Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 699/2015-T
Data da decisão: 2016-10-05  IUC  
Valor do pedido: € 1.788,98
Tema: IUC - Incidência subjetiva; Presunções legais
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Decisão Arbitral

 

A Árbitro Raquel Franco, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o tribunal arbitral singular constituído em 09 de dezembro de 2015, decide nos termos que se seguem:

I. RELATÓRIO

1. No dia 25.11.2015, a sociedade “A…, LDA.”, NIPC…, apresentou um pedido de constituição de tribunal arbitral singular, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, doravante, “RJAT”), sendo requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 04.12.2015.

3. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a ora signatária, que comunicou a aceitação do correspondente encargo no prazo aplicável.

4. Em 22.01.2016 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação da árbitro nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.ºe 7.º do Código Deontológico.

5. Assim, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação introduzida pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral foi constituído em 08.02.2016.

6. No presente processo arbitral, pretende a Requerente que o Tribunal Arbitral declare a ilegalidade de 26 atos de liquidação oficiosa do imposto único de circulação (IUC) cujo montante total ascende a € 1.707,65, acrescido de juros compensatórios no valor de € 81,33, perfazendo o valor total de € 1.788,98, e, consequentemente, determine a restituição desse valor total, bem como o pagamento de juros indemnizatórios nos termos do disposto no artigo 43.º da LGT.

7. A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, nos seguintes termos:

- A Requerente prossegue a atividade de aluguer de veículos automóveis e presta serviços associados à gestão de frotas.

 

- A Requerente recebeu 26 notas de liquidação de IUC sobre veículos relacionados com a atividade supra mencionada, tendo procedido ao pagamento de todas elas, embora entendendo que as mesmas são ilegais por não respeitarem os pressupostos subjetivos de incidência do imposto.

 

- Em concreto, entende a Requerente que, em todos os casos abrangidos pelo pedido de pronúncia arbitral, o imposto liquidado diz respeito a veículos já vendidos pela Requerente na data em que ocorreu o facto tributário, pelo que não se verifica o pressuposto subjetivo de incidência de imposto no que toca ao sujeito passivo constante da liquidação.

 

- Entende a Requerente que o facto de o veículo em causa ter sido vendido por si em momento anterior ao da ocorrência do IUC consubstancia uma causa de exclusão de incidência do imposto que deveria ter sido atendida pela AT, na medida em que, nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 3, do CIUC, o imposto se considera exigível ao proprietário (ou a outros detentores do veículo que sejam equiparáveis) no primeiro dia do período de tributação do veículo, o qual, de acordo com o artigo 4.º, n.º 2, do mesmo Código, tem lugar na data em que a matrícula é atribuída.

 

- O facto de a propriedade dos veículos não ter sido inscrita no registo automóvel a favor do novo proprietário não pode ser imputado à Requerente, que, à data em que os factos ocorreram, não tinha legitimidade para requerer tal inscrição (essa possibilidade só foi introduzida no ordenamento jurídico português pelo Decreto-Lei n.º 177/2014, de 15 de dezembro).

 

- Por outro lado, entende a Requerente que, embora o artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, preveja que são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados, a expressão “considerando-se” deve ser entendida como uma presunção legal ilidível mediante prova em contrário por parte do transmitente do veículo. Assim, à luz do artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, o imposto deve incidir sobre os novos proprietários dos veículos.

 

8. Na sua Resposta, a AT invocou, resumidamente, o seguinte:

 

  • O legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas] as pessoas em nome das quais os mesmos [os veículos] se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal.
  • Entender que o legislador consagrou aqui uma presunção seria inequivocamente efetuar uma interpretação contra legem; trata-se, isso sim, de uma opção clara de política legislativa cuja intenção foi a de que, para efeitos de IUC, fossem considerados proprietários aqueles que como tal constem do registo automóvel.
  • A seguir-se a tese defendida pela Requerente quanto ao facto de o artigo 3.º do CIUC consagrar uma presunção ilidível, então a ilisão da presunção depende do cumprimento do estatuído no artigo 19.º do CIUC; não tendo a Requerente cumprido o ónus probatório que se lhe impunha, e constatando-se o incumprimento da obrigação declarativa prevista naquela disposição legal, duas consequências devem retirar-se: (i) a responsabilidade da Requerente pelas custas arbitrais relativas ao presente pedido de pronúncia arbitral dado que aquele incumprimento deu azo à emissão de parte das liquidações em causa; (ii) o apuramento da sua responsabilidade em termos contra-ordenacionais à luz do artigo 117.º, conjugado com o artigo 26.º, n.º 4, do RGIT;
  • A interpretação dada pela Requerente traduz-se num entorpecimento e encarecimento das competências atribuídas à Requerida, com óbvio prejuízo para os interesses do Estado Português;
  • A argumentação apresentada pela Requerente de que o sujeito passivo do imposto é o proprietário efetivo, independentemente de não figurar no registo automóvel nessa qualidade, é errada à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado no CIUC na medida em que o legislador pretendeu criar um imposto assente na tributação do proprietário do veículo tal como consta do registo automóvel.
  • Quanto aos documentos juntos pela Requerente para prova do que invoca, entende a AT que as segundas vias de faturas não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é o da compra e venda, pois não revelam por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte do pretenso adquirente. Acrescenta que a Requerente não juntou cópias do modelo oficial para registo da propriedade automóvel quando podia e devia tê-lo feito no requerimento do pedido de pronúncia arbitral, e, tão-pouco, juntou prova do recebimento dos preços. Alega também que, no que tange ao valor ou força probatória das faturas corporizadas nos documentos juntos ao processo, levantam-se dúvidas, atentas as diversas menções das mesmas constantes (rescisão, perda total seguradora, valor residual, venda de viatura não locada). Refere-se, a título de exemplo, às faturas referentes aos veículos …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, em que se pode ler “VALORES RESIDUAIS”, à fatura referente ao veículo …-…-…, …-…-…, …-…-…, em que se pode ler “PERC TOT CLIENTE” e aos veículos …-… -…, …-…-…, …-… … e …-… -…, em que se pode ler “VENDA VIAT NÃO LOCADO”, e ao veículo …-…-…, em que se pode ler “RESCIÇÃO ANTECIPADA”. Conclui, quanto a este ponto, que, perante um suposto único tipo contratual (i.e., contrato de compra e venda de veículo automóvel), seria expetável constatar a existência de um descritivo uniforme, o que não se verifica no caso vertente, dado que as diversas faturas juntas ao pedido de pronúncia arbitral incluem descritivos diferentes, pelo que os documentos em causa não devem beneficiar da presunção de verdade a que alude o artigo 75.º da LGT.

 

  • Por fim, a Requerida sustenta que, a ser aceite a interpretação veiculada pela Requerente, então a mesma mostra-se contrária à Constituição, na medida em que se traduz na violação do princípio da confiança, do princípio da segurança jurídica, do princípio da eficiência do sistema tributário e do princípio da proporcionalidade.

 

II. SANEAMENTO

 

1. O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.

 

2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

3. O processo não padece de vícios que o invalidem.

 

4. Pretende-se a apreciação conjunta da legalidade de 26 liquidações de IUC, para o que se verificam os pressupostos previstos no n.º 1 do artigo 3.º do RJAT e no artigo 104.º do CPPT, sendo de admitir a cumulação em virtude da identidade do imposto e da circunstância de a análise dos atos tributários em causa depender da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da aplicação das mesmas regras de direito.

 

IV. MATÉRIA DE FACTO

 

IV.1. Factos provados

 

Antes de entrar na apreciação das questões, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental e o processo administrativo (PA) junto aos autos e tendo ainda em conta os factos alegados, se fixa como segue:

 

  1. A Requerente prossegue a atividade de aluguer de veículos automóveis e presta serviços associados à gestão de frotas.

 

  1. A Requerente recebeu 26 notas de liquidação de IUC sobre veículos relacionados com a atividade supra mencionada, todas identificadas na Tabela Anexa ao pedido arbitral, que aqui se dá por integralmente reproduzida.

 

  1. A propriedade destes veículos encontrava-se, à data dos factos tributários, inscrita no registo automóvel a favor da Requerente.
  2. A Requerente emitiu os seguintes documentos denominados “2.ªs vias de fatura”, respeitantes às viaturas e com as datas que se indicam de seguida:

a.       Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 2008-08-08, descritivo “Valores residuais”;

b.      Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 2003-11-23, descritivo “Valores residuais”;

c.       Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 2010-06-08, descritivo “Valores residuais”;

d.      Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 2007-01-29, descritivo “Perc Tot Cliente”;

e.       Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 2006-07-23, descritivo “Valores residuais”;

f.       Viatura de matrícula …-… -…, fatura datada de 2009-10-01, descritivo “Venda  viat não loc”;

g.      Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 2007-07-23, descritivo “Valores residuais”;

h.      Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 2003-06-23, descritivo “Valores residuais”;

i.        Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 2006-07-08, descritivo “Valores residuais”;

j.        Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 2006-03-03, descritivo “Perc Tot Cliente”;

k.      Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 2009-02-23, descritivo “Valores residuais”;

l.        Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 2006-01-31, descritivo “Venda viatura”;

m.    Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 2002-05-08, descritivo “Valores residuais”;

n.      Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 2009-06-23, descritivo “IUC-IMP.UNIC CIRCULACAO”;

o.      Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 2007-05-23, descritivo “Valores residuais”;

p.      Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 2008-05-08, descritivo “Valores residuais”;

q.      Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 2009-05-08, descritivo “Valores residuais”;

r.        Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 2008-05-29, descritivo “Venda Viat Nao Loc”;

s.       Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 2008-05-23, descritivo “Valores residuais”;

t.        Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 2007-09-20, descritivo “Perc Tot Cliente”;

u.      Viatura de matrícula, …-…-… fatura datada de 2007-06-01, descritivo “VENDA VIAT NAO LOC”;

v.      Viatura de matrícula, …-…-… fatura datada de 2009-05-26, descritivo “VENDA VIAT NAO LOC”;

w.    Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 2008-05-23, descritivo “VALORES RESIDUAIS”;

x.      Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 1992-06-24, descritivo “RESCISAO ANTECIPADA”;

y.      Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 1990-08-08, descritivo “VALORES RESIDUAIS”;

z.       Viatura de matrícula …-…-…, fatura datada de 1997-07-07, descritivo “VALORES RESIDUAIS”.

 

  1. Todas as liquidações impugnadas dizem respeito ao ano de 2015, exceto a referente ao veículo de matrícula …-…-…, que diz respeito ao ano de 2012 e a referente ao veículo de matrícula …-…-…, que diz respeito ao ano de 2011.

 

  1. A Requerente efetuou o pagamento de todas as liquidações impugnadas (embora não tenha junto documentos comprovativos dos pagamentos referentes às viaturas …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, …-…-…, considera-se o pagamento provado por acordo uma vez que não foi impugnado especificamente pela Requerida).
     

 

  1. Dos registos contabilísticos da Requerente não constam dívidas referentes às viaturas identificadas no ponto 5.

 

 

IV.2. Factos não provados

 

Não existem factos invocados pelas Partes com relevância para a decisão da causa que não tenham sido considerados provados.

 

V. THEMA DECIDENDUM

 

A questão de fundo em causa nos presentes autos consiste em saber se os factos alegados pela Requerente consubstanciam motivos de exclusão de incidência subjetiva de imposto e se, em consequência, se deve considerar que os atos impugnados enfermam de erro sobre os pressupostos do facto tributário, o que consubstanciaria um vício de violação de lei determinante da respetiva anulação, com as devidas consequências legais.

 

VI. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

 

A Requerente fundamenta o seu pedido no argumento de não se encontrarem preenchidos os pressupostos de incidência subjetiva previstos no artigo 3.º do CIUC na medida em que, à data dos factos tributários, já não era proprietária das referidas viaturas.

 

Invoca o disposto no artigo 3.º do CIUC, o qual, em seu entender, estabelece uma presunção implícita de propriedade dos veículos a favor de quem os mesmos se encontrem registados, presunção essa que, por força da aplicação da regra geral prevista no artigo 73º da Lei Geral Tributária, é ilidível mediante prova em contrário. Já para a Requerida, o artigo 3.º do CIUC não estabelece qualquer presunção implícita, mas uma verdadeira ficção legal, inilidível.

 

Esta questão tem sido abundantemente tratada pela jurisprudência arbitral ao longo dos últimos anos (cf. as decisões proferidas nos processos 286/2013-T, de 2 de maio de 2014, 293/2013-T, de 9 de junho de 2014, 46/2014-T de 5 de setembro, 246 e 247/2014 T, de 10 de outubro, entre outros), tendo ainda sido objeto do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido em 19-03-2015, processo n.º 08300/14. Seguindo este tribunal de perto a linha jurisprudencial delineada nos processos acima indicados, indicar-se-ão aqui apenas os seus traços mais significativos.

 

Assim, o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC estabelece que:

“São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.”

 

A questão que se discute a propósito desta norma é a seguinte: deverá entender-se que o legislador utilizou a palavra “considerando-se” como poderia ter utilizado a palavra “presumindo-se” ou, pelo contrário, que o legislador quis estabelecer uma ficção legal, vedando a possibilidade de se realizar prova em contrário?

 

Nos termos do disposto no artigo 349.º do Código Civil, “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.” Por outro lado, o n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil esclarece que as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, salvo nos casos em que a lei o proibir.

 

No que diz respeito às presunções de incidência tributária, determina o artigo 73.º da Lei Geral Tributária que estas admitem sempre prova em contrário.

 

As “ficções legais” consistem, diferentemente, “num processo jurídico que considera uma situação ou um facto como distinto da realidade para lhe atribuir consequências jurídicas”[1].

 

Ora, contrariamente ao que defende a Requerida e como já foi reconhecido nas decisões arbitrais e judiciais referidas, a análise do elemento literal, bem como dos elementos histórico e teleológico presentes na norma em questão conduzem à conclusão de que o legislador não pretendeu estabelecer qualquer ficção legal mas apenas e só uma presunção, ilidível mediante prova em contrário nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 73.º da Lei Geral Tributária. Tratando-se a norma de incidência prevista no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC de uma norma de incidência tributária, outro entendimento seria claramente contrário aos princípios que regem a relação jurídica fiscal.

 

Quanto ao elemento histórico, importa referir que o CIUC teve a sua génese na criação, através do DL 599/72, de 30 de Dezembro, do imposto sobre veículos, o qual já consagrava expressamente que o imposto era devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas em nome de quem os mesmos se encontram matriculados ou registados[2]. Por outro lado, o artigo 2.º do Regulamento dos Impostos de Circulação e de Camionagem (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 116/94) estabelecia que: “são sujeitos passivos do imposto de circulação e do imposto de camionagem os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas singulares ou coletivas em nome das quais os mesmos se encontram registados”.

 

É certo que, no CIUC, o legislador substituiu a expressão “presumindo-se” pela expressão “considerando-se”, o que, na perspetiva da Requerida, traduziu a consagração de uma ficção legal, inilidível. Não consideramos, no entanto, que assim seja. A mudança de verbo não consubstancia uma alteração de fundo na norma de incidência, que, a nosso ver, continua a estabelecer uma presunção ilidível mediante prova em contrário – em conformidade, aliás, com o disposto no artigo 73.º da LGT.

Como afirmam Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, na anotação ao n.º 3 do artigo 73.º da LGT, “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objetiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real”[3].

 

Em suma, em matéria de incidência tributária, as presunções podem ser reveladas pela expressão “presume-se” ou por expressão semelhante[4]. A título de exemplo, refere Jorge Lopes de Sousa que no artigo 40.º, n.º 1, do CIRS, se utiliza a expressão “presume-se”, ao passo que no artigo 46.º, n.º 2 do mesmo Código se faz uso da expressão “considera-se”, não havendo qualquer diferença entre uma e outra expressão, ambas significando, afinal, o mesmo: uma presunção legal[5].

 

Quanto ao elemento teleológico, importa referir que o princípio estruturante da reforma da tributação automóvel é justamente o da incidência da tributação sobre o verdadeiro utilizador do veículo, não se coadunando este princípio com a leitura “cega” da letra da lei, que poderia levar, afinal, a tributar quem não fosse proprietário e, dessa forma, quem não fosse o sujeito causador do “custo ambiental e viário” provocado pelo veículo, a que alude o artigo 1.º do CIUC.

 

Assim, quanto à incidência subjetiva do imposto, é de concluir que não se verificam alterações relativamente à situação anteriormente em vigor no âmbito do Imposto Municipal sobre Veículos, Imposto de circulação e Imposto de Camionagem, como aliás é amplamente reconhecido pela doutrina, continuando a valer uma presunção ilidível nesta matéria. Este entendimento é, ainda, o único que se afigura adequado e conforme ao princípio da verdade material e da justiça, subjacentes às relações fiscais, com o objetivo de tributar o real e efetivo proprietário e não aquele que, por circunstâncias de diversa natureza, não passa, por vezes, de um aparente e falso proprietário, por constar do registo automóvel.

 

Nesta conformidade, considerando os elementos de interpretação da lei referidos, somos conduzidos à conclusão de que a expressão “considerando-se” tem exatamente o mesmo sentido que a expressão “presumindo-se”, devendo, desta forma, entender-se que o artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, consagra uma verdadeira presunção de propriedade e não qualquer ficção, sendo, por isso, tal presunção ilidível. Por ser assim, tem de se permitir ao titular inscrito no registo automóvel a possibilidade de apresentar elementos probatórios bastantes para a demonstração de que o efetivo proprietário é, afinal, pessoa diferente da que consta do registo.

 

Por último, cumpre atender, na presente análise, ao valor jurídico do registo automóvel. Assim, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 1.º do DL 54/75, de 12 de Fevereiro, que instituiu o Registo da Propriedade Automóvel, “o registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respetivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”. Acrescenta ainda o artigo 7.º do Código do Registo Predial que “o registo definitivo constituiu presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”. O registo de propriedade automóvel não tem, portanto, natureza constitutiva, mas meramente declarativa, permitindo apenas a inscrição no registo presumir a existência do direito e a sua titularidade. Logo, a presunção resultante do registo pode ser ilidida mediante prova em contrário. E isto é assim justamente porque, nos termos do disposto no artigo 408.º do Código Civil, salvas as exceções previstas na lei, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, não ficando a sua validade dependente da inscrição no registo[6]. Em suma, o registo automóvel, na economia do CIUC, representa mera presunção ilidível dos sujeitos passivos do imposto. No caso de um contrato de compra e venda de um veículo automóvel, não prevendo a lei qualquer exceção para o mesmo, o contrato tem eficácia real, passando o adquirente a ser o seu proprietário, independentemente do registo; do mesmo modo, o titular inscrito no registo deixará de ser o proprietário, pese embora ainda possa constar, por algum tempo ou mesmo muito, do registo como tal.

 

De notar ainda que as transmissões efetuadas são oponíveis à Requerida, apesar do disposto no n.º 1 do artigo 5.º do Código do Registo Predial, que dispõe: “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros quando registados.” A noção de terceiros para efeitos de registo está consagrada no n.º 4 do mesmo artigo 5.º: terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si, o que, manifestamente não é o caso da AT. Assim, a AT não é terceiro para efeitos de registo.

 

Em consequência do que antecede, o proprietário registado de um automóvel pode fazer prova, para efeitos de tributação em sede de IUC, de que já não é o proprietário efetivo do veículo em causa, nomeadamente por ter procedido à respetiva venda. E a prova da existência de um contrato de compra e venda pode ser efetuada por qualquer meio, sendo a fatura um documento contabilístico idóneo para este efeito, como para muitos outros, nomeadamente fiscais. As faturas titulam vendas, transações ou prestações de serviços que se presumem verdadeiras por força da presunção de veracidade instituída no artigo 75.º da LGT. Neste sentido, não se aceita que se questione a sua força probatória apenas para o fim da prova da transmissão da propriedade do veículo, sob pena de cairmos no absurdo jurídico de, a partir do mesmo documento, se reconhecer que a transação existiu para efeitos de incidência de imposto sobre o rendimento, mas não existiu para efeitos de IUC. Mas, tratando-se de uma presunção, nada impede a demonstração da sua falsidade ou inadequação face aos requisitos legais estabelecidos no artigo 36.º do CIVA. Trata-se, também neste caso, de uma presunção ilidível, sendo que o ónus da prova cabe à AT.

 

Alega a Requerente que, à data em que ocorreram os factos tributários, já havia transmitido a propriedade das viaturas para terceiros adquirentes. Para prova disso junta as segundas vias de faturas, nas quais se mencionam, entre outros elementos, a matrícula da viatura, o número de cliente, a identificação do destinatário, o valor, uma descrição variável – por exemplo, “Valores residuais”, “Perc Tot Cliente”, “Venda  viat não loc”, “Venda viatura”, “IUC-IMP.UNIC CIRCULACAO”, “RESCISAO ANTECIPADA” -, assim como a menção “Válido após boa cobrança.”

 

As faturas apresentadas pela Requerente beneficiam, como se disse, da presunção de veracidade contida no artigo 75.º da LGT, desde que cumpram os requisitos legais e demonstrem a correspondência à realidade de facto que a Requerente pretende demonstrar nos autos: a transmissão da propriedade das viaturas. 

 

Porém, a AT questiona a “própria validade de todas as alegadas 2.ºas vias das faturas de alienação dos veículos, e por várias ordens de razão. Na verdade, relativamente a todas as faturas identificadas como 2.ª vias, é absolutamente relevante o já decidido na decisão arbitral de 30.07.2015, proferida no Processo n.º 79/2015-T CAAD, do mesmo Requerente, no que se refere à menção, constante de todas as faturas, da menção “válido após boa cobrança” (…). Ou seja, e de uma forma liminar e sintética: se as todas faturas apenas são válidas após a demonstração da sua boa cobrança, e se esta prova não foi feita, então todas as faturas são inválidas para o efeito pretendido.” (…) As faturas juntas pelo Requerente apresentam no seu descritivo menções distintas. Assim, em algumas faturas juntas pode-se ler no campo da descrição a menção “VENDA NÃO LOCADO”, “PERCA TOTAL SEGURADORA”, “VALOR RESIDUAL”, “RESCISÃO”, e “VENDA DE BEM EM CRÉDITO”. Ou seja, perante um suposto único tipo contratual (i.e., contrato de compra e venda de veículo automóvel) seria expectável constatar a existência de um descritivo uniforme, o que não se verifica no caso vertente, dado que diversas faturas juntas ao pedido de pronúncia arbitral incluem descritivos diferentes, pelo que forçosamente é-se levado a concluir pela existência de várias realidades distintas.”[7]

 

Efetivamente, os documentos juntos pela Requerente para prova da transmissão de propriedade levantam algumas dúvidas quanto à efetiva ocorrência da transmissão que pretendem titular. Em primeiro lugar, os descritivos não permitem concluir, sem mais, pela existência de compras e vendas subjacentes, dada a diversidade de situações descritas. Em segundo lugar, a indicação de “válido após boa cobrança” retira à fatura a capacidade para, por si só, demonstrar a efetiva conclusão da venda. No entanto, a Requerente juntou também documentos comprovativos dos registos contabilísticos referentes às viaturas em questão, dos quais decorrem que não se encontram em dívida quaisquer montantes quanto às mesmas por parte dos clientes da Requerente, corroborando ainda a venda em momento anterior à data da liquidação do IUC. Ora, com estes registos, a Requerente consegue fazer a prova da “boa cobrança” e, nessa medida, da validade das faturas para efeitos de prova da alienação em momento anterior ao da data de liquidação do imposto.

 

Assim, considera-se provada a transmissão das viaturas em momento prévio ao da data de liquidação e, portanto, o erro sobre os pressupostos da liquidação por não ser a Requerente o sujeito passivo do imposto em causa.

 

Quanto ao pedido de juros indemnizatórios, formulado nos termos do artigo 43.º da LGT, entende-se não ser o mesmo procedente porque a anulação não se funda em erro imputável aos serviços, já que a Requerida emitiu as liquidações tendo em conta as informações de que dispunha, não sendo responsável, nem podendo ser responsabilizada, pela respetiva desatualização. Assim, não se encontram reunidos os pressupostos elencados no artigo 43.º da LGT.

 

VII. DECISÃO

Em conformidade com que fica exposto supra, decide-se:

(i)                 Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto ao erro sobre os pressupostos de incidência subjetiva das liquidações impugnadas e, consequentemente, declarar-se a ilegalidade das liquidações impugnadas e sua anulação, devendo o imposto e juros compensatórios pagos ser restituídos à Requerente;

(ii)               Julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios.

 

Valor: em conformidade com o disposto nos artigos artigo 97.º - A, n.º 1, alínea a), do CPPT e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 1.788,98.

 

Custas: nos termos do disposto no artigo 22.º, n.º 4, do RJAT e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 306,00, a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Registe-se e notifique-se.

Lisboa, 05 de outubro de 2016

 

A Árbitro,

 

Raquel Franco



[1] Cfr. F. Rodrigues Pardal, “O uso de presunções no direito tributário”, in Ciência e Técnica Fiscal, n.º 325-327, página 20 e ss..

[2] Cfr. o artigo 3.º do Regulamento do Imposto sobre Veículos, anexo ao indicado DL 599/72, de 30 de Dezembro.

[3] Cfr. Lei Geral Tributária – Anotada e Comentada, 4.ª ed., 2012, Encontro da Escrita Editora, p. 651.

[4] Cfr. Jorge Lopes de Sousa (2011), Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado. Volume I. 6.ª Edição. Áreas Editora: Lisboa, pp. 589 e ss..

[5] Cfr. Ob. Cit., pp. 590 e ss..

[6] Cf. entre outros, os seguintes Acórdãos do STJ: de 31.05.1966, Proc. N.º 060727 (Relator: Conselheiro Lopes Cardoso); de 05.05.2005 (Relator: Conselheiro Araújo Barros) e de 14.11.2013, in Proc. N.º 74/07.3TCGMR.G1.S1 (Relator: Conselheiro Serra Baptista).

[7] Cfr. a Resposta da Requerida, arts. 128.º e ss.