Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 655/2015-T
Data da decisão: 2016-09-19  IUC  
Valor do pedido: € 4.663,40
Tema: IUC – Incidência Subjetiva, juros indemnizatórios
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Decisão Arbitral

 

 

Requerente: A… SA

Requerida: AT - Autoridade Tributária e Aduaneira

 

I – RELATÓRIO

 

  1. Pedido

A…. SA, pessoa colectiva n.º…, com sede na Rua …, …, …-… …, doravante designada por Requerente, apresentou, em 27-10-2015, ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 1 do art. 2.º e no art. 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), um pedido de pronúncia arbitral, em que é Requerida a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista a:

-          A anulação de 31 (trinta e um) atos de liquidação de Imposto Único de Circulação referentes aos anos de 2013, 2014 e 2015.

-           A consequente condenação da Requerida ao reembolso do montante pago referente a estas liquidações de imposto, acrescido de juros indemnizatórios.

A Requerente alega, no essencial e com relevância para a decisão da causa, o seguinte:

-          Os veículos sobre os quais recaíram os actos de liquidação de Imposto Único de Circulação impugnados foram dados em locação financeira pela Requerente;

-          Os contratos de locação financeira encontravam-se em vigor no momento em que se venceu a obrigação de pagamento do imposto referente aos respectivos veículos, conhecendo ou devendo a Requerida conhecer este facto;

-          Nos termos do n.º 2 do art. 3.º do Código do Imposto Único e Circulação, sendo o veículo objecto de um contrato de locação financeira, o sujeito passivo do imposto é o locatário;

-          Pelo que, estando em vigor contratos de locação financeira para os 30 veículos objecto das liquidações tributárias impugnadas, ao tempo dos factos geradores do imposto, eram os respectivos locatários, não a Requerente, os sujeitos passivos do imposto.

 

  1. Resposta da Requerida

Em resposta ao pedido de pronúncia apresentado pela Requerente, a Requerida AT -Autoridade Tributária e Aduaneira alega, com relevância impugnatória:

-          Dos actos de liquidação impugnados, as liquidações com os números n.º 2013-…, n.º 2014-…, n.º 2015-…, n.º 2014-…, n.º 2013-…, n.º 2015-…, n.º 2015-…, n.º 2015-… e n.º 2014-… encontram-se revogadas;

-          Em caso de locação financeira, e para efeitos de ilisão do artigo 3.º do CIUC, forçoso é que os locadores financeiros cumpram a obrigação estabelecida no artigo 19.º do mesmo código para se exonerarem da obrigação de pagamento do imposto;

-          A Requerente não fez prova quanto ao cumprimento dessa obrigação;

-          Não tendo cumprido essa obrigação, a Requerente é o sujeito passivo do imposto;

-          Ao contrário do que a Requerente alega, nem todos os contratos de locação financeira invocados se encontravam em vigor à data do facto gerador do imposto:

-          Relativamente ao veículo com a matrícula …-… -…, o contrato de locação financeira foi assinado a 24-11-2003 e vigorou por 84 meses (i.e., sete anos), pelo que o termo do contrato ocorreu a 2010-11-25. Sendo o aniversário da matrícula a 25 de novembro de cada ano, e na falta de prova em contrário, há que concluir que nessa data a Requerente era a proprietária do veículo.

 

  1. Tramitação subsequente

Por proposta e mediante a concordância de ambas as Partes, o Tribunal deliberou prescindir da realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e conceder prazo para a apresentação pelas Partes de alegações escritas sucessivas.

 

  1. Alegações

 

4.1.            Alegações da Requerente

Nas suas alegações, a Requerente aduz os seguintes argumentos:

¾    Quando incida sobre um veículo um contrato de locação financeira, o sujeito passivo do imposto deverá ser, sempre, aquela entidade que se encontre no gozo do veículo locado, ou seja o locatário, e nunca o proprietário ou locador;

¾    Todos os veículos objecto das liquidações de imposto impugnadas eram, nas datas em que devia ter sido liquidado o IUC, objeto de contratos de locação financeira;

¾    A Requerida nunca questionou ou refutou a validade dos referidos contratos;

¾    Para que o sujeito passivo do imposto seja o locatário num contrato de locação financeira não se pode exigir que o mesmo contrato se encontre registado no Registo Automóvel, pois que o dito registo tem apenas força declarativa e não constitutiva;

¾    A Requerida tinha conhecimento da existência desses contratos e da entidade dos respetivos locatários;

¾    Relativamente ao veículo com a matrícula …-… -…, a data prevista para o término deste contrato é anterior à do facto gerador do imposto, mas no entanto, o contrato mantinha-se em vigor nessa data;

¾    Quanto ao cumprimento, por parte da Requerente, da obrigação estabelecida no artigo 19.º do CIUC, não está dependente do mesmo a questão da responsabilidade da Requerente pelo imposto;

¾    O artigo 19.º estabelece uma obrigação acessória, cujo eventual incumprimento jamais poderia obstar a que a Requerente afastasse a incidência subjectiva do imposto;

¾    A Requerente está impossibilitada de obter qualquer documento comprovativo de que cumpriu a obrigação estabelecida no artigo 19.º, uma vez que tal obrigação é cumprida por meios eletrónicos na plataforma de serviços eletrónicos da Autoridade Tributária e Aduaneira e a mesma não permite emitir qualquer comprovativo do cumprimento da obrigação;

¾    Essa prova só podia ser obtida através do processo administrativo que a Requerida estava obrigada a remeter ao processo e não remeteu;

¾    Não tendo a Requerida cumprido a obrigação que lhe incumbia, de juntar aos presentes autos a cópia do processo administrativo referente aos actos de liquidação em crise, e tratando-se de documentação que pode ser crucial à prova, pela Requerente, de que cumpriu a obrigação acessória constante do artigo 19.º do CIUC, deverá ser aplicado quanto a este facto o regime constante do artigo 344.º, n.º 2 do Código Civil (aplicável ex vi dos artigos 430.º e 417.º, n.º 2 do CP), considerando-se como provado o cumprimento, por parte da Requerente, da obrigação constante do artigo 19.º do CIUC.

 

4.2.            Alegações da Requerida

Por seu turno, a Requerida alegou, sucintamente, o seguinte:

¾    O artigo 3.º do CIUC não contém qualquer presunção;

¾    Contudo, há uma presunção quanto à propriedade do veículo que advém do registo automóvel, presunção cuja ilisão terá de ser dirigida contra o que consta do registo;  

¾    Não o tendo sido, a Requerente era, na qualidade de proprietária constante do Registo Automóvel, o sujeito passivo do IUC;

¾    Quanto ao veículo com a matrícula …-…-…, o contrato de locação financeira não se encontrava em vigor à data do facto gerador do imposto, pois o contrato teve o seu termo de vigência em 25.11.2010 e o facto tributário ocorreu, relativamente à liquidação em causa, em 25.11.2014;

¾    A seguir-se a tese propugnada pela Requerente, então ter-se-á de concluir em primeira linha pela inutilidade total dos sistemas de informação registal e por uma ausência de controlo do tributo aqui em causa, daqui resultando uma flagrante violação dos princípios constitucionais da confiança e segurança jurídicas, secundada pelos princípios da proporcionalidade e da eficiência do sistema tributário;

¾    A Requerente não deu cumprimento à obrigação de comunicação prevista no artigo 19.º do CIUC.

 

II – SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral singular foi regularmente constituído em 13-01-2016, tendo sido o árbitro designado pelo Conselho Deontológico do CAAD, cumpridas as respectivas formalidades legais e regulamentares (artigos 11.º, n.º 1, als. a) e b) do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD), e é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.º do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

Não foram identificadas nulidades no processo.

Pretende-se a apreciação conjunta da legalidade de 31 liquidações de IUC, relativas aos anos de 2013 a 2015, pelo que se está perante uma cumulação de pedidos.

Verificam-se no caso concreto os pressupostos previstos no n.º 1 do artigo 3.º do RJAT e no artigo 104.º do CPPT, sendo de admitir a cumulação em virtude da identidade do imposto e da circunstância de a análise dos atos tributários em causa depender da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da aplicação das mesmas regras de direito.

Nada obsta, portanto, à apreciação do mérito da causa.

 

III – QUESTÕES A DECIDIR

 

São as seguintes as questões a decidir pelo Tribunal:

A)    Questão prévia

  1. Existência de fundamento para extinção da instância quanto às liquidações alegadamente revogadas.

 

B)    Questões relativas ao fundo da causa

  1. Sobre quem recai a incidência subjetiva do Imposto Único de Circulação após o término de um contrato de locação financeira;
  2. Se a incidência subjetiva do IUC em caso de vigência de um contrato de locação financeira que tenha por objeto o veículo sobre o qual incide a tributação, recai sobre o proprietário-locador do veículo ou sobre o locatário do mesmo;
  3. Concluindo-se pela segunda alternativa – a incidência subjetiva do imposto recai sobre o locatário do veículo – se se verificam as condições legais e de facto para que essa incidência se considere produzida.

 

IV – FACTOS PROVADOS E NÃO PROVADOS

 

São os seguintes os factos provados considerados relevantes para a decisão:

1º: A Requerente foi notificada das liquidações de IUC a seguir indicadas:

Nº da liquidação

Matrícula

Ano

Montante

2013 …

…-… -…

2013

35,1

2013 …

…-… -…

2013

226,78

2014 …

…-… -…

2014

158,28

2015 …

…-… -…

2015

152,03

2013 …

…-… -…

2013

304,46

2014 …

…-… -…

2014

262,90

2013 …

…-… -…

2013

135,49

2014 …

…-… -…

2014

226,57

2013 …

…-… -…

2013

175,95

2013 …

…-… -…

2013

37,63

2014 …

…-… -…

2014

53,23

2014 …

…-… -…

2014

32,65

2013 …

…-… -…

2013

148,71

2014 …

…-… -…

2014

150,20

2014 …

…-… -…

2014

576,84

2015 …

…-… -…

2015

253,28

2015 …

…-… -…

2015

32,49

2015 …

…-… -…

2015

32,49

2015 …

…-… -…

2015

143,62

2015 …

…-… -…

2015

52,79

2015 …

…-… -…

2015

52,63

2015 …

…-… -…

2015

143,19

2015 …

…-… -…

2015

232,32

2015 …

…-… -…

2015

100,00

2015 …

…-… -…

2015

42,22

2015 …

…-… -…

2015

52,63

2015 …

…-… -…

2015

137,41

2015 …

…-… -…

2015

231,92

2015 …

…-… -…

2015

176,70

2015 …

…-… -…

2015

142,96

2014 …

…-… -…

2014

147,89

 

 

2º: As liquidações de IUC referiam-se a veículos cuja propriedade se encontrava registada em nome da Requerente à data dos factos tributários;

3º: A Requerente celebrou, na qualidade de locadora, contratos de locação financeira de todos os veículos sobre os quais incidem as liquidações impugnadas;

4º: Os contratos de locação financeira encontravam-se em vigor à data dos factos geradores do imposto em relação a todas as liquidações impugnadas, à exceção da liquidação n.º 2014…, referente ao veículo com a matrícula …-… -…;

5º: O contrato de locação financeira do veículo com a matrícula …-…-… terminou a sua vigência em 24.11.2010;

6º: A liquidação de IUC referente a este veículo, com o n.º 2014 …, refere-se ao ano de 2014;

7º: Os contratos de locação financeira foram comunicados à AT – Autoridade Tributária e Aduaneira através da plataforma eletrónica desta entidade;

Os factos considerados provados foram-no com base nos documentos juntos ao processo e com base na livre apreciação da falta de contestação dos factos invocados pela Requerente como fundamento do seu pedido, nos termos do artigo 110.º, n.º 7 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, al. a) do RJAT.

Considera-se como não provado que tenham sido revogadas as seguintes liquidações:

Nº da liquidação

Matrícula

Ano

Montante

2013 …

…-… -…

2013

226,78

2014 …

…-… -…

2014

158,28

2015 …

…-… -…

2015

152,03

2014 …

…-… -…

2014

262,9

2013 …

…-… -…

2013

135,49

2015 …

…-… -…

2015

52,79

2015 …

…-… -…

2015

52,63

2015 …

…-… -…

2015

143,19

2014 …

…-… -…

2014

147,89

 

 

Com efeito, o único elemento de prova de que o Tribunal dispõe em relação à revogação das liquidações indicadas é um requerimento da Requerida junto aos autos em 10-12-2015, em que se lê:

“A Requerida vai proceder à revogação das seguintes liquidações de IUC, bem como aos respetivos juros, no valor global de € 1.314,48:

  • N.º 2013-…;
  • N.º 2014-…;
  • N.º 2015-…;
  • N.º 2014-…;
  • N.º 2013-…;
  • N.º 2015-…;
  • N.º 2015-…;
  • N.º 2015-…; e
  • N.º 2014-…”

Este documento, que contém apenas uma declaração de intenção, não pode ser considerado prova de que os referidos atos foram revogados.

Não existem outros factos dados como não provados com relevância para a decisão da causa.

 

V – FUNDAMENTAÇÃO

 

A)    Questão prévia

  1. Existência de fundamento para extinção da instância quanto às liquidações cuja intenção de revogação foi comunicada ao Tribunal

A Demandada AT – Administração Tributária e Aduaneira dirigiu ao Tribunal um requerimento, junto aos autos em 10-12-2015, em que se lê:

 “A Requerida vai proceder à revogação das seguintes liquidações de IUC, bem como aos respetivos juros, no valor global de € 1.314,48:

  • N.º 2013-…;
  • N.º 2014-…;
  • N.º 2015-…;
  • N.º 2014-…;
  • N.º 2013-…;
  • N.º 2015-…;
  • N.º 2015-…;
  • N.º 2015-…; e
  • N.º 2014-…”

Notificada para juntar prova da revogação dos atos indicados, a Requerida optou por não o fazer, conforme requerimento de 30-08-2016.

De acordo com o artigo 13.º, n.º 1 do RJAT, “Nos pedidos de pronúncia arbitral que tenham por objeto a apreciação da legalidade dos atos tributários previstos no artigo 2.º, o dirigente máximo do serviço da administração tributária pode, no prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral, proceder à revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada, praticando, quando necessário, ato tributário substitutivo, devendo notificar o presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) da sua decisão, iniciando-se então a contagem do prazo referido na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º.”

Não tendo o Tribunal obtido conhecimento de que tenham sido notificadas ao Presidente do CAAD as revogações referidas, o Tribunal não pode considerar provado que as mesmas ocorreram.

Falta, pois, o fundamento para a extinção da instância quanto aos pedidos respetivos. 

 

B)    Questões de fundo

  1. Incidência subjetiva do IUC após o término de um contrato de locação financeira

Quanto ao fundo da causa, a primeira questão a dilucidar diz respeito à determinação da incidência subjetiva do Imposto Único de Circulação após o término de um contrato de locação financeira.

No caso da liquidação nº 2014 …, a qual é referente ao veículo com a matrícula …-… -…, foi celebrado um contrato de locação financeira que teve o seu início em 24 de novembro de 2003.

Constando desse contrato que o locatário ficava obrigado ao pagamento de 84 rendas mensais, conclui-se que o contrato tinha uma duração prevista de 84 meses, tendo, portanto, terminado a sua vigência no dia 24 de novembro de 2010.

Embora o Demandante alegue que, apesar de ter sido ultrapassado o prazo de vigência do contrato, o mesmo ainda se encontrava em vigor no momento da apresentação do pedido arbitral, a verdade é que não apresenta qualquer fundamento que possa justificar esta conclusão. Limita-se a dizer que o locatário continua na posse do veículo, o que não conduz à conclusão de que o contrato se encontrava vigente.

O facto gerador do imposto em causa refere-se ao ano de 2014. Por conseguinte, o contrato de locação financeira não se encontrava em vigor à data do facto gerador do imposto.

Não se encontrando o contrato de locação financeira vigente à data do facto gerador do imposto, não tem aplicação o n.º 2 do artigo 3.º do CIUC, aplicando-se a regra geral do n.º 1 deste mesmo preceito. Assim sendo, o sujeito passivo do IUC no que respeita ao veículo em causa no ano de 2014 só pode ser o proprietário, ou seja, o Demandante.

Improcede por conseguinte, totalmente, a pretensão do Demandante quanto ao pedido de anulação da liquidação n.º 2014 …, com base em erro quando aos pressupostos de direito relativos à incidência subjetiva do imposto.

 

  1. Incidência subjetiva do imposto na vigência de um contrato de locação financeira

A segunda questão que cabe dilucidar é a que respeita à determinação da incidência subjetiva do Imposto Único de Circulação em caso de vigência de um contrato de locação financeira do veículo sobre o qual incide a tributação.

Sobre este ponto, a Demandada sustenta que é sempre quem figura como proprietário no registo automóvel o sujeito passivo do imposto.

Sobre esta questão existe já uma jurisprudência arbitral considerável que unanimemente considera que, quando na data da ocorrência do facto gerador do imposto vigorar um contrato de locação financeira, o sujeito passivo do imposto não é o proprietário mas sim, à luz do n.º 2 do artigo 3.º do CIUC, o locatário (Vd. as decisões arbitrais proferidas nos processos n.º 14/2013-T, de 15-10-2013; n.º 294/2013-T, de 2014-06-06; n.º 775/2014-T de 26-11-2015; n.º 136/2014-T, de 14-07-2014; n.º 137/2014-T, de 2014-10-21; n.º 232/2014-T, de 09-12-2014; n.º 191/2015-T de 26-10-2015; e n.º 169/2015-T de 30-09-2015).

Por nossa parte, é também esta a posição que subscrevemos.

O artigo 3.º do Código do CIUC tem a seguinte redação:

Artigo 3.º

Incidência subjectiva

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.

3 –(…)

Para a questão que ora nos ocupa releva a interpretação do n.º 2 do preceito, nomeadamente a determinação do sentido da equiparação que o legislador aí realiza. Dada a inserção sistemática do preceito, parece-nos isento de qualquer dúvida que o mesmo se refere à incidência subjetiva do imposto. E sendo assim, o sentido da norma é a de que os “locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação” são equiparados a proprietários para efeitos de incidência subjetiva do imposto, ie para efeitos de determinar quem é sujeito passivo de imposto.

A sujeição subjetiva a imposto dá-se a título de contribuinte direto, de substituto ou de responsável tributário por dívida de terceiro, de acordo com o artigo 18.º, n.º 3 da Lei Geral Tributária (LGT).

No caso do n.º 2 do artigo 3.º, nada se encontrando na lei que nos permita falar de uma situação de substituição tributária ou de responsabilidade por dívida de terceiro, há que concluir que os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, e os outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação são sujeitos passivos do imposto a título de contribuintes diretos. Neste sentido se inclina claramente a própria literalidade da norma, quando equipara estes titulares ao proprietário.

E no mesmo sentido pende ainda a ratio do preceito, já que as situações de locatário financeiro, de adquirente com reserva de propriedade e de titular de direito de opção de compra por força do contrato de locação são situações jurídicas cujo conteúdo substancial, nomeadamente em termos dos poderes que cabem aos titulares, se aproxima muito do da propriedade.

Poderia, finalmente, questionar-se se o legislador quis estabelecer uma sujeição passiva solidária, nos termos do artigo 21.º da LGT.

Quanto a este aspeto acompanhamos a decisão ditada no processo 232/2014-T, de 09-12-2014: “Não sendo questão de solução linear, podendo elaborar-se argumentos quer num quer noutro dos possíveis sentidos de resposta, entende-se que a resposta a dar deverá ser positiva, ou seja, que no caso de existir um “equiparado” a proprietário, a sujeição deste (do proprietário) ver-se-á afastada, sendo apenas o “equiparado” sujeito passivo do imposto.”

E decidimo-nos por esta interpretação porque, não se encontrando nas normas em causa qualquer elemento que indique nesse sentido, e sendo a solidariedade passiva tributária uma situação excecional, não vemos que haja nas situações em causa nenhuma razão para o legislador a ter querido estabelecer. Mais concretamente, julgamos, pelas razões atrás já mencionadas, que, sendo a posição do locatário financeiro substancialmente equivalente à do proprietário, e ficando este privado de todos os poderes que integram a propriedade, só em relação ao locatário se verificam substancialmente os pressupostos da tributação.

Sendo assim, concluímos que, na vigência de um contrato de locação financeira, o único sujeito passivo do imposto é o locatário, e não o proprietário.

 

  1. A questão do cumprimento ou incumprimento da obrigação de comunicação estabelecida no artigo 19.º do CIUC e a sua articulação com a questão da incidência subjetiva

Até à sua revogação pela alínea f) do n.º 1 do artigo 215.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, o artigo 19.º do CIUC fazia impender sobre o locador financeiro de veículos a obrigação de fornecer à Direcção-Geral dos Impostos (hoje, à AT – Autoridade Tributária e Aduaneira) os dados relativos à identificação fiscal dos utilizadores dos veículos locados.

Nos casos vertentes, a Demandada contra-alega que o Demandante sujeito passivo não cumpriu esta obrigação, o que a impediria de invocar o n.º 2 do artigo 3.º do CIUC. Por seu turno, o Demandante sustenta que fez esta comunicação através da plataforma eletrónica da Demandada, não obtendo qualquer comprovativo.

Mesmo antes de tratarmos a questão – que seria prejudicial em relação a esta primeira - de saber se essa comunicação era efetivamente uma condição legal para se verificar a translação da incidência subjetiva do imposto para a esfera do locatário, consideramos conveniente fundamentar a nossa posição quanto à questão de facto enunciada.

Trata-se de uma regra geral e de uma garantia dos administrados que quem cumpre uma obrigação, no âmbito do procedimento administrativo, tem o direito de receber um comprovativo desse cumprimento. No novo modelo de interação entre os contribuintes e a Administração Tributária, baseado na comunicação eletrónica, essa não poderá deixar de ser também a regra. No entanto, é do conhecimento geral que efetivamente, muitas vezes, isso não acontece.

Ora, tendo tido a Administração Tributária a possibilidade de contradizer o Demandado no que toca ao facto, alegado por este, de não poder obter um comprovativo da comunicação prevista no entretanto revogado artigo 19.º, não o fez. Ao abrigo do artigo 110.º, n.º 7 do CPPT, e baseando-nos no facto, de conhecimento geral, de ser frequente a não disponibilização de comprovativos dos atos que os contribuintes praticam através da plataforma de comunicação eletrónica da AT – Administração Tributária e Aduaneira, entendemos dever dar como provado que o Demandante efetivamente cumpriu o dever que lhe incumbia por força do artigo 19.º do CIUC.

Mas ainda que assim não fosse, consideramos que, sendo a incidência subjetiva um elemento da obrigação tributária que não pode deixar de ser perfeitamente delimitado pela lei (princípio da legalidade tributária, de acordo com o artigo 103.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), e não se encontrando na lei qualquer elemento que inequivocamente nos leve a concluir que o legislador quis fazer depender do cumprimento da obrigação prevista no entretanto revogado artigo 19.º a translação da incidência subjetiva do proprietário para o locatário, e configurando-se esta obrigação como uma obrigação acessória, não é legítimo considerar que o cumprimento ou incumprimento desta obrigação acessória era determinante da incidência subjetiva do imposto

Acompanhamos, quanto a este aspeto, o que já foi a doutrina seguida em várias decisões arbitrais, como por exemplo a proferida no processo n.º 191/2015-T de 26-10-2015, na qual se diz:

Para estes casos, o legislador instituiu uma regra explícita, no n.º 2 do artigo 3.º do CIUC, segundo a qual, na vigência do contrato de locação, são os locatários os sujeitos passivos de imposto. (…) Perguntar-se-á ainda: e quanto à comunicação prevista no artigo 19.º do CIUC? O seu incumprimento contende com a conclusão constante do parágrafo anterior quanto ao responsável pelo pagamento do imposto? A resposta é, em nosso entender, negativa. Efetivamente, a consequência que decorre do incumprimento dessa obrigação acessória é aquela a que assistimos: a AT emite as notas de liquidação em nome do proprietário do veículo, por desconhecer que foi celebrado o contrato de locação financeira. Contudo, isso não impede esse mesmo proprietário / locador de fazer prova da celebração do contrato e do prazo pelo qual o mesmo foi celebrado e, assim, obstar ao pagamento do imposto.”

E um pouco mais a frente, prossegue a mesma decisão:

Importa ainda não esquecer que a falta da Requerente é passível de responsabilidade contra-ordenacional à luz do artigo 117.º, conjugado com o artigo 26.º n.º 4, ambos do Regime Geral das Infrações Tributárias, punível com coima de € 300,00 a € 7.500,00 por cada um dos contratos de locação financeira. Essa é a forma encontrada pelo legislador para penalizar quem incumpre com o dever informativo para com a AT.”

No mesmo sentido se decantou a decisão prolatada no processo n.º 232/2014-T, de 09-12-2014, em que se escreveu:

“Não obsta ao que vem de se concluir, a circunstância de a Requerente poder não ter dado o devido cumprimento ao disposto no atrás referido artigo 19.º do CIUC. Com efeito – e como é bom de ver – a sanção pelo incumprimento de qualquer obrigação que a esse respeito caiba ou coubesse à requerente, ter-se-ia sempre que procurar em sede do Regime das Infrações Tributárias, e não, naturalmente, na sujeição a um imposto”.

No mesmo sentido ainda se pronunciou o tribunal arbitral no processo n.º 136/2014-T de 14 -07- 2014, em que se lê:

 “A incidência subjectiva do IUC está estabelecida, em todos os seus elementos, no art. 3º do CIUC, e será através da aplicação deste normativo que será apurado o sujeito passivo, não relevando para efeitos da incidência do imposto a falta de cumprimento da mencionada obrigação acessória.”[1]

É esta a posição que também defendemos. O incumprimento de uma obrigação acessória não pode determinar a incidência subjetiva do imposto, estritamente sujeita como está ao princípio da legalidade tributária, a não ser que tal se encontre claramente determinado na lei.

Por conseguinte, ainda que não tivéssemos considerado provado, como considerámos, que o Demandante cumpriu a obrigação estabelecida no artigo 19.º do CIUC (entretanto revogado), tal não prejudicaria a conclusão de que é o locatário, e não o proprietário, o sujeito passivo do imposto. 

 

VI. DECISÃO

 

Pelos fundamentos expostos, julga-se:

I.       Improcedente o pedido de anulação da liquidação n.º 2014…, por não se verificar nenhum dos alegados erros quanto aos pressupostos e facto ou de direito;

II.                 Procedentes todos os restantes pedidos de anulação das liquidações impugnadas

 

Consequentemente:

III.  Condena-se a Requerida ao reembolso do montante pago referente às liquidações anuladas, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

 

Valor da utilidade económica do processo: Fixa-se o valor da utilidade económica do processo em 4.663,40 euros.

 

Custas: Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 612,00 euros, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente no montante de 30,45 euros e da Requerida no montante de 581,55 euros.

 

Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às partes.

 

Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 19 de setembro de 2016

 

 

O Árbitro

 

 

(Nina Aguiar)

 

 



[1] No mesmo sentido se pronunciou ainda a decisão proferida no Proc n.º 169/2015-T de 30-09-2015.