Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 83/2016-T
Data da decisão: 2016-10-24  IVA  
Valor do pedido: € 51.010,14
Tema: IVA – Direito à dedução de imposto por serviços contratados relativos à construção de um imóvel
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Decisão Arbitral

 

I.              RELATÓRIO

 

A…, NIF…, com domicílio fiscal na …, Lote … …, … (doravante apenas designada por Requerente), apresentou, em 15-02-2016, um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com as alíneas a) do art. 99.º do CPPT, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida).

A Requerente pede a declaração de ilegalidade da liquidação de IVA do período 201209T em que foi reconhecido o direito à dedução de apenas parte do imposto incorrido na sua actividade. Em consequência, deverá ser reconhecido à Requerente o direito ao reembolso do valor de € 51.010,14, acrescido de juros indemnizatórios.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 16-02-2016 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nessa mesma data.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a ora signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 14-04-2016 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 29-04-2016.

Notificada para se pronunciar, a Requerida apresentou requerimento em que suscitou a intempestividade do pedido de pronúncia arbitral, e sustentou, no mais, a legalidade do acto de liquidação impugnado. Concluiu, por isso, pela total improcedência do pedido deduzido pela Requerente.

A Requerente teve oportunidade de se pronunciar sobre a excepção invocada, propondo, subsidiariamente, a ampliação do pedido, nos termos do n.º 2 do art. 265.º do CPC.

A 13-07-2016 teve lugar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT em que foram ouvidas as testemunhas arroladas pela Requerente. Finda a produção de prova, foi concedido às partes prazo para apresentação de alegações escritas sucessivas, o que ambas vieram a fazer.

 

II.          DO PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL

 

A Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral com vista à anulação da liquidação de IVA n.º 2014…, referente ao período de 201209T, com valor a reembolsar de apenas € 18.942,25, ao invés dos € 76.934,06 inicialmente requeridos.

A redução do valor efectivamente reembolsado face ao pedido que havia sido submetido pela Requerente resultou do facto de a Requerida ter considerado, entre outros fundamentos, que parte significativa do IVA deduzido pela Requerente fora liquidado indevidamente, em violação do disposto na alínea c) do n.º 6 do art. 16.º do CIVA, não tendo, sequer, sido entregue nos cofres do Estado pelo prestador do serviço, a sociedade “B…, Lda.”, NIPC… .

A Requerente contesta este entendimento, defendendo que o IVA liquidado pela referida sociedade corresponde ao imposto devido pelos serviços contratados pela Requerente relativos à construção de um imóvel, do jardim e da respectiva piscina no lote … adquirido pela Requerente no empreendimento turístico C… .

O contrato celebrado entre a Requerente e a sociedade em causa resumia-se a um contrato do tipo “chave na mão” em que a Requerente teria de pagar apenas o valor previsto no contrato e esse valor incluía todos e quaisquer materiais, equipamentos e serviços necessários à conclusão da construção da moradia pronta a utilizar. A sociedade prestadora do serviço assumiria toda a condução e gestão da empreitada, assumindo a responsabilidade pela sua concretização e pela entrega da moradia construída, de acordo com as especificações previstas contratualmente.

Como contrapartida dos serviços contratados (serviços subcontratados a empreiteiros, bem como serviços próprios prestados pela sociedade), a Requerente pagou € 377.130,00, acrescidos de IVA à taxa legal em vigor, quantia esta correspondente ao total dos montantes expressamente fixados no contrato. Este pagamento da Requerente ficou documentado na nota de débito n.º…, no valor total de € 452.556,00 (IVA incluído).

À medida que a obra ía sendo feita, os empreiteiros emitiam as facturas em nome da sociedade que procedia ao respectivo pagamento com base nos fundos inicialmente disponibilizados pela Requerente. Nas situações em que os fornecedores emitiam as facturas em nome da Requerente, a sociedade gestora do projecto procedia ao seu pagamento e emitia uma nota de crédito em nome da Requerente para justificar a utilização dos fundos e evitar a duplicação de valores.

A sociedade “B…, Lda.” efectuou uma efectiva prestação de serviços sujeita a IVA pelo que qualquer adiantamento que fosse efectuado estaria sempre sujeito a imposto. Nessa medida, o IVA foi liquidado em conformidade com as regras fiscais aplicáveis, conferindo à Requerente o direito à sua dedução, de acordo com o respectivo regime legal de dedução.

Mas, mesmo que se entendesse que o imposto havia sido liquidado indevidamente, tal não seria fundamento para recusa do direito à dedução, como já foi decidido pelo Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 23-09-2015, proc. n.º 01034/11, em que este tribunal concluiu que “(…) tendo a AT aceitado a liquidação de IVA respeitante a determinada operação (…), não pode depois, para efeitos do exercício do direito à dedução do imposto, entender que a mesma liquidação é inválida”.

Por outro lado, o facto de a entidade em causa não ter procedido à entrega do imposto em causa não é oponível à Requerente como fundamento de recusa do direito à dedução do IVA suportado, sendo irrelevante, para este efeito, a alegada existência de um processo de insolvência da sociedade prestadora do serviço e a não reclamação de qualquer crédito por parte da Requerente no âmbito do processo de insolvência.

Conclui, por isso, a Requerente sustentando que o IVA liquidado pela B…, Lda.” era efectivamente devido pelo que conferia à Requerente o direito à sua dedução, sujeito ao respectivo regime de apuramento de IVA. Nessa medida, a liquidação de IVA contestada é ilegal por não ter considerado o direito da Requerente à dedução do IVA suportado e pago no montante de € 51.010,14.

Considerando-se que o imposto reembolsado à Requerente foi inferior ao que, legalmente, seria devido, a Requerente terá direito a juros indemnizatórios, nos termos do n.º 8 do art. 22.º do CIVA conjugado com o art. 43.º da LGT.

Tal pretensão da Requerente não foi acolhida em sede de reclamação graciosa, tendo a Requerida proferido despacho de indeferimento parcial que manteve, como válido, o acto tributário reclamado. Relativamente a esta decisão, a Requerente considera que foi violado o n.º 1 do art. 56.º da LGT porquanto a Requerida não se terá pronunciado sobre todas as questões suscitadas pela Requerente.

A final, a Requerente efectuou um pedido de reenvio prejudicial ao TJUE por considerar que as questões em apreciação nos presentes autos estão relacionadas com a interpretação do Direito Comunitário.

 

III.         DA RESPOSTA DA REQUERIDA

 

Na resposta apresentada, a Requerida alega a excepção de intempestividade do pedido de pronúncia arbitral porquanto, tendo este por objecto a liquidação de IVA notificada à Requerente em Setembro de 2014, na data de submissão do pedido de pronúncia arbitral que deu origem aos presentes autos (15-02-2016) já estaria decorrido o prazo de 90 dias previsto no art. 10.º do RJAT, quando conjugado com o art. 102.º, n.º 1, alínea b), do CPPT.

Em sede impugnatória, a Requerida considera totalmente improcedente o pedido deduzido pela Requerente, sustentando a legalidade das correcções efectuadas e, consequentemente, da liquidação de IVA impugnada. Entende, ainda, a Requerida não haver lugar a qualquer reenvio prejudicial ao TJUE.

 

IV.         DA RESPOSTA À EXCEPÇÃO

 

No exercício do contraditório, a Requerente veio reiterar a conformidade e tempestividade do pedido deduzido, propondo-se, a título subsidiário, ampliar o pedido, ao abrigo do n.º 2 do art. 265.º do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º do RJAT, no sentido de pedir igualmente a anulação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa.

 

V.          SANEADOR

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

III.         MATÉRIA DE FACTO

 

                        A. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

1.             A Requerente era proprietária do lote n.º 118 do empreendimento turístico denominado “C…”.

2.             Enquanto proprietária do referido lote, a Requerente celebrou com a “B…, S.A.”, NIPC…, um Contrato de Cedência de Exploração Turística pelo qual cederia a esta sociedade, com vista à sua exploração turística, a moradia a edificar no local, durante 40 semanas por ano civil.

3.             Por contrato outorgado a 25-01-2008, a Requerente contratou a sociedade “B…, Lda.”, NIPC…, para prestação dos serviços seguintes, conforme resulta da Cláusula Primeira:

A B… obriga-se perante o SEGUNDO OUTORGANTE [a ora Requerente] a prestar-lhe os seguintes serviços: a) contratar, em nome do SEGUNDO OUTORGANTE, empreiteiro(s) para a construção do projecto identificado no Anexo II, com o caderno de encargos elaborado pelos projectistas; b) contratar empreiteiro(s), em nome do SEGUNDO OUTORGANTE, para a construção do jardim projecto para a cobertura do lote e respectivo sistema de rega; c) contratar, em nome do SEGUNDO OUTORGANTE, empreiteiro(s) que construam a piscina, com todas as máquinas convenientes e, bem assim, a providenciar a zona envolvente desta, tudo de acordo com a opção definida pelo Sr. Arquitecto D…, caso o SEGUNDO OUTORGANTE o pretenda, o que deverá comunicar à B… até ao início da construção da moradia identificada na alínea a) supra; d) proceder aos trabalhos necessários à concretização do jardim tipo previsto para o lote em questão, caso o SEGUNDO OUTORGANTE o pretenda, o que deverá comunicar à B… até ao início da construção da moradia identificada na alínea a) supra; e) finda a construção, a B… procederá à vedação vegetal do lote, de acordo com o projecto base de vedação existente para o conjunto de lotes onde este se insere; f) a programação e coordenação de todos os trabalhos; g) a fiscalização de todos os trabalhos, com responsabilidade exclusiva da B…”.

4.             De acordo com a Cláusula Terceira do contrato referido no ponto anterior, o preço e condições de pagamento acordados foram os seguintes:

2. Os preço dos trabalhos e serviços, incluindo os bens e empreitadas, definidos no número 1 da Cláusula Primeira, são: a) € 318.530 (…) a que acresce IVA à taxa legal em vigor, respeitantes à construção  do projeto, do jardim projectado para a cobertura do lote e respectivo sistema de rega, bem como ao arranjo da cobertura vegetal do lote, incluindo os serviços referidos nas alíneas f) e g) do número 1 da Cláusula Primeira; b) € 35.000 (…) a que acresce IVA à taxa legal em vigor, respeitantes à construção da piscina e da zona envolvente; c) € 23.600 (…) a que acresce IVA à taxa legal em vigor, respeitantes à construção do jardim tipo.

3. Este valor será pago em 15 (…) mensalidades iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira 15 (…) dias após o início da escavação para fundações (…).

4. O SEGUNDO OUTORGANTE obriga-se, pois, a entregar à B… o montante correspondente ao preço das empreitadas e serviços mencionados na alínea a) supra e nas alíneas b) e c), caso opte pelos respectivos serviços, nos prazos referidos no número anterior. A cada uma das 15 (…) mensalidades corresponderá uma ou mais facturas emitidas pelos empreiteiros e outra da B…”.

5.             Não estando prevista uma contrapartida específica e concreta para os serviços prestados pela “B…, Lda.”, esta seria remunerada pelo diferencial entre o valor previamente definido no contrato com a Requerente e o custo real das empreitadas a contratar, fazendo seu esse valor (se se verificasse).

6.             Nos termos do contrato, corria por conta da “B…, Lda.” o risco de o custo final da construção ser superior ao acordado entre as partes já que o valor fixado com o cliente era um valor final.

7.             Em 22-01-2011, a “B…, Lda.” emitiu as seguintes Notas de Débito em nome da Requerente:

- n.º…, no montante de € 452.556, com IVA incluído no valor de € 75.426, com o descritivo “Quantia referente ao adiantamento feito relativo ao contrato de prestação de serviços celebrado” (tradução deste tribunal);

- n.º…, no montante de € 68.110,26, com IVA incluído no valor de € 1.351,71, com o descritivo “C…– Lote…; Quantia debitada refere-se à modelagem do solo” (tradução deste tribunal);

- n.º…, no montante de € 8.053,09, com IVA incluído no valor de € 1.342,18 com o descritivo “C…– Lote…; Quantia debitada refere-se vidro de janela e moldura de janela” (tradução deste tribunal);

- n.º…, no montante de € 1.829,87, com IVA incluído no valor de € 304,98 C…– Lote…; Quantia debitada refere-se vidro de janela e moldura de janela” (tradução deste tribunal).

8.             A Nota de Débito n.º … corresponde ao total da empreitada e dos serviços contratados, nos termos fixados na Cláusula Terceira do contrato.

9.             Na mesma data, a sociedade em causa emitiu em nome da Requerente as seguintes Notas de Crédito:

- n.º…, no montante de € 165.618,56, com IVA incluído no valor de € 27.603,09;

- n.º…, no montante de € 15.228,14, com IVA incluído no valor de € 2.538,02;

- n.º…, no montante de € 30.788,65, com IVA incluído no valor de € 5.131,44;

- n.º…, no montante de € 12.360,32, com IVA incluído no valor de € 2.145,18.

10.         As Notas de Crédito emitidas pela “B…, Lda.” têm como descritivo “C…– Lote…; Valor pela prestação de serviços; Crédito relativo ao adiantamento feito nos termos do art. 78 CIVA” (tradução deste tribunal).

11.         Todos estes documentos foram registados na contabilidade da Requerente, nas correspondentes contas (IVA dedutível e regularizações a favor do Estado, respectivamente).

12.         A “B…, Lda.” foi declarada insolvente por sentença proferida a 22-12-2011, no âmbito do proc. n.º …/11… TYVNG que correu termos pelo 2.º Juízo do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia.

13.         A 15-11-2012, a Requerente procedeu à entrega da declaração periódica de IVA do trimestre 201209T na qual solicitou o reembolso de € 76.934,06.

14.         Na sequência desse pedido de reembolso, a Requerida deu início ao procedimento interno de controlo sob a OI2012… .

15.         Através do ofício n.º…, de 17-01-2013, o representante fiscal da Requerente foi notificado para apresentar elementos necessários à apreciação do pedido de reembolso.

16.         Este ofício nunca foi respondido pelo representante fiscal da Requerente.

17.         Na ausência de mais elementos, a Requerida concluiu que:

18.         Na sequência deste ofício, a Direcção de Finanças de…, através da OI2014…, deu início ao procedimento externo de inspecção cujo relatório final foi notificado à Requerente, na pessoa do seu representante fiscal, através de carta registada com aviso de recepção remetida a 07-07-2014.

19.         Em sede de inspecção, e no que se refere em concreto ao montante do reembolso em discussão nos presentes autos (no montante de € 51.010,14), a Requerida concluiu o seguinte:

 

20.         A 29-07-2014, a Requerida efectuou a liquidação de IVA do trimestre 201209T, sob o n.º 2014…, da qual resultou imposto a reembolsar no montante de € 18.942,25.

21.         Na referida liquidação, a Requerida inscreveu no Campo 41 (“Regularizações a favor do Estado”) o montante de € 57.991,81.

22.         A Requerente apresentou reclamação graciosa em que contestou a correcção das regularizações efectuadas a favor do Estado (i) pelo montante de € 51.010,14 e (ii) pelo montante de € 999,00, que correspondem a IVA não dedutível (na óptica da Requerida).

23.         A reclamação graciosa foi parcialmente deferida, tendo sido reconhecida razão à Requerente quanto à correcção no montante de € 999,00.

24.         A decisão da reclamação graciosa foi notificada à Requerente, na pessoa do seu representante fiscal, por carta registada com aviso de recepção recebida a 17-11-2015.

 

B. Factos não provados

 

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão arbitral.

 

C. Fundamentação da matéria de facto

 

A matéria de facto dada como provada assenta na prova documental apresentada e não contestada, nomeadamente o procedimento administrativo, bem como no depoimento das testemunhas E…, técnico oficial de contas, e F…, engenheiro civil. Os depoimentos referidos assumiram-se como sérios e isentos aos olhos do Tribunal, na medida em que, a par com as características de espontaneidade dos mesmos, se mostraram logicamente estruturados e coerentes.

 

IV.         MATÉRIA DE DIREITO

 

              A. Da excepção de intempestividade

 

Como referido, a Requerida considera que o presente pedido de pronúncia arbitral é extemporâneo porquanto, cingindo-se o objecto da presente acção à declaração de ilegalidade do acto de liquidação de IVA do trimestre 201209T, efectuado em Julho de 2014, o prazo de 90 dias a que se refere o art. 10.º do RJAT estaria decorrido à data em que o pedido foi submetido.

Na óptica da Requerida, a delimitação do objecto dos presentes autos resulta expressamente da formulação do pedido efectuado pela Requerente que declara, no início da petição inicial, que “(…) vem, respeitosamente, pedir a declaração de ilegalidade da liquidação de IVA n.º 2014…, de 29.07.2014, emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira, relativa ao terceiro trimestre de 2012 (…)”, concluindo, a final, que “(…) vem a Requerente solicitar, respeitosamente: a) A declaração de ilegalidade e correspondente anulação da liquidação de IVA aqui impugnada, que deve ser substituída por uma nova liquidação que considere o sobredito valor de Euro 51.010,14 de IVA a reembolsar à Requerente, com a consequente restituição efectiva deste valor à Requerente; b) O reconhecimento à Requerente do direito a juros indemnizatórios, nos termos acima referidos; e c) A condenação da Requerida no pagamento das custas arbitrais.

Entende, ainda, a Requerida que, não obstante o facto de a Requerente ter feito alusão à existência de uma reclamação graciosa que veio a ser parcialmente deferida, a verdade é que não efectuou ou concretizou qualquer pedido tendente à anulação do que nessa sede foi decidido.

Sustenta a Requerida que, estando este Tribunal limitado a pronunciar-se sobre o pedido deduzido em concreto e não podendo, nos termos dos arts. 608.º, n.º 2, e 609.º, n.º 1, do CPC, condenar em objecto diferente ou em quantidade superior ao que tiver sido pedido, é forçoso concluir que o único objecto dos presentes autos é o acto de liquidação de IVA praticado em Julho de 2014.

Fixado, nestes termos, o objecto do processo, conclui a Requerida pela intempestividade do pedido de pronúncia por ter sido deduzido muito para lá do prazo previsto no art. 10.º do RJAT, contado da data de notificação do acto contestado. Pelo que resta apenas a este tribunal absolver a Requerida da instância, nos termos da alínea e) do n.º 1 do art. 278.º do CPC.

Numa análise superficial do pedido de pronúncia arbitral, este Tribunal até poderia concluir como faz a Requerida.

No entanto, de uma análise mais detalhada e atenta da petição submetida, este Tribunal é levado a concluir – como, aliás, a própria Requerente alegou no requerimento em resposta à excepção – que o objecto do presente pedido de pronúncia arbitral também abarca a decisão de indeferimento da reclamação graciosa.

Com efeito, nos artigos 199.º e seguintes da petição inicial, a Requerente debruça-se sobre o conteúdo da decisão proferida pela Requerida na sequência da reclamação graciosa deduzida. Vejam-se, a título de exemplo, os artigos 210, 214, 215 e 216, e mais concretamente o artigo 213 em que a Requerente conclui que “Com efeito, o despacho de indeferimento parcial da Reclamação Graciosa enferma de erro nos pressupostos de facto que estiveram na génese da correcção e da liquidação em questão”.

A Requerente aponta, ainda, um vício específico da decisão de indeferimento, nos arts. 216 e 217, quando alega que “(…) o que se denota do teor do dito despacho de indeferimento parcial da reclamação graciosa é que a AT não se preocupou em apreciar minimamente a argumentação aduzida pela Requerente na reclamação graciosa apresentada (e respectiva documentação anexa), incorrendo a AT, por isso, em violação do artigo 56.º n.º 1 da LGT”.

É, portanto, incorrecta a alegação de que a Requerente se tenha limitado a fazer uma alusão à existência de uma reclamação graciosa e do respetivo indeferimento (ainda que parcial).

A petição deduzida pela Requerente é, na análise deste Tribunal, mais abrangente do que, à partida, se poderia retirar da estrita leitura do pedido deduzido a final.

Ao julgador impõe-se uma adequada e detalhada apreciação dos articulados e elementos submetidos pelas partes para efeitos de delimitação do objecto processual, tendo em vista o valor máximo de acesso à justiça.

Isto mesmo vem sendo defendido em diversas decisões do Supremo Tribunal Administrativo ao considerar que, na interpretação do pedido formulado, deve usar-se de alguma flexibilidade não afastando o recurso à figura do pedido implícito por desta forma se salvaguardar melhor o respeito pelos princípios da tutela jurisdicional efectiva e do pro actione. Exemplo disso é o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16-12-2015, proferido no proc. n.º 01508/14 (disponível em www. dgsi.pt) em que se defendeu que, “(…) de acordo com o entendimento que tem vindo a ser adoptado por este Supremo Tribunal Administrativo, na interpretação do pedido não deve o juiz ficar-se pela redacção que lhe foi dada; há que ir um pouco mais longe, não olvidando que nesta tarefa hermenêutica não podem ignorar-se as concretas causas de pedir invocadas, na medida em que permitam descortinar a verdadeira pretensão de tutela jurídica, ainda que com recurso à figura do pedido implícito (...). Na verdade, a nossa lei processual procura desde sempre evitar, sempre que possível, que a parte perca o pleito por motivos puramente formais – que a forma prevaleça sobre o fundo (Cf. MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 387, a propósito da flexibilidade que deve temperar o princípio da legalidade das formas processuais.) – e essa preocupação com o princípio da tutela jurisdicional efectiva dos direitos e interesses das partes tem vindo, cada vez mais, a encontrar expressão na lei adjectiva, que procura afastar o rigor formalista na interpretação das peças processuais (Cfr. art. 7.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que dispõe: «Para efectivação do direito de acesso à justiça, as normas processuais devem ser interpretadas no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas».). Note-se que, na interpretação das peças processuais são aplicáveis, por força do disposto no art. 295.º do Código Civil (…), os princípios da interpretação das declarações negociais (comuns à interpretação das leis), valendo, por isso, aquele sentido que, segundo o disposto no art. 236.º, n.º 1, do CC (…), o declaratário normal ou razoável deva retirar das declarações escritas constantes do articulado (Por outro lado, vale também aqui o princípio aplicável aos negócios formais – denominado do mínimo de correspondência verbal –, de que «não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso» (art. 238.º, n.º 1 do CC).), para além de que não podemos olvidar que os rigores formalistas na interpretação das peças processuais estão hoje vedados pelos princípios do moderno processo civil e bem assim pelo princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva (cfr. arts. 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa), motivo por que o tribunal deve extrair do pedido que lhe é feito o sentido mais favorável aos interesses do peticionante, indagando da sua real pretensão (Neste sentido, os seguintes acórdãos desta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo: - de 15 de Maio de 2013, proferido no processo n.º 154/13, publicado no Apêndice ao Diário da República de 15 de Abril de 2014 (…);- de 8 de Janeiro de 2014, proferido no processo n.º 32/13, publicado no Apêndice ao Diário da República de 15 de Setembro de 2014 (…).

Face ao exposto, seguindo a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, conclui este tribunal que os presentes autos arbitrais têm por objecto, ainda que implicitamente, não só o acto de liquidação de IVA identificado pela Requerente, mas também o despacho de indeferimento parcial da reclamação graciosa deduzida contra aquele. O pedido da Requerente é, pois, mais amplo do que a Requerida considerou, tendo este tribunal legitimidade para se pronunciar sobre a legalidade de ambos os actos.

Assim sendo, improcede a excepção de intempestividade invocada pela Requerida uma vez que o pedido de pronúncia arbitral foi submetido no prazo de 90 dias a contar da decisão de indeferimento parcial da reclamação graciosa (decisão esta objecto dos presentes autos). Ficam, em consequência, prejudicadas as restantes questões suscitadas pela Requerente em resposta à invocada excepção, nomeadamente a proposta de ampliação do pedido.

 

B. Do pedido de reenvio prejudicial para o TJUE

 

Por considerar estar em causa a aplicação de Direito Comunitário, a Requerente formula, nos artigos 228 e 229 da petição inicial, um pedido de reenvio prejudicial para o TJUE nos seguintes termos:

A legislação nacional do IVA, quando interpretada no sentido de que nega ao adquirente dos serviços o direito de dedução do IVA que lhe foi supostamente liquidado de forma indevida pelo respectivo fornecedor (e que este não terá entregue ao Estado) é compatível com a Directiva Comunitária do IVA, designadamente em matéria do direito de dedução do IVA suportado a montante, quando inexiste qualquer indício de fraude ou evasão fiscal por parte do adquirente dos serviços?”.

Sobre este pedido, a Requerida alega, com razão, que o pedido de reenvio “(…) terá que ocorrer em face de uma norma concreta, e de uma dúvida interpretativa dessa norma, concreta e fundada, que no caso vertente não foi indicada, nem suscitada”. Na verdade, a Requerente não indica qual a norma do Código do IVA cuja conformidade ao Direito Comunitário deverá ser analisada, nem concretiza qual a dúvida interpretativa que justificaria a intervenção do TJUE.

Sucede, contudo, que a formulação desadequada de tal pedido de reenvio por qualquer uma das partes não inibe, nem impede o julgador de formular, ele próprio, um pedido de reenvio prejudicial, solicitando a intervenção do TJUE.

Sobre esta matéria haverá que ter em linha de conta as recomendações aos órgãos jurisdicionais divulgadas através da Recomendação n.º 2012/C 338/01, do TJUE[1]. Assim, como se refere no ponto 7. da referida recomendação “o papel do Tribunal no âmbito de um processo prejudicial consiste em interpretar o direito da União ou pronunciar-se sobre a sua validade, e não em aplicar este direito à situação de facto subjacente ao processo principal. Esse papel incumbe ao juiz nacional e, por isso, não compete ao Tribunal pronunciar-se sobre questões de facto suscitadas no âmbito do litígio no processo principal nem sobre eventuais divergências de opinião quanto à interpretação ou à aplicação das regras de direito nacional”.

            Nessa medida, o pedido de reenvio a título prejudicial impõe-se sempre que, não sendo a decisão a proferir passível de recurso judicial no direito interno, se suscitem dúvidas interpretativas do direito da União, excepto quando já exista jurisprudência na matéria ou quando o modo correcto de interpretar a regra jurídica em causa seja inequívoco (cfr. ponto 12. da recomendação).

Consequentemente, “um órgão jurisdicional nacional pode, designadamente quando se considere suficientemente esclarecido pela jurisprudência do Tribunal, decidir ele próprio da interpretação correta do direito da União e da sua aplicação à situação factual de que conhece” (cfr. ponto 13 da recomendação).

            Este é, precisamente, o caso, na medida em que este tribunal considera que relativamente à legislação comunitária e à legislação interna sobre a matéria não se suscitam quaisquer dúvidas interpretativas não clarificadas por jurisprudência dos tribunais tributários e do próprio TJUE.

Face a tudo o que vem exposto, não se formula qualquer pedido de reenvio prejudicial para o TJUE. Estando este tribunal em plenas condições para se pronunciar sobre o objecto do litígio, indefere-se o pedido apresentado pela Requerente.

 

C. Do pedido de pronúncia arbitral

 

À semelhança da impugnação judicial, o processo arbitral corresponde essencialmente a um processo de mera anulação em que o julgador se limita a declarar a validade ou invalidade, total ou parcial, de determinado acto tributário, retirando daí as inerentes consequências e efeitos jurídicos.

Tendo isto presente, de tudo o vem exposto resulta que a questão a decidir nos presentes autos se prende com a legalidade das correcções efectuadas pela Requerida na sequência do pedido de reembolso de IVA submetido pela Requerente na declaração periódica do trimestre 201209T. Mais concretamente, cumpre avaliar da legalidade da recusa da Requerida em aceitar a dedução de IVA suportado pela Requerente, no montante de € 51.010,14. Tal acto é ou não suspectível de anulação (aqui entendida em sentido amplo) por verificação de algum erro ou vício legal.

Resulta do elenco probatório que, na óptica da Requerida, a exclusão do direito à dedução do imposto no montante em causa justifica-se pelas seguintes razões:

(i) o imposto foi indevidamente liquidado, em violação da alínea c) do n.º 6 do art. 16.º do CIVA;

(ii) o imposto mencionado nas Notas de Débito emitidas pela “B…Lda.” não foram incluídas na declaração periódica da IVA do período respectivo da sociedade emitente;

(iii) à data da emissão das Notas de Crédito, a sociedade em causa já se encontrava em processo de insolvência a correr no Tribunal Judicial de Braga; e

(iv) a Requerente não foi ao processo de insolvência reclamar os valores relativos ao pagamento efectuado com base nas notas de débito e que ainda se deveria encontrar com saldo em aberto na contabilidade da Requerente.

Ora, em face desta fundamentação que precede o acto tributário impugnado (e não qualquer outra fundamentação apresentada posteriormente pela Requerida, nomeadamente em sede de reclamação graciosa que aqui se desconsidera, nos termos do art. 77.º da LGT), cumpre analisar se assiste razão à Requerente ou à Requerida.

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Sem tomar posição quanto ao facto de o imposto mencionado nas notas de débito ser ou não devido, ter sido ou não bem liquidado, tendo em conta o contrato celebrado entre as partes e o disposto na alínea c) do n.º 6 do art. 16.º do CIVA, vamos, para efeitos decisórios, assumir que o imposto foi indevidamente liquidado como alega a Requerida. Assim sendo, avaliaremos de seguida se tal facto é, de acordo com a lei aplicável, fundamento de recusa do direito à dedução do imposto incorrido.

O direito à dedução do imposto suportado vem regulado nos arts. 19.º, 20.º e 21.º do CIVA, estando sujeito a diversos requisitos de substância e de forma devidamente identificados por Sérgio Vasques[2], nos seguintes termos:

(i) subjectivos: o direito à dedução só pode ser exercido por quem seja sujeito passivo de imposto;

(ii) objectivos: é dedutível o imposto incorrido na aquisição de todos e quaisquer bens ou serviços a outros sujeitos passivos, desde que estes sejam utilizados para realização de operações tributadas;

(iii) finalísticos: só é dedutível o imposto incorrido na aquisição de bens e serviços efectivamente aplicados na realização de operações activas que sejam tributadas;

(iv) temporais: o direito à dedução constitui-se no momento em que o imposto dedutível se torna exigível; e

(v) formais: só é dedutível o imposto suportado em documento (factura ou documento equivalente) emitido em conformidade com os requisitos legais.

Estes critérios deverão, ainda, ser cotejados com as normas de exclusão do direito à dedução, seja com referência à natureza de determinados bens e serviços (por exemplo, art. 21.º do CIVA), seja com referência a determinadas operações em concreto (por exemplo, n.ºs 3 e 4 do art. 19.º do CIVA).

Ora, da aplicação conjugada de todas as normas invocadas, resulta demonstrado que o direito à dedução do IVA incorrido não está dependente de tal imposto ter sido devidamente liquidado pelo sujeito passivo, contrariamente ao que refere a Requerida.

Vem sendo jurisprudência unânime dos tribunais superiores que o IVA indevidamente liquidado em factura ou documento equivalente é, não obstante, devido ao Estado, competindo à entidade emitente do documento em causa a sua entrega ao Estado. Só desta forma é que se pode assegurar o princípio da neutralidade do imposto, quer para os intervenientes, quer para o próprio Estado. A título de exemplo, veja-se o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 04-06-2015, proferido no proc. n.º 07111/13 (disponível em www. dgsi.pt) em que se conclui que “(…) cada factura com menção de imposto, constitui um verdadeiro "cheque sobre o tesouro", pois atribui ao destinatário que seja sujeito passivo o direito de deduzir o I.V.A. nela contido. Por isso, a simples menção do I.V.A. em factura (mesmo que porventura descabida, por não haver lugar a imposto naquele caso, por qualquer razão) origine sempre a obrigação de pagar, independentemente da qualidade do emissor, isto é, seja ele ou não um sujeito passivo. Tornar-se-á, pelo simples facto da menção, um "devedor de imposto". Só assim se consegue que ao direito à dedução, que a factura atribui ao destinatário sujeito passivo, corresponda sempre uma obrigação de pagar e se assegure o funcionamento regular do sistema de pagamentos fraccionados em sede de I.V.A. (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 24/4/2002, rec.26636; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 26/9/2012, rec. 555/12; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 17/1/2012, proc.4711/11; José Guilherme Xavier de Basto, A tributação do consumo e a sua coordenação internacional, Lições sobre harmonização fiscal na Comunidade Económica Europeia, C.T.F. 362, Abr./Jun. 1991, pág.42 e seg.; F. Pinto Fernandes e N. Pinto Fernandes, Código do I.V.A. Anotado e Comentado, Editora Rei dos Livros, 4ª. edição, Janeiro de 1997, pág.51; Clotilde Celorico Palma e Outros, Código do IVA e RITI, Notas e Comentários, Almedina, 2014, pág.47). (…) A razão de ser desta obrigação decorre do facto dessas mesmas facturas conterem I.V.A. dedutível por parte da entidade a favor da qual foram emitidas e, nessa medida, ser necessário assegurar que o imposto delas constante tenha dado entrada nos cofres do Estado.” (sublinhado nosso).

Este entendimento do Tribunal Central Administrativo Sul vem sustentado no aí mencionado acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 26-09-2012, proc. n.º 555/12 (também disponível em www.dgsi.p), em que se concluiu que “(…) a simples menção do IVA em tais documentos, mesmo que porventura descabida, por não haver lugar ao mesmo, origina obrigação de imposto.  Como ficou consignado no Acórdão deste Supremo Tribunal de 24/4/2002, proc nº 26636, este resultado deriva tanto do carácter rígido e formalista do IVA como do facto de o sujeito passivo destinatário da factura ter o direito de dedução respectivo. Nas palavras de XAVIER DE BASTO ( Cfr. “A harmonização Fiscal na CEE”, Ciência e Técnica Fiscal, nº 362, p. 44. ), cada factura com menção de imposto, constitui “um cheque sobre o tesouro, pois atribui ao destinatário que seja sujeito passivo o direito de deduzir o IVA nela contido. Por isso, (...) a simples menção do IVA em factura (mesmo que porventura descabida, por não haver lugar a imposto naquele caso, por qualquer razão) origine obrigação de pagar, independentemente da qualidade do emissor, isto é, seja ele ou não um sujeito passivo. Tornar-se-á, pelo simples facto da menção, um “devedor de imposto”. Só assim se consegue que ao direito à dedução, que a factura atribui ao destinatário sujeito passivo, corresponda sempre uma obrigação de pagar. Assim se assegura o funcionamento regular do sistema de pagamentos fraccionados”. Aplicando o exposto ao caso em apreço, verifica-se que o recorrente não era sujeito passivo de IVA e não estava obrigado a passar a factura, cuja cópia consta do ponto c) do probatório. No entanto, ao fazê-lo, a menção na mesma do imposto atribuiu ao destinatário (no caso dos autos, à B…, SA.), o direito de deduzir com base nela o IVA. Daí que o legislador comine que a simples menção do IVA no documento em causa origine obrigação de pagar, independentemente da qualidade do emissor, que se torna “devedor do imposto”, pois só assim se consegue, como refere XAVIER DE BASTO, “que ao direito à dedução, que a factura atribui ao destinatário sujeito passivo, corresponda uma obrigação de pagar”, com vista a assegurar “o funcionamento regular do sistema de pagamentos fraccionados” (sublinhado nosso).

Face ao exposto, considera este tribunal que a dedução do imposto mencionado nas notas de débito emitidas pela “B…, Lda.” e devidamente registadas na contabilidade da Requerente não pode ser recusada com base no alegado entendimento de que o imposto foi indevidamente liquidado, em violação do previsto na alínea c) do n.º 6 do art. 16.º do CIVA. Como refere Clotilde Celorico Palma[3] mesmo nas situações em que há IVA indevidamente mencionado em factura ou documento equivalente está-se a dar início à cadeia de liquidação e dedução do imposto, com todos os efeitos inerentes. E um desses efeitos é, como se refere, a atribuição ao adquirente do direito a deduzir o imposto suportado, verificados que estejam os restantes requisitos legais.

De referir, também, que a sustentação da recusa de dedução com base no n.º 2 do art. 20.º do CIVA não fará sentido no caso em apreço porquanto a norma em causa destina-se ao sujeito passivo prestador do serviço que pretenda deduzir o imposto suportado com despesas efectuadas em nome e por conta do cliente, tituladas por documentos emitidos em nome do próprio cliente e devidamente registadas em contas de terceiros[4]. Tal limitação impor-se-ía, quanto muito, à “B…, Lda.” enquanto prestadora do serviço, mas nunca à Requerente enquanto entidade adquirente dos serviços.

Face ao exposto, conclui-se que a Requerente tinha direito à dedução do imposto mencionado nas notas de débito emitidas pela “B…, Lda.”, sendo indevida a recusa de dedução e consequente correcção efectuada pela Requerida.

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Outro dos argumentos invocados pela Requerida, prende-se com o facto de o imposto liquidado nas notas de débito não ter sido declarado pela entidade que as emitiu e, consequentemente, não ter sido entregue ao Estado.

Ora, a recusa do direito à dedução com fundamento na não entrega ao Estado do imposto liquidado por parte do prestador do serviço vem prevista no n.º 4 do art. 19.º do CIVA. Sucede que esta exclusão do direito à dedução está limitada às situações em que “o sujeito passivo tenha ou devesse ter conhecimento de que o transmitente dos bens ou prestador de serviços não dispõe de adequada estrutura empresarial suscetível de exercer a actividade declarada”. 

Não basta, assim, à Autoridade Tributária invocar que o imposto liquidado não foi entregue nos cofres do Estado. É preciso demonstrar que o adquirente dos bens ou serviços sabia ou deveria saber que o prestador de serviços não tinha estrutura empresarial adequada para a actividade que desenvolvia, o que, na óptica do legislador, poderia indiciar algum incumprimento de procedimentos legais ou comportamento omissivo.

Sucede que, no caso em apreço, a Requerida nada alegou, nada demonstrou, sendo a correção efectuada totalmente omissa quanto a este aspecto. De referir, aliás, que a Requerida nem invoca qualquer norma para fundamentar, de direito, a correcção proposta.

Na verdade, no relatório da inspecção tributária que antecedeu o acto de liquidação contestado e que se transcreveu supra no elenco dos factos provados, nada é referido quanto a este aspecto, como realça a Requerente no art. 143. da petição inicial quando conclui que “(…) a AT não demonstrou, sequer mencionou, que a Requerente tivesse ou devesse ter conhecimento de que a “B…” não teria “adequada estrutura empresarial susceptível de exercer a actividade declarada”. A Requerida limitou-se a alegar que o imposto mencionado nas notas de débito não fora entregue ao Estado para daí retirar uma consequência: a não dedutibilidade desse IVA por parte da Requerente.

Ao abrigo das regras de repartição do ónus da prova, era à Requerida que competiria alegar e comprovar factos que permitissem concluir pela verificação dos requisitos de exclusão do direito à dedução, para, assim, sustentar a correcção efectuada.

Com efeito, resulta do art. 74.º da LGT que “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”.  Sendo a Requerida que pretende impedir o exercício de um direito por parte da Requerente, era à Requerida que incumbia fazer a alegação e prova dos pressupostos de aplicação do n.º 4 do art. 19.º do CIVA, tanto mais quanto a Requerente beneficia de presunção de veracidade e boa fé dos seus registos contabilísticos e do apuramento de imposto decorrente da sua contabilidade, ao abrigo do n.º 1 do art. 75.º da LGT[5].

             Face ao exposto, haverá que concluir que a Requerida não alegou nem comprovou a verificação dos pressupostos de aplicação da exclusão do direito à dedução do imposto suportado quando este não é entregue ao Estado pelo transmitente dos bens ou prestador de serviços, nos termos do n.º 4 do art. 19.º do CIVA. Improcede, por isso, a correcção proposta, devendo ser reconhecido à Requerente o direito à dedução do imposto suportado nas notas de débito identificadas.

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            Por outro lado, este Tribunal também não atribui qualquer relevância ao facto de, conforme alegado pela Requerida, à data em que as notas de débito e de crédito foram emitidas, estar pendente no Tribunal Judicial de Braga um processo de insolvência instaurado contra a sociedade emitente de tais documentos.

            A mera existência de um processo de insolvência não tem quaisquer efeitos sobre a capacidade tributária de qualquer sujeito passivo pessoa colectiva, não operando como limite ao exercício de quaisquer direitos tributários ou ao cumprimento de quaisquer obrigações. Tal impacto só existirá por via da sentença de insolvência, sendo que, mesmo nestas situações, as obrigações tributárias se manterão até ao encerramento da liquidação e extinção da pessoa colectiva. Isso mesmo foi reconhecido e divulgado pela Autoridade Tributária e Aduaneira através das Circulares n.º 1/2010 e n.º 10/2015, devidamente publicadas no Portal das Finanças.

            Assim sendo, do facto de alegadamente existir um processo de insolvência instaurado contra a sociedade emitente das notas de débito e das notas de crédito, não pode a Requerida tirar qualquer consequência jurídica, nomeadamente a de impedir a dedução do imposto mencionado por esta entidade nas facturas e documentos equivalentes por si emitidos e entregues aos seus clientes e fornecedores. Para a situação em apreço, tal facto é totalmente irrelevante, não podendo sustentar a correcção proposta pela Requerida.

Este aspecto é tanto mais relevante porquanto, como resulta do elenco factual apurado no presente processo, a sociedade em causa só veio a ser declarada insolvente por sentença de Dezembro de 2011 proferida pelo Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, ou seja, bastantes meses depois da emissão dos documentos identificados.

Face ao exposto, também aqui improcede a correcção proposta e a recusa da Requerida em reconhecer à Requerente à dedução do imposto mencionado nos documentos identificados.

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Por último, a Requerida também suscita o facto de a Requerente apresentar a conta de fornecedor com a “B…, Lda.” saldada (ou seja, sem saldo credor ou devedor). Este facto causou estranheza à Requerida porquanto, em seu entender, a conta deveria registar um saldo em aberto, correspondente à diferença entre os valores debitados à Requerente e as notas de crédito emitidas pela referida sociedade na sequência das facturas emitidas pelos fornecedores e empreiteiros. Este saldo em aberto deveria, na óptica da Requerida, ter sido reclamado no âmbito do processo de insolvência.

Sucede que, como resulta do elenco factual apurado neste processo, a Requerente contratou com a sociedade “B…, Lda.” um serviço “chave na mão” pelo qual encarregou esta entidade de proceder a toda o acompanhamento e gestão das obras de construção da moradia no lote de terreno de que era proprietária. Os honorários devidos a esta sociedade pelos serviços prestados corresponderiam à diferença entre o valor total da construção fixado no contrato e o valor real dos serviços subcontratados pela sociedade. O saldo entre as notas de débito e as notas de crédito corresponderia, assim, aos honorários da sociedade enquanto prestadora do serviço. Sendo a contraprestação do serviço prestado, a Requerente não teria direito a exigir o seu reembolso, nem poderia apresentar-se no processo de insolvência a invocar qualquer crédito.

É, aliás, por essa razão que a conta da “B…, Lda.” se encontra saldada contabilisticamente. Os valores em aberto foram considerados pela Requerente como honorários pelos serviços prestados e, nessa medida, nenhum outro saldo, débito ou crédito ficou por regularizar entre as partes.

Nessa medida, não seria justificável ou compreensível a existência de um saldo em aberto na conta de fornecedor da “B…, Lda.”.

Face ao exposto, a alegação efectuada pela Requerida neste ponto não tem, pois, qualquer relevância, não sendo fundamento legal para recusa do direito à dedução.

 

Em conclusão, este Tribunal considera que os fundamentos que sustentam a liquidação efectuada pela Requerida e confirmada em sede de reclamação graciosa, no que se refere à recusa do direito à dedução do imposto suportado pela Requerente, no montante de € 51.010,14, não são procedentes pelo que tais actos tributários deverão qualificar-se como ilegais por violação do direito à dedução e reembolso do imposto, previsto e regulado nos arts. 19.º e seguintes do CIVA.

Em consequência, decide este Tribunal declarar ilegais e, consequentemente, ordenar a anulação da (i) liquidação de IVA referente ao trimestre 201209T e da (ii) decisão de indeferimento parcial da reclamação graciosa, reconhecendo-se à Requerente o direito à dedução e reembolso do imposto suportado no valor de € 51.010,14.

 

D. Do direito a juros indemnizatórios

 

            A par do reembolso do imposto, a Requerente pede, ainda, o pagamento de juros indemnizatórios ao abrigo do n.º 8 do art. 22.º do CIVA e art. 43.º da LGT, contados desde o termo do prazo em que o reembolso devia ter sido, efectivamente, concretizado. A Requerida contesta, alegando que não se verificam os pressupostos legais para tal pagamento, em especial o erro imputável aos serviços.

Dispõe o n.º 8 do art. 22.º do CIVA que o reembolso do imposto deverá ser concretizado até ao final do segundo mês seguinte ao da apresentação do pedido de reembolso, o que, no caso em concreto, implica que o reembolso deveria ter sido efectuado até 31-01-2013.

Resulta do n.º 10 do mesmo artigo que o Ministro das Finanças pode estabelecer, por Despacho, a obrigatoriedade de os sujeitos passivos fornecerem, juntamento com o pedido de reembolso, determinada informação e elementos. Esta possibilidade veio a ser concretizada através do Despacho Normativo n.º 53/2005, de 15 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo  Despacho Normativo n.º 23/2009, de 17 de Junho.

Nesse despacho determina-se que “O prazo de concessão do reembolso é ainda suspenso, assim como a contagem dos juros a que se refere o número anterior, quando, decorrido o prazo fixado nos termos do artigo 23.º do CPPT, o sujeito passivo não tenha posto à disposição dos serviços competentes os elementos por estes solicitados que permitam averiguar da sua legitimidade ou do correcto apuramento do imposto” (cfr. ponto 9).

Como a Requerida refere, na sequência do pedido de reembolso e para sua adequada análise, foi solicitada informação adicional à Requerente que nunca foi prestada. A omissão da prestação de informação implicou, como resulta supra do normativo invocado, a suspensão do prazo de reembolso e da contagem de juros indemnizatórios pelo que, contrariamente ao pretendido pela Requerente, esta não tem direito a juros indemnizatórios a contar desde 31-01-2013.

Mas tal não significa que a Requerente não tenha direito a juros indemnizatórios, nos termos gerais.        

          Como já referido, no presente caso, o prazo legal de reembolso ficou suspenso por ausência de prestação de informação por parte da Requerente. Esta suspensão manteve-se até à decisão final do procedimento de inspecção que determinou o montante a reembolsar, não se justificando a manutenção de qualquer efeito suspensivo para além desta decisão.

          Assim sendo, se no âmbito de reclamação graciosa, impugnação judicial ou pedido de pronúncia arbitral, a decisão da Requerida vier a ser anulada por erro imputável aos serviços, a Requerente terá direito ao reembolso do imposto solicitado, acrescido de juros indemnizatórios.  

          Sucede que ficou demonstrado nos presentes autos que a recusa de dedução do imposto mencionado nas notas de débito emitidas pela “B…, Lda” resultou de erro na aplicação da lei. Tal erro é imputável aos serviços pelo que, não fora o mesmo, a Requerente teria sido atempadamente reembolsada do montante em causa. Este atraso implica o incumprimento do prazo legal de reembolso, não existindo, nesta fase, qualquer facto que implique a suspensão da contagem de juros indemnizatórios.

          É, assim, devidamente justificado o pedido de pagamento de juros indemnizatórios por parte da Requerente uma vez que a liquidação de imposto contestada se mostra enfermada de ilegalidade pelo que deverá ser anulada.

          Assim, para além do reembolso, a Requerente tem, também, direito ao pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal em vigor, sobre a quantia de € 51.010,14, contados desde a data da decisão de indeferimento do pedido de reembolso desse montante, até à data de processamento da respectiva nota de crédito, em que são incluídos – cfr. art. 43.º da LGT e art. 61.º do CPPT.

 

V.          DECISÃO

 

De harmonia com o exposto, decide este Tribunal Arbitral:

(i) declarar improcedente a excepção de intempestividade deduzida pela Requerida;

(ii) declarar improcedente o pedido de reenvio prejudicial para o TJUE formulado pela Requerente;

(iii) declarar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, declarar ilegal, anulando, a decisão de indeferimento parcial da reclamação graciosa e a liquidação de IVA do trimestre 201209T, reconhecendo à Requerente o direito ao reembolso da quantia de € 51.010,14;

(iv) condenar a Requerida ao reembolso da quantia de € 51.010,14, acrescida de juros indemnizatórios, à taxa legal, contados desde a data de indeferimento parcial do pedido de reembolso, até à data de processamento da respectiva nota de crédito.

 

Valor do processo: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 51.010,14.

 

Custas: Nos termos do n.º 4 do art. 22.º do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.142,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às partes.

 

Lisboa, 24-10-2016

 

O Árbitro Singular

 

 

(Maria Forte Vaz)

 

 

 

 



[1] Publicada no Jorna Oficial da União Europeia, C 338/1, de 06-11-2012.

[2] Cfr. O Imposto sobre o Valor Acrescentado, Almedina, 2015, págs. 336 e seguintes.

[3] Cfr. Introdução ao Imposto sobre o Valor Acrescentado, Cadernos IDEFF, n.º 1, 2.ª Edição, pág. 67.

[4] Como referem F. Pinto Fernandes e Nuno Pinto Fernandes, CIVA e Regime do IVA nas Transacções Intracomunitárias, anotado e comentado, Editora Rei dos Livros, 4.ª Edição, 1997, pág. 513, “O n.º 2 do artigo 20.º prevê mais uma limitação à dedução. Trata-se do reembolso de serviços pagos pelo sujeito passivo em nome e por conta do adquirente dos bens ou do destinatário dos serviços, v.g., de portes do correio, transportes, etc., que são excluídos do valor tributável nos termos da alínea c) do n.º 6 do artigo 16.º, desde que registados em contas de terceiros apropriadas. Porque tais operações são realizadas por conta de terceiros, não dão, obviamente, direito à dedução do imposto a elas atinente”.

[5] Como referem Diogo Leite Campos, Benjamim da Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4.ª Edição, 2012, Encontro da Escrita, pág. 664 “No n.º 1 deste art. 75.º da LGT estabelecem-se presunções legais de veracidade das declarações apresentadas pelos contribuintes à administração tributária e dos dados que constarem da sua contabilidade e escrita, se estiverem de acordo com a legislação comercial e fiscal