Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 74/2016-T
Data da decisão: 2016-10-21  IMT  
Valor do pedido: € 97.528,91
Tema: IMT - benefício fiscal; artigo 270º-2, do CIRE - interpretação
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Decisão Arbitral

Os árbitros, José Poças Falcão, Nuno de Oliveira Garcia e Nuno Pombo, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (adiante apenas ‘CAAD’) para constituir o presente Tribunal Arbitral (TA), decidem o seguinte:

 

I – RELATÓRIO

A sociedade ‘A…, Unipessoal, Lda’, sociedade comercial com sede na Rua …, Edifício “…”, n.º…, …-… …, …, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de … sob o número de pessoa coletiva …, com o capital social de € 100.000,00 (cem mil euros), (doravante apenas designada por Requerente), apresentou, em 10-02-2016, um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com o art.º 102.° do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante apenas designado por CPPT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida).

A Requerente pede a anulação da notificação do ato de liquidação de IMT praticado pela AT ou, sem conceder, da própria liquidação de IMT fixado quanto à “matéria coletável do regime geral”, através de Ofício datado de 12 de outubro de 2015 no valor total de € 97.528,91 com fundamento na sua ilegalidade.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 26-02-2016 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nessa mesma data. O Conselho Deontológico designou como árbitros os ora signatários que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 12-04-2016, as Partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Em conformidade com o preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 26-02-2016.

Notificada para se pronunciar sobre o pedido deduzido pela Requerente, a Requerida apresentou resposta, pugnando, por impugnação, pela improcedência do pedido deduzido pela Requerente.

As Partes apresentaram alegações nos respetivos prazos, sem que tenha existido lugar a inquirição de testemunhas, posto que tal inquirição foi dispensada por decisão unânime do colégio arbitral tomada em 20 de junho de 2016.

 

II – DO PEDIDO DA REQUERENTE

Nos presentes Autos, a Requerente começa por solicitar a nulidade da notificação da liquidação, por invalidade da mesma, tendo em consideração as alegações de falta de identificação do autor do ato, de falta de identificação completa dos meios de defesa, de falta de fundamentação e de falta de competência do autor para o ato.

Apenas em momento posterior, a Requerente solicita a anulação da liquidação de IMT efetuada, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 270.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante apenas designado por CIRE). No seu entender, a liquidação de IMT referida é ilegal por violação do referido comando legal por este reconhecer, expressamente, a isenção daquele imposto nas transmissões da empresa ou de estabelecimentos desta no âmbito de planos de insolvência, de pagamentos ou recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente. Ora, entende a Requerente que a referida norma abrange não apenas as vendas da empresa ou estabelecimentos desta enquanto universalidades de bens, mas também as vendas de imóveis do seu ativo, desde que integradas no âmbito do plano de insolvência ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente. Assenta a sua posição no âmbito interpretativo da norma, e em jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (STA) e do CAAD que cita e referencia abundantemente.

 

III – DA RESPOSTA DA REQUERIDA

Em sede de resposta, a Requerida pugna pela improcedência dos vícios formais, bem como do pedido de anulação da liquidação de IMT em crise por considerar que, no caso em apreço, não seria aplicável a isenção prevista no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE. Sustenta a Requerida que, no caso em apreço, não estamos perante uma transmissão onerosa de bens que integram a universalidade de empresa ou estabelecimento vendidos, permutados ou cedidos no âmbito do plano de insolvência ou de pagamentos ou da liquidação da massa insolvente, mas sim tão-somente perante um ato de venda de bens em processo de liquidação da massa falida de uma empresa. Neste aspeto – formal de resto – não existem diferenças entre a posição da Requerente e da Requerida, porém esta entende que a isenção prevista no normativo em causa só opera se o objeto da transmissão for a empresa ou o estabelecimento e não alguns bens do seu ativo. Ou seja, o benefício fiscal em causa é apenas reconhecido à transmissão da universalidade de bens associados ao exercício da atividade económica da empresa. Esta é, no entender da Requerida, a única interpretação consentânea com a letra e o espírito da lei e que se conforma com o princípio da prevalência da alienação da empresa como um todo, nos termos descritos no preâmbulo do CIRE.

 

IV – Do saneamento

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.º do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

Não foram identificadas nulidades no processo.

 

V – Matéria de facto e respetiva fundamentação

Com relevância para a decisão de mérito, o Tribunal Arbitral considera provada a seguinte factualidade:

a)      A ora Requerente foi objeto de uma ação de inspeção credenciada pela ordem de serviço n.º OI.2014… de âmbito interno – da Direção de Finanças de …, onde foi apurado que adquiriu três prédios à sociedade B…– Sociedade Imobiliária, Lda. – Em Liquidação, NIPC …, no âmbito da liquidação judicial da “massa insolvente” desta sociedade comercial;

b)      No referido Relatório de Inspeção concluiu-se que a aquisição dos prédios aproveitou do benefício de isenção de IMT nos termos do artigo 270.º do CIRE, através da utilização da liquidação de IMT n.º … de 15-07-2013, efetuada no Serviço de Finanças de …;

c)      Contudo no referido relatório de inspeção sustentou-se que a ora Requerente não reunia os pressupostos para beneficiar da isenção de IMT nos termos do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, pelo que as transações dos imóveis constituíam operações sujeitas e não isentas do IMT.

d)      A liquidação de IMT em crise foi remetida à ora Requerente, tendo esta pedido a constituição do presente tribunal arbitral.

e)      A ora Requerente não procedeu ao pagamento da liquidação em crise no prazo nela referido, pelo que foi emitida a correspondente certidão de dívida, correndo no Serviço de Finanças de … o processo de cobrança coerciva com o n.º PEF …2016… .

 

V.II. Fundamentação da Matéria de Facto

A convicção sobre os factos dados como provados fundou-se na prova documental junta pela Requerente em anexo ao requerimento inicial – essencialmente no que respeita ao procedimento subsequente à liquidação em crise, ao processo de insolvência da B…, e aos termos das aquisições efetuadas pela Requerente – aspetos que não foram contestados pela Requerida.

 

V.III. Factos não provados

Não se constataram factos essenciais, com relevo para a apreciação do mérito da causa, os quais não se tenham provado.

 

VI. Questão decidenda

Conforme acima referido, o requerimento inicial imputa vícios à notificação da liquidação de imposto em crise e, seguidamente, vícios à própria liquidação de imposto. Simplificadamente (mas não totalmente em rigor), poder-se-ia sustentar que os primeiros vícios se reportam a aspetos formais, ao passo que a violação de lei imputada à liquidação constitui um vício de natureza material. Independentemente dessa distinção, o que se afigura determinante é saber até que ponto é útil nos presentes Autos conhecer de outros vícios para além do vício material, caso se conclua que este deva ser procedente. De outro prisma, de que serviria (desde logo à Requerente) anular a notificação da liquidação, quando tal anulação não seria causa impeditiva para que a AT viesse ainda, com base no mesmo posicionamento perante o artigo 270.º do CIRE, a emitir nova liquidação ou apenas a proceder a nova notificação.

Tendo em consideração a jurisprudência do STA e do CAAD a respeito da questão de fundo a decidir nos presentes, a questão primeiramente a decidir nos presentes autos é a seguinte:

  — É ilegal a liquidação de IMT pela AT assente na interpretação do disposto no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, no sentido de que esta norma apenas isenta de imposto os casos de transmissão onerosa de bens no âmbito da liquidação da massa insolvente quando tais bens constituem a integralidade, e não apenas parte, da empresa insolvente?

 

VII. Da (i)legalidade da liquidação em crise

Cumpre, assim e primeiramente, decidir quanto ao fundo da questão, ou seja, quanto à legalidade da liquidação de IMT em crise.

Resulta do próprio Relatório de Inspeção em que se funda a liquidação em crise, que a Requerente adquiriu alguns bens no âmbito da liquidação da massa insolvente da sociedade B…, não tendo, portanto, adquirido a universalidade dos bens associados ao exercício da atividade económica daquela sociedade insolvente. Como o próprio requerimento inicial refere, tanto o STA como o CAAD já produziram jurisprudência abundante a propósito da melhor interpretação do n.º 2 do art. 270.º do CIRE, em especial ao que poderíamos denominar de amplitude da isenção de imposto aí prevista. Tal jurisprudência tem vindo a entender que resulta da letra do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, que o legislador incluiu na previsão da norma, não só a transmissão global do património da empresa insolvente, mas também a transmissão parcelar desse património, correspondente a um ou mais estabelecimentos da empresa insolvente e mesmo correspondente a meros imóveis (ainda que não estabelecimentos).

É disso exemplo a jurisprudência unânime do STA que vem defendendo uma interpretação extensiva do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, considerando que este se aplica «[...] não apenas às vendas ou permutas de empresas ou estabelecimentos enquanto universalidade de bens, mas também às vendas ou permutas de imóveis (enquanto elementos do seu activo) desde que enquadradas no âmbito de um plano de insolvência ou de pagamento, ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente». Isto mesmo resulta dos recentes acórdãos de 20-01-2016, proferido no proc. n.º 01350/15, de 16-12-2015, proferido no proc. n.º 01345/15, de 18-11-2015, proferidos nos procs. n.º 01067/15, n.º 0575/15, e de 11-11-2015, proferido no proc. n.º 0968/13.

Quanto a nós seguimos este posicionamento jurisprudencial, pelo que, e por tudo o que vem exposto, conclui-se que a liquidação efetuada pela AT, aqui contestada pela Requerente, é ilegal por violação do disposto no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE pelo que deverá ser anulada, com as demais consequências legais, não sendo necessário – desde logo por inutilidade – apreciar os demais vícios invocados no requerimento inicial e imputados à notificação da liquidação.

Procede, assim, o pedido deduzido pela Requerente no que respeita à anulação da liquidação em crise nos presentes Autos.

 

VIII. DECISÃO

Em face do exposto, julga-se procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto ao pedido de anulação da liquidação de IMT em crise, declarando-a ilegal por violação de lei, em concreto do disposto no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, anulando-a na íntegra em conformidade.

 

* * *

Fixa-se o valor do processo em 97.528,91 € (noventa e sete mil, quinhentos e vinte e oito Euros e noventa e um Cêntimos), de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º do CPC.

O montante das custas é fixado em 2754€ (dois mil, setecentos e cinquenta e quatro Euros) ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT, a cargo da Requerida, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT e 4.º, n.º 4 do RCPAT.

Notifique-se.

Lisboa, 21 de outubro de 2016

 

Os Árbitros

 

José Poças Falcão

 

 

Nuno de Oliveira Garcia

 

 

Nuno Pombo