Decisão Arbitral
Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Ana Moutinho Nascimento e Álvaro José da Silva, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral:
I – RELATÓRIO
1. No dia 23 de Dezembro de 2015, a sociedade A…— …, LDA., pessoa colectiva n.º…, com sede Avenida … n°…, … - … …, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade das seguintes liquidações adicionais de IVA, referentes aos anos de 2011 a 2013:
2. Para fundamentar o seu pedido de declaração da ilegalidade e consequente anulação das liquidações de IVA e juros compensatórios respetivos, alega a Requerente, em síntese, que:
i. A tese sufragada pela AT, não tem respaldo nem na letra, nem no espírito da norma sobre a qual versa, sendo ainda manifestamente atentatória dos princípios que regem o IVA, designadamente do denominado princípio da neutralidade que se opõe a que prestações de serviços similares, que se encontram em concorrência entre si, sejam tratadas de maneira diferente do ponto de vista do IVA;
ii. resulta inequívoco da letra da lei que os tratamentos em "centros de assistência médica e de diagnóstico" são serviços isentos ao abrigo da alínea b) do artigo 132.º da Directiva do IVA, razão pela qual a opinião seguida pela AT configura uma interpretação contra legem;
iii. o internamento/hospitalização não é requisito da isenção da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º da Sexta Directiva, pois os laboratórios de análises clínicas não são estabelecimentos que prestem serviços médicos que envolvam o internamento dos pacientes, e se a norma abrange os laboratórios de análises clínicas por serem estabelecimentos da "mesma natureza", também terá de abranger, por maioria de razão, as clínicas pois estas são mais do que estabelecimentos da "mesma natureza" sendo subsumíveis no conceito de "centros de assistência médica e de diagnóstico", pelo que as clínicas médicas (nas quais se incluem as clínicas dentárias) estão isentas ao abrigo do n.º 2 do artigo 9.º do CIVA e, como tal, podem renunciar à isenção nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º do mesmo diploma.
3. No dia 28 de Dezembro de 2015, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
5. Em 16 de Fevereiro de 2016, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
6. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 02 de Março de 2016.
7. No dia 11 de Abril de 2016, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta, defendendo-se por excepção e impugnação.
8. Por despacho de 18 de Junho de 2016 foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.
9. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respetivas posições jurídicas.
10. Foi prorrogado o prazo a que alude o artigo 21.º/1 do RJAT, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo e fixado o prazo de 30 dias para a prolação de decisão final.
11. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 1, do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Tudo visto, cumpre proferir
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1. A Requerente dedicava-se, à data dos actos tributários objecto da presente acção arbitral, à prestação de cuidados médicos na especialidade de medicina dentária, sendo que para o exercício daquela actividade possui um estabelecimento aberto ao público, sito na Avenida …, n.º…, em …, correspondendo-lhe o Código de Actividade (CAE) …- Actividades de medicina dentária e odontologia.
2. A ora Requerente teve como actividade, naquela mesma data, a prestação de serviços de Medicina Dentária e Odontologia em estabelecimento aberto ao público, incluindo realização de consultas médicas e todo um conjunto de tratamento e/ou actos cirúrgicos no âmbito da medicina dentária, bem como exames complementares de diagnóstico, tais como radiografias.
3. Desde o início de actividade, em 26/01/2009 que a Requerente se encontra enquadrada no regime normal de tributação de IVA, com periodicidade trimestral, já que nos termos do artigo 12.º, n.º 1, alínea b), do Código do IVA, renunciou à isenção passando, por conseguinte, a liquidar e a deduzir IVA.
4. Este enquadramento foi despoletado pela Declaração de início de actividade, feita por declaração verbal, em 26/01/2009 no Serviço de Finanças do … – … .
5. Em consequência de referido enquadramento, a ora Requerente sujeitou a IVA a totalidade das operações efectuadas no âmbito das actividades desenvolvidas, bem como deduziu a totalidade do imposto suportado na aquisição de bens e serviços.
6. Em 2015 e após inspecção externa desencadeada por um pedido de reembolso de IVA efectuado no mesmo ano, a requerente foi notificada da conclusão de um procedimento de inspecção relativo ao IVA dos anos de 2011 e 2012.
7. Em ambos os projectos de correcções, convergiu a AT na decisão de indeferir o dito reembolso e na realização de correcções ao IVA deduzido nos anos em causa, em virtude de estar a requerente enquadrada no regime normal do IVA, quando, no entender da AT, deveria estar inserida no regime de isenção - sem prévia renúncia à isenção.
8. Os actos tributários objecto da presente acção arbitral tributária resultam da referida inspecção tributária, a qual culminou com a notificação do respectivo Relatório de Inspecção Tributária.
9. Do Relatório de Inspeção Tributária consta, para além do mais, o seguinte:
“Reiterando o que já foi referido no item l.3.2 "Enquadramento fiscal do sujeito passivo", em sede de IVA, e desde início de atividade, em 26.01.2009, o sujeito passivo encontra-se enquadrado no regime normal de tributação, com periodicidade trimestral.
Este enquadramento do sujeito passivo foi despoletado pela Declaração de Início de Atividade, feita por declaração verbal (front-office), em 26.01.2009 no Serviço de Finanças do … - … .
Para o efeito, o sujeito passivo indicou na referida declaração, que no exercício da sua atividade iria efetuar apenas transmissões de bens e/ou prestações de serviços que conferem o direito à dedução.
Na mesma declaração, verifica-se não ter sido assinalada ou preenchida a opção declarativa ao quesito "Tipo de Operações Isentas que não conferem direito à dedução" ou qualquer dos campos do respetivo Quadro pela Opção pelo Regime Tributação (IVA), nomeadamente, o referente à possibilidade de pretender exercer o direito à opção, pela renúncia à isenção, prevista no art. 12.º n.ºs 1 e 2 CIVA.
Realçamos que, de acordo o artigo 35.° do CIVA, a Declaração de Início de Atividade é apresentada por declaração verbal, efetuada pelo sujeito passivo, de todos os elementos necessários ao registo e início de atividade, sendo estes imediatamente introduzidos no sistema informático e confirmados pelo declarante, após a sua impressão em documento tipificado (Documento Comprovativo do Início de Atividade).
É, por isso, muito importante que no momento da apresentação da Declaração de Início de Atividade, feita por declaração verbal (front-office), não subsistam dúvidas na esfera do contribuinte relativamente ao seu enquadramento fiscal em sede dos diferentes impostos a que possa ficar sujeito, bem como às suas futuras obrigações daí decorrentes.
Em consequência do referido enquadramento, a sociedade A… sujeitou a IVA a totalidade das operações efetuadas no âmbito das atividades desenvolvidas, bem como a deduzir a totalidade do imposto suportado na aquisição de bens e serviços.
No entanto, no caso em concreto, o sujeito passivo tem como atividade, a prestação de serviços de Medicina Dentária e Odontologia em estabelecimento aberto ao público, que se consubstancia na realização de consultas médicas e todo um conjunto de tratamento e/ou atos cirúrgicos no âmbito da medicina dentária, bem como exames complementares de diagnóstico, tais como, radiografias.
Atendendo à natureza e características dos serviços anteriormente descritos, temos de concluir que o sujeito passivo considerou indevidamente que os mesmos reportassem a operações que conferem o direito à dedução.
E daqui seguimos para o segundo ponto,
III.2.2 O enquadramento legal da atividade de Odontologia / Medicina Dentária,
O art. 9.° do Código do Imposto Sobre o Valor. Acrescentado (CIVA), enumera determinadas operações, as quais, por serem consideradas de interesse geral ou social e com fins de relevante importância, ficam abrangidas pela isenção prevista neste artigo, pretendendo-se assim desonerar, quer administrativamente, quer financeiramente, tais atividades.
Assim, dado que atividade que o Sujeito Passivo viria efetivamente a desenvolver no âmbito da Medicina Dentária e Odontologia, deveria ter, sempre, indicado/declarado que iria efetuar operações "Isentas que não conferem direito à dedução", na medida em que a mesma se encontra mencionada no artigo 9.° do CIVA, desde logo no seu n.º 1.
Vejamos o respetivo articulado:
“Artigo 9.° Isenções nas operações internas
Estão isentas do imposto:
1) As prestações de serviços efetuadas no exercício das profissões de médico, odontologista, parteiro, enfermeiro e outras profissões paramédicas; (...) "
Consequentemente, o Sujeito Passivo deveria ter-se coletado (inscrito em sede de IVA) como sujeito passivo "isento", ou pelo menos como "sujeito passivo misto", porquanto no exercício da sua atividade iria praticar operações isentas que não conferem direito à dedução do imposto suportado, designadamente as prestações de serviços na área da Medicina Dentária e Odontologia.
Pese embora durante os atos de inspeção o Sujeito Passivo tenha dado a entender que as prestações realizadas por si, no âmbito de Medicina Dentária e Odontologia se enquadrariam n.º 2 do artigo 9.° do Código do IVA, com possibilidade de renúncia, o certo é que as isenções do artigo 9.° do Código do IVA, que se denominam simples ou incompletas, são caraterizados pela dispensa de liquidação nas operações realizadas e por outro lado na impossibilidade de exercer o direito à dedução do imposto suportado a montante nas aquisições de bens e serviços, nos termos do n.º 1 do artigo 20° do Código do IVA.
III.2.3. Possibilidade da renúncia ao regime isenção e o exercício desse direito.
Relativamente à possibilidade de renúncia ao regime de isenção que o Sujeito Passivo não utilizou, oferece-nos dizer o seguinte:
a) Dispõe a alínea b) do artigo 12.º do CIVA que podem renunciar à isenção, optando pela aplicação do imposto às suas operações "os estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares, não pertencentes a pessoas coletivas de direito público ou a instituições privadas integradas no sistema nacional de saúde, que efetuem prestações de serviços médicos e sanitários e operações com elas estreitamente conexas".
b) A interpretação da AT, assente na jurisprudência do TJCE (Processo C-141100, referente ao caso Kügler, entre outros), distingue a isenção do art. 9.° n.º 1 do CIVA, da do n.º 2, considerando que a primeira destina-se a isentar as prestações de serviços de carácter médico fornecidos fora do ambiente hospitalar, seja no domicílio do prestador, do paciente, ou em qualquer outro lugar, e a segunda as prestações de serviços de assistência efetuadas no meio hospitalar, incluindo operações estreitamente conexas.
c) Neste sentido e atendendo à atividade realizada pela sociedade A…, nos moldes em que a mesma é prestada tal como anteriormente referido (em estabelecimentos comercias, fora do ambiente hospitalar), não seria aplicável o n.º 2 do artigo 9.° do CIVA.
Ainda assim, a opção pela tributação das operações realizadas pelo sujeito passivo só seria admissível caso as mesmas fossem enquadradas no âmbito do n.º 2 do artigo 9.° do CIVA e a mesma fosse previamente comunicada, mediante a entrega da Declaração de Início de Atividade ou de Alterações, consoante os casos, produzindo efeitos, sempre, a partir da data da sua apresentação.
d) Trata-se de uma condição formal enunciada pelo legislador como requisito essencial/fundamental para o sujeito passivo possa optar pela tributação de determinadas operações.
E neste sentido vai também a jurisprudência nacional, vejamos dois exemplos:
"A renúncia à isenção, possibilitada pelo art. 12.° n.° 1 CIVA, em circunstância alguma é susceptível de ser presumida, pelo que, se o sujeito passivo não apresenta pedido/declaração de renúncia, tem de ser considerado submetido ao regime de isenção, por, originariamente, o seu próprio" - cfr Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 22-05-2012 no processo 05235/11.
“Desde que renuncie à isenção, a pessoa singular ou colectiva em causa torna-se, a partir do momento da renúncia e jamais retroactivamente, um normal sujeito passivo, capaz de liquidar e deduzir imposto, referente aos factos geradores verificados após a data em que se torna eficaz a renúncia, nos moldes comuns a todas as pessoas não isentas e daí a impreterível necessidade de apresentação da identificada declaração, única via legal de accionar o funcionamento dos mecanismos privativos de acção do IVA" - cfr Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 21-05-2013 no processo 05447/12.
III.2.4 Consequências Fiscais decorrentes do enquadramento indevido
Conforme decorre do exposto, o Sujeito Passivo não pode considerar a atividade exercida na área da Medicina Dentária e Odontologia sujeita e não isenta de imposto, pela mesma se enquadrar no n.º 1 do artigo 9.° do Código do IVA.
Assim, relativamente aos anos de 2011 e 2012, e na ausência de operações ativas além daquelas realizadas no âmbito das atividades de Odontologia e Medicina Dentária (operações isentas nos termos do artigo 9.° do CIVA), todo o IVA que o sujeito passivo deduziu nas Declarações Periódicas de IVA referente aos períodos 2011.03T a 2012.12T se mostra indevidamente deduzido, nos termos do n.º 1 do artigo 20.° do Código do IVA, pelo que que irá propor as correções que se mostram necessárias.”.
10. A Requerente efectuou o pagamento integral das liquidações objecto da presente acção arbitral, dentro do período voluntário fixado para o efeito.
A.2. Factos dados como não provados
1- A Requerente indicou na declaração referida no ponto 4 dos factos dados como provados, que no exercício da sua actividade iria efectuar transmissões de bens e/ou prestações de serviços que conferem o direito à dedução.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
Em especial, os factos constantes dos pontos 3 a 5, resultam directamente do confessado nos pontos 31 a 33 e 35 da Resposta.
O facto dado como não provado, deve-se à ausência de qualquer prova no sentido de que, efectivamente, o ali constante foi verbalmente declarado pela Requerente.
B. DO DIREITO
i. da matéria de exceção.
Começa a Requerida por questionar a competência material do tribunal arbitral para apreciar a pretensão que lhe foi submetida, porquanto, considera, “a primeira questão a decidir prende-se com o facto de ser, ou não, reconhecido o direito de renúncia à isenção por parte da Requerente”, pelo que “os actos de liquidação adicional de IVA efectuados deverão ser qualificados como actos consequentes tendo em conta o conceito, ainda que restrito, adoptado quer pela doutrina, quer pela jurisprudência”.
Esta mesma questão foi suscitada no processo 168/2015-T do CAAD[1], que tratando sobre matéria em tudo idêntica à dos presentes autos, onde se escreveu o que ora, com a devida vénia, se transcreve:
“A Portaria n.º 112-A/2011, relativamente aos actos enquadráveis indicados no artigo 2.º, apenas afastou do âmbito da vinculação da Administração Tributária, em matéria não aduaneira, as pretensões relativas a actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidas de recurso à via administrativa e as pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão.
É manifesto que não se está perante qualquer das situações em que a Portaria n.º 112-A/2011 afasta a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, pelo que a competência tem de ser aferida apenas à face do RJAT.
Como se vê pelo artigo 2.º do RJAT, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD foi definida pelo RJAT apenas tendo em atenção o tipo de actos que são objecto das pretensões dos contribuintes e não em função do tipo de questões que é necessário apreciar para decidir se os actos são legais ou ilegais.
Não há, designadamente, qualquer proibição de apreciação de matérias relativas à verificação dos pressupostos do direito de renúncia à isenção de IVA ou quaisquer outras questões de legalidade relativas aos actos dos tipos referidos no artigo 2.º do RJAT. Uma liquidação de imposto que parta da desconsideração de uma isenção ou de uma renúncia a isenção não deixa de ser um acto tributário de liquidação. E a pretensão de apreciação da legalidade ou da ilegalidade dessa desconsideração subjacente a um acto de liquidação não deixa, portanto, de ser a apreciação de uma pretensão relativa à declaração de ilegalidade de actos de liquidação, em que se materializa essa desconsideração.
Assim, no processo arbitral, à semelhança do que sucede no processo de impugnação judicial, pode, em regra, ser imputada aos actos de liquidação qualquer ilegalidade, como decorre do artigo 99.º do CPPT, subsidiariamente aplicável.
Só não será assim nos casos em que a lei preveja a impugnabilidade autónoma de actos administrativos que são pressuposto dos actos de liquidação, sendo só nessa medida que fica afastada a apreciação da legalidade dos actos de liquidação em todas as vertentes. Mas, para haver essa impugnabilidade autónoma, é necessário que haja algum acto administrativo em matéria tributária, pois a impugnabilidade reporta-se a actos e não a posições jurídicas assumidas explícita ou implicitamente como pressupostos dos actos de liquidação mas não materializadas em actos tributários autónomos.
Os actos consequentes, de que fala a Autoridade Tributária e Aduaneira, são consequentes de outros actos tributários ou administrativos anteriores e, no caso em apreço, não há notícia de que tenha sido praticado qualquer acto administrativo apreciando se a Requerente tem ou não direito a renunciar à isenção de IVA.
Isto é, para haver limitação à impugnabilidade dos actos de liquidação impugnados, teria de ser praticado, anteriormente, algum acto administrativo que fosse pressuposto destes actos de liquidação, o que não sucedeu no caso em apreço.
Por isso, sendo os actos de liquidação lesivos dos interesses da Requerente e sendo os únicos actos praticado pela administração tributária sobre a situação neles apreciada, tem de ser assegurada a sua impugnabilidade contenciosa com fundamento em qualquer ilegalidade, como decorre do princípio da tutela judicial efectiva, consagrado nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da CRP.
Por outro lado, quando não há qualquer acto autonomamente impugnável anterior a um acto de liquidação versando sobre os seus pressupostos, pode «ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida» (parte final do artigo 54.º do CPPT), pelo que todas as questões relativas à legalidade dos actos de liquidação podem ser apreciadas nos tribunais tributários em processo de impugnação judicial, como decorre da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º e do artigo 99.º do mesmo Código.
Na verdade, nos tribunais tributários, mesmo quando, tendo sido praticados actos de liquidação, se estiver perante uma situação em que poderia ser mais útil para o contribuinte o uso da acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo (por possibilitar, para além da apreciação da legalidade de actos a definição para o futuro dos direitos do contribuinte), o uso da acção em vez da impugnação judicial é uma mera faculdade, como decorre do próprio texto do artigo 145.º, n.º 3, do CPPT, ao dizer que «as acções apenas podem ser propostas sempre que esse meio processual for o mais adequado para assegurar uma tutela plena, eficaz e efectiva do direito ou interesse legalmente protegido». Isto é, o que se prevê nesta norma é limitação ao uso da acção e não limitação ao uso do processo de impugnação judicial.
Com efeito, é manifesto que o processo de impugnação judicial inclui a possibilidade de reconhecimento de direitos em matéria tributária, como o são o direito à anulação ou declaração de nulidade de liquidações, o direito a juros indemnizatórios e o direito a indemnização por garantia indevida, pelo que o facto de estar em causa o reconhecimento de direitos não é obstáculo à utilização do processo de impugnação judicial.
Assim, como refere a Autoridade Tributária e Aduaneira, tendo o processo arbitral tributário sido criado como alternativa ao processo de impugnação judicial, é de concluir que não há obstáculo a que a legalidade dos actos de liquidação em causa neste processo seja apreciada por este Tribunal Arbitral, pois nos tribunais tributários essa legalidade poderia ser apreciada em processo de impugnação judicial.
Por isso, quanto ao pedido de anulação dos actos de liquidação, improcede a excepção da incompetência material suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira com fundamento em estar em causa o reconhecimento de um direito em matéria tributária.”
Não se vendo razão para divergir do doutamente expendido no aresto em causa, antes se subscrevendo integralmente o quanto ali se expôs, julga-se improcedente a exceção da incompetência material suscitada pela Requerida.
*
ii. do reenvio prejudicial
A Requerida, na sua resposta, solicita que seja ordenado o reenvio do processo ao TJUE, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do TFUE, para efeitos de definir o recorte da renúncia ao referido regime de isenção.
Para o efeito alega a mesma que “toda a jurisprudência do TJUE, com alguma similitude ao caso dos presentes autos, resultou de casos que se situam numa posição antagónica ou, se quisermos, numa posição em espelho face à situação dos presentes autos.”, já que “nesses casos, os visados pretendiam antes beneficiar da isenção relativamente à prestação de serviços médicos, quando as administrações fiscais respectivas pretendiam a sua sujeição/tributação.”, pelo que haverá “que averiguar se o conceito de “condições sociais análogas” deve aferir-se tendo em atenção se tal “implica ou não uma violação do princípio da igualdade de tratamento relativamente aos outros operadores que efectuam as mesmas prestações em situações comparáveis”, v.p.t. Acórdão Dornier, Processo C-45/01, de 6 de Novembro de 2003.”.
Como se refere no ponto 7. das recomendações aos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (2012/C 338/01), do TJUE[2]:
“o papel do Tribunal no âmbito de um processo prejudicial consiste em interpretar o direito da União ou pronunciar-se sobre a sua validade, e não em aplicar este direito à situação de facto subjacente ao processo principal. Esse papel incumbe ao juiz nacional e, por isso, não compete ao Tribunal pronunciar-se sobre questões de facto suscitadas no âmbito do litígio no processo principal nem sobre eventuais divergências de opinião quanto à interpretação ou à aplicação das regras de direito nacional”.
Mais se recorda, no ponto 12. daquelas mesmas recomendações que o reenvio prejudicial para o referido Tribunal, não se deverá dar quando:
i. já exista jurisprudência na matéria (e quando o quadro eventualmente novo não suscite nenhuma dúvida real quanto à possibilidade de aplicar essa jurisprudência ao caso concreto); ou
ii. quando o modo correcto de interpretar a regra jurídica em causa seja inequívoco.
Consequentemente, continua-se no ponto 13., “um órgão jurisdicional nacional pode, designadamente quando se considere suficientemente esclarecido pela jurisprudência do Tribunal, decidir ele próprio da interpretação correta do direito da União e da sua aplicação à situação factual de que conhece”.
Por fim, conforme consta do ponto 18. das mesmas recomendações, “O órgão jurisdicional nacional pode apresentar ao Tribunal um pedido de decisão prejudicial, a partir do momento em que considere que uma decisão sobre a interpretação ou a validade é necessária para proferir a sua decisão.”.
No caso, não se considera que uma decisão sobre a interpretação das normas comunitárias seja necessária para proferir a sua decisão, nem a Requerida o demonstra, não tendo, sequer, apresentado qualquer questão concreta que o demonstre.
Por outro lado, e como se verá infra, entende-se que a Jurisprudência disponível do TJUE esclarece suficientemente, em termos de se poder decidir da interpretação correcta do direito da União e da sua aplicação à situação factual de que se conhece.
Deste modo, e pelo exposto, indefere-se o requerido pedido de reenvio prejudicial.
*
iii. do mérito da causa
Cabe assim a este Tribunal, competente para tal, verificar sobre a legalidade das liquidações de IVA impugnadas, acima identificadas.
Primeiramente, é necessário concluir sobre a legalidade da decisão da Administração Tributária e Aduaneira, que enquadra a actividade da Requerente, porque desenvolvida fora do meio hospitalar, sendo assim, insusceptível de renúncia.
Interessa atentar, para o que aqui está em causa, nos artigos 9.º e 12.º do CIVA:
Artigo 9.º
Isenções nas operações internas
Estão isentas do imposto:
1) As prestações de serviços efectuadas no exercício das profissões de médico, odontologista, parteiro, enfermeiro e outras profissões paramédicas;
2) As prestações de serviços médicos e sanitários e as operações com elas estreitamente conexas efectuadas por estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares;
(...)
Artigo 12.º
Renúncia à isenção
1 - Podem renunciar à isenção, optando pela aplicação do imposto às suas operações:
(...)
b) Os estabelecimentos hospitalares, clínicas, dispensários e similares, não pertencentes a pessoas colectivas de direito público ou a instituições privadas integradas no sistema nacional de saúde, que efectuem prestações de serviços médicos e sanitários e operações com elas estreitamente conexas;
(...)
2 - O direito de opção é exercido mediante a entrega, em qualquer serviço de finanças ou noutro local legalmente autorizado, da declaração de início ou de alterações, consoante os casos, produzindo efeitos a partir da data da sua apresentação.
3 - Tendo exercido o direito de opção nos termos dos números anteriores, o sujeito passivo é obrigado a permanecer no regime por que optou durante um período de, pelo menos, cinco anos, devendo, findo tal prazo, no caso de desejar voltar ao regime de isenção:
a) Apresentar, durante o mês de Janeiro de um dos anos seguintes àquele em que se tiver completado o prazo do regime de opção, a declaração a que se refere o artigo 32.º, a qual produz efeitos a partir de 1 de Janeiro do ano da sua apresentação;
b) Sujeitar a tributação as existências remanescentes e proceder, nos termos do n.º 5 do artigo 24.º, à regularização da dedução quanto a bens do activo imobilizado.
Estas isenções estão relacionadas com o artigo 132.º da Diretiva n.º 2006/112/CE, de 28-11-2006, nomeadamente:
1. Os Estados–Membros isentam as seguintes operações:
(...)
b) A hospitalização e a assistência médica, e bem assim as operações com elas estreitamente relacionadas, asseguradas por organismos de direito público ou, em condições sociais análogas às que vigoram para estes últimos, por estabelecimentos hospitalares, centros de assistência médica e de diagnóstico e outros estabelecimentos da mesma natureza devidamente reconhecidos;
c) As prestações de serviços de assistência efectuadas no âmbito do exercício de profissões médicas e paramédicas, tal como definidas pelo Estado–Membro em causa; (…)
Assim, a alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º do CIVA permite apenas a renúncia à isenção das entidades isentas enquadradas no n.º 2 do artigo 9.º desse mesmo código.
Na posição da Autoridade Tributária e Aduaneira, remetendo para o caso Kügler (acórdão do TJUE de 10 de Setembro de 2002, proferido no Processo C-141/00) é defendido que “a isenção prevista no n.º 1 do artigo 9.º do CIVA, opera independentemente da natureza jurídica do prestador de serviços e, nomeadamente, do facto de se tratar de uma pessoa singular ou colectiva e, bem assim, que aquela isenção tem por base a alínea c) do n.º 1 do artigo 132.º da Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de Novembro.(…)” (Ponto 45 da Resposta da Requerida), e que destina-se a isentar as prestações de serviços de carácter médico e paramédico fornecidas fora desses locais, seja no domicílio privado do prestador, seja no domicílio do paciente, seja em qualquer outro lugar. E, por outro lado, que o n.º 2 do artigo 9.º do CIVA, que isenta as prestações de serviços de assistência efetuadas em meio hospitalar, incluindo operações estreitamente conexas, “transpõe para a ordem jurídica interna a alínea b) do n.º 1 do artigo 132.º da referida Diretiva 2006/112/CE (…)” (Ponto 49 da Resposta da Requerida). Considerando que a actividade da Requerente é exercida fora do meio hospitalar, vem a Autoridade Tributária e Aduaneira defender que a isenção que se lhe aplica, o é nos termos do n.º 1 do artigo 9.º do CIVA.
No entanto, não se retira do referido acórdão que, tal como a Autoridade Tributária e Aduaneira afirma, só os hospitais estejam abrangidos pelo alcance da alínea b) do artigo 132.º acima citado.
O TJUE, no acórdão L.u.P. (de 8 de Junho de 2006, proferido no processo n.º C-106/05), posterior ao acórdão Kügler, esclareceu que «O artigo 13.°, A, n.º 1, alínea b), da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, (...) deve ser interpretado no sentido de que análises clínicas que tenham por objecto a observação e o exame dos pacientes a título preventivo, que sejam efectuadas, como as que estão em causa no processo principal, por um laboratório de direito privado externo a um estabelecimento de assistência médica sob prescrição de médicos generalistas, são susceptíveis de ser abrangidas pela isenção prevista por essa disposição enquanto cuidados médicos dispensados por outro».
Neste acórdão L.u.P., o TJUE entendeu que «uma vez que as análises clínicas são abrangidas, tendo em conta a sua finalidade terapêutica, pelo conceito de «assistência médica» previsto no artigo 13.°, A, n.º 1, alínea b), da Sexta Diretiva, um laboratório como o que está em causa no processo principal deve ser considerado um estabelecimento da «mesma natureza» que os «estabelecimentos hospitalares» e os «centros de assistência médica e de diagnóstico» na acepção dessa disposição» (ponto 35).
Vem em reforço, o que se retira do ponto 35 do acórdão do TJUE De Fruytier, de 02-07-2015, proferido no processo n.º C-334/14, em que se citam os acórdãos L.u.P., C‑106/05, pontos 18 e 35 e CopyGene, C‑262/08, ponto 60, «que um laboratório de direito privado que efetua análises clínicas deve ser considerado um estabelecimento «da mesma natureza» que os «estabelecimentos hospitalares» e os «centros de assistência médica e de diagnóstico» na aceção dessa disposição, uma vez que essas análises são abrangidas, tendo em conta a sua finalidade terapêutica, pelo conceito de «assistência médica».
É assim, suficientemente clara nesta matéria a jurisprudência comunitária, no sentido de que, como se escreveu na decisão do processo arbitral 168/2015-T, já citado, que “a isenção prevista na alínea b) do artigo 132.º abrange os serviços prestados por entidades dos tipos que presta a Requerente, independentemente de a prestação ocorrer ou não em meio hospitalar, interpretação que está em manifesta sintonia com o texto desta norma, ao fazer referência à isenção das operações estreitamente relacionadas com a hospitalização e a assistência médica asseguradas aos «centros de assistência médica e de diagnóstico».”.
Desta forma, a Requerente detém condições subjectivas que são fundamentais à isenção da alínea b) do n.º 1 do artigo 132.º da Diretiva. Sendo que, tal como é defendido pela Requerente, esta não é um organismo que desempenhe a sua actividade, em condições sociais análogas à atividade de organismos de direito público.
Quanto ao seu enquadramento no direito nacional, a Autoridade Tributária e Aduaneira interpreta, erradamente, a referência a “dispensários e similares” na isenção prevista no n.º 2 do artigo 9.º do CIVA. Pois, deve ser nesta referência “dispensários e similares” que são incluídos outros estabelecimentos nos quais «centros de assistência médica e de diagnóstico e outros estabelecimentos da mesma natureza», também de acordo alínea b) do n.º 1 do artigo 132.º da Diretiva n.º 2006/112/CE.
Reportando-nos, uma vez mais, ao Acórdão proferido no processo arbitral n.º 168/2015-T:
“A referência a «dispensários» abrange inequivocamente prestação de serviços de saúde fora desse meio hospitalar, pois o significado de «dispensário» é o de «estabelecimento de beneficência, para tratamento de doentes com dificuldades económicas, dando-lhes acesso a consultas e medicamentos gratuitos» (...), ou «estabelecimento para dar, gratuitamente, cuidados e medicamentos aos doentes pobres que podem ser tratados no domicílio» (...).
Por outro lado, a referência a «similares», interpretada em consonância com a norma paralela da alínea c) do artigo 132.º da Directiva n.º 2006/112/CE, que faz referência a «centros de assistência médica e de diagnóstico e outros estabelecimentos da mesma natureza», permite concluir que caberão também nesse conceito entidades do tipo da Requerente, que presta serviços de saúde de análises clínicas e de diagnóstico em conexão com estabelecimentos hospitalares.
Assim, não tem suporte textual a tese defendida pela Autoridade Tributária e Aduaneira de que a isenção aplicável aos estabelecimentos do tipo da Requerente não está prevista no n.º 2 do artigo 9.º do CIVA.”.
Sendo, assim, a norma aplicável o n.º 2 do artigo 9.º do CIVA, e porque vem aqui permitir o enquadramento num regime de sujeição, não se pode afastar a possibilidade de renúncia à isenção prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º do CIVA.
Assim, as liquidações efetuadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira enfermam em vício de erro de aplicação da lei.
Não obsta a esta conclusão a argumentação da Requerida em sede arbitral (cfr. pontos 61 e ss. da Resposta), relativa à eventual violação do princípio da neutralidade decorrente da opção pelo regime de isenção consagrado no artigo 12.º, n.º 1, alínea b) do CIVA, na medida em que tal não integra os fundamentos de facto e de direito dos actos tributários cuja legalidade ora cumpre sindicar, dado que tais actos assentaram na não aplicabilidade daquela norma, por considerar preenchidos os pressupostos de facto do n.º 1 do artigo 9.º do CIVA, e não do n.º 2 do mesmo artigo.
Argumenta, por fim, a Autoridade Tributária e Aduaneira que “a opção pela tributação das operações realizada pela Requerente só seria admissível caso as mesmas fossem enquadradas no âmbito do n.º 2 do art.º 9.º do CIVA e a mesma fosse previamente comunicada, mediante a entrega da Declaração de início de actividade ou de alterações, consoante os casos, produzindo efeitos, sempre a partir da data da sua apresentação” (ponto 73.º da Resposta).
Relativamente à primeira premissa da alegação em causa, verifica-se, como se viu, que as operações realizadas pela Requerente são enquadráveis no âmbito do n.º 2 do art.º 9.º do CIVA.
Relativamente à segunda premissa, verifica-se, conforme resulta dos factos dados como provados, que desde o início de actividade, em 26/01/2009 que a Requerente se encontra enquadrada no regime normal de tributação de IVA, com periodicidade trimestral, já que nos termos do artigo 12.º, n.º 1, alínea b), do Código do IVA, renunciou à isenção passando, por conseguinte, a liquidar e a deduzir IVA, sendo que este enquadramento foi despoletado pela Declaração de início de actividade, feita por declaração verbal, em 26/01/2009 no Serviço de Finanças do … –… .
Acresce que, não se encontra provado que a Requerente indicou na declaração referida no ponto 4 dos factos dados como provados, que no exercício da sua actividade iria efectuar transmissões de bens e/ou prestações de serviços que conferem o direito à dedução.
Face ao exposto, não assiste, também nesta parte, razão à AT, sendo que nenhuma similitude existe entre a situação dos presentes autos e a julgada pelo TCA-Sul no âmbito do processo 05235/11, na medida em que, para além do mais, no respectivo acórdão se faz constar que “a impugnante assumiu comportamento inadequado, incapaz de possibilitar a afirmação, conscienciosa, de ter agido como “sujeito passivo integral”, durante todo o tempo, compreendido entre janeiro de 2000 e junho de 2006.”.
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Cumula a Requerente, com o pedido anulatório dos actos tributários objecto dos presentes autos, o pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.
Face à procedência do pedido anulatório, deverão ser restituídas as prestações que, relativamente aos actos tributários anulados, se venham a verificar como pagas pela Requerente, se necessário em execução de sentença. No caso em apreço, é manifesto que a ilegalidade dos actos de liquidação, cuja quantia a Requerente pagou, é imputável à Requerida, que, por sua iniciativa, os praticou sem suporte legal.
Consequentemente, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT. Os juros indemnizatórios são devidos, desde a data dos pagamentos que se mostrem efectuados, e calculados com base no respectivo valor, até à sua integral devolução à Requerente, à taxa legal, nos termos dos artigos, artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º do CPPT e 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril (sem prejuízo das eventuais alterações posteriores da taxa legal).
Acresce que, de harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT] que estabelece, que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.
Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT e em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.
O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da administração tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido” e do artigo 61.º, n.º 4 do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea”.
Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário” deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral. No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da declaração de ilegalidade e consequente anulação dos actos de liquidação impugnados, há lugar a reembolso do imposto, por força dos referidos artigos. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”, na parte correspondente à correcção que foi considerada ilegal.
Assim, deverá a Requerida dar execução ao presente acórdão, nos termos do artigo 24.º, n.º 1, do RJAT, determinando o montante a restituir à Requerente e calcular os respectivos juros indemnizatórios, à taxa legal supletiva das dívidas cíveis, nos termos dos artigos. 35.º, n.º 10, e 43.º, n.ºs 1 e 5, da LGT, 61.º do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril (ou diploma ou diplomas que lhe sucederem).
Os juros indemnizatórios são devidos desde as datas dos pagamentos efectuados até à do processamento da nota de crédito, em que são incluídos (artigo 61.º, n.º 5, do CPPT).
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:
a) Anular as liquidações objecto da presente acção arbitral tributária;
b) Condenar a Requerida a proceder ao reembolso das quantias pagas pela Requerente por força dos actos tributários anulados, acrescidas de juros indemnizatórios
c) Condenar a Requerida nas custas do processo, no montante de €2.448,00.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em €61.810,24, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €2.448,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Autoridade Tributária e Aduaneira, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa 30 de Setembro de 2016
O Árbitro Presidente
(José Pedro Carvalho - Relator)
O Árbitro Vogal
(Ana Moutinho Nascimento)
O Árbitro Vogal
(Álvaro José da Silva)