Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 174/2016-T
Data da decisão: 2016-11-19  IRC  
Valor do pedido: € 685.761,62
Tema: IRC – Tributações Autónomas; Dedução de benefício fiscal
Versão em PDF


 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Rui Ferreira Rodrigues e Henrique Nogueira Nunes, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral:

 

 

I – RELATÓRIO

 

  1. No dia 21 de Março de 2016, A…, S.A., com sede no …, …-… …, pessoa colectiva n.º…, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de indeferimento da reclamação graciosa que apresentou, com referência ao acto de autoliquidação de IRC relativo ao exercício de 2012.

 

  1. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que quer o indeferimento da reclamação graciosa, quer a autoliquidação de IRC (incluindo as suas taxas de tributação autónoma) relativa ao exercício de 2012, padecem de vício material de violação de lei, porquanto, a título de pedido principal, não deve ser vedada a dedução à parte da colecta de IRC correspondente às taxas de tributação autónoma do benefício fiscal em IRC, na modalidade de dedução à colecta, que é o SIFIDE. Subsidiariamente, caso se entenda que o artigo 90.º do CIRC não se aplica às tributações autónomas, deverá então ser declarada a ilegalidade das liquidações das tributações autónomas (e serem consequentemente anuladas) por ausência de base legal para a sua efectivação (artigo 8.º, n.º 2, alínea a), da LGT, e artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa), com o consequente reembolso do mesmo montante de € 685.761,62 e o pagamento de juros indemnizatórios contados também de 1 de Setembro de 2013, ou a título subsidiário ainda, caso se entenda que nenhum dos anteriores fundamentos procede, ser anulado o acto de autoliquidação de IRC, incluindo as tributações autónomas, do exercício de 2012, no sentido:

                                                              i.      da anulação dos prejuízos fiscais de 2012 em € 2.739.998,35 por retirada da dedução das despesas, encargos e gastos sujeitos a tributação autónoma no exercício de 2012, e da

                                                            ii.      anulação das tributações autónomas do exercício de 2012, no montante (já expurgado da tributação autónoma sobre despesas não documentadas) de € 673.953,41, com as demais consequência legais, designadamente a restituição à Requerente desta última quantia acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal contados desde 27 de Setembro de 2015.

 

  1. No dia 21-03-2016, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

  1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 18-05-2016, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 03-06-2016.

 

  1. No dia 12-07-2016, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se unicamente por impugnação.

 

  1. Atendendo a que no processo arbitral vigoram os princípios processuais gerais da economia processual e da proibição da prática de atos inúteis, ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º do RJAT, dispensou-se a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

  1. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

  1. Foi fixado o prazo de 30 dias para a prolação de decisão final, após a apresentação de alegações da AT, prazo esse que foi prorrogado por mais 30 dias.

 

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-      A Requerente era em 2012 a sociedade dominante de um grupo de sociedades (o Grupo B…) sujeito ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS) previsto e regulado no artigo 69.º e ss. do Código do IRC.

2-      A Requerente entregou no dia 31 de Maio de 2013 a sua declaração agregada de IRC Modelo 22 referente ao exercício de 2012, tendo, nesse momento, procedido à autoliquidação do referido imposto (incluindo a derrama consequente), sendo que em 29 de Maio de 2014 apresentou ainda modificações a essa autoliquidação mediante a submissão de declaração de substituição.

3-      O valor do IRC, incluindo tributações autónomas, e da derrama consequente, autoliquidado, encontra-se pago.

4-      A Requerente pretendeu inscrever o valor relativo às taxas de tributação autónoma em IRC, deduzido, dentro das forças da colecta resultante da aplicação destas taxas, dos montantes de beneficio fiscal reconhecido às empresas do grupo fiscal ao abrigo do Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial  (SIFIDE), na modalidade de crédito de imposto dedutível à colecta de IRC, o que não logrou porquanto o sistema informático da AT revelou anomalias consubstanciadas no assinalar de divergências (“erros”) que impediu a inscrição dos valores que a Requerente pretendia.

5-      O Grupo Fiscal da Requerente apresentava SIFIDE por utilizar de € 6.373.147,25, no exercício de 2012, disponível para dedução à colecta de IRC, de acordo com o seguinte quadro:

6-      Nesse mesmo exercício, a Requerente apurou tributações autónomas no valor de € 685.761,62, de acordo com o seguinte quadro:

7-      A AT não apurou o lucro tributável do Grupo Fiscal B… e respectivas sociedades por métodos indirectos, tendo o mesmo sido apurado nos termos normais, via apresentação da declaração modelo 22.

8-      As empresas integrantes do grupo na origem do SIFIDE não são e não eram então entidades devedoras ao Estado e à segurança social de quaisquer impostos ou contribuições.

9-      Em sede de reclamação graciosa, a AT indeferiu o peticionado pela Requerente, ou seja, que o benefício fiscal SIFIDE de que aquela gozava, fosse deduzido ao montante liquidado a título de tributação autónoma.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

 

B. DO DIREITO

 

            A questão principal decidenda nos presentes autos, sendo, sem dúvida, complexa na sua resolução, é, todavia, simples na sua formulação, e prende-se com saber se é, ou não, possível a dedução à parte da colecta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma, de incentivos fiscais, em sede de IRC, disponíveis.

            A problemática subjacente às tributações autónomas, tem sido objecto de acirrado contencioso entre os contribuintes e a Autoridade Tributária, situação a que não será, de todo, estranha, a natureza própria, anti-sistémica, até, de que aquelas se revestem, no quadro dos impostos sobre o rendimento, onde germinaram.

            Efectivamente, a discussão que deflagrou com as novas taxas de tributação autónoma introduzidas pela Lei nº 64/2008, de 5 de Dezembro, e incidiu inicialmente sobre a natureza do facto tributário subjacente àquele tipo de tributação, abriu um percurso exploratório profundo sobre a natureza das tributações autónomas e da sua relação com os impostos sobre o rendimento, em especial o IRC, que passou pelas problemáticas da dedutibilidade do valor das tributações autónomas à colecta de IRC, e pela natureza, presuntiva, ou não, das tributações autónomas sobre despesas dedutíveis, sem que até à data tenha havido uma intervenção legislativa clarificadora, doutrinalmente sustentada e coerente, no sentido de clarificar o devido enquadramento das tributações em causa, no edifício do imposto sobre rendimento de onde emergem.

            Neste quadro, decisões jurisprudenciais casuísticas, sucedem-se a intervenções legislativas igualmente casuísticas, gerando um quadro de incerteza e instabilidade onde, contribuintes e Autoridade Tributária não têm outra via de procurar o Direito aplicável, que não a litigiosidade perpetuada, resvalando para o intérprete judicativo a ingrata tarefa de, no emaranhado normativo gerado, servir a Justiça possível.

Vejamos, então.

 

*

Quando se fala em tributações autónomas, como é o caso, é conveniente desde logo ter presente que está em causa um conjunto de situações díspares, que abrangerão, pelo menos, três tipos distintos, a saber:

o   Tributação autónoma de determinados rendimentos (ex.: n.ºs 3, 5 e 6 do CIRS);

o   Tributação autónoma de determinados encargos dedutíveis (ex.: n.ºs 3 e 4 do artigo 88.º do CIRC);

o   Tributação autónoma de outros encargos independentemente da respetiva dedutibilidade (ex.: artigos 1 e 2 do artigo 88.º do CIRC).

Este dado torna-se importante porquanto, porque só por si evidencia a disparidade e heterogeneidade das situações sujeitas a tributações autónomas, e a inutilidade de nesta sede sintetizar e procurar uma natureza jurídica própria e unitária, comum a todas as situações.

Deste modo, dever-se-á centrar a discussão na concreta questão colocada pela Requerente e procurar uma resposta, devidamente fundada, para os termos restritos daquilo que está em causa nos autos, que será então saber se é, ou não, possível a dedução à parte da colecta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma, de incentivos fiscais, em sede de IRC, disponíveis.

Devidamente equacionada, nestes termos, a questão a solucionar nos autos, cumprirá ainda ter presente que o referente fundamental da resposta a dar àquela, será o formulado no artigo 9.º do Código Civil, segundo o qual deverá ser reconstituído, a partir dos textos, o pensamento legislativo, que tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

Neste quadro, o desiderato da presente decisão será, não o de teorizar sobre a natureza jurídica das tributações autónomas em geral, ou de qualquer dos seus vários tipos, mas antes o de apurar se o pensamento legislativo, com um mínimo de correspondência verbal na letra da lei, ainda que imperfeitamente expresso, era ou não, à data do facto tributário em questão nos autos, possível a dedução à parte da colecta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma, de incentivos fiscais, em sede de IRC, disponíveis.

Inútil será, julga-se, procurar uma base conceptualista, assente numa definição dogmática de conceitos monolíticos de IRC e de Tributações Autónomas, retirados de normação estranha à matéria decidenda, professando um “ontologismo escolástico” que procure “deduzir de forma puramente lógica, a partir de conceitos abstractos superiores, outros, cada vez mais concretos e plenos de conteúdo[1], metodologicamente ultrapassado, visando conceito final unitário de Tributações Autónomas, agregador de realidades jurídicas de natureza e teleologia díspares, e que sirva de fonte validante de todas as soluções para as diversas problemáticas que a matéria em causa convoca.

Almejar-se-á, deste modo, apenas averiguar qual a solução que, face ao direito constituído, devidamente interpretado, se afigura caber ao caso concreto, não se tomando a resposta dada à questão decidenda como uma evidência acabada, exata e com um grau extremo de rigor e exatidão, mas, meramente, como aquela que, reflexivamente, se apresentou aos seus subscritores como a, juridicamente, melhor[2].

 

*

            Sobre a matéria sub iudice, considera a Requerente que “que a jurisprudência tem entendido, de modo praticamente unânime, que a colecta de IRC prevista no (em vigor até 2013) artigo 45.º, n.º 1, alínea a), do CIRC, compreende, sem necessidade de qualquer especificação adicional, a colecta das tributações autónomas em IRC”, pelo que “se há-de também entender que a colecta do IRC prevista no mesmo código “uns metros mais à frente” (artigo 90.º, n.º 1, e n.º 2, alínea b), do CIRC, na redacção em vigor em 2013) abrange também a colecta das tributações autónomas em IRC.”, concluindo que “a negação da dedução dos créditos do SIFIDE à colecta em IRC das tributações autónomas viole a alínea b) do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC (anteriormente a 2010, artigo 83.º; e desde 2014 passou a ser a alínea c) do referido n.º 2 do artigo 90.º do CIRC).”.

            Convoca a Requerente, em seu abono, as decisões arbitrais proferidas nos processos n.º 769/2014-T e n.º 219/2015-T, bem como o voto de vencido lavrado no processo n.º 697/2014-T, para além de outras decisões em processos fiscais conexos, como sejam as decisões de tribunais arbitrais que consideraram que as tributações autónomas são IRC, daí se retirando como consequência que se lhes aplicam normas dirigidas ao IRC como a referente à não consideração da colecta do IRC para o cômputo do lucro tributável em IRC, pedindo “que, coerentemente, se conclua que a colecta de IRC constituída por estas tributações autónomas esteja disponível, a par da restante colecta do IRC, na operação das deduções à colecta previstas no artigo 90.º do CIRC, entre as quais se encontra a dedução do SIFIDE.”.

 

*

            A base da pretensão da Requerente é literalmente simples e linear e resulta da constatação de que, fazendo-se a liquidação das tributações autónomas nos termos do artigo 90.º/1 do CIRC aplicável, a tal liquidação aplicar-se-ão as deduções previstas no seu n.º 2.

            Efectivamente é o seguinte, o teor dos normativos em causa:

“1 - A liquidação do IRC processa-se nos seguintes termos:

a) Quando a liquidação deva ser feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º, tem por base a matéria coletável que delas conste;

b) Na falta de apresentação da declaração a que se refere o artigo 120.º, a liquidação é efetuada até 30 de novembro do ano seguinte aquele a que respeita ou, no caso previsto no n.º 2 do referido artigo, até ao fim do 6.º mês seguinte ao do termo do prazo para apresentação da declaração aí mencionada e tem por base o valor anual da retribuição mínima mensal ou, quando superior, a totalidade da matéria coletável do exercício mais próximo que se encontre determinada;

c) Na falta de liquidação nos termos das alíneas anteriores, a mesma tem por base os elementos de que a administração fiscal disponha.

2 - Ao montante apurado nos termos do número anterior são efetuadas as seguintes deduções, pela ordem indicada:

a) A correspondente à dupla tributação internacional;

b) A relativa a benefícios fiscais;

c) A relativa ao pagamento especial por conta a que se refere o artigo 106.º;

d) A relativa a retenções na fonte não suscetíveis de compensação ou reembolso nos termos da legislação aplicável.”.

            Sob um ponto de vista semântico-literal, aceite o pressuposto – que ora se aceita – de que a liquidação das tributações autónomas se faz nos termos do n.º 1 do artigo 90.º transcrito, nenhuma outra leitura é possível fazer, que não a apresentada pela Requerente, sendo irrefutável a conclusão condensada no seu pedido arbitral principal.

            Todavia, a leitura jurídica, por impositivo legal (e também lógico-racional) não se cinge, nem deve cingir, ao texto das normas enquanto realidade semântico-gramatical, devendo antes colocar-se num plano axiológico-racional, ancorado em todos os elementos da interpretação jurídica.

            Daí que, em ordem a obter aquilo que seja a leitura correcta do texto, seja necessário realizar determinados testes a nível do edifício sistemático onde a norma interpretanda se enquadra, de modo a validar, face ao mesmo, e à luz dos critérios de racionalidade, congruência e razoabilidade que necessariamente norteiam aquela estrutura normativa, a interpretação literalmente sugerida.

            Assim, e desde logo, como muito bem aponta a entidade Requerida, “a liquidação das tributações autónomas é efectuada com base nos artigos 89.º e 90.º n.º 1 do Código do IRC mas, aplicando regras diferentes para o cálculo do imposto:

(1) num caso a liquidação opera, mediante a aplicação das taxas do artigo 87.º à matéria colectável apurada de acordo com as regras do capítulo III do Código e

(2) no outro caso, são apuradas diversas colectas consoante a diversidade dos factos que originam a tributação autónoma.”.

            Ou seja, a montante, não se pode descurar um primeiro dado relevante, que é o de que nos artigos 89.º e 90.º/1do CIRC, converge a liquidação de duas formas de imposição – relativas ao mesmo imposto – radicalmente distintas, a saber, o IRC tradicional, ou stricto sensu, e as tributações autónomas.

            Com efeito, e como se teve oportunidade de escrever noutra sede[3], “a complexidade gerada pelas sucessivas alterações na arquitetura do CIRC conduziram (...) a um edifício normativo atípico, no qual se poderá discernir um core correspondente ao que se poderá chamar IRC tout court (ou em sentido estrito), que a Requerente pretende que esgote tudo o que seja designado por IRC, e uma periferia que integra regulamentações “marginais”, subtraídas, em grande parte, à lógica, natureza e princípios do IRC tout court, mas que, não obstante, ainda se situam no “campo gravitacional” daquele.

            E é no processo de concretização desta zona de difícil definição que todas as decisões analisadas (...) operam, não podendo as mesmas ser devidamente compreendidas sem que se compreenda também que, de facto, o que todas as decisões em questão estão a fazer é apurar quais as consequências que a “gravitação” em torno do core do IRC aportam para as matérias em cada uma delas abordadas.”.

Nesse sentido, “dentro do quadro hermenêutico acima desenhado, (...) por força da evolução histórica do respetivo regime legal, se constituiu um tipo de IRC que integra um núcleo duro (...) e um grupo de normações adjacente, que comunga de parte da lógica e do regime daquele, mas que em muitos aspetos diverge dos mesmos.”. E, mais adiante, “da consideração do texto legislativo, estaticamente e na sua evolução histórica, resulta que o legislador entendia, e continua a entender, que as tributações autónomas integram o IRC, senão enquanto imposto stricto sensu, pelo menos em termos de fazerem parte do mesmo regime fiscal unitário”.

Isto porque “o regime legal das tributações autónomas em questão nos autos apenas faz sentido no contexto da tributação em sede de IRC. Ou seja, desligado do regime legal deste imposto, carecerão aquelas do seu principal referente de sentido. A sua existência, o seu propósito, a sua explicação, no fundo, a sua juridicidade, apenas é devidamente compreensível e aceitável no quadro do regime legal do IRC.”.

Daí que não, “se entenda que “a definição de IRC constante dos artigos 1.º e 3.º do CIRC” esteja “realmente ultrapassada por uma nova definição de aplicação transversal/geral”, sendo essa uma postura epistemológica própria de um conceptualismo que, liminarmente, se repudiou.

Pelo contrário: trata-se do reconhecimento daquilo que, face ao quadro legal vigente, se impõe como o mais razoável: o abandono definitivo de qualquer definição de aplicação transversal/geral de IRC, e o reconhecimento do regime deste como uma realidade complexa e multifacetada, irredutível a uma definição daquela índole, que apenas um conceptualismo fundamentalisticamente abstracionista poderá pressupor.”.

            Por isso, “Tudo aquilo que se tem vindo a dizer evidencia que a evolução do regime legal do IRC transmutou-o numa realidade complexa e multifacetada, aos mais diversos níveis, que se reflete, na matéria que nos ocupa nestes autos, na tal “natureza dual” de que falava o Prof. Saldanha Sanches na passagem citada no Acórdão 617/2012 do TC.

O reconhecimento desta dualidade de natureza não prejudica, contudo, como se entende estar subjacente quer à citação em causa quer à jurisprudência que a cita, que se considere que o sistema, apesar de dual, seja o mesmo[4]. Dito de outro modo, apenas faz sentido falar-se de um sistema dual, se o sistema em questão, globalmente considerado, for, ainda, o mesmo. Caso contrário falar-se-ia não de um sistema de natureza dual, mas de dois sistemas distintos, o que, por tudo o que se vem dizendo, não será o que ocorre. E, in casu, o sistema será o regime do IRC, que operando ora pelo lucro, ora pelos gastos, visa e prossegue as finalidades próprias daquele imposto, incluindo, evidentemente, a arrecadação de receita para o Estado.”.

            Por fim, “Em jeito de conclusão, face a tudo o que se vem de expor, e em favor de um rigor conceptual, dir-se-á ainda que se pende para o entendimento de que as tributações autónomas, tal como existem atualmente, se poderão configurar como um imposto “híbrido”[5], incidindo sobre o rendimento das pessoas singulares e das pessoas coletivas, e não sobre o consumo ou a despesa, pois não apresentarão as principais características desta forma de tributação”.

            Ou seja, já anteriormente se detectou, por um lado, a futilidade de procurar um conceito unitário de IRC que acomode, coerentemente, o regime das tributações autónomas, e que, por outro, a via metodologicamente mais profícua de gerar soluções juridicamente adequadas para a problemática em causa passa por compreender o regime do IRC actual como produto de uma evolução historicamente explicada que conduziu à edificação de uma estrutura de natureza dual ou híbrida, compreendendo um núcleo principal correspondente ao IRC tradicional, e uma parte adjacente, conexionada com aquele e fazendo parte da mesma realidade global, com especificidades próprias das quais resulta um afastamento, em vários e substanciais aspectos, do regime principal, em termos de os princípios e soluções gerais, não obstante, por vezes, se aplicarem, por outras vezes, serem contraditórios, e como tal inaplicáveis, com a natureza própria dessa tal “normação adjacente” que se consubstancia nas designadas tributações autónomas.

            Sendo que, como é já consabido, essa natureza própria, ou específica, assente numa lógica estranha ao edifício principal do IRC tradicional, se caracterizará, essencialmente, pelas notas sobejamente reconhecidas como próprias às tributações autónomas, designadamente, quer quanto à sua forma de imposição (o carácter instantâneo do respectivo facto tributário e a circunstância de este consistir num gasto), quer quanto à sua ratio anti-sistemática (o facto de algumas das tributações autónomas terem uma vertente dirigida diretamente para o rendimento de pessoas singulares e/ou uma vertente sancionatória, bem como uma finalidade antiabuso).

            Assim, e concluindo aqui, não se poderá, crê-se, na senda da solução a obter para a questão decidenda, obliterar que, não obstante convergirem, efectivamente, na forma de liquidação regulada nos artigos 89.º e 90.º/1 do CIRC aplicável, as tributações autónomas e o IRC stricto sensu (ou tradicional), provêm, a montante, de geografias profundamente distintas, facto que não se poderá deixar de ser devidamente ponderado e tido em conta, nas soluções a encontrar a jusante, designadamente, e para o que ao caso interessa, no que diz respeito à leitura a fazer da norma do artigo 90.º/2 do referido Código.

 

*

            Prosseguindo a senda interpretativa a jusante, cumpre aferir das decorrências da limitação daquele processo à camada literal do objecto interpretativo em análise.

            Como, acertadamente aponta a entidade Requerida na sua resposta, o entendimento, proposto pela Requerente, segundo o qual da falta de distinção, ao nível do texto do n.º 1 do artigo 90.º do CIRC aplicável decorre que, a nível de tal norma, não se deverá fazer qualquer distinção tendo em conta as diferenças, a montante, do imposto que naqueles termos, é liquidado, implicaria que na base de cálculo dos pagamentos por conta devidos em IRC, se incluíssem, também, os valores relativos às tributações autónomas, e não apenas os relativos ao IRC stricto sensu.

            Com efeito, dispõe o n.º 1 do art.º 105.º do Código do IRC, que “Os pagamentos por conta são calculados com base no imposto liquidado nos termos do n.º 1 do art.º 90.º (…)”.

            Ora, entendendo-se que o teor normativo da norma do artigo 90.º/1 do CIRC em questão veda qualquer distinção, para efeitos de outras normas que para o mesmo remetam, entre o imposto liquidado a título de tributação autónoma e o imposto liquidado a título de IRC stricto sensu, ter-se-ia, coerentemente e nos mesmos termos, de concluir que os pagamentos por conta seria devidos em função da soma de ambos os valores.

            Ora, tal solução não poderá – crê-se – ter-se por conforme ao espírito de um legislador razoável.

            Efectivamente – e não sendo os pagamentos por conta thema decidendum do presente processo – sem que se justifique grande profundidade nesta análise, sempre se dirá que os pagamentos por conta, conforme é doutrinal e jurisprudencialmente reconhecido, tem por base uma intenção de adiantamento da tributação que será devida a final, tendo por base o lucro tributável do ano anterior.

            Neste sentido, por exemplo, escreveu-se no Ac. do STA de 07-03-2007, proferido no processo 0877/06[6], que (sublinhado nosso):

“Da definição legal de “pagamento por conta” retira-se uma imbricação inevitável, necessária e essencial entre “pagamento por conta” e “imposto devido a final”.

Por modo tal que o “título” (palavra da lei) do “pagamento por conta” é o “imposto devido a final”.

O que significa que o “pagamento por conta” é, nos próprios termos da lei, uma entrega pecuniária antecipada, feita, por conta do imposto devido a final, no período de formação do facto tributário.

O que significa, ainda, que o “pagamento por conta” tem de ser aferido com referência à situação contabilística da empresa no fim do período a que se refere o pagamento por conta.

O que decididamente quer dizer que, se nenhuma quantia pecuniária houver de ser (antecipadamente) entregue por conta do imposto devido a final, no concernente período de formação do facto tributário (a que se refere o “pagamento por conta”) – mormente por inexistência de lucro tributável revelado pela contabilidade, a esse tempo –, aquele “pagamento por conta” não tem fundamento substantivo. (...)

E, assim, se não houver lucro tributável, não há imposto devido.

            Ora, (pelo menos algumas) as tributações autónomas, conforme também noutra sede se indicou já[7], não incidem directamente sobre o rendimento, fazendo-o de uma forma meramente mediata, sendo essa a justificação para, não obstante as mesmas integrarem o regime do IRC lato sensu, operarem pela via da despesa e, consequentemente, serem devidas ainda que o sujeito passivo apresente prejuízo (como é o caso da ora Requerente).

            Assim sendo, como se crê que é, será destituído de sentido que aos contribuintes que não apresentem lucro tributável, se exija pagamento por conta com base em imposto liquidado sobre despesas que realizou e que foram objecto de tributação autónoma.

Isto mesmo é corroborado pela natureza distinta do facto tributário subjacente ao IRC stricto sensu e às tributações autónomas. Com efeito, sendo o primeiro um facto tributário de natureza continuada e o segundo um facto tributário de natureza instantânea, apenas relativamente ao primeiro poderá fazer sentido divisar um adiantamento de imposto (pagamento por conta), e já não quanto ao segundo cuja prática gera, imediatamente, uma obrigação de imposto.

 

*

            No percurso hermenêutico em curso, haverá igualmente que considerar a norma do n.º 5 do artigo 90.º em questão, que dispõe que:

“As deduções referidas no n.º 2 respeitantes a entidades a que seja aplicável o regime de transparência fiscal estabelecido no artigo 6.º são imputadas aos respetivos sócios ou membros nos termos estabelecidos no n.º 3 desse artigo e deduzidas ao montante apurado com base na matéria coletável que tenha tido em consideração a imputação prevista no mesmo artigo”.

            Esta norma remete directamente para o artigo 6.º do mesmo Código, que prescreve, no que para o caso releva, que:

“1 - É imputada aos sócios, integrando-se, nos termos da legislação que for aplicável, no seu rendimento tributável para efeitos de IRS ou IRC, consoante o caso, a matéria coletável, determinada nos termos deste Código, das sociedades a seguir indicadas, com sede ou direção efetiva em território português, ainda que não tenha havido distribuição de lucros:

a) Sociedades civis não constituídas sob forma comercial;

b) Sociedades de profissionais;

c) Sociedades de simples administração de bens, cuja maioria do capital social pertença, direta ou indiretamente, durante mais de 183 dias do exercício social, a um grupo familiar, ou cujo capital social pertença, em qualquer dia do exercício social, a um número de sócios não superior a cinco e nenhum deles seja pessoa coletiva de direito público. (...)

3 - A imputação a que se referem os números anteriores é feita aos sócios ou membros nos termos que resultarem do ato constitutivo das entidades aí mencionadas ou, na falta de elementos, em partes iguais.”

            Fundamental no enquadramento desta questão é o teor do artigo 12.º do mesmo Código, que refere que:

“As sociedades e outras entidades a que, nos termos do artigo 6.º, seja aplicável o regime de transparência fiscal não são tributadas em IRC, salvo quanto às tributações autónomas.”.

            Não sendo, uma vez mais, o tema das entidades sujeitas a regime de transparência fiscal, objecto da presente causa, sinteticamente sempre se dirá, desde logo, que da leitura em que assenta a pretensão da Requerente, ou seja, de que as tributações autónomas integram, sem limitações e para todos os efeitos, a matéria colectável de IRC, sempre resultaria uma de duas situações, igualmente inaceitáveis, a saber:

-          que as entidades a que se refere o art.º 6.º/1 do CIRC, se vissem obrigadas a suportar duplamente os encargos com tributações autónomas: uma vez na esfera da sociedade, nos termos do artigo 12.º do CIRC, que expressamente o prevê, e outra vez nos termos conjugados dos n.ºs 1 e 3 do artigo 6.º, que impõe que a “a matéria coletável, determinada nos termos deste Código” relativamente a tais entidades é imputada aos sócios;

-          ou que, assim, não sendo, ou seja, se por via de algum tipo de interpretação se restringisse a expressão “matéria coletável, determinada nos termos deste Código”, dela expurgando as tributações autónomas, da conjugação das supra-transcritas normas do n.º 5 do artigo 90.º, do artigo 6.º e do artigo 12.º, com a intrepretação sustentada pela Requerente para o n.º 1 do artigo 90.º, resultaria que os sujeitos passivos de IRC sujeitos ao regime de transparência fiscal estariam impedidos, por via do referido artigo 90.º/5, de deduzir aos montantes liquidados a título de tributação autónoma, as deduções previstas no n.º 2 do mesmo artigo, uma vez que estes últimos montantes seriam suportados pela sociedade, enquanto as deduções seriam apenas facultadas aos sócios, discriminando-se assim injustificadamente os sujeitos passivos de IRC sujeitos ao regime de transparência fiscal, dos restantes, que, na tese da Requerente, teriam a faculdade de fazer operar as deduções previstas no n.º 2 do artigo 90.º, aos montantes liquidados, nos termos do n.º 1 do mesmo artigo, a título de tributação autónoma.

 

*

            Aqui chegados, cumpre explorar um pouco mais os limites da literalidade da norma no epicentro do presente litígio – os artigos 90.º/1 e 2 do CIRC aplicável – e das repercussões da mesma no quadro mais amplo da relação entre o IRC tradicional, e as tributações autónomas nesse imposto.

            Conforme acima se expôs já, no conjunto das tributações autónomas, ainda que restrito às que integram o regime do IRC em sentido amplo, convergem várias situações de origem e teleologia díspares.

            Assim, a título de exemplo, encontram-se tributações autónomas que visam, isolada ou concomitantemente, desincentivar determinados comportamentos economicamente desvaliosos (ex.: remunerações excessivas a gestores), tributar os chamados fringe benefits (ajudas de custo; despesas com viaturas), mitigar a repercussão fiscal de despesas de empresarialidade integral duvidosa (idem), desincentivar comportamentos com elevado potencial de fraude (pagamentos a entidades sujeitas a regime fiscal claramente mais favorável) ou penalizar comportamentos que fomentam a chamada economia paralela (tributação das despesas confidenciais).

            A literalidade da interpretação proposta pela Requerente miscigena, nas estreitas vistas da letra da lei todas aquelas situações – porquanto todas elas se liquidarão nos termos do artigo 90.º/1 do CIRC aplicável.

            Ora, já atrás, e em outras ocasiões, se apontou a vã glória de fechar, num conceito unitário, todas as tributações autónomas, mesma as que apenas ocorrem no âmbito do IRC, atenta a sua disparidade teleológica e funcional. E, aqui, emerge uma das principais fragilidades do edifício argumentativo onde reside a posição da Requerente: a de assentar num postulado de unicidade das tributações autónomas em IRC, caracterizado por aquelas “serem ainda tributação sobre o rendimento/lucro, na qualidade de substituto da proibição de dedução de certas despesas ao lucro tributável”.

            Ora, essa, entre outras, é uma característica reconhecida a determinado tipo de tributações autónomas: as tributações autónomas relativas a despesas dedutíveis.

            A fenda no edifício fundamentador da posição da Requerente abre-se, face a esta constatação, em duas direcções distintas: por um lado, a leitura proposta pela Requerente para a norma do artigo 90.º/1 do CIRC aplicável, não distingue, nem permite distinguir, entre tributações autónomas relativas a encargos dedutíveis e outros tipos de tributação autónoma, como sejam as relativas a despesas confidenciais; por outro lado, da matéria de facto provada resulta que as tributações autónomas em causa nos presentes autos respeitam a tipos distintos de tributações autónomas, designadamente, tributações autónomas sobre encargos dedutíveis, tributações autónomas relativos a despesas não documentadas e tributações autónomas relativas a bónus e outras remunerações variáveis.

            Do quanto vem de se dizer, resulta, desde logo, que toda a argumentação tecida pela Requerente, relativamente à natureza das tributações autónomas, enquanto tributadoras ainda de rendimento é inconsequente para a decisão da matéria sub iudice, porquanto, apenas abrange uma parte das tributações autónomas onde se reconhecem tais características.

            Por outro lado, resulta ainda que o edifício argumentativo apresentado pela Requerente em abono da sua pretensão, abriga em si o potencial de acoitar pretensões – que, inclusive, face aos factos dados como provados, é em parte o caso da Requerente – em que se vise proceder a deduções nos termos do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC aplicável, a tributações autónomas relativas, por exemplo, a despesas confidenciais ou pagamentos a entidades sujeitas a um regime fiscal claramente mais favorável.

            Ora, este tipo de pretensão, não se poderá ter como querido, por um legislador razoável, face a toda a sistemática do IRC em sentido amplo, incluindo as tributações autónomas. Efectivamente, não será sustentável que, tendo indo onde, juridicamente, o legislador do CIRC foi, tendo em vista, por exemplo, ao combate à economia paralela ou as transacções com os chamados (incorrectamente[8]) “paraísos fiscais”, fosse sua intenção que a respectiva carga de tributação autónoma, pudesse ser aligeirada por meio das deduções previstas no n.º 2 do artigo 90.º do CIRC.

 

*

            Não se quedará por aqui, contudo, a entropia sistemática gerada pela posição que a Requerente pretende fazer valer nos autos.

            Efectivamente, e mesmo restringindo, como a Requerente faz, a questão às tributações autónomas sobre encargos dedutíveis em IRC, tal posição redundaria numa directa violação do princípio da igualdade.

            Com efeito, como toda a jurisprudência abundantemente citada pelas partes denota, as tributações autónomas relativas a encargos dedutíveis tem subjacente uma presunção de “empresarialidade parcial”. Ou seja, tais despesas conterão, presumivelmente, uma finalidade empresarial, que consente a sua dedução, mas com tal finalidade concorrerão outras, que, se fossem exclusivas, arredariam a sua dedutibilidade[9].

            Tal carácter presuntivo, justificará que quando o contribuinte logre ilidir a referida presunção, as despesas mantenham o seu carácter dedutível, sem sujeição a tributação autónoma[10].

            Ora, neste campo restrito das tributações autónomas sobre despesas dedutíveis, que e onde a Requerente centra, de resto, a discussão, a posição sustentada por aquela redundaria numa desigualdade qualificada (na medida em que mais que tratar como igual o desigual, ou o desigual como igual, trata o desigual como desigual, na medida inversa da desigualdade), já que numa situação em que um contribuinte, em que encargos dedutíveis que, normalmente seriam sujeitos a tributação autónoma, não o sejam por não se verificarem os pressupostos materiais desta (ou seja, por elisão da presunção subjacente), como foi o caso, por exemplo, da situação em causa no processo arbitral 628/2014T, e que apresente prejuízo fiscal, não poderá proceder a qualquer dedução nos termos do artigo 90.º/2 do CIRC, ao passo  que um outro contribuinte, na mesma situação (prejuízo fiscal), mas que assuma (implícita ou explicitamente), o carácter parcialmente empresarial do mesmo tipo de encargos, ficando, por isso, onerado com a correspondente tributação autónoma, poderia, na tese da Requerente, lançar mão das deduções previstas naquele mesmo artigo.

            Ou seja, e em suma: entre dois contribuintes em situação distinta perante o sistema fiscal de IRC, um que incorre em gastos de índole integralmente empresarial, e outro que incorre nos mesmos gastos mas para fins (real ou presumidamente) parcialmente estranhos à empresarialidade, o segundo obteria do sistema fiscal, na matéria que nos ocupa, um tratamento mais benévolo, por via de um comportamento menos conforme à teleologia daquele.

            Ora, como é consabido, o princípio da igualdade é um dos princípios constituintes basilares do direito tributário, e nada, pelo menos à luz do critério do legislador razoável, permite concluir que, no regime em análise, o legislador tenha querido afrontar de forma directa aquele princípio, dispensando um benefício em função de um factor contraditório com a teleologia do sistema.

Com efeito, no plano fiscal, o princípio da igualdade não é mais do que uma expressão específica do princípio da igualdade geral dos cidadãos perante a lei, previsto no artigo 13º da CRP que comporta uma dupla vertente de igualdade formal (igualdade perante a lei, geral e abstrata), e uma vertente material (proibindo discriminações arbitrárias), sendo que o princípio em questão pode ser visto em dois planos distintos, a saber:

• O da igualdade horizontal – segundo o qual a um rendimento, capital ou consumo igual deve corresponder igual medida de imposto;

• O da igualdade vertical segundo o qual a um rendimento, capital ou consumo diferentes deve corresponder imposto diferente.

Decorre, pois, do princípio geral de igualdade a proibição de discriminações arbitrárias, extensível ao direito fiscal sob pena de violação da própria ideia de Estado de Direito, a proibição de todas as formas de tributação (ou de isenção) discriminatórias ou arbitrárias, inaceitáveis à luz dos valores da igualdade jurídica e substantiva.

A ideia de generalidade da tributação, é certo, não impede a consagração de regimes de tributação diferenciados, nem o estabelecimento de isenções, desagravamentos ou agravamentos fiscais, desde que eles se encontrem fundados em valores e fins de ordem pública que sejam superiores aos que determinaram a criação do próprio imposto. Ou seja, não se impede a diferenciação baseada em valores percepcionados, mas impede-se a discriminação assente em realidades não consentidas pela própria ordem fundamental.

Sendo verdade que o princípio da igualdade jurídica e fiscal não é um princípio absoluto, pois admite situações de discrímen, também é verdade que estas situações devem corresponder a discriminações fundadas em valores institucionalizados, genericamente aceites e acolhidos na ordem de valores instituída.

Ora, no caso, em que duas empresas na situação supra descrita se encontram objetivamente em situação diferenciada e que deviam, por isso, merecer um tratamento fiscal diferenciado, no sentido da diferença, ocorre, face à tese da Requerente, justamente o contrário. 

            Deste modo, sempre no caso deverá intervir um factor de interpretação conforme à Constituição das normas em causa, maxime do artigo 90.º/2 do CIRC.

 

*

            Dentro dos tópicos decisórios a considerar, caberá, por fim, fazer uma menção à entrada em vigor da nova redacção do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, introduzido pela Lei que aprovou o Orçamento de Estado para 2016 (Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março), que veio dizer que:

A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos do artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.

            Esta norma, é objecto do artigo 135.º da mesma referida Lei que aprovou o OE de 2016, que refere que:

A redação dada pela presente lei ao n.º 6 do artigo 51.º, ao n.º 15 do artigo 83.º, ao n.º 1 do artigo 84.º, aos n.ºs 20 e 21 do artigo 88.º e ao n.º 8 do artigo 117.º do Código do IRC tem natureza interpretativa.”.

            Coloca-se, assim, a questão sobre se o n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, introduzido pelo OE 2016, tem (como a própria lei o diz), ou não, natureza interpretativa.

            Concedendo estar-se, sem dúvida, numa situação de fronteira, tender-se-á a conceder à norma em questão o carácter que a própria lei que cria expressamente lhe confere.

            Com efeito, e como a própria Requerente o reconhece, seguindo a doutrina do insigne Mestre Prof. Dr. Baptista Machado, para que uma lei seja interpretativa é necessário:

a.       haver uma questão controvertida ou incerta na lei em vigor;

b.      que o legislador consagre uma solução interpretativa que resolve a incerteza a que chegariam o intérprete ou o julgador com base no normativo vigente anteriormente à alteração legislativa.

Ora, diferentemente da Requerente, a aplicação que se faz destes princípios vai, justamente, no sentido de que a Lei em causa seja, de facto, de natureza interpretativa.

            Com efeito, ao contrário do que alega a Requerente, anteriormente à entrada em vigor da lei em questão (n.º 21 do artigo 88.º do CIRC), a questão de saber se eram, ou não possíveis as deduções previstas no artigo 90.º/2 do CIRC aos montantes liquidados, nos termos do n.º 1, referentes a tributações autónomas, era uma questão controvertida, tanto que houve vários litígios entre a Autoridade Tributária e os contribuintes a esse respeito, facto público, notório e até do conhecimento da Requerente (e, naturalmente, da Requerida).

            Efectivamente, para uma questão seja controvertida, não é necessário, como parece pressupor a Requerente, e até não será o caso, que haja uma divergência entre decisões judiciais, bastando que haja distinta aplicação do direito controverso por parte de qualquer operador jurídico, e podendo a controvérsia ser, mesmo, de índole essencialmente doutrinal.

            Por outro lado, e no que diz respeito ao segundo dos requisitos elencados, distintamente do que a Requerente pretende pressupor, não se considera que a solução dada pelo legislador haja, necessariamente, de ser uma das propostas pelos envolvidos na controvérsia nem, muito menos, que tenha de se ater aos fundamentos daquelas. Com efeito, a intervenção interpretativa do legislador não é a intervenção num processo de partes, em que aquele arbitre a favor de um ou outro dos envolvidos na controvérsia. Antes, tal intervenção interpretativa é objectiva – ou seja, coloca-se face à Lei como ela era e como ficou – e é o esclarecimento de uma vontade própria do legislador.

            Daí que, para que uma lei seja considerada interpretativa, para além da existência de uma controvérsia nos termos atrás expostos, seja necessário apenas que a solução seja uma das objectivamente possíveis, no quadro da Lei existente anteriormente à intervenção interpretativa, independentemente de, num ou noutro caso, ou até em todos, ser uma das sustentadas pelos envolvidos na controvérsia.

            Ou seja: para que a lei seja interpretativa, basta que a solução dada corresponda a uma possível de ser dada, já face ao texto legal anterior a tal Lei.

            Ora, como se verá de seguida, é isso que no caso acontece.

 

*

            Sumariando o quanto atrás se veio dizendo, verifica-se, desde logo, que a interpretação sustentada pela Requerente assenta, essencialmente, no teor literal das normas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 90.º do CIRC aplicável, não se descortinando nenhum fundamento substancial que justifique a solução em causa, tanto mais que os argumentos que a Requerente adianta nesse sentido são estritamente relativos às tributações autónomas de encargos dedutíveis, sendo que, por um lado, nada se prova a respeito de, no caso concreto, apenas estarem em causa tributações autónomas desse tipo (e não de outros), e, por outro, da interpretação proposta sempre decorreria que as deduções previstas no artigo 90.º/2 do CIRC em causa se fariam a todos os tipos de tributação autónomas, incluindo, por exemplo, as relativas a pagamentos a entidades sujeitas a regimes de tributação claramente mais favoráveis e as relativas a despesas confidenciais, e nenhum dos argumentos substanciais apresentados pela Requerente permite justificar que tal aconteça.

            Por outro lado, como se viu, se é certo que o artigo 90.º/1 do CIRC em questão não distingue entre a liquidação de tributações autónomas e a liquidação de IRC stricto sensu (sobre o lucro tributável), a verdade é que, a montante, o procedimento e a natureza dos dois tipos de imposição tributária é substancialmente distinto.

            Acresce que, como também se viu, a ratificação da interpretação que sustenta o petitório da Requerente, seria geradora de assinalável turbulência no edifício normativo do IRC, designadamente no que diz respeito ao regime do pagamento especial por conta e das sociedades sujeitas ao regime de transparência fiscal.

            Por fim, como se analisou também, a atinência à literalidade dos preceitos do artigo 90.º/1 e 2, propugnada pela Requerente, redundaria – crê-se – num atropelo ao princípio da igualdade tributária, para além do mais, constitucionalmente imposto.

            Por tudo isto, julga-se que na conjugação do texto das duas normas, o legislador disse mais do que aquilo que queria, situação que, de resto, resultou não de descuido coeva da redacção de tais normas, mas, antes, da evolução do regime normativo do IRC e, concretamente, da paulatina introdução naquele do regime relativo às tributações autónomas.

            Estamos, assim, perante uma situação descrita pelo Ilustre Mestre Prof. Doutor Baptista Machado, em que “Por vezes, embora raramente, será preciso ir mais além e sacrificar, em obediência ainda ao pensamento legislativo, parte de uma fórmula normativa, ou até a totalidade da norma. Trata-se de fórmulas legislativas abortadas ou de verdadeiros lapsos. Quando a fórmula normativa é tão mal inspirada que nem sequer alude com clareza mínima às hipóteses que pretende abranger e, tomada à letra, abrange outras que decididamente não estão no espírito da lei, poderá falar-se de interpretação correctiva. O intérprete recorrerá a tal forma de interpretação, é claro, apenas quando só por essa via seja possível alcançar o fim visado pelo legislador. A interpretação revogatória ou ab-rogante terá lugar apenas quando entre duas disposições legais existe uma contradição insanável[11].

            Com efeito, a fórmula normativa do artigo 90.º/2 do CIRC aplicável, tomada à letra, como o faz a Requerente, abrange hipóteses, como se viu, que decididamente não estão no espírito da lei. No caso, como se referiu já, não por má inspiração da própria norma, mas das próprias reformas que foram introduzindo as tributações autónomas em IRC.

            Deste modo, torna-se forçoso interpretar correctivamente a norma do artigo 90.º/2 do CIRC aplicável, de modo a restringir a remissão que faz para o n.º 1 da mesma norma, na referencia que faz “Ao montante apurado nos termos do número anterior”, limitando-a ao montante da colecta de IRC calculada mediante a aplicação das taxas do artigo 87.º à matéria colectável apurada de acordo com as regras do capítulo III do Código, e já não assim aos montantes apurados a título de tributação autónoma, assim se devolvendo à norma o seu sentido original, que era o que correspondia à sua redacção textual antes da introdução das tributações autónomas no CIRC.

            Não obstante tratar-se de um tipo de interpretação francamente excepcional, conforme a boa doutrina, sempre se notará que, no caso, o intérprete se vê perante a alternativa de optar por ela, ou por um outro tipo de interpretação ainda mais excepcional, ou seja, a interpretação revogatória ou ab-rogante da norma do artigo 135.º da Lei que aprovou o OE de 2016, e que conferiu carácter interpretativo ao aditamento do n.º 21 ao artigo 88.º do CIRC.

            Ou seja: entre uma interpretação correctiva e uma interpretação ab-rogante, opta-se, para além de tudo mais que se disse, pela primeira.

            Aqui chegados, cumpre voltar, justamente, à temática do carácter interpretativo – ou não – do aditamento do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, proclamado pelo artigo 135.º da Lei que aprovou o OE de 2016.

            Antes de mais, note-se que mais uma vez se evidencia aqui a falta de destreza legislativa, sintoma de uma actividade legiferante meramente reactiva que, casuisticamente, procura acorrer aos problemas que ela própria gera.

            Com efeito, é evidente que o aditamento do n.º 21.º ao artigo 88.º do CIRC não tem – em si – natureza interpretativa, na medida em que relativamente ao artigo 88.º não se levantava, na matéria aditada, qualquer celeuma a que fosse necessário acorrer. A controvérsia, como vem de se ver, residia no n.º 2 do artigo 90.º, e é relativamente à interpretação deste tal como resulta da introdução do n.º 21 do artigo 88.º que a alteração ao CIRC introduzida pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março é interpretativa. Dito de outro modo, é relativamente ao conteúdo normativo do artigo 90.º/2 que a Lei que aprovou o OE de 2016 é interpretativa, na medida em que impõe que o mesmo seja lido antes da sua entrada em vigor, do mesmo modo que passou – sem dúvidas – a ser lido após essa mesma entrada em vigor.

            Deste modo, e se não se chegasse à conclusão supra-referida, segundo a qual uma interpretação correctiva do artigo 90.º/2 do CIRC aplicável é a solução juridicamente mais adequada para o caso, sempre se chegaria à mesma conclusão por via do carácter interpretativo da alteração ao CIRC introduzida pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, na medida em que existindo uma controvérsia prévia e sendo aquela solução uma das possíveis, e a que resulta da Lei que expressamente se assume como interpretativa, sempre seria tal solução a que cumpriria assumir.

            Conclui-se, face a todo o exposto, que deverá o pedido arbitral principal improceder.

 

***

            Como primeiro pedido subsidiário, a Requerente solicita que seja anulada a autoliquidação do Grupo Fiscal do período de tributação de 2012, na parcela correspondente às tributações autónomas, pelo facto de as mesmas terem sido liquidadas e cobradas sem base legal para o efeito, caso se entenda que a sua liquidação não tem enquadramento na norma de liquidação do IRC consagrada no artigo 90.º do Código do IRC, uma vez que nesse caso estas foram liquidadas e cobradas sem base legal para o efeito (cfr. quer o artigo 8.º, n.º 2, alínea a), da Lei Geral Tributária, quer o artigo 103.º, n.º 3, da Constituição).

            Ora, conforme decorre do quanto acima foi dito, entende-se e considera-se que a liquidação das tributações autónomas ocorreu com base no n.º 1 do artigo 90.º do CIRC aplicável, pelo que manifestamente se deram com base legal para o efeito, improcedendo, portanto, também este pedido arbitral, não se verificando assim qualquer violação ao disposto no artigo 103.º/3 da CRP.

 

***

            Também subsidiariamente, para o caso das tributações autónomas aqui em causa não serem anuladas em razão da procedência do pedido principal ou do primeiro pedido subsidiário –, vem a Requerente, no exercício de opção que entende que lhe é legalmente atribuída, pedir que seja acrescido ao lucro tributável de 2012/subtraídos aos prejuízos fiscais de 2012, o montante correspondente das despesas, gastos e encargos sujeitos a tributação autónoma nesse exercício de 2012, com a excepção das despesas não documentadas (que já se encontram acrescidas ao lucro tributável de 2012/subtraídas aos prejuízos fiscais de 2012), montante esse que ascende a € 2.739.998,35, com a consequente redução nesse montante dos prejuízos fiscais apurados na autoliquidação desse exercício.

            Ressalvado o devido respeito, afigura-se que quer a Requerente, quer a Requerida (esta, inclusive, em termos urbanamente pouco felizes) denotam uma incompreensão de base em relação àquilo quanto tem sido dito nesta matéria.

            Efectivamente, devidamente compreendidos os textos na sua globalidade, não se tem notícia de ter sido reconhecido às tributações autónomas nem às relativas a despesas dedutíveis nem, muito menos, em geral, um carácter optativo intrínseco.

            Porquanto já foi muito claramente explanada esta matéria, cita-se aqui a decisão do processo arbitral 94/2014T, já referido, onde se pode ler:

“Assim, e desde logo, dever-se-á ter presente que a contabilidade não é um sistema normativo fechado e de aplicação mecânica/automática, antes pelo contrário, contendo sempre uma margem discricionária do respetivo sujeito, assente em inelimináveis juízos valorativos de diversa índole (técnica, jurídica, económica, de gestão), explicando-se, para além do mais, desse modo a vocação normalizadora da sua regulamentação. De facto, as normas contabilísticas poderão estabelecer “(…) uma verdadeira discricionariedade no sentido kelseniano, i.e., uma indeterminação intencional, como acontece por exemplo, quando a norma contabilística estabelece vários métodos alternativos para a valoração das existências (…)”[12].

Deste modo, não se afigura correto o entendimento de que estará vedada (de que será proibida, ou ilícita) a não dedução ao lucro tributável de uma despesa que, sendo-o, estaria sujeita a tributação autónoma. (...)

Por outro lado, tem sido recorrentemente reconhecido, a nível jurisprudencial, um espaço de “autonomia” e “liberdade de gestão do contribuinte[13], no qual será inadmissível a intromissão da AT, e onde se incluirá o “juízo sobre a oportunidade e conveniência dos gastos”, que “é exclusivo do empresário”. E, se é certo que esta consideração se tem reportado à classificação dos gastos como necessários, por identidade, senão maioria, de razão, se haverá que entender como abrangendo, justamente, o juízo de desnecessidade daqueles.

Ou seja, se o empresário, no exercício do “juízo sobre a oportunidade e conveniência dos gastos”, os reputar como não necessários à manutenção da fonte produtora, tal não poderá, salvo melhor opinião, ser disputado pela AT, quanto mais não seja por falta do pressuposto geral (do processo mas aplicável ao procedimento) de falta de interesse em agir[14].

Não se está aqui a sustentar, evidentemente, (...), que as tributações autónomas são optativas. Antes, o que o será (num certo sentido, pelo menos) é a classificação ou não de determinado encargo como dedutível, na medida em que o mesmo pressupõe a sua necessidade para a manutenção da fonte produtora, e tal juízo compete ao sujeito passivo. Recorde-se – uma vez mais – que aqui, como na decisão criticada pela Requerente, se aprecia unicamente a tributação autónoma de despesas dedutíveis, (...).

Não se trata aqui, de igual modo, de sugerir que se possam “omitir despesas” (...). Efetivamente, a contabilização de determinado encargo como não dedutível implica, justamente, a sua relevância na contabilidade, que é, precisamente, o oposto da sua omissão! Aliás, nem podia ser doutra maneira, atendendo a que as normas fiscais devem aplicar-se dentro do princípio de conexão formal.[15]

O reconhecimento desta natureza presuntiva das tributações autónomas em causa nos autos, nos termos acima sugeridos, será, para além de tudo o mais, uma salvaguarda da sua constitucionalidade, na medida em que estará garantida quer a possibilidade da respetiva dedução integral pelo contribuinte, quer a sua não dedução, consoante o lado para o qual a presunção que lhes está subjacente seja, concretamente e em cada caso, infirmada.”.

            Ou seja, e para que fique mais uma vez bem claro. Não se considera que a não dedutibilidade, ou dedutibilidade com sujeição a tributação autónoma dos gastos dedutíveis sujeitos a tributação autónoma seja, ela própria, optativa ou discricionária. Antes, tal dedutibilidade ou indedutibilidade decorrerá da Lei, conforme os respectivos pressupostos se verifiquem ou não.

            Assim, os gastos em matérias que, se dedutíveis, são susceptíveis de tributação autónoma serão sujeitos a esta, se preencherem os requisitos gerais do artigo 23.º do CIRC, e o contribuinte não ilidir a presunção de empresarialidade que lhes está subjacente e garante a sua constitucionalidade.

            Por outro lado, os gastos nessas mesmas matérias que não cumpram os requisitos do artigo 23.º do CIRC, não serão dedutíveis e, consequentemente, não serão sujeitos a tributação autónoma, já que esta incide, expressamente, na matéria em causa, sobre despesas dedutíveis.

            O que se passa, e aqui parece situar-se a génese da confusão gerada é que, segundo o que a doutrina e a jurisprudência têm genericamente entendido, o juízo contabilístico de não empresarialidade, e consequente dedutibilidade, de determinados gastos contabilizados, é um juízo próprio e discricionário do contribuinte, que muito dificilmente a Autoridade Tributária poderá questionar, se o puder.

            Deste modo, se o contribuinte, declarar como não dedutíveis determinadas despesas que, se dedutíveis, seriam sujeitas a tributação autónoma, e possuir o devido suporte contabilístico de tal declaração, as despesas em questão, não deduzidas, não serão sujeitas a tributação autónoma.

            Ora, no caso, não é isso que se passa: a Requerente, contabilizou e declarou as despesas em questão como dedutíveis. Daí que a sua tributação autónoma esteja, inquestionavelmente, conforme à lei.

            Caso a Requerente entendesse, como parece ser o caso, que os gastos que declarou e inscreveu na sua contabilidade como dedutíveis eram, efectivamente, gastos não necessários para obter ou garantir rendimentos sujeitos a IRC, deveria tê-los inscrito, e declarado, como tal, abstendo-se de os tributar autonomamente.

            Não o tendo feito, e face à matéria de facto dada como provada, mais não haverá a fazer que declarar a legalidade das tributações autónomas liquidadas pela própria Requerente, improcedendo assim, também, esta parte do pedido arbitral.

 

*

            A terminar, vem nas suas alegações a Requerente invocar que a defesa da AT em sede arbitral consubstanciará uma fundamentação a posteriori do acto reclamado.

            Como é sabido, tem-se firmado jurisprudência no sentido de que:

“No contencioso de mera legalidade, como é o caso do processo de impugnação judicial, o tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade do acto sindicado tal como ele ocorreu, apreciando a respectiva legalidade em face da fundamentação contextual integrante do próprio acto, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação, quer estas sejam por ele eleitas, quer sejam invocados a posteriori na pendência do recurso contencioso.”[16].

            Ora, é manifesto que a fundamentação da presente decisão, e a base da defesa da AT em sede arbitral, divergem notoriamente da fundamentação do acto de decisão da reclamação graciosa apresentada pela Requerente.

            Tal não é salvo o devido respeito, no caso, motivo para anulação de tal acto.

            Com efeito, e desde logo, tem-se pacificamente entendido, também, que:

“Em matéria de direito, o tribunal não está sujeito à alegação das partes, nem sequer no que respeita à qualificação jurídica dos factos por elas efectuada, e goza de liberdade na indagação, interpretação e aplicação do Direito (art. 664.º do CPC).”[17].

            Por outro lado, e como também tem sido jurisprudência:

“Apesar das implicações que a declaração de fundamentação possa eventualmente ter na substância da decisão, há que distinguir a vertente formal, aquela que interessa no cumprimento do imperativo da fundamentação, da vertente material, que na estrutura do acto respeita sobretudo à existência dos pressupostos reais que suportam a decisão de fundo.”

            Ou seja, a fundamentação formal, impressa no cumprimento do imperativo de fundamentação, pode estar certa ou errada, contendendo apenas com a validade do acto se, e na medida, em que cristaliza os pressupostos de facto e de direito do acto e estes sejam desconformes à lei, consubstanciando-se num erro de facto e/ou de direito.

            Por fim, o artigo 2.º do RJAT, toma como referente da competência dos tribunais arbitrais, os actos primários (“actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”), sendo os actos secundários unicamente relevantes como referentes da tempestividade da pretensão impugnatória, como resulta do artigo 10.º/1/a) daquele Regime, onde se impõe que os pedidos de constituição de tribunal arbitral sejam apresentados no prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos n.º 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

            Daí que, em primeira linha, se esteja no presente processo a sindicar a legalidade do acto de autoliquidação de IRC da Requerente (objecto directo da competência dos tribunais arbitrais), sendo a legalidade do acto secundário de reclamação graciosa – cuja função principal é garantir a tempestividade da Requerente para a impugnação arbitral do acto primário – meramente reflexa ou derivada da legalidade daquele.

Assim, a eventual anulação do acto de decisão da reclamação graciosa, por fundamentação errada, quando – como é o caso – se conclui pela não verificação das ilegalidades arguidas ao acto primário, sempre redundaria num acto inútil, e como tal proibido, já que, vinculada pelo caso julgado, a Autoridade Tributária não mais faria no novo acto que obrigatoriamente, confirmar o decidido em sede arbitral.

            Daí que haja, também esta alegação de improceder.

 

*

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar improcedentes os pedidos arbitrais formulados e, em consequência, manter os actos tributários objecto da presente acção arbitral e condenar a Requerente nas custas do processo, abaixo fixadas, tendo-se em conta o já pago.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 685.761,62, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 10.098,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, uma vez que o pedido foi totalmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa

 

19 de Novembro de 2016

 

O Árbitro Presidente

 

 

 

(José Pedro Carvalho - Relator)

 

 

 

O Árbitro Vogal

 

(Rui Ferreira Rodrigues)

 

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

(Henrique Nogueira Nunes)

 

 



[1] Arthur Kaufman, “Filosofia do Direito”, 3.ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 44.

[2] “É precisamente nas argumentações pedantemente exactas, pensadas com um grau extremo de rigor e exactidão, que temos frequentemente a impressão de que algo, de alguma forma, não faz sentido.”; idem, p. 89.

[3] Cfr. por todos a decisão arbitral do processo 94/2014T, disponível em www.caad.org.pt.

[4] Daí a referência a um IRC em sentido estrito/amplo, reflexo da tal dualidade.

[5] Integrando, o tal sistema de natureza dual, já acima aludido.

[6] Disponível em www.dgsi.pt.

[7] “(...) estar-se-á sempre em última análise a ter em vista um rendimento, presente ou futuro, que o legislador tolera tributar menos (por força da consideração do gasto deduzido), em troca de uma tributação imediata, aquando da realização do gasto, visando então, nesta perspetiva, as tributações autónomas a que nos referimos, ainda que mediatamente, o rendimento do sujeito passivo.

Tais tributações serão, sob este ponto de vista, uma forma (enrevesada, é certo) de, indiretamente e através da despesa, tributar, ainda, o rendimento (efetivo ou potencial/futuro) das pessoas coletivas.” (cfr. p. arbitral  94/2016T, já citado).

[8] Salvo melhor opinião, a expressão “paraíso fiscal” será uma tradução incorrecta da expressão inglesa “tax haven”, sendo que “haven” significa “abrigo”, e não “paraíso”, que poderá ser uma tradução possível de “heaven”.

[9] Ou seja: por exemplo, o encargo com uma viatura ligeira de passageiros que esteja ao serviço de uma empresa, mas ocasionalmente, de forma efectiva ou presumida, seja objecto de uso particular por um funcionário ou terceiro, será objecto de tributação autónoma.

[10] Cfr. neste sentido, por exemplo, as decisões arbitrais nos processos 628/2014T e 704/2015T (esta, à data, ainda não publicada).

[11] Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 20.ª reimpressão, 2012, p. 186.

[12] Cfr. Nina Aguiar,“ A lei fiscal e os Juízos Contabilísticos Discricionários” in O SNC e os Juízos de Valor uma perspectiva crítica e multidisciplinar, Almedina, junho 2013, p.302

[13] Cfr., por exemplo, Ac. do STA de 30-11-2011, proferido no processo 0107/11.

[14] Note-se que estamos aqui a falar de despesas documentadas. As não documentadas, pela sua própria natureza, cuja análise escapa ao âmbito da presente decisão, serão justificadoras de tratamento distinto.

[15] Ao abrigo deste princípio, as normas fiscais não se substituem às normas contabilísticas nem desconectam o cálculo do lucro tributável do lucro contabilístico, embora conduzam a um resultado diferente. Assim, mesmo que um encargo seja não dedutível fiscalmente, se esse encargo tiver relevância contabilística, terá que ser contabilizado em conformidade com o sistema normativo contabilístico vigente na jurisdição em análise. Ora, no direito fiscal português em termos de IRC, no artigo 17.º, n.º 3, estabelece-se uma remissão para a regulação “contabilística em vigor” e, no n.º 1 da mesma norma, uma regra de conexão formal entre as normas contabilísticas e fiscais. Aliás, a fórmula portuguesa do princípio da conexão formal, anda muito próxima da que existe no direito espanhol e italiano.

[16] Cfr. a título de exemplo, Ac. do STA de 26-02-2104, proferido no processo 0951/11, disponível em www. dgsi.pt.

[17] Cfr. Ac. do STA de 05-06-2013, proferido no processo 0433/13, disponível em www. dgsi.pt.