram a análise da dedutibilidade fiscal dos encargos na esfera da sociedade incorporante, em conformidade com a metodologia indicada no Processo n.º 14/2011-T,
Tendo concluído que, na medida em que os encargos financeiros não são indispensáveis à atividade da 1ª Requerente, os referidos gastos não serão dedutíveis fiscalmente. A indispensabilidade exigida pelo artigo 23º do CIRC não foi demonstrada.
A determinação da indispensabilidade dos encargos financeiros relativos a financiamentos contraídos, condição essencial para aferir da dedutibilidade fiscal dos mesmos, tem, necessariamente, de ter por base a análise da finalidade e do destino desses financiamentos.
A finalidade subjacente à obtenção do empréstimo aqui em causa tem de ser entendida relativizando a mera aplicação direta dos financiamentos e o complexo de operações que se seguiram, nomeadamente a operação de fusão entre a 1ª Requerente e a I… S.A., face ao resultado final decorrente dessas operações.
No que respeita ao regime da neutralidade fiscal aplicável às fusões, o n.º 1, do artigo 68º do CIRC estipula que «Na determinação do lucro tributável das sociedades fundidas (…) não é considerado qualquer resultado derivado da transferência dos elementos patrimoniais em consequência da fusão. Sucede que, o regime de neutralidade apenas se dirige à eliminação de qualquer resultado obtido em consequência dessa transferência e nunca à definição dos custos e proveitos com aceitação fiscal.
O regime da neutralidade fiscal no âmbito das fusões não abrange a temática dos custos/gastos que sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos, nos termos previstos no artigo 23º do CIRC. Aquele regime não contém qualquer norma que, em virtude de uma qualquer fusão, elimine a necessidade de apurar o carácter de indispensabilidade dos custos na esfera da sociedade beneficiária. Não tendo aqui qualquer aplicação a “teoria do acto modificativo”, invocado pela 1ª Requerente, nos termos em que o faz.
B) DAS CORREÇÕES À MATÉRIA COLETÁVEL DA B…
IV- 2. Posição das partes
2.1 Posição da requerente
Sucede que, a questão jurídica em análise, foi já decidida por duas vezes, junto de tribunais arbitrais a funcionar junto do CAAD:
Decisão Arbitral n.º 101/2014-T10, do CAAD: teve como objeto a liquidação oficiosa de IRC relativa à mesma situação fáctica, só que relativa ao exercício de 2009 da B… . Foi claro o juízo do Tribunal Arbitral ao considerar que a DFP não podia proceder à modificação da forma jurídica das operações através das normas relativas aos preços de transferência (maxime o artigo 63.º do Código do IRC), o que determinou a anulação da liquidação emitida:
«É certo que, no domínio do contrato de compra e venda, há uma série de operações e inerentes obrigações, sendo possível identificar concretamente os diferimentos relativos ao pagamento do preço. Contudo estes são parte integrante de um contrato que, como é reconhecido pelas partes, é um só e comporta todas as dimensões […] não é possível, por conseguinte, fragmentar o contrato de compra e venda para fazer uma aplicação dos preços de transferência a um dos elementos que o compõem […] assim, não obstante haver cláusulas do contrato e aditamentos ao mesmo que se traduzem num diferimento do pagamento e têm, consequentemente, os efeitos de um contrato de mútuo, essas cláusulas estão integradas no contrato entendido no seu todo, não podendo ser abstraídas do mesmo para ganhar vida autónoma […] não tendo sido iniciado o único procedimento que permitiria uma requalificação da operação financeira praticada em termos fiscais, o que só seria possível com o enquadramento no art. 63.º do CPPT e art. 38.º, n.º 2, da LGT..."
No presente caso, o que está essencialmente em causa é a venda de participações sociais da G…, detidas pela B…, à F… . De facto, as partes no contrato estabeleceram um preço e as condições de pagamento e entrega das referidas participações sociais.
Ficou determinado o pagamento fracionado do preço do seguinte modo:
(i) € 20.500.000,00 seriam pagos até ao final de 2009 e
(ii) € 9.362.000,00 seriam pagos até ao final de 2010.
Assim, no dia em que o contrato foi celebrado - 5 de dezembro de 2008 -, as participações sociais da G… passaram a pertencer à F… que, por sua vez, passou a ser devedora da B… no montante global de € 29.862.000,00, a pagar nas condições referidas.
Não existiu, pois, e como resulta evidente, qualquer operação de financiamento e, muito menos, um mútuo: a B… e a F… celebraram um contrato de compra e venda com condições de pagamento determinadas. Por conseguinte, a aplicação das regras de preços de transferência no presente caso só poderia ter por referência o preço e condições praticados.
Se, face às condições de pagamento acordadas, a DFP considerava que o preço fixado pelas partes não refletia um preço de plena concorrência, cabia-lhe corrigir esse preço, caso se preenchessem os requisitos legais (que, conforme se demonstrará não se encontram reunidos).
O que a Lei não admite é que a DFP utilize o regime português de preços de transferência, estabelecido no artigo 63.º do Código do IRC, sem mais, para proceder à alteração da forma jurídica de uma dada operação e consequentemente, corrigir o valor da operação que ficcionou.
Assim, a DFP podia, segundo a requerente, considerar duas alternativas:
i. Aceitava que estava em causa uma compra e venda e contestava o preço de transação, atendendo às condições de pagamento, utilizando, para o efeito, as regras relativas aos preços de transferência;
ii. Considerava que estava em causa um abuso das formas jurídicas, utilizando, para o efeito a norma geral antiabuso prevista no artigo 38.º, n.º 2 da LGT e subsequentemente, as regras relativas aos preços de transferência para determinar o valor de mercado a que teria ocorrido o mútuo então ficcionado.
A DFP confunde, na ótica da requerente, o ajuste dos termos e condições de uma determinada operação (com impacto direto no preço de venda) com o “ajuste” da operação em si. Sintomática desta confusão é a afirmação de que “os diferimentos” do pagamento do preço “são injustificáveis ao abrigo do PPC, consubstanciando financiamentos gratuitos das sociedades relacionadas F… BV e, posteriormente, E… SA. Assim, à luz do Regime dos Preços de Transferência, deverão ser determinados os ajustamentos a efectuar, nomeadamente pela consideração de um juro como contrapartida do financiamento obtido”.
Porém, a operação, tal como concebida e estruturada pela B… e a F… é uma operação de compra e venda de participações sociais, não existindo um financiamento. Nunca a DFP poderia ter utilizado as regras de preços de transferência para ficcionar a existência de um financiamento e, subsequentemente, proceder à determinação da remuneração associada.
Pelo contrário, o elemento literal da norma, com especial destaque para o n.º 3 do artigo 63.º do Código do IRC, ao fixar os métodos suscetíveis de serem utilizados para determinação dos termos e condições das operações em causa, impõe claramente que os ajustamentos tenham caráter unicamente quantitativo:
Veja-se, a este propósito, refere a requerente, para além das decisões arbitrais já referidas, que tem por base o RIT B…, a decisão arbitral proferida pelo CAAD, no Processo n.º 76/2012-T, que sustenta:
“Na aplicação da norma sobre preços de transferência, a Administração Tributária tem de atender à operação realmente praticada, à «forma jurídica» utilizada pelo contribuinte na sua operação comercial ou financeira, podendo alterar, para efeitos fiscais, os seus termos ou condições quando os considere diferentes dos que seriam contratados aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis. São essas operações efectivamente realizadas que se ficciona, para efeitos fiscais, terem-no sido noutros termos ou condições. Diferentes destas situações e fora do regime dos preços de transferência ficam as situações em que a Administração Tributária conclui que, em vez das operações comerciais ou financeiras realmente efectuadas, pessoas independentes realizariam outras operações, de tipos diferentes, com outras «formas jurídicas». Nestes casos, os requisitos para deixar de considerar eficazes, para efeitos fiscais, as operações efectivamente realizadas não são os previstos no art. 58.º do CIRC, mas sim os previstos no art. 38.º, n.º 2 da LGT e no art. 63.º do CPPT”.
Para que a DFP pudesse proceder a correções à matéria tributável e consequente liquidação adicional, ao abrigo das normas relativas aos preços de transferência, seria necessário que verificasse e provasse os seguintes pressupostos:
(i). Existência de relações especiais;
(ii). As entidades relacionadas tivessem estabelecido condições diferentes das que normalmente seriam acordadas entre pessoas independentes;
(iii). As diferentes condições tivessem conduzido ao apuramento de um lucro diferente do que se apuraria na sua ausência;
(iv). As relações especiais fossem causa adequada para as “diferentes condições”
acordadas.
Porém, no presente caso, apenas o requisito mencionado em (i) foi preenchido.
Para além do já referido em matéria de alteração da forma jurídica, a operação vinculada e a operação comparada apresentam uma natureza distinta, pois, enquanto na operação vinculada se parte de um pagamento fracionado do preço para concluir pela existência de um financiamento, no caso da operação comparável, o financiamento ocorre através de um contrato de mútuo.
Em terceiro lugar, a maturidade dos financiamentos é totalmente distinta. No caso das operações comparáveis, estão em causa maturidades de 7, 8 e 9 anos enquanto que, na operação vinculada ficcionada pela DFP, no limite, se poderia admitir uma maturidade de 2 anos.
Em quarto lugar, o risco a considerar é distinto na operação vinculada e nas operações comparáveis. Efetivamente, a venda de participações sociais tem um risco muito inferior aos contratos de mútuo das operações comparáveis, não só pela diferente natureza das operações mas, também, pelo conhecimento que cada entidade detém das respetivas contrapartes.
2.2. Posição da AT
Atendendo a que a operação de compra e venda foi realizada entre entidades relacionadas, subsiste a questão de aferir se as condições definidas nesta operação vinculada respeitam o Princípio de Plena Concorrência.
Do Relatório de Inspeção, consta a descrição da justificação apresentada pela 2ª Requerente da conformidade dos termos e condições praticados na operação vinculada com o Princípio de Plena Concorrência, que se dá por integralmente reproduzida.
Daquela justificação retira-se, em síntese, que a 2ª Requerente optou pela aplicação de “Outro Método” à operação em análise, tendo concluído que o diferimento do pagamento do preço, bem como a não exigência de juros cumpre o Princípio de Plena Concorrência, pela “expectativa que o valor de avaliação positiva poderia sofrer uma diminuição decorrente de uma estimativa de decréscimo do volume de negócios da empresa alvo de análise, na sequência das expectativas de agravamento da conjuntura macroeconómica no final de 2008.”
Os Serviços de Inspeção Tributária apreciaram devidamente o método utilizado pela 2ª Requerente, bem como o preço de venda e o diferimento do seu pagamento, conforme descrito no Relatório de Inspeção.
Já quanto ao diferimento do pagamento do preço (quer o estipulado inicialmente, quer o concedido posteriormente), tornou-se necessário verificar se as condições praticadas na operação vinculada assumem carácter de normalidade confrontando com os termos e condições praticados noutras aquisições efetuadas pela Requerente ou por outras empresas do grupo:
Na aquisição de participações sociais efetuada, em finais de 2007, pela I… SA à F… BV (entidades pertencentes ao mesmo grupo e relacionadas entre si), pelo montante de €52.409.640,00, não foi pago o preço na data do contrato, ficando o valor em dívida a vencer juros a uma taxa equivalente à LIBOR a 3 meses, acrescida de um spread de 2%.
Ora, nem no contrato inicial, nem na referida adenda se encontra prevista qualquer compensação para a 2ª Requerente como contrapartida pelo não recebimento do preço nas datas acordadas, nem qualquer penalização para a eventualidade de incumprimento contratual.
Face ao exposto, não restam dúvidas, para AT, que os diferimentos do pagamento do preço (o inicial e o concedido posteriormente) e a não exigência de pagamento dos respetivos juros são injustificáveis ao abrigo do Princípio da Plena Concorrência, consubstanciando financiamentos gratuitos das sociedades relacionadas F… BV e, posteriormente, a E… SA.
Resulta demonstrado, para a AT, que a F… BV ou a E… SA, não conseguiriam obter as condições contratuais supra indicadas se realizassem aquela compra e venda com uma entidade independente,
Ao passo que a 2ª Requerente obteria, em condições normais, um juro de modo a fazer-se remunerar pelos termos e condições que aceitou contratar. Facilmente se conclui que a 2ª Requerente não assumiria este encargo se esta operação tivesse sido realizada, em condições normais de mercado, com uma entidade independente.
Não restam dúvidas que a operação vinculada integra uma forma de financiamento gratuito efetuado por uma sociedade residente a uma sua relacionada não residente,
Pois, para além de não aceitar receber o preço na data do contrato, tendo, contudo, entregue os títulos representativos do capital social do A…, aceitou não cobrar o pagamento de qualquer tipo de juro ou penalidade para o incumprimento das datas estabelecidas para o pagamento,
Ao contrário da argumentação utilizada pela 2ª Requerente, os riscos e funções assumidos pelas partes num contrato de mútuo/refinanciamento ou no contrato em causa acabam por ser semelhantes. Quer numa situação quer noutra, uma das partes assume a obrigação de remunerar o diferimento do pagamento do preço.
Em termos contratuais existe uma similitude entre os fins.
Não obstante esta matéria estar devidamente fundamentada de facto e de direito no Relatório Inspetivo, é de referir que, ao contrário do que a 2ª Requerente alega ao longo da, aliás, douta, P.I., os Serviços de Inspeção Tributária nunca alteraram a qualificação jurídica do contrato de compra e venda de participações sociais que está em apreciação.
Os Serviços de Inspeção tiveram por referência a operação vinculada tal como concebida pela 2ª Requerente, ou seja, como um contrato de compra e venda de participações sociais. Nunca os Serviços de Inspeção alteraram a forma jurídica do contrato em causa.
É exatamente porque se atende a essa forma jurídica, ao contrato de compra e venda de participações sociais, que a AT considera que perante a celebração de tal tipo de contrato entre entidades independentes, seriam sempre celebradas condições e termos distintos dos contratados.
A decisão arbitral proferida no processo nº 101/2014-T fez uma errada apreciação da matéria de facto neste ponto, pois, considerou que a Requerida havia alterado a forma jurídica do contrato em causa.
Nem tão pouco a aplicação do princípio de plena concorrência visa recaracterizar operações realizadas, nem uma qualificação das mesmas enquanto abusivas, mas saliente-se, e atendendo às premissas basilares da substância sob a forma, o instrumento jurídico não poderá impedir que o lucro tributável do sujeito passivo seja objeto de um ajustamento fiscal quando tal resulte da aplicação do princípio de plena concorrência no apuramento dos lucros tributáveis do sujeito passivo.
Daí que apenas se proceda à extração das consequências fiscais tendo por base o resultado que seria alcançado se as partes tivessem adotado um comportamento de acordo com as condições normais de mercado, ou seja, se tivessem tido um “arm´s length behaviour“.
V - ANÁLISE
3.1. Relativamente ao ajuste ao lucro tributável da G…
Não é necessário entrar em largas considerações para concluir que, presentemente, depois de amplamente dilucidado pela doutrina e pela jurisprudência, o conceito de “gastos indispensáveis” - constante do artigo 23º do CIRC na redação em vigor à data dos factos - vem sendo interpretado como significando que os gastos terão de evidenciar uma relação com a atividade ou interesse da entidade que os suporta.
Assim, no caso vertente, a questão central reconduz-se a inquirir se o endividamento e, mais concretamente, os gastos financeiros dele derivados, suportados pela requerente após a operação de fusão devem ser indedutíveis por não evidenciarem uma relação com a atividade desta, ou se, mostrando essa relação, serão dedutíveis.
Ora este tribunal entende que, relativamente ao caso concreto, não assiste razão à AT, por várias ordens de razões. Vejamos.
Em primeiro lugar, o financiamento alocado à requerente por virtude da fusão terá como reflexo necessário a existência de ativos que, no balanço pós fusão, estão suportados por tal financiamento. Não já, como é óbvio, os ativos originariamente financiados (a participação financeira da I… na requerente) mas outros ativos, que podem ser financeiros, tangíveis, crédito sobre terceiros, disponibilidades monetárias, etc., que a fusão faz afluir ao património da incorporante, aqui requerente.
Com efeito, ao contrato da fusão corresponde uma realidade patrimonial em que a incorporante (requerente) absorve direitos (ativos) e obrigações (passivos) da incorporada. Ora da conhecida relação Ativo = Capital Próprio + Passivo, deduz-se que na incorporante confluem passivos (entre os quais a dívida de que resultam os juros em causa no Processo) e também os ativos provindos da entidade incorporada.
O quadro II constante do “Projeto de fusão”, que a seguir se reproduz, mostra a requerente (G…) como “cabeça” de um conjunto patrimonial, operacional e financeiro que, necessariamente, teria de ser sustentado por dívida e capital próprio; isto é, por fontes de financiamento que incluiriam também as que advieram da fusão.
Quer isto dizer que o empréstimo originalmente obtido para um fim - e que, nesse lapso de tempo, gerou na I… juros dedutíveis - passa para a esfera da requerente como uma (entre muitas) fontes de financiamento que sustenta os ativos que a requerente passa a deter no período pós fusão.
E aqui, assim se julga, se encontra razão essencial para se considerar que o empréstimo tem uma relação, após a fusão, com a atividade da requerente, porque passa a financiar, não numa lógia de ativo específico, mas sim num sentido de financiamento global, o ativo da nova entidade.
Entendendo-se a atividade de uma entidade como consistindo no uso que a respetiva administração efetua dos seus ativos, tendo em vista o desenvolvimento do respetivo fim económico, que pode ou não revelar-se lucrativo, então as fontes de financiamento que suportam tais ativos estão afetas à sua atividade.
Ou seja, dizendo de outro modo, o facto de o financiamento e os juros em crise terem, no passado, uma afetação ao financiamento da aquisição da requerente, não impede que, com a fusão, tal financiamento passe a desempenhar, conjuntamente com outros meios financeiros, uma função geral de suportar, financiar ou constituir origem de fundos que sustente o ativo global da entidade pós fusão.
Sem entrar neste ponto na questão de saber qual deve ser o momento relevante para aferir a dedutibilidade dos encargos financeiros, o certo é que no ano de 2011 o financiamento originalmente obtido para um fim estava a desempenhar novo papel ou a ou evidenciar nova finalidade. Porém, essa nova finalidade - o financiamento geral dos ativos da nova entidade resultante da fusão - não é alheio ao interesse desta. E isso bastaria para negar razão à AT.
(O tribunal faz notar que não encontrou, apresentada por qualquer das partes, na documentação anexa ao processo, como seria útil, os balanços pré e pós fusão, que permitiriam uma análise mais detalhada a este ponto. Porém, da simples relação fundamental do balanço, se uma entidade incorporante absorve uma obrigação (passivo), absorverá direitos ou recursos (ativos) que passam a estar, num sentido geral, financiados pelo conjunto de meios próprios e alheios que o novo balanço evidenciará).
Em conclusão, e neste primeiro ponto pelo qual o tribunal entende que à AT não assiste razão, se na esfera da I… a dívida e os juros tinham uma ligação específica a uma certa decisão de gestão, quando essa dívida e esses juros passam para a esfera da nova entidade, passam a ter uma relação geral com o ativo da nova empresa e, por isso, com a atividade desta.
A doutrina e a jurisprudência há muito que se afastaram a interpretação da condição de “indispensabilidade dos gastos” como exigindo um nexo de causalidade obrigatório entre um gasto e os rendimentos dele derivados, ou um nexo micro analítico entre um certo gasto e um determinado rendimento.
A dívida em causa, da qual emergem juros, está afeta ao financiamento de ativos empresariais (e, após a fusão, não pode deixar de o estar na esfera da incorporante que acolheu atividade operacional e financeira das sociedades que nela confluíram). São esses ativos que permitem à nova entidade desenvolver a sua atividade ou prosseguir o seu interesse. Então os gastos passam o teste da indispensabilidade, como se julga que acontece no caso vertente.
Por outro lado, e em segundo lugar, o mecanismo do tracing approach, do qual a AT se socorre, julga-se aqui inapropriado. Por duas razões, sendo uma delas apontada em parecer junto aos autos, da autoria dos Profs. Rui Morais e Gustavo Courinha.
Nas palavras dos autores, a que o tribunal adere: «Aquilo que a AT.... designa por "tracing approach" - mais não é do que a transplantação para o âmbito do artigo 23.º do Código do IRC da metodologia de análise step-by-step, própria do raciocínio antielisivo e das cláusulas abertas anti-abuso, em especial da CGAA; e fá-lo, obviamente, com prejuízo do escopo e âmbito de aplicação destas últimas. São, aliás, evidentes as passagens em que tal sucede no relatório inspetivo, em termos que não deixam dúvidas sobre a assumida metodologia antielisiva adotada.".
Adicionalmente, ainda sobre esta segunda razão, note-se que o tracing approach, aplicado no contexto do artigo 23 do CIRC, pode levar a resultados inconsistentes. Senão vejamos. Suponha-se que, no momento 1, uma certa empresa A adquire uma máquina por um milhão de euro e se endivida em tal montante, não havendo dúvidas da relação micro entre dívida (passivo) e a máquina (ativo). Num momento 2 a empresa vende tal máquina e recebe, admita-se, 900 000 euro, que mantém numa conta de depósitos, sem render juro. Opta por não reembolsar 800 000 euro que, admita-se, ainda deve do empréstimo inicial de 1 milhão.
Nomento 3, A é absorvida por B em processo de fusão, passando então para a esfera de B a dívida, originalmente contraída por A para a aquisição da máquina e os meios líquidos que constavam do ativo de A.
Com o fundamento de que a máquina já não está na esfera da nova entidade e o empréstimo já não financia o ativo originariamente adquirido e que os meios financeiros obtidos não geram rendimento, devem os juros do ainda em dívida (de 800 000 euro) ser indedutíveis? Julga-se que não.
O empréstimo original está agora, como no caso dos autos, a sustentar ou a servir de fonte de fundos, que suporta ativos em B. Agora num sentido geral, e não numa relação micro e específica, como na sociedade A. Esses ativos são os meios com os quais a nova entidade desenvolve a sua atividade. Assim, os juros têm uma relação com tal atividade e serão dedutíveis.
Ou seja, o tracing approach levaria a que se argumentasse, neste exemplo, que a dívida que surge no balanço de B, com a fusão, fora originariamente obtida para adquirir um ativo que já não se encontra na esfera da entidade. Mas, como se viu, a essa dívida correspondem outros ativos (v.g., a liquidez obtida pela venda), que podem ser usados pela nova empresa, na sua atividade. E, nesta medida, os juros devem continuar a ser dedutíveis.
Claro que a situação não é coincidente com a dos autos. Porém, ela ilustra bem que o tracing apporach, usado no âmbito da aplicação do artigo 23 do CIRC, pode conduzir a resultados económica e legalmente não aceitáveis. E tal resulta de não se levar em conta que um passivo, originariamente afeto a um dado ativo, pode, em virtude de operações jurídico-económicas (v.g., fusão, cisão) perfeitamente legais vir a desempenhar um papel de financiamento de outros ativos, em face das mutações patrimoniais que tais operações implicam. Para que tais mutações e seus efeitos (v.g. desconsideração de juros) sejam desconsiderados, não é o artigo 23º do CIRC a norma apropriada.
Um terceiro motivo conduz também a negar razão à AT, encontrando-se bem expresso no parecer a que já aludimos.
Afirmam os autores: ““
Com efeito, o artigo 23º do CIRC não deve funcionar como cláusula antiabusiva. Para mais, no caso das fusões, a AT nem tem de lançar mão da CGAA. O artigo 73º, nº 10, do CIRC estabelecia, ao tempo:
“10 — O regime especial estabelecido não se aplica, total ou parcialmente, quando se conclua que as operações abrangidas pelo mesmo tiveram como principal objectivo ou como um dos principais objectivos a evasão fiscal, o que pode considerar-se verificado, nomeadamente, nos casos em que as sociedades intervenientes não tenham a totalidade dos seus rendimentos sujeitos ao mesmo regime de tributação em IRC ou quando as operações não tenham sido realizadas por razões económicas válidas, tais como a reestruturação ou a racionalização das actividades das sociedades que nelas participam, procedendo-se então, se for caso disso, às correspondentes liquidações adicionais de imposto.
Ora, não pondo a AT em dúvida que a fusão realizada não tinha como propósito essencial a elisão fiscal, não desqualifica a operação. Ao não desqualificar a operação, então os gastos que dela decorrem, como sejam os juros na esfera da requerente, não podem ser desqualificados por se entender que, com a fusão, deixam de ser indispensáveis na esfera da requerente.
Como já se mostrou, mesmo que a AT procure ir diretamente ao gasto (juro) sem passar pelo questionamento da operação (fusão) por via de uma norma anti elusiva, tal procedimento pressupõe que a dívida, agora na esfera da requerente deixa, por causa da fusão, e só por isso, de ter uma motivação empresarial, dado que, antes da fusão, ela nunca foi questionada.
Ora a dívida, na esfera da requerente, está, pela simples lógica da igualdade fundamental do balanço, a financiar ativos desta e relacionada pois com a sua atividade. A não ser que a AT, com base nos balanços pré e pós fusão, provasse que assim não é, o que não se encontra nos autos.
Procede, assim, neste ponto, o pedido arbitral.
3.2. Relativamente às correções à matéria coletável da B…
Aplicação dos preços de transferência aos diferimentos do pagamento do preço
Uma das questões que importa decidir é saber se os diferimentos do pagamento do preço consubstanciam financiamentos gratuitos e, nessa medida, lhes pode ser aplicado o artigo referente aos preços de transferência.
A título de enquadramento, importa dizer que a AT, quer no relatório de inspeção quer na resposta, considera que operação que está em causa é um contrato de compra e venda e que não foi feita qualquer alteração da qualificação jurídica do mesmo (artigo 223.º da resposta). Isso sem prejuízo, todavia, de entender que o contrato de compra e venda levanta duas questões distintas: uma quanto ao preço de venda da totalidade do capital do laboratório A e outra quanto ao diferimento do preço.
Concordam as partes que foi celebrado um contrato de compra e venda composto por vários elementos. Existe discórdia, porém, relativamente à questão de saber se os preços de transferência podem ser aplicados aos diferimentos do pagamento do preço, que no entender da AT consubstanciam financiamentos gratuitos a ser corrigidos.
Entende este tribunal que são inerentes ao contrato de compra e venda uma série de operações, sendo possível, consequentemente, sob o ponto de vista económico, identificar diferimentos relativos ao pagamento do preço que, em termos de substância, podem implicar um financiamento gratuito. Contudo, como é admitido por ambas as partes, esses diferimentos são parte integrante do contrato de compra e venda que é uno. Isto é, a operação que suscitou a aplicação dos preços de transferência foi a compra e venda e não o financiamento como operação independente, como, aliás, ressalta da posição expressa pela AT.
Decorre da letra do artigo 63.º do CIRC que este se aplica a operações no seu todo ainda que, naturalmente se tenha em atenção os termos e condições destas. A correção que decorre da aplicação dos preços de transferência diz, por conseguinte, respeito à operação no seu todo e não unicamente a um dos seus termos ou condições. Neste caso concreto resulta claríssimo que a operação a considerar é a compra e venda e não um eventual financiamento.
Para além do elemento literal do artigo 63.º que se refere inequivocamente a operações, é relevante atender aos Princípios aplicáveis em matéria de preços de transferência destinados às empresas multinacionais e Administrações Fiscais, não obstante a sua natureza de soft law e de ter ser devidamente acolhido pelos vários ordenamentos, ou pelo menos não chocar com as disposições que vigorem em cada um deles. Este instrumento pode ser um recurso interpretativo importante quer pela sua ligação histórica à criação das várias normas relativas aos preços de transferência quer por ser de grande valia no que respeita à delimitação do elemento teleológico dessas disposições.
No ponto 1.64. desse instrumento refere-se que «a verificação pela Administração Fiscal de uma operação vinculada deve basear-se na operação efetivamente ocorrida entre as partes e no modo como foi estruturada por elas. Salvo em casos excecionais, a Administração Fiscal não deve abstrair das operações efetivas, nem substituí-las por outras operações». Nesse mesmo documento, no ponto 1.65, admite-se, porém, que «existem dois casos específicos em que, excecionalmente as autoridades fiscais podem ter justificação para não atenderem à estrutura adotada por um contribuinte para realizar a operação vinculada. O primeiro caso surge sempre que há uma discordância entre a forma da operação e a sua substância económica. As autoridades fiscais poderão ignorar então a qualificação deita pelas partes e requalifica-la em função da respetiva substância […]. O segundo caso ocorre quando, na ausência de divergências entre a forma e a substância da operação, os termos da operação, vistos na sua globalidade[1], são diferentes dos que seriam adotados por empresas independentes, agindo de um modo comercialmente racional, que na prática, a estrutura efetiva impede a Administração Fiscal de determinar um preço de transferência adequado […]. Assim sendo, no caso acima exposto a Administração Fiscal poderá ter justificações, por exemplo, para modificar os termos[2] do acordo numa ótica comercialmente racional, configurando-os como um acordo permanente investigação».
Relativamente à primeira situação verifica-se que, no caso em análise, a AT assume claramente que não fez qualquer opção por uma requalificação, ficando afastada a possibilidade de requalificar a compra e venda, transformando-a num contrato de financiamento.
No que concerne ao segundo caso excecional entendemos que também não dá cobertura à situação sub judice. Esse caso é muito específico e diz respeito à venda de um direito ilimitado sobre os direitos de propriedade intelectual que, aliás, já é abordado no parágrafo 1.11. do instrumento a que nos referimos, pelo que dificilmente se poderia relacionar com a situação em análise. Todavia, mesmo que se desconsiderasse o exemplo concreto que é usado para ilustrar essa situação, ainda assim, é para este tribunal claro que o segundo caso diverge grandemente da situação de que cuidamos. Vejamos,
Nessas situações deixa de se atender à estrutura adotada pelo contribuinte porque os termos da operação vista na sua globalidade são diferentes dos que seriam adotados por empresas independentes. No caso concreto é precisamente o oposto que se passa, dado que a AT em lugar de atender ao contrato de compra e venda na sua globalidade, centra-se num termo específico. Isto é, em lugar de olhar para a operação no seu todo e eventualmente modificar os termos do acordo [note-se que o uso das palavras globalidade e termos (no plural) não é certamente despiciendo] centra-se no financiamento e no termo que supostamente lhe serve de base, desconsiderando o contrato de venda no seu todo. Na verdade, fragmenta-o para se centrar numa das únicas condições ou termos que o compõem e não em várias delas como sugere o vocábulo termos.
Entende-se, portanto, sem prejuízo de se considerar que até existiria margem para a AT desconsiderar a qualificação feita pelas partes ao abrigo do primeiro caso excecional (cumprido o procedimento que decorre do direito interno, naturalmente), decidiu, pelo menos sob o ponto de vista formal, não o fazer. Dito de outro modo, apesar de reconhecer que a adenda ao contrato de compra e venda tem, em termos de substância, a natureza de um refinanciamento, decidiu não fazer essa requalificação, dizendo, de forma clara e devidamente destacada na resposta (artigo 223.º), que nunca foi alterada a qualificação jurídica do contrato de compra e venda. Assim, sem embargo de ser reconhecido pela AT que existem cláusulas do contrato e adimentos ao mesmo que se traduzem num diferimento do pagamento e que têm os efeitos de um contrato de mútuo, não pôs em causa que essas cláusulas estivessem integradas no contrato de compra e venda no seu todo. Consequentemente, não pode, num contexto em que nega que tenha feito qualquer requalificação, vir, na prática, tratar esse financiamento de forma autónoma como se tivesse desconsiderado os demais elementos do contrato.
Verifica-se, inversamente, que a AT, no caso concreto, apesar de afirmar que a operação que pretende corrigir é a compra e venda e que jamais fez qualquer requalificação, centra-se naquela que considera ser uma operação de financiamento, fazendo uma comparação com outras semelhantes. Isto sem recorrer ao procedimento que permitiria a requalificação da operação financeira: concretamente, a aplicação do artigo 38.º, n.º 2 à adenda do contrato de compra e venda ─ única forma de justificar a colocação da tónica no financiamento gratuito.
Ora, se a operação que está em causa é a compra e venda e o que se corrige é tão-só um dos termos e condições da mesma, impõe-se que a correção feita nos termos do artigo 63.º do CIRC tenha efeitos na operação no seu todo e não unicamente na operação de refinanciamento que, apesar de estar implícita na operação principal e até ser um dos seus termos ou condições mais relevantes, como é óbvio, não a esgota.
A operação de compra e venda deveria, por conseguinte, ser corrigida no seu todo e não unicamente no que respeita às condições de financiamento que são apenas um dos seus termos ou condições. Devendo destacar-se, entre outras condições relevantes, designadamente, e de forma especial, o preço de venda.
Conclui-se, por conseguinte, que o artigo 63.º do CIRC, num contexto em que se considerou o contrato de compra e venda como uno e como englobando o eventual financiamento, como é aliás assumido pela AT, não pode ser aplicado de forma exclusiva ao financiamento ínsito nesse contrato, mas apenas e unicamente ao contrato no seu todo. A comparação a fazer deveria ser com outros contratos de compra e venda e não com operações de financiamento. A não ser, obviamente, como já indicámos, que a operação a corrigir fosse o financiamento. Apenas nesse caso poderia o artigo 63.º do CIRC ser aplicado diretamente. O contexto em que é feita a aplicação dos preços de transferência não foi, porém, esse, dado que nenhuma das partes, e em especial a AT desconsiderou a operação principal, ou seja, a operação de compra e venda.
Não se pode, portanto, corrigir o preço de um contrato de compra e venda aplicando o método do preço comparável de mercado unicamente a uma das suas condições ou termos como se o contrato se limitasse a esse aspeto. A comparação deve, em primeira linha, ser feita com outros contratos de compra e venda semelhantes, recorrendo, na impossibilidade de os encontrar, a um outro método de determinação dos preços de transferência mais consentâneo com uma operação complexa como a que está em causa.
Procede, assim, também neste ponto, o pedido arbitral.
VI. DECISÃO
Perante o exposto, decide-se:
-
Julgar procedente o pedido arbitral, e, consequentemente, anular a decisão da reclamação graciosa, bem como o ato de liquidação que a antecedeu;
-
Condenar a Administração Tributária no pedido de restituição da quantia liquidada, incluídos os juros compensatórios;
-
Condenar a Administração Tributária no pedido de pagamento de juros indemnizatórios sobre a quantia paga desde o pagamento até integral restituição;
-
Condenar nas custas do processo a Administração Tributária.
VII. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se em € 779.880,49 valor do processo.
VIII – VALOR DAS CUSTAS
Computam-se as custas no montante de € 11.322,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Notifique-se.
Lisboa, 24 de novembro de 2016.
Os árbitros
(José Baeta de Queiroz)
(João Sérgio Ribeiro)
(António Martins)
(Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 138.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, com versos em branco e por nós revisto. O texto adota a ortografia resultante do Acordo ortográfico, exceto quanto às citações e transcrições, em que se respeitou a ortografia dos originais.)
[1] O sublinhado é nosso.
[2] O sublinhado é nosso.