Decisão Arbitral
Processo n.º 124/2013-T
Os árbitros Dr. Jorge Manuel Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. Luís Máximo dos Santos e Prof. Doutor António Martins, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 30-7-2013, acordam no seguinte:
1. Relatório
A..., NIF …, B..., NIF …, C..., NIF …, e ... D..., NIF …, apresentaram um pedido de constituição do tribunal arbitral colectivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por “RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
O pedido tem em vista a «pronúncia arbitral sobre a legalidade dos actos de liquidação de retenções na fonte de IRS n.º 2012 … e de liquidação de juros compensatórios n.º 2012 …, ambos referentes ao exercício de 2009, dos quais resultou um valor global a pagar de 8.994.147,94», terminando os Requerentes com um pedido de anulação do acto que determinou a aplicação da cláusula geral anti-abuso e declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de IRS e juros compensatórios que foram praticados na sequência daquele acto.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 28-5-2013.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa (Presidente), o Dr. Luís Máximo dos Santos e o Prof. Doutor António Martins, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 12-7-2013 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral foi constituído em 30-7-2013.
A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu, tendo, como questão prévia, requerido a suspensão da instância até ao trânsito em julgado da Providência Cautelar de suspensão de eficácia do acto administrativo pendente no Tribunal Central Administrativo … sob o nº. … e da acção administrativa especial com o n.º …, de anulação do acto administrativo de aplicação da cláusula geral anti-abuso, pendente no Tribunal Administrativo e Fiscal do ….
Para além disso, a Autoridade Tributária e Aduaneira suscitou três excepções dilatórias:
– da ilegitimidade processual dos requerentes;
– a da litispendência, por estar pendente o processo de impugnação judicial n.º ...;
– a que a Autoridade Tributária e Aduaneira denomina «da falta de objecto», que é a da inimpugnabilidade dos actos cuja declaração de ilegalidade é pedida.
Finalmente, a Autoridade Tributária e Aduaneira defendeu-se por impugnação, pedindo que a presente acção arbitral seja julgada improcedente.
Em 11-10-2013, os Requerentes responderam por escrito à questão prévia e excepções, defendendo a improcedência dos pedidos de suspensão da instância e das excepções.
No dia 24-10-2013, realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT em que se decidiu, além do mais, proferir um acórdão sobre as questões prévias deduzidas na resposta da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Decidiu-se ainda na mesma reunião, com o acordo das Partes, que os Requerentes apresentassem até 28-10-2013 um requerimento, com junção da decisão proferida no Processo n.º ... e outros elementos processuais que entendessem necessários, com pronúncia sobre os efeitos destes novos elementos nas excepções invocadas.
Decidiu-se, ainda, conceder o prazo de 10 dias à Requerida, a contar da notificação do requerimento apresentado pelos Requerentes, para se pronunciar sobre o mesmo.
Em 28-10-2013, os Requerentes apresentaram um requerimento, em que, em suma, informaram que, no dia 10-10-2013, foi proferido Acórdão pelo Tribunal Central Administrativo … no âmbito do Processo n.º …, o qual veio negar provimento ao recurso jurisdicional interposto pelos ora Requerentes da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do …, que havia julgado procedente a excepção da i(ni)mpugnabilidade do acto autorizativo de aplicação da disposição anti-abuso e que, no referido dia 28-10-2013, tinha sido apresentada pelos aqui Requerentes desistência do pedido deduzido na acção administrativa especial de impugnação do acto autorizativo de aplicação da disposição anti-abuso que correu termos sob n.º…..
Neste requerimento de 28-10-2013, defendem os Requerentes que fica definitivamente prejudicado o conhecimento da questão prévia da suspensão da instância e da excepção da litispendência deduzida relativamente aos processos n.º … e n.º … e que «são parte legítima para efeitos da apresentação da presente acção arbitral, até porque o Tribunal Central Administrativo … os pressupôs» e reconheceu na decisão proferida no Processo n.º … que «... os ora Recorrentes [aqui Requerentes] foram já notificados nos termos do art. 60º da LGT, o que significa que, a seu tempo, e uma vez notificados da decisão final do procedimento, poderão usar dos mecanismos que a lei prevê para reagir contra eventual decisão desfavorável aos respectivos interesses...».
Os Requerentes terminam o seu requerimento dizendo que devem ser julgadas improcedentes as excepções.
A Autoridade Tributária e Aduaneira pronunciou-se sobre este requerimento, no sentido, em suma, de se verificarem as excepções que invocou e defendendo que a desistência do pedido na acção administrativa especial implica a improcedência da pretensão formulada no presente processo.
2. Questão prévia da suspensão da instância
Conforme foi decidido, apreciar-se-ão, num acórdão autónomo, as excepções suscitadas.
Antes de mais, porém, importa apreciar a questão prévia suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira da suspensão da instância até ao trânsito em julgado da Providência Cautelar de suspensão de eficácia do acto administrativo pendente no Tribunal Central Administrativo … sob o n.º … e da acção administrativa especial com o n.º …, de anulação do acto administrativo de aplicação da cláusula geral anti-abuso, pendente no Tribunal Administrativo e Fiscal do ….
Como se verifica pelos documentos juntos pelos Requerentes em 28-10-2013, foi negado provimento ao recurso interposto no referido processo cautelar e apresentada desistência do pedido na acção administrativa especial.
Independentemente do trânsito em julgado do acórdão do Tribunal Central Administrativo …, não se justifica a suspensão, pois, tendo o recurso sido interposto num processo cautelar, tem efeito meramente devolutivo (artigo 143.º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, doravante “CPTA”), pelo que os efeitos da decisão do Tribunal Tributário que indeferiu o pedido de adopção de providências produzem-se imediatamente, tudo se passando como se tivesse sido proferida uma decisão definitiva, até que, eventualmente, venha a ocorrer revogação ou anulação da decisão recorrida no recurso que foi interposto.
Por outro lado, a desistência do pedido na acção administrativa especial não depende de aceitação do réu, quando não houve reconvenção dependente do formulado pelo autor (artigos 295.º, n.º 1, e 296.º, n.º 2, do CPC de 1961, a que correspondem os artigos 285.º, n.º 1, e 286.º, n.º 2, do CPC de 2013) e, no caso em apreço, não foi invocado que isso aconteça.
Assim, é de concluir que não se justifica a suspensão da instância, por o processo cautelar referido já ter decisão final e por ser de concluir que também se extinguirá a acção administrativa especial.
Pelo exposto, improcede o pedido de suspensão da instância apresentado pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
3. Excepções
São três as excepções invocadas:
– a da ilegitimidade processual dos Requerentes;
– a da litispendência;
– a que a Autoridade Tributária e Aduaneira denomina «da falta de objecto», que, em face do que alega, é a da inimpugnabilidade pelos Requerentes dos actos de liquidação de IRS e juros compensatórios cuja declaração de ilegalidade é pedida.
A ordem pela qual devem ser apreciadas estas excepções é a indicada na lista que consta do artigo 89.º, n.º 1, do CPTA [subsidiariamente aplicável, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT], que tem ínsito um entendimento legislativo sobre a sua prioridade relativa.
Assim, deverá apreciar-se, em primeiro lugar, a questão da «falta de objecto» (inimpugnabilidade dos actos impugnados), prevista na alínea c) do n.º 1 daquele artigo 89.º, depois a da ilegitimidade dos Requerentes, enquadrável na alínea d) do mesmo número e, por fim, a da litispendência, referida na sua alínea i).
É de notar que, embora a Autoridade Tributária e Aduaneira autonomize a questão da litispendência, fala também de uma «litispendência em razão da matéria», no artigo 43.º da resposta, a propósito da questão da ilegitimidade, pelo que esta será apreciada nesse âmbito, se for necessário.
De qualquer forma, se for julgada procedente alguma das excepções, ficará prejudicado o conhecimento da subsequente ou subsequentes na ordem de apreciação. Com efeito, cada uma das excepções, só por si, será um obstáculo intransponível à apreciação do mérito da causa, justificando uma decisão de absolvição da instância [artigo 89.º, n.º 2, do CPTA, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT], pelo que, a proceder uma delas, não terá utilidade apreciar qualquer outra.
3.1. Matéria de facto relevante para apreciação das excepções
Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para apreciação das excepções:
a) A sociedade E... é uma Sociedade Gestora de Participações Sociais que, nos anos de 2008 e 2009 estava inserida no regime normal de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, beneficiando do tratamento favorável previsto no artigo 32.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (doravante EBF);
b) Nos anos de 2008 e 2009, eram sócios da sociedade E..., os Requerentes, nas seguintes proporções: (relatório da inspecção tributária reproduzido, entre outros, no documento n.º 4, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
…
c) Nos anos de 2008 e 2009, aqueles mesmos Requerentes, para além da qualidade de sócios eram administradores da sociedade E..., desempenhando as seguintes funções:
– A...– Presidente;
– B... – Vogal;
– C...– Vogal;
– D...– Vogal;
– F...– Vogal (relatório da inspecção tributária reproduzido, entre outros, no documento n.º 4, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
d) Nos anos de 2008 e 2009, a sociedade E... detinha as seguintes participações sociais:
…
(relatório da inspecção tributária reproduzido, entre outros, no documento n.º 4, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
e) Em 19-09-2008 a E... alienou a participação que detinha na empresa G... – , S.A. (doravante somente G...), pelo montante de € 56.086.00,00 (relatório da inspecção tributária reproduzido, entre outros, no documento n.º 4, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
f) Da alienação referida na alínea anterior resultou, para a E..., uma mais-valia, excluída de tributação nos termos e para os efeitos do artigo 32.º do EBF, no valor de € 46.819.462,36 (relatório da inspecção tributária reproduzido, entre outros, no documento n.º 4, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
g) Em Assembleia Geral de 09-01-2009, foram aprovadas as contas da E... referentes ao exercício de 2008, bem como a proposta de aplicação do resultado líquido do exercício no montante de € 48.643.287,83 (relatório da inspecção tributária reproduzido, entre outros, no documento n.º 4, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
h) Em 10-01-2009, em Assembleia Geral, foi aprovada a proposta de redução do capital social em € 300.000,00, passando aquele de € 400.000,00 para um total de €100.000,00, mediante a extinção de 60.000 acções próprias a adquirir previamente aos accionistas na proporcionalidade das suas participações no capital social (relatório da inspecção tributária reproduzido, entre outros, no documento n.º 4, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
i) A referida aquisição de acções próprias foi formalizada através de contratos de compra e venda em 15-01-2009, sendo atribuído um valor de € 650,00 a cada acção, nos seguintes termos: (relatório da inspecção tributária reproduzido, entre outros, no documento n.º 4, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
…
j) A redução de capital social foi aprovada em Assembleia Geral de 16-01-2009 (relatório da inspecção tributária reproduzido, entre outros, no documento n.º 4, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
k) A operação de aquisição pela E... junto dos seus accionistas de 60.000 acções pelo montante global de € 39.000.000,00, com o pressuposto de reduzir o capital social, permitiu-lhes a realização, em conjunto, de uma mais-valia de € 38.700.000,00 [€ 39.000.000,00 – € 300.000,00] que foi excluída da tributação ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 10.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante CIRS) (relatório da inspecção tributária reproduzido, entre outros, no documento n.º 4, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
l) Os Serviços de Inspecção Tributária da Autoridade Tributária procederam à abertura da Ordem de Serviço n.º OI …, para efeito de levar a cabo uma acção de inspecção tributária de âmbito geral junto da sociedade E..., relativamente ao ano de 2009 (relatório da inspecção tributária reproduzido, entre outros, no documento n.º 4, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
m) Em …, a E... foi notificada para exercer o direito de audição prévia sobre a informação relativa à aplicação da cláusula geral anti-abuso (artigo 14.º do pedido de pronúncia arbitral que não é impugnado);
n) Por despacho de 14-11-2012, o Senhor Director-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, autorizou a aplicação da cláusula geral anti-abuso (páginas 68 a 87 do documento «PA4.ªparte.pdf» do processo administrativo, cujo teor se dá como reproduzido);
o) Em 30-11-2012, cada um dos Requerentes foi notificado do teor do projecto de relatório da inspecção tributária, para efeitos de exercício de direito de audição (documentos n.ºs 4 a 7, juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
p) Na sequência da inspecção, a Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu, além do mais, o seguinte:
«Como já foi referido, foi determinada a desconsideração para efeitos tributários das operações de aquisição de acções próprias seguida da redução do capital social através da extinção das mesmas, e que se procedesse à tributação das importâncias pagas aos accionistas como distribuição de lucros
A colocação à disposição de lucros de uma entidade sujeita a IRC, constitui, para o seu beneficiário, pessoa singular, um rendimento da categoria E do IRS conforme artigo 5 º, n.º 2 alínea h), do Código do IRS, sujeito a retenção na fonte de IRS à taxa liberatória de 20% conforme dispõe o artigo 71º n º 3 alínea c) do mesmo Código (redacção à data), sendo devido imposto no montante de € 7.800.000,00,
Conforme se discrimina:
…
(relatório da inspecção tributária reproduzido, entre outros, no documento n.º 4, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
q) O relatório final da inspecção foi notificado à E..., através de ofícios expedidos em 20-12-2012 (páginas 99 a 104 do documento «PA4.ªparte.pdf» do processo administrativo, cujo teor se dá como reproduzido);
r) Na sequência da inspecção tributária, foi elaborada em 28-12-2012 a liquidação de IRS n.º 2012 …, no montante de 7.800.000,00 de IRS, e a liquidação de juros compensatórios n.º 2012 …, no montante de € 1.194.147,94, sendo nela indicado, no que concerne à indicação do sujeito passivo, apenas o nome da E... e o seu número de identificação fiscal (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
s) A E... impugnou as liquidações referidas em acção que corre termos sob o n.º ... no Tribunal Administrativo e Fiscal do … (artigo 91.º da resposta);
t) Os Requerentes não foram notificados do relatório final da inspecção (processo administrativo);
u) Os Requerentes não foram notificados das liquidações referidas na alínea r) (processo administrativo);
v) Em 27-5-2013, os Requerentes apresentaram o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo (sistema informático do CAAD).
3.2 Factos não provados
Não há outros factos relevantes para apreciar as excepções que não se tenham provado.
3.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto
Os factos foram dados como provados com base nos documentos indicados e nas afirmações das Partes que não foram impugnadas.
3.4. Excepção da «falta de objecto» ou da inimpugnabilidade dos actos impugnados
A primeira excepção suscitada pala Autoridade Tributária e Aduaneira é a da «falta de objecto» do pedido de pronúncia arbitral.
No entender da Autoridade Tributária e Aduaneira, a impugnabilidade dos actos em contencioso tributário depende da sua lesividade objectiva e não meramente potencial e, no caso em apreço, os actos de liquidação foram dirigidos e notificados à E... e não aos Requerentes, pelo que a lesividade apenas existirá na esfera jurídica daquela empresa.
Os Requerentes defendem, em suma, que foram notificados do projecto de relatório da inspecção em que se basearam as liquidações de IRS e juros compensatórios, que nele se manifesta a intenção de tributar os rendimentos a que se refere a liquidação de IRS e que têm o direito de impugnar a liquidação apesar de não serem seus destinatários.
É manifesto que o pedido de pronúncia arbitral tem objecto, que são as liquidações que os Requerentes pretendem que sejam anuladas.
Por isso, não ocorre falta de objecto do presente processo.
O artigo 95.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), da LGT estabelecem que «o interessado têm o direito de impugnar ou recorrer de todo o acto lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, segundo as formas de processo prescritas na lei» e que podem ser lesivos os actos de liquidação de tributos.
Por outro lado, o artigo 54.º do CPPT, enuncia o princípio da impugnação unitária estabelecendo que «salvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são susceptíveis de impugnação contenciosa os actos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida».
Para além disso, o artigo 130.º, n.º 1, do CIRS estabelece que «os sujeitos passivos do IRS, os seus representantes e as pessoas solidária ou subsidiariamente responsáveis pelo pagamento do imposto podem reclamar contra a respectiva liquidação ou impugná-la nos termos e com os fundamentos estabelecidos no Código de Procedimento e de Processo Tributário».
Destas normas resulta que os actos de liquidação de tributos têm a natureza de actos impugnáveis contenciosamente, pois são os actos finais dos respectivos procedimentos de liquidação, que fixam a posição final da Autoridade Tributária e Aduaneira em relação à relação jurídica tributária que deles são objecto.
Assim, não tem razão a Autoridade Tributária e Aduaneira ao defender que os actos de liquidação de IRS e juros compensatórios não são impugnáveis nem que o processo carece de objecto.
Diferente destas questões da existência de objecto do processo e da impugnabilidade dos actos de liquidação é a de saber se os Requerentes têm legitimidade para os impugnarem, nas circunstâncias em que o fizerem.
Essa questão da legitimidade é também colocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, pelo que se apreciará a seguir.
3.5. Excepção da ilegitimidade dos Requerentes
3.5.1. Posições das Partes
A Autoridade Tributária e Aduaneira defende que os Requerentes não têm legitimidade para impugnar os actos de liquidação de IRS e juros compensatórios cuja declaração de ilegalidade é pedida por, em suma, o seguinte:
– os referidos actos de liquidação têm por destinatária apenas a E...;
– esses actos só em relação à E... são lesivos;
– a E... é a única entidade responsável pelo pagamento dos valores liquidados;
– o que se traduz em a E..., e apenas esta, ter interesse directo em demandar, bem como interesse directo em obter uma legítima tutela jurídica;
– a lesividade relevante no contencioso tributário é objectiva, imediata, actual e não meramente potencial;
– a legitimidade encontra-se numa relação de dependência com um outro pressuposto e que se designa de interesse processual;
– por interesse processual deve entender-se interesse em agir, consistindo o mesmo na necessidade que o autor sente de obter, na relação jurídico-material controvertida, determinada tutela jurídica;
– essa necessidade de obtenção de tutela jurídica de cariz tributário é, – para efeitos de que a petição do autor seja digna de apreciação quer em sede judicial, quer em sede arbitral - obrigatoriamente, precedida de um acto que lesa a esfera jurídica e patrimonial de quem é demandante;
– não poderá vir a ser assacada aos ora Requerentes, dado que não foi com eles que se constituiu uma relação jurídico-tributária no que concerne à presente contenda, não sendo, por isso, na sua esfera patrimonial que se reflectirá o eventual incumprimento dos valores constantes das liquidações acima;
– será portanto na E... e não nos Requerentes que se reflectirão os nefastos efeitos associados às liquidações em causa.
Na sua resposta às excepções, os Requerentes defendem, em suma,
– que têm interesses próprios em apresentar o pedido de pronúncia arbitral, que são os destinatários directos dos actos de liquidação, «sendo apenas também reconhecida legitimidade à E... na medida em que esta era a entidade que supostamente se encontrava obrigada a efectuar a retenção do imposto (substituto tributário) e, por isso mesmo, foi a entidade a quem a Autoridade Tributária entendeu endereçar, embora erradamente, a notificação do acto de liquidação de imposto»;
– que a própria Requerida reconheceu a legitimidade dos Requerentes no despacho que autorizou a aplicação da disposição anti-abuso, ao esclarecer expressamente que a referida aplicação tinha repercussão fiscal na esfera dos Requerentes e, igualmente, ao admitir que a desconsideração tributária da operação de aquisição de acções próprias seguida da redução do capital social da sociedade através da extinção das mesmas resulta directa e imediatamente do acto que autoriza a aplicação da disposição anti-abuso, limitando-se o acto de liquidação à implementação das correcções que se mostrem necessárias na sequência da autorização concedida para aplicação da disposição anti-abuso;
– que a Autoridade Tributária e Aduaneira notificou cada um dos Requerentes do teor do projecto de relatório de inspecção tributária, com vista à liquidação em sede de IRS relativamente ao ano de 2009 a realizar através de retenção na fonte pela E... aos Requerentes;
– que tudo concorre para a consolidação da ideia, sobejamente afirmada, de que os actos de liquidação projectam efeitos autonomamente lesivos na esfera jurídico-patrimonial dos Requerentes, daí decorrendo o seu interesse directo e pessoal na respectiva impugnação.
– não deixa de se revelar inequivocamente que a própria Requerida, se necessário fosse, tem plena e absoluta certeza de que os Requerentes se oferecem como partes legítimas na presente acção, porque directa e legitimamente interessados na impugnação dos actos de liquidação (artigo 95.º, n.º 1, da LGT);
– nessa medida, a disposição anti-abuso foi notificada, em primeira instância, à E..., uma vez que seria esta – e não os Requerentes —, na qualidade de substituto tributário, a responsável pela retenção na fonte do imposto que seria devido, caso a operação promovida tivesse revestido uma outra configuração, a saber, aquela pela qual a Autoridade Tributária entende, injustificadamente, que os Requerentes deveriam ter optado.
– a Autoridade Tributária entende que, em lugar da operação jurídico societária que teve lugar, os Requerentes deveriam ter optado pela distribuição de dividendos pela E..., caso em que a tributação incidente sobre esses dividendos se efectuaria através de retenção na fonte, a realizar pela E...;
– foi, pois, por essa razão que a Autoridade Tributária optou por considerar, num primeiro momento, a E... como a figura central do procedimento por si despoletado, o qual culminou com a aplicação da disposição anti-abuso.
– todavia, e como é bom de ver, os efeitos – maxime económicos – da aplicação desta disposição verificam-se na esfera dos Requerentes, pois são estes os principais afectados com a decisão adoptada da Autoridade Tributária neste caso;
– basta ver que, na hipótese de, por qualquer razão, a E... vir a suportar o encargo do imposto liquidado, certamente que não deixará de accionar todos os meios cíveis adequados com vista a recuperar, junto dos Requerentes, na sua qualidade de contribuintes e devedores qualificados do imposto liquidado, as quantias indevidamente pagas;
– justifica-se, por isso, nos termos do disposto no artigo 65.º da LGT e no artigo 9.º do CPPT, que aos mesmos seja reconhecida a prerrogativa — independentemente daquela que assiste à E... – de contestar a aplicação, in casu, da referida disposição anti-abuso, mormente em virtude da ocorrência de vícios que serviram para coarctar efectivamente o seu direito de participar na tornada da decisão correspondente e, sobretudo, que se encontrem legitimadas para impugnar, como é o caso, os actos de liquidação que sobrevieram à indevida aplicação daquela disposição anti-abuso, e isto na medida em que, na configuração indevida que da presente operação societária foi feita pela Autoridade Tributária e Aduaneira, são os Requerentes os únicos e verdadeiros contribuintes, a saber: «as pessoas relativamente às quais se verifica o facto tributário, o pressuposto de facto ou facto gerador do imposto, isto é, os titulares da manifestação de capacidade contributiva que a lei tem em vista atingir e que, por conseguinte, deve suportar a ablação ou desfalque patrimonial que o imposto acarreta»;
– ora, assim sendo, os mesmos Requerentes apresentam-se como devedores qualificados do imposto liquidado e, por conseguinte, como os que mais interesse têm em impugnar os actos de liquidação praticados pela Autoridade Tributária e Aduaneira, cujos efeitos jurídico-fiscais se projectam em primeira linha na respectiva esfera jurídica, sem prejuízo de outros sujeitos passivos da relação jurídica tributária em apreço, a começar pela E..., na qualidade de substituto tributário, terem igualmente interesse (ainda que menos intenso, por não serem devedores qualificados) nessa impugnação e, consequentemente, figurarem igualmente como partes legítimas numa acção a intentar para o efeito;
– assim sendo, não deverá julgar-se verificada a excepção de ilegitimidade passiva [sic] dos Requerentes, porquanto estes são, na sua condição de contribuintes e devedores qualificados do imposto liquidado, os destinatários imediatos dos actos de liquidação e, por conseguinte, os que, desde logo, atentos os efeitos externos e lesivos decorrentes dos actos em causa, detém interesse directo e pessoal na sua impugnação.
3.5.2. Decisão da questão da legitimidade
O artigo 65.º da LGT, invocado pelos Requerentes, estabelece que «têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido».
Trata-se de uma norma que regula a legitimidade para o procedimento tributário, que antecedeu os actos de liquidação de IRS e juros compensatórios, e não para o processo judicial tributário, como é o presente processo arbitral, que se iniciou após a prática desses actos.
Por isso, não é à face daquele artigo 65.º que deve ser aferida a legitimidade dos Requerentes.
Relativamente à legitimidade para a impugnação contenciosa de actos tributários vale, em primeira linha, o artigo 95.º, n.º 1, da LGT, que estabelece que «o interessado tem o direito de impugnar ou recorrer de todo o acto lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, segundo as formas de processo prescritas na lei», concretizando o acesso à justiça tributária para a tutela plena e efectiva de todos os direitos ou interesses legalmente protegidos e a impugnabilidade de todos os actos em matéria tributária que lesem direitos ou interesses legalmente protegidos são impugnáveis ou recorríveis nos termos da lei, que garantem os n.ºs 1 e 2 do artigo 9.º da mesma Lei.
Como decorre, desde logo, deste artigo 95.º, n.º 1, o direito de impugnar é reconhecido apenas a quem seja considerado «interessado» e está sujeito aos condicionamentos previstos nas normas de processo prescritas na lei.
Trata-se de limitações ao direito de impugnação contenciosa que se justificam, primacialmente, pela necessidade de optimização dos serviços de justiça, afastando a possibilidade de exercício de direitos de impugnação enquanto não estiver demonstrado que esse exercício é necessário para defesa de direitos ou interesses legalmente protegidos.
Num contexto em que a justiça tributária, administrada pelos órgãos com poder jurisdicional, é manifestamente um bem escasso, esses condicionamentos não podem ser considerados restrições injustificadas ao exercício de direitos impugnatórios, sendo antes condições mínimas para que estes direitos possam ser assegurados eficazmente na prática em relação à generalidade dos cidadãos.
No entanto, por força do disposto no artigo 268.º, n.º 4, da CRP, «é garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem» pelo que abrange todos aqueles que sejam lesados por actos liquidação de tributos ( 1 ).
Assim, também no contencioso tributário terá de se assegurar a possibilidade de impugnação contenciosa de actos da Administração Tributária que sejam imediatamente lesivos, pelo menos quando os que sejam por eles visados não tiverem na sua disponibilidade meios de impugnação administrativa que assegurem, sem encargos, o afastamento da lesividade imediata. Na verdade, com a perspectiva de optimização dos serviços de justiça, necessária para assegurar o direito à tutela judicial efectiva a todos os cidadãos, a lesividade que garante o acesso à impugnação contenciosa terá de ser aferida em função da existência ou não de meios administrativos que possam obstar à produção de efeitos lesivos sobre a esfera jurídica daquele a quem o acto pode afectar, pois, se existirem esses meios e o interessado não os utilizar, será a si próprio que pode imputar a lesividade do acto.
Daquela regra geral do artigo 95.º, n.º 1, da LGT decorre que o direito de impugnação é assegurado a quem puder considerar-se «interessado» e sê-lo-á quem for lesado por um acto da Administração Tributária nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos.
Para o reconhecimento a um cidadão da qualidade de «interessado», no âmbito da impugnação contenciosa de actos tributários não existe disposição expressa na LGT, embora o artigo 59.º, n.º 3, alínea g), ao fazer referência «àqueles em que tenham interesse directo, pessoal e legítimo», para efeitos de acesso aos processos administrativos, deixe perceber que se terá adoptado implicitamente o idêntico critério de definição da legitimidade para impugnação contenciosa de actos administrativos que, ao tempo em que a LGT entrou em vigor, era utilizado no contencioso administrativo, com base no artigo 46.º, n.º 1.º, do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo ( 2 ), aplicável à impugnação perante outros tribunais por força do disposto na alínea b) do artigo 24.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos ( 3 ).
À face desse critério geral sobre legitimidade para a impugnação de actos administrativos, que actualmente é reconhecida (além de outras situações que não relevam para apreciação do caso dos autos) a «quem alegue ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos» [artigo 55.º, n.º 1, alínea a), da LGT] ( 4 ), é claro que os Requerentes carecem de legitimidade.
Na verdade, os actos de liquidação de IRS e juros compensatórios foram praticados tendo como destinatário apenas a E..., sendo só a ela que por eles é imposta a obrigação de pagamento de quantias.
Por isso, o interesse que os Requerentes podem ter na anulação daqueles actos será meramente indirecto, advindo apenas da eliminação dos efeitos negativos que de tais actos podem advir para o património da E..., evitando, dessa forma, que esta lhes venha, eventualmente, a exigir o pagamento das quantias que for obrigada a pagar em consequência das liquidações de IRS e juros compensatórios referidas nestes autos.
Por outro lado, no que respeita à notificação que foi feita aos Requerentes do projecto de relatório da inspecção tributária em que se basearam os actos de liquidação de IRS e juros compensatórios, não decorre dela qualquer interesse directo dos Requerentes na impugnação dos actos de liquidação, pois apenas estes actos têm natureza lesiva e apenas a têm directamente para a E....
As notificações aos Requerentes do projecto de relatório podem ser consideradas como actos preparatórios de eventuais actos de liquidação que poderiam ter como destinatários os Requerentes, mas o certo é que nenhum acto veio a ser praticado que imponha a estes o pagamento de qualquer quantia e, sem tal imposição ou qualquer outra, não pode surgir um interesse directo destes em impugnar qualquer acto, designadamente os que apenas afectam a E..., um dos vários contribuintes que foram notificados do mesmo relatório.
Se é certo que se pode interpretar aquela notificação como um reconhecimento implícito de que os ora Requerentes tinham legitimidade para intervir no procedimento tributário, também é certo que no presente processo não está em causa a legitimidade para intervir no procedimento, mas sim para impugnar o acto final a que ele conduziu, e é à face deste acto final e não relativamente aos anteriores actos procedimentais que há que aferir a legitimidade, pois só o acto final produz efeito directo na esfera jurídica de quem nele é indicado como destinatário.
Não tem coerência lógica afirmar que, pelo facto de os Requerentes terem sido notificados de um projecto de relatório, têm interesse impugnar os actos finais que se basearam no relatório final, diferente do projecto, em que a Administração Tributária optou por nenhuma responsabilidade lhes imputar pelo pagamento de qualquer tributo.
Ainda por outro lado, relativamente à hipótese, aventada pelos Requerentes, de que se, «por qualquer razão, a E... vier a suportar o encargo do imposto liquidado, certamente que não deixará de accionar todos os meios cíveis adequados com vista a recuperar, junto dos Requerentes, na sua qualidade de contribuintes e devedores qualificados do imposto liquidado, as quantias indevidamente pagas», trata-se de uma pura conjectura, algo de eventual e hipotético, assente num mero palpite e não em qualquer elemento probatório, que não pode ser suporte do reconhecimento de um interesse actual dos Requerentes em impugnarem os actos que apenas àquela empresa afectam.
No que concerne à qualidade invocada pelos Requerentes de «únicos e verdadeiros contribuintes», «as pessoas relativamente às quais se verifica o facto tributário, o pressuposto de facto ou facto gerador do imposto, isto é, os titulares da manifestação de capacidade contributiva que a lei tem em vista atingir e que, por conseguinte, deve suportar a ablação ou desfalque patrimonial que o imposto acarreta», há que dizer que no nosso sistema de administração executiva, a definição da responsabilidade pelo pagamento de tributos, quando não é feita pelos próprios contribuintes ou substitutos tributários (através de autoliquidação ou retenção na fonte), depende da prática pela Administração Tributária de actos que a definam, impondo aos contribuintes a obrigação de pagamento desses tributos, nomeadamente no caso de liquidações adicionais, como decorre dos artigos 75.º e 89.º do CIRS.
No caso em apreço, nem os Requerentes nem a E... praticaram qualquer acto definindo as suas eventuais obrigações tributárias em matéria de IRS relacionadas com as operações referidas na matéria de facto fixada, pelo que os únicos actos que presentemente existem na ordem jurídica definindo essas obrigações são os actos de liquidação de IRS e juros compensatórios impugnados, que apenas criam obrigação de pagamento para a E....
Ora, é à face dos actos praticados que há que aferir a legitimidade para o impugnar e não de qualquer outro ou outros que poderiam, porventura, ter sido praticados, mas que não o foram.
Na verdade, o processo arbitral tributário, que foi introduzido pelo RJAT como alternativa ao processo de impugnação judicial ( 5 ), é, como este, um meio contencioso de mera anulação ( 6 ). Por isso, é, em princípio ( 7 ), à face apenas do teor do acto impugnado que é apreciada a sua legalidade, sendo irrelevante para efeito dessa apreciação, um hipotético diferente conteúdo que o acto pudesse ter, nomeadamente quanto ao seu conteúdo decisório.
Neste caso, a decisão final da Autoridade Tributária e Aduaneira apenas impõe à E... a obrigação de pagamento das quantias liquidadas.
Por isso, é claro que os actos de liquidação de IRS e juros compensatórios que são objecto do presente processo não afectam directamente, só por si, a esfera jurídica dos Requerentes, pois o seu destinatário é apenas a E....
Consequentemente, os Requerentes não podem ser considerados «interessados» para efeitos de impugnação dos actos praticados, à face do artigo 95.º, n.º 1 da LGT.
A correcção desta conclusão no sentido da falta de legitimidade dos Requerentes que resulta, à face da LGT, da falta de um interesse directo em impugnar os actos de liquidação e juros compensatórios praticados pela Autoridade Tributária e Aduaneira, é confirmada pelo artigo 9.º do CPPT, que concretiza tal legitimidade, cujas normas serão aplicáveis subsidiariamente ao presente processo arbitral, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, por este não conter regras sobre a legitimidade para formular pedido de pronúncia arbitral.
As regras gerais sobre legitimidade procedimental e processual, em matéria tributária, que constam do artigo 9.º do CPPT são as seguintes:
Artigo 9.º
Legitimidade
1 – Têm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido.
2 – A legitimidade dos responsáveis solidários resulta da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal.
3 – A legitimidade dos responsáveis subsidiários resulta de ter sido contra eles ordenada a reversão da execução fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários.
4 – Têm legitimidade no processo judicial tributário, além das entidades referidas nos números anteriores, o Ministério Público e o representante da Fazenda Pública.
Deste artigo resulta que há três vias de imputação de responsabilidade pelo pagamento de dívidas tributárias e correlativo reconhecimento de legitimidade para intervir no processo judicial tributário: como devedor originário (que pode ser o próprio contribuinte ou um substituto tributário), como devedor solidário ou como devedor subsidiário.
Em todos os casos, a legitimidade autónoma de cada um dos co-responsáveis depende da imputação da responsabilidade pelo pagamento da dívida, através de um acto do próprio devedor originário (nos casos de autoliquidação ou retenção na fonte) ou Administração Tributária (liquidação ou reversão da execução fiscal).
No caso em apreço, não tendo sido praticado pelos Requerentes ou pela E... qualquer acto definindo a responsabilidade dos primeiros pelo pagamento do IRS em causa (autoliquidação ou retenção na fonte), nem tendo sido praticado pela Autoridade Tributária e Aduaneira qualquer acto que considere os Requerentes devedores do IRS e juros compensatórios liquidados, não poderá ser reconhecida legitimidade a estes como devedores originários.
Na verdade, segundo se depreende do relatório da inspecção que baseou a abertura do procedimento para aplicação da cláusula geral anti-abuso, do procedimento aberto e da liquidação impugnada, a Administração Tributária considerou responsável originário pelo pagamento da dívida de IRS a E... e apenas ela. Com efeito, foi apenas à E... que a Autoridade Tributária e Aduaneira notificou o relatório final e a subsequente liquidação, que é o acto que define a responsabilidade pelo pagamento do tributo liquidado.
Por outro lado, independentemente de saber se os Requerentes poderão ou não, ulteriormente, vir a ser considerados responsáveis solidários ou subsidiários, a matéria de facto fixada conduz à conclusão de que não se verificam os requisitos de que depende a sua legitimidade para intervirem no processo judicial tributário, pois, até ao presente, não lhes foi exigido o cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, nem foi relativamente a qualquer dos Requerentes ordenada a reversão da execução fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários, como exige aquele artigo 9.º do CPPT, nos seus n.ºs 2 e 3, por remissão do n.º 4.
Como revelam os referidos n.ºs 2 e 3, pode existir legitimidade simultânea de vários co-devedores para impugnar um mesmo acto de liquidação, se se verificar em relação a todos ou a alguns a exigência da dívida, a título de devedor originário ou de devedor solidário ou de devedor subsidiário.
O facto de os Requerentes terem sido notificados para exercer o direito de audição sobre a aplicação da cláusula geral anti-abuso não define nem cria a sua responsabilidade pelo pagamento de qualquer tributo nem implica exigência da dívida, devendo essas notificações serem consideradas apenas como actos preparatórios de um possível acto final de liquidação, que não veio a ser praticado.
Nestas condições, não existe qualquer acto tributário a impute a qualquer dos Requerentes a responsabilidade pelo pagamento da dívida, nem se sabe se alguma vez virá a ser praticado.
O único acto de liquidação praticado apenas afecta a esfera jurídica da E....
Mas, como também se conclui dessas mesmas normas do artigo 9.º do CPPT, não é reconhecida legitimidade a quem não é imputada por qualquer forma a responsabilidade pelo pagamento do tributo liquidado.
Nestes termos, tem de se concluir que as normas aplicáveis conduzem à conclusão de que os Requerentes carecem de legitimidade para impugnarem os actos de liquidação de IRS e juros compensatórios a que se refere o pedido de pronúncia arbitral.
Importa ainda dizer que não tem qualquer suporte jurídico o que os Requerentes alegam no requerimento apresentado em 28-10-2013, sobre a sua legitimidade resultar do acórdão do Tribunal Central Administrativo … proferido no processo n.º …, por nele se ter entendido que «os ora Recorrentes [aqui Requerentes] foram já notificados nos termos do art. 60.º da LGT, o que significa que, a seu tempo, e uma vez notificados da decisão final do procedimento, poderão usar dos mecanismos que a lei prevê para reagir contra eventual decisão favorável aos seus interesses».
Na verdade, desde logo, as decisões sobre legitimidade recaem unicamente sobre a relação processual pelo que apenas têm força obrigatória dentro do processo em que são proferidas [artigo 620.º, n.º 1, do Código de Processo Civil de 2013, subsidiariamente aplicável por força do artigo 29.º, n.º1, alínea e), do RJAT], pelo que a decisão do Tribunal Central Administrativo …, se tivesse o alcance que os Requerentes pretendem, quanto à definição da legitimidade, não teria força obrigatória no presente processo.
Por outro lado, o que se refere naquele excerto do acórdão daquele Tribunal é que «a seu tempo, e uma vez notificados da decisão final do procedimento, poderão usar dos mecanismos que a lei prevê para reagir contra eventual decisão favorável aos seus interesses». Como resulta da matéria de facto fixada, os Requerentes ainda não foram notificados da decisão final do procedimento, pois ela apenas foi notificada à E..., pelo que, à face do que se entendeu naquele acórdão, ainda não chegou o «seu tempo» para impugnarem essa decisão, de que fala o Tribunal Central Administrativo ….
Finalmente, deve dizer-se que a interpretação dos artigos 9.º, n.ºs 1 e 2, e 95.º, n.º 1, da LGT e dos artigos 9.º e 54.º do CPPT não é incompatível com os direitos constitucionais à tutela judicial efectiva e à impugnação contenciosa de actos lesivos (artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da CRP, pois o direito dos Requerentes à impugnação de quaisquer actos que afectem as suas esferas jurídicas não é posto em causa ( 8 ), estando apenas o seu exercício dependente de ser praticado algum acto que os afecte, o que não sucede com os actos de liquidação de IRS e juros compensatórios referidos nos autos.
Pelo exposto, procede a excepção da ilegitimidade invocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
3.5.3. Questão de conhecimento prejudicado
Procedendo a excepção da ilegitimidade, a Autoridade Tributária e Aduaneira tem de ser absolvida da instância [artigo 89.º, n.ºs 1, alínea d), e 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT], pelo que fica prejudicado, por ser inútil, o conhecimento da excepção da litispendência, derivada da pendência no Tribunal Administrativo e Fiscal do … do processo de impugnação n.º ... dos actos de liquidação de IRS e juros compensatórios referidos nos autos [artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC de 2013, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].
4. Decisão
De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:
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Indeferir o pedido de suspensão da instância;
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Julgar improcedente a excepção da falta de objecto (ou inimpugnabilidade dos actos impugnados);
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Julgar prejudicado o conhecimento da questão da litispendência entre o presente processo arbitral e o processo de impugnação judicial n.º ...;
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Julgar procedente a excepção da ilegitimidade dos Requerentes e absolver da instância a Autoridade Tributária e Aduaneira.
5. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 315.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 8.994.147,94.
6. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 111.690,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo dos Requerentes.
Lisboa, 14 de Novembro de 2013
Os Árbitros
(Jorge Manuel Lopes de Sousa)
(Luís Máximo dos Santos)
(António Martins)