Acórdão
Os árbitros Juiz José Poças Falcão (árbitro presidente), Doutor Paulo Lourenço e Doutora Ana Pedrosa Augusto, (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do CAAD para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 6-5-2016, acordam no seguinte:
I. Relatório
A…, S.A., sociedade com sede na Rua…, n.º…, …, em Lisboa, matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o número único de matrícula e pessoa coletiva…, (doravante, a “Requerente”), requereu ao Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), a constituição de tribunal arbitral em matéria tributária, nos termos do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, doravante designado por “RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação i) do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa do ato tributário de liquidação de Imposto do Selo ("IS") na parte respeitante ao montante de €273.000,00 (duzentos e setenta e três mil euros) e ii) da liquidação de IS subjacente, na parte respeitante àquele montante, relativo a uma garantia prestada no âmbito de empréstimo obrigacionista.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
A Requerida apresentou Resposta.
Ulteriormente veio a ser dispensada, com a concordância das partes, a reunião prevista no artigo 18º, do RJAT.
II. Questões a decidir
Considerando os factos e a matéria de direito constantes do pedido de pronúncia arbitral apresentado pela Requerente e a resposta da Requerida, a questão controvertida a decidir pelo Tribunal Arbitral é de saber se o artigo 7.º n.º1 alínea d) do CIS, que estabelece uma isenção de imposto, é aplicável à operação realizada pela Requerente, ou seja, se no caso, houve uma “garantia inerente a operações realizadas, registadas, liquidadas ou compensadas através de entidade gestora de mercados regulamentados ou através de entidade por esta indicada ou sancionada no exercício de poder legal ou regulamentar, ou ainda por entidade gestora de mercados organizados registados na CMVM, que tenham por objeto, direta ou indiretamente, valores mobiliários”.
III. Matéria de Facto
Com relevância para a apreciação do pedido da Requerente, são os seguintes os factos que se dão por provados, com base na posição das partes nos respetivos articulados, na cópia do processo administrativo instrutor e nos demais documentos juntos ao processo:
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A Requerente constituiu hipoteca de primeiro grau, por escritura pública outorgada em 21 de outubro de 2014, para garantia do cumprimento pontual e tempestivo das obrigações de reembolso do capital e do pagamento de juros devidos em virtude da emissão de obrigações “B”, no valor de €45.500.000,00;
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Foi liquidado pela notária que outorgou aquela escritura, entre outros, o montante de Imposto do Selo de €273.000,00 referente à hipoteca constituída para garantia do valor da emissão obrigacionista;
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A Requerente procedeu ao pagamento do imposto liquidado;
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A hipoteca supra referida surge no âmbito de uma operação de financiamento do projeto da Requerente, ao abrigo da qual foram celebrados contratos financeiros vários com um conjunto de bancos;
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Para aquelas obrigações “B”, no valor de €45.500.000,00, ficou definido que as obrigações fossem colocadas ao abrigo de contrato de colocação com garantia de subscrição celebrado entre a Requerente e vários bancos subscritores;
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A emissão de obrigações foi efetuada parcialmente em séries;
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O Banco C… S.A. foi mandatado para representar a Requerente, entre outros, perante a D…, S.A. (“D…”), a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (“CMVM”) e a Agência Nacional de Codificação;
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O Banco C…, S.A. foi mandatado também como agente pagador de juros e amortizações de capital devidos aos titulares das obrigações para serem creditados nas contas da ... em nome de cada titular de obrigações;
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A emissão de obrigações foi registada na Central de Valores Mobiliários, gerida pela D…;
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A D… era, à data dos factos, uma sociedade anónima, cujo capital era inteiramente detido pela E…, S.A. (“E…”);
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A D… tem por objeto a gestão de sistemas de liquidação e de sistemas centralizados de valores mobiliários.
Motivação
A convicção do Tribunal relativamente ao sobredito quadro factual, fundou-se na prova documental e na inexistência de controvérsia entre as partes quanto a tal matéria na medida em que a divergência essencial está no enquadramento jurídico-legal dos factos ou seja, a aplicação ou não à operação em causa o disposto no artigo 7º-1/d), do CIS (Código do Imposto de Selo).
Não existem, com relevância para o objeto do processo, outros factos, provados e/ou não provados.
IV. Matéria de Direito
A Requerente pretende, a final, a anulação da liquidação do Imposto do Selo quanto ao montante de €273.000,00 referente à hipoteca constituída para garantia do valor da emissão obrigacionista, entendendo que será aplicável à operação realizada o disposto no artigo 7.º n.º1 alínea d) do CIS.
A Requerida considera que a isenção de IS constante daquele artigo 7.º n.º1 alínea d) do CIS não é aplicável ao caso em apreço.
A disposição legal invocada estabelece uma isenção de IS para “as garantias inerentes a operações realizadas, registadas, liquidadas ou compensadas através de entidade gestora de mercados regulamentados ou através de entidade por esta indicada ou sancionada no exercício de poder legal ou regulamentar, ou ainda por entidade gestora de mercados organizados registados na CMVM, que tenham por objeto, direta ou indiretamente, valores mobiliários, de natureza real ou teórica, direitos a eles equiparados, contratos de futuros, taxas de juro, divisas ou índices sobre valores mobiliários, taxas de juro ou divisas.”
Assim, para que as garantias (como a hipoteca em questão) sejam isentas de IS ao abrigo desta norma, será necessário que:
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Sejam inerentes a operações realizadas, registadas, liquidadas ou compensadas através de:
i) entidade gestora de mercados regulamentados; ou
ii) através de entidade por esta indicada ou sancionada no exercício de poder legal ou regulamentar ou, ainda,
iii) por entidade gestora de mercados organizados registados na CMVM
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Tenham por objeto operações sobre valores mobiliários ou equiparados, de natureza real ou teórica, direitos a eles equiparados, contratos de futuro, taxas de juro, divisas ou índices sobre valores mobiliários, taxas de juro ou divisas.
Importa assim averiguar se a operação em questão (emissão obrigacionista) pode enquadrar-se nos pressupostos supra enunciados.
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Objeto da operação
Por facilidade de exposição, enquadrar-se-á, em primeiro lugar, o que seja o objeto da operação. Nos termos do artigo 1.º alínea b) do Código dos Valores Mobiliários (“CVM”), as obrigações são valores mobiliários. Ora, a operação em apreço no presente processo refere-se à emissão de obrigações. Consequentemente, não haverá dúvidas de que a garantia prestada (hipoteca) foi inerente à emissão de valores mobiliários.
A Requerida indica que a criação de valores mobiliários e a sua subscrição não constitui uma operação de mercado regulamentado ou organizado, e que, como tal (assim se depreende da Resposta), não estaria cumprido o requisito indicado em b. supra.
Ora para efeitos deste requisito específico, é irrelevante que as operações sejam realizadas em mercado regulamentado, organizado ou outro. Se, como é sabido, a emissão é a operação pela qual os valores mobiliários são criados e oferecidos aos investidores que os queiram adquirir, não haverá se não que concluir que aquele requisito se encontra preenchido. A operação teve por objeto valores mobiliários.
B. Entidade gestora de mercados regulamentados
Estando em causa uma operação sobre valores mobiliários, como se demonstrou, será que a emissão obrigacionista (a operação em relação à qual a hipoteca seria inerente) foi realizada, registada, liquidada ou compensada através de entidade gestora de mercados regulamentados? A resposta a esta questão é negativa, e nisso tanto a Requerente como a Requerida estão de acordo. À data da operação em questão (21 de outubro de 2014), apenas a E… era uma entidade gestora de mercados regulamentados, nos termos do disposto na Portaria n.º 556/2005, de 27 de junho (à data, a F…, S. A. tinha já o seu registo cancelado junto da CMVM[1]). Consequentemente, e tendo a operação sido registada na Central de Valores Mobiliários, gerida pela D…, não houve intervenção da então única entidade gestora de mercados regulamentados, a E… .
Perante a conclusão supra, cumpre então perceber se a emissão obrigacionista foi registada na Central de Valores Mobiliários gerida pela D…, agindo a D… como entidade indicada ou sancionada no exercício de poder legal ou regulamentar pela E… .
C. Entidade indicada ou sancionada no exercício de poder legal ou regulamentar
A E… não pode, legalmente, exercer a atividade de gestão de sistemas de liquidação ou de gestão de sistemas centralizados de valores mobiliários. O próprio preâmbulo do Decreto-Lei n.º 357-C/2007, de 31 de outubro, que regula o regime jurídico das sociedades gestoras de mercados regulamentados, das sociedades gestoras de sistemas de negociação multilateral, das sociedades gestoras de câmara de compensação, das sociedades gestoras de sistema de liquidação e das sociedades gestoras de sistema centralizado de valores mobiliários, é claro: “No que concerne ao objeto das entidades gestoras de mercados regulamentados, vem, de um lado, incluir-se no seu âmbito a gestão de sistema de negociação multilateral e, de outro lado, excluir-se a possibilidade de acumularem a atividade de gestão de sistema de liquidação, sendo o propósito ínsito desta segunda alteração a segregação de risco entre ambas as funções.”
Por outro lado, as sociedades gestoras de sistema de liquidação e de sistemas centralizados de valores mobiliários, como é a D…, não podem prestar serviços de gestão de mercados de valores mobiliários (artigo 45.º n.º2 do Decreto-Lei n.º 357-C/2007 de 31 de outubro).
Em função do exposto, será a D…, perante a incapacidade legal da E… de agir como entidade gestora de sistema centralizado de valores mobiliários, entidade sancionada ou indicada para o efeito pela E…, ao abrigo de poder legal ou regulamentar desta?
A resposta à questão indicada tem que ser encontrada, necessariamente, tendo por referência a operação relativamente à qual a garantia é inerente, ou seja, à emissão obrigacionista. É que se a emissão obrigacionista em questão tivesse que ter obrigatoriamente, e por força de imperativo legal, intervenção da E…, então – e perante a incapacidade legal da E… de gerir o sistema centralizado de valores mobiliários - a intervenção da D… poderia ser resultante daquele sancionamento ou indicação. Se, pelo contrário, a emissão obrigacionista não necessitasse de tal intervenção da E…, então já não será possível considerar que a intervenção da D… teve lugar por sancionamento ou indicação daquela entidade gestora de mercados regulamentados.
Na apreciação deste ponto não será relevante a estrutura acionista da D… . De facto, como bem refere a Requerida, o facto de a E… deter 100% do capital social da D… não é sinónimo de que esta tenha sido por si sancionada ou indicada para assegurar serviços de gestão de sistemas centralizados de valores mobiliários e de sistemas de liquidação de operações sobre os mesmos. Tal dependeria sempre e em qualquer caso de um exercício de poder legal ou regulamentar para o efeito.
Assim, há que compreender a emissão obrigacionista concretizada pela Requerente.
Nos termos do artigo 350.º n.ºs 1 e n.º3 do Código das Sociedades Comerciais (“CSC”), os acionistas da Requerente deliberaram uma emissão de obrigações. Tal emissão está sujeita a registo comercial, nos termos do artigo 351.º n.º 1 do CSC, o que, de acordo com a prova documental junta aos autos, ocorreu.
Resulta igualmente da documentação junta aos autos que as obrigações eram nominativas e escriturais (representadas por registo em conta, cf. artigo 46.º n.º1 do CVM).
Por força do artigo 43.º do CVM, a emissão de valores mobiliários que não tenham sido destacados de outros valores mobiliários, como é o caso, está sujeita a registo junto do emitente.
E tal registo individualizado consta de (cf. artigo 61.º do CVM):
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Conta aberta junto de intermediário financeiro, integrada em sistema centralizado; ou
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Conta aberta junto de um único intermediário financeiro indicado pelo emitente; ou
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Conta aberta junto do emitente ou de intermediário financeiro que o representa.
Adicionalmente, de acordo com o artigo 62.º do CVM, apenas são obrigatoriamente integrados em sistema centralizado os valores mobiliários escriturais admitidos à negociação em mercado regulamentado.
Não resulta de quanto foi alegado ou dos documentos juntos ao processo que as obrigações em questão tenham sido admitidas à negociação em mercado regulamentado.
Assim, de facto, a Requerente requereu o registo individualizado das obrigações em sistema centralizado gerido pela D… . Todavia, o registo na Central de Valores Mobiliários não era obrigatório, por força do facto de as obrigações não terem sido admitidas à negociação em mercado regulamentado (no caso, que fosse gerido pela E…). Apenas neste caso se poderia apreciar se a atuação da D… tinha sido indicada pela própria E…, considerando a sua incapacidade legal para o registo de valores mobiliários.
Não sendo esta a situação, não resta se não concluir que a emissão obrigacionista foi registada na Central de Valores Mobiliários gerida pela D…, mas a D… não agiu como entidade indicada ou sancionada no exercício de poder legal ou regulamentar pela E… . A atuação da D… foi contratada pela Requerente a título particular e facultativo, tal como constante do Regulamento da ... n.º 3/2000, designadamente dos respetivos artigos 11.º, 13.º e 19.º.
Fica apenas por definir se a D… pode ser considerada uma entidade gestora de mercados organizados registados na CMVM.
D. Entidade gestora de mercados organizados registados na CMVM
Como indica António Soares[2], o CVM prevê a existência de mercados organizados de valores mobiliários que funcionarão de acordo com as regras que para o efeito venham a ser livremente estabelecidas pela respetiva entidade gestora. Esta constituição é livre, dependendo apenas de um controlo prévio de legalidade por parte da CMVM.
A presente consideração é suficiente e bastante para perceber, ab initio, que a D… não é uma entidade gestora de quaisquer mercados organizados porquanto tal atividade lhe é imperativamente vedada pelo artigo 45.º n.º2 do Decreto-Lei n.º 357-C/2007 de 31 de outubro.
E. Conclusão
Decorre da análise da matéria de direito constante dos pontos A. a D. supra que:
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A Requerida realizou uma operação sobre valores mobiliários;
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A Requerida prestou uma garantia inerente a tal operação sobre valores mobiliários;
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A operação em questão não foi realizada através de entidade gestora de mercados regulamentados;
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A operação não foi realizada através de entidade indicada ou sancionada por entidade gestora de mercados regulamentados, no exercício de poder legal ou regulamentar;
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A operação não foi realizada através de entidade gestora de mercados organizados registados na CMVM.
Consequentemente, a operação em apreço no presente não poderia beneficiar da isenção de IS constante do artigo 7.º n.º1 alínea d) do CIS.
Como referem Artur Santos Rocha e Eduardo José Martins Brás[3], “como resulta do texto da própria alínea d) a isenção contempla, tão só, as garantias inerentes a operações, que sejam realizadas em bolsas nacionais e que tenham a tutela da entidade gestora de mercados regulamentados e por objeto os valores mobiliários, ali referidos.
Transcreve-se o entendimento da Autoridade Tributária, sobre a matéria [Circular 15/2000, de 5/7]: «Salienta-se, no entanto, que a isenção consignada nas alíneas c) e d) do n.º1 do artigo 6.º (atual art. 7.º) do Código, constituindo mera transposição da que constava, respetivamente, dos artigos 92, alínea c), e 94, n.º4, da anterior Tabela Geral do Imposto do Selo, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 85/96, de 29 de junho, apenas se aplica às operações realizadas em bolsas nacionais»”.
Do exposto decorre a improcedência do pedido da Requerente.
V. Decisão
Termos em que acordam neste Tribunal Arbitral em
a) Julgar totalmente improcedentes os pedidos de declaração de ilegalidade e consequente anulação: i) do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa do ato tributário de liquidação de Imposto do Selo ("IS") na parte respeitante ao montante de €273.000,00 (duzentos e setenta e três mil euros) e ii) da liquidação de IS subjacente, na parte respeitante àquele montante, relativo a uma garantia prestada no âmbito de empréstimo obrigacionista;
b) Condenar a Requerente, A…, S.A., nas custas do processo.
Valor do processo
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 273.000,00
Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €4.896,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente, conforme anteriormente decidido.
Lisboa, 14-11-2016
O Tribunal Arbitral
José Poças Falcão
(Presidente)
Paulo Lourenço
(Árbitro Adjunto)
Ana Pedrosa Augusto
(Árbitro Adjunto)
[1] Conforme informação disponível no site da CMVM, in …
[2] Mercados Regulamentados e Mercados não Regulamentados, Cadernos da CMVM, n.º7, abril de 2017, p. 282.
[3] In Tributação do Património, IMI-IMT e Imposto do Selo (Anotados e Comentados), Almedina, Coimbra, 2015, p. 578