Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 567/2015-T
Data da decisão: 2016-07-15  IRC  
Valor do pedido: € 1.254.116,01
Tema: IRC – Competência do Tribunal Arbitral; idoneidade do meio processual; liberdade de circulação de capitais; acordos euro-mediterrânicos; dedutibilidade; eliminação de dupla tributação
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CAAD: Arbitragem Tributária

Processo n.º: 567/2015-T

Tema: IRC – Competência do Tribunal Arbitral; idoneidade do meio processual; liberdade de circulação de capitais; acordos euro-mediterrânicos; dedutibilidade; eliminação de dupla tributação

 

 

 

Decisão Arbitral

 

 

Requerente: A…, S.A.

Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira

 

Os árbitros José Baeta de Queiroz (árbitro presidente), João Sérgio Ribeiro e Luísa Anacoreta, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

I – RELATÓRIO

 

No dia 1 de setembro de 2015, a contribuinte A…, S. A., com o NIPC … (doravante "Requerente"), com sede social e …, freguesia …, concelho de …, apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral Coletivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante "RJAT", que atualmente vigora com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante "AT" ou "Requerida").

Em tal requerimento, a Requerente solicita a pronúncia arbitral sobre o indeferimento do recurso hierárquico n.º …2012…, apresentado em virtude do despacho de indeferimento da reclamação graciosa com o n.º de processo …2011… .

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 18 de setembro de 2015.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo os ora signatários, que comunicaram a aceitação de tal encargo no prazo aplicável.

Em 4 de novembro de 2015, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo arguido qualquer impedimento.

O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 17 de novembro de 2015, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/20111, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro.

O ato objeto do pedido de pronúncia do Tribunal Arbitral é a ilegalidade da tributação que incidiu sobre os dividendos recebidos das participações sociais detidas na B…, com residência fiscal na Tunísia, e na C…, com residência fiscal no Líbano, no exercício de 2008.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que suscitou exceções de incompetência material do Tribunal Arbitral e da inidoneidade do meio processual.

Em 4 de fevereiro de 2016, realizou-se uma reunião em que do tribunal Arbitral com a presença de todos os árbitros e de representantes da Requerente e da Requerida.

Na reunião supra referida, as partes acordaram na realização de alegações escritas, com a Requerente a pronunciar-se sobre a matéria de exceção em sede de alegações.

Foi fixado o dia 17 de maio de 2016 como prazo limite para a prolação da Decisão Arbitral, depois prorrogado até 15 de julho de 2016.

A Requerente apresentou alegações escritas em 19 de fevereiro de 2016.

A Requerida apresentou alegações escritas em 4 de março de 2016.

A pretensão objeto do pedido de pronúncia arbitral consiste, em síntese, no seguinte:

 

(i)       serem integralmente deduzidos os rendimentos, incluídos na base tributária, correspondentes aos lucros distribuídos pela B… e pela C… à Requerente, nas mesmas condições em que tal está previsto para lucros distribuídos por sociedades residentes em Portugal, com fundamento nos dois Acordos Euro-Mediterrânicos que estabelecem, cada um deles, uma associação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados-Membros, por um lado, e a República da Tunísia e o Líbano, por outro;

(ii)     subsidiariamente ao pedido em (i), serem integralmente deduzidos os mesmos rendimentos, nas mesmas condições em que tal está previsto para lucros distribuídos por sociedades residentes em Portugal, com fundamento no artigo 63.º, n.º 1 do TFUE, antigo artigo 56º, n.º 1 do Tratado da Comunidade Europeia;

(iii)   subsidiariamente ao pedido em (i) e (ii), serem integralmente deduzidos os mesmos rendimentos, nas mesmas condições em que tal está previsto para lucros distribuídos por sociedades residentes nos PALOP e em Timor-Leste, com fundamento no artigo 63.º, n.º 1 do TFUE, antigo artigo 56º, n.º 1 do Tratado da Comunidade Europeia;

(iv)   subsidiariamente a (i), (ii) e (iii) deduzir parcialmente – em 50% – os rendimentos incluídos na base tributária, correspondentes aos lucros referidos, nas mesmas condições em que tal está previsto para lucros distribuídos por sociedades residentes em Portugal independentemente da percentagem da participação detida pelo sócio na afiliada, com fundamento no artigo 63.º, n.º 1 do TFUE, antigo artigo 56.º, n.º 1 do Tratado da Comunidade Europeia;

(v)     o pagamento de juros indemnizatórios nos termos dos artigos 43.º e 100.º da Lei Geral Tributária e artigo 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário; e

(vi)   o reembolso dos custos suportados e a suportar pela Requerente com os honorários e despesas dos seus advogados relativos ao enquadramento jurídico da questão, acompanhamento do procedimento administrativo, preparação e acompanhamento do processo arbitral, bem como de outras despesas incorridas ou a incorrer com a arbitragem – incluindo a taxa arbitral – tudo em montante a liquidar futuramente.

 

Na sua Resposta, a Autoridade Tributária na qual, em síntese, alegou o seguinte, após apresentar exceções de incompetência material do Tribunal Arbitral e da inidoneidade do meio processual:

(i)       Não assiste razão à Requerente.

(ii)     O artigo 46.º CIRC consagra o direito à eliminação da dupla tributação económica só e apenas nas situações e condições nele expressamente previstas.

(iii)   Tal só está consagrado para dividendos de origem nacional e com origem em sociedade de Estado Membro da União Europeia.

(iv)   A legislação nacional opõe-se, assim, à aplicação do mesmo regime quando a entidade que distribui os lucros seja residente num Estado terceiro.

(v)     Os Acordos Euro-Mediterrânicos não têm como efeito o alargamento à Tunísia ou ao Líbano de qualquer regime de benefício ou vantagem fiscal aos investimentos aí efetuados, não impondo a extensão do regime previsto no art. 46.º do Código do IRC aos lucros distribuídos por sociedades aí residentes, sendo compatível e existência deste artigo com o Direito Internacional.

(vi)   E, quando (e apenas quando) estão em causa normas fiscais, os Estados-Membros podem distinguir entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar da residência ou ao lugar onde o capital é investido.

(vii) Por outro lado, o direito primário da União Europeia corrobora a referida inaplicabilidade do regime da eliminação da dupla tributação económica previsto no artigo 46.° do CIRC quando estejam em causa lucros provenientes de Estados Terceiros em razão do disposto na cláusula de salvaguarda prevista no artigo 57.º do TCE.

(viii)                                                                                                                 E, salvo existindo uma violação que, de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, deva indubitavelmente ser qualificada como “suficientemente caraterizada”, não deve caber à Administração Fiscal desaplicar ou recusar a aplicação de uma norma constante do ordenamento jurídico interno com mero fundamento na sua incompatibilidade com o direito comunitário.

(ix)   Além disso, a situação em apreço justifica a restrição à livre circulação de capitais por uma razão imperiosa de interesse geral relativa à eficácia dos controlos fiscais e, inerentemente, à luta contra a fraude fiscal.

(x)     E, mesmo que a aplicação da regulação em causa tivesse efeitos restritivos na livre circulação de capitais, esses efeitos seriam a consequência inelutável de um eventual obstáculo à liberdade de estabelecimento e, portanto, não justificariam uma análise autónoma da legislação em causa à luz do artigo 56.° do TCE.

 

II- SANEAMENTO

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

O processo não enferma de nulidades e importa apreciar prioritariamente as exceções suscitadas.

 

III - AS EXCEÇÕES DA INCOMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL ARBITRAL E DA IMPROPRIEDADE DO MEIO PROCESSUAL UTILIZADO

 

A AT arguiu duas exceções dilatórias que se imbicam, por isso que as trataremos em conjunto.

Sobre a competência material do Tribunal Arbitral, diz que ela inexiste, face ao pedido da Requerente e ao elenco das matérias em que se vinculou à arbitragem tributária, tudo conforme o artigo 2.º n.º 1 do RJAT e a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

Isto porque o que a Requerente pretende é que lhe seja reconhecido um direito, qual seja o “de deduzir, na totalidade ou apenas em 50%, o valor dos rendimentos incluídos na base tributária correspondentes aos lucros que lhe foram distribuídos pela B… e pela C…”.

Sobre a impropriedade do meio, afirma que o próprio seria a ação para reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria tributária.

 

Mas não é preciso ampliar a vinculação da AT “à tutela arbitral fixada legalmente”, como ela receia, para apreciar a pretensão da Requerente.

Na verdade, esta última pediu a constituição do tribunal arbitral para impugnar uma autoliquidação de IRC da qual primeiro reclamou e depois recorreu hierarquicamente, sem êxito.

E o vício que imputa a tal ato de liquidação, e às decisões proferidas na reclamação graciosa e no recurso hierárquico, é um vício de violação de lei, por não terem sido deduzidos os rendimentos, incluídos na base tributária, correspondentes aos lucros que lhe foram distribuídos pelas B… e C… .

Ora, o n.º 1 a) do RJAT é expresso em atribuir aos tribunais arbitrais a competência para apreciar “a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, (,,,)”. Competência que se estende aos atos de indeferimento de reclamações graciosas e recursos hierárquicos que tenham apreciado a legalidade do ato de liquidação.

Por outro lado, e no que toca à vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira, as restrições contidas no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, não abrangem o caso que nos ocupa.

 

No que concerne à alegada impropriedade do meio eleito pela Requerente, ela parte de uma petição de princípio, qual seja, o de que a sua pretensão é o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria tributária.

Na verdade, o direito que a Requerente pretende conseguir é o direito a um ato de liquidação isento de vícios…

E, para esse efeito, o meio de que lançou mão é o ajustado.

Improcedem, pelo exposto, as exceções apreciadas.

 

IV - MÉRITO

 

IV.1 - MATÉRIA DE FACTO

§1. FACTOS PROVADOS

 

1.      Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas dão-se como assentes e provados os seguintes factos:

A) A Requerente apresentou, em 31 de maio de 2011, reclamação graciosa da autoliquidação de IRC de 2008, a qual foi objeto de decisão de indeferimento, por despacho de 6 de Setembro de 2012.

B) A Requerente apresentou, em 4 de outubro de 2012, recurso hierárquico da decisão de indeferimento.

C) Este recurso hierárquico veio a ser indeferido, por decisão notificada à Requerente em 25 de maio de 2015.

D) No seguimento desta decisão a Requerente requer a constituição de Tribunal Arbitral nos termos supra descritos.

E) A…, S. A, pessoa coletiva n.º…, é uma sociedade de direito português, com sede em…, freguesia …, concelho de … .

F) Durante o exercício de 2008, a Requerente detinha uma participação de 98,72% na B…, sociedade com residência fiscal na Tunísia, participação essa detida desde 2000.

G) Durante o mesmo exercício, a Requerente detinha uma participação, parte direta, parte indireta, que no seu total ascendia a 50,67%, na C…, sociedade com residência fiscal no Líbano, participação essa detida, sensivelmente nessa percentagem, desde 2007.

H) A Requerente recebeu durante o exercício fiscal de 2008 dividendos das suas subsidiárias na Tunísia e no Líbano no montante de €2.700.817,00 e de €2.031.696,23, respetivamente.

I) Os lucros distribuídos pelas suas subsidiárias tunisina e libanesa, em 2008, originaram na esfera da Requerente IRC e derrama municipal de, respetivamente, €1.183.128,31 e €70.987,7, o que perfaz um valor total de tributação de €1.254.116.01.

J) Os dividendos recebidos pela Requerente foram sujeitos a tributação em Portugal, e não beneficiaram de qualquer regime de eliminação de dupla tributação económica.

K) Assim, à tributação que, na Tunísia, incidiu sobre os lucros da sociedade tunisina acresceu uma segunda tributação, sobre dividendos recebidos, na esfera da Requerente, acionista da sociedade Tunisina.

L) E à tributação que, no Líbano, incidiu sobre os lucros da sociedade libanesa acresceu uma segunda tributação, sobre dividendos recebidos, na esfera da Requerente, acionista da sociedade libanesa.

M) O Acordo Euro – Mediterrânico que estabelece uma associação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados-Membros e a República da Tunísia, tem como Estados signatários todos os Estados membros das Comunidades, entre os quais a República Portuguesa.

N) O Acordo Euro – Mediterrânico que estabelece uma associação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados-Membros e a República do Líbano, tem como Estados signatários todos os Estados membros das Comunidades, entre os quais a República Portuguesa.

 

§2. FACTOS NÃO PROVADOS

 

Não se provaram quaisquer outros factos relevantes, tendo em vista as soluções de direito plausíveis.

 

 §3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO

 

A factualidade provada teve por base a análise crítica do processo administrativo e dos demais documentos juntos aos autos, cujas autenticidade e veracidade não foram impugnadas por nenhuma das partes, bem como as posições consensuais destas.

                                                                     

IV.2 - MATÉRIA DE DIREITO

 

§1. QUANTO ÀS RESTANTES QUESTÕES DE DIREITO

 

            Apreciar-se-ão, prioritariamente, os pedidos principais, só passando a apreciar os pedidos subsidiários se improcederem aqueles. Os pedidos subsidiários só devem, portanto, ser tomados em consideração no caso de não proceder um pedido anterior [artigo 554.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].

            Existe uma decisão arbitral sobre uma questão em tudo idêntica àquela sobre a qual importa decidir, constante do acórdão do CAAD proferido em 12 de setembro de 2013, no âmbito do processo n.º 22/2013-T. Atenta a inteira bondade dos fundamentos dessa decisão, este tribunal aderirá por completo a eles, transcrevendo-os, em grande medida, com pequeníssimas alterações. A adoção da fundamentação de direito do acórdão n.º 22/2014-T será pontuada por várias referências às conclusões de 27 de janeiro de 2016 do Advogado-Geral Melchior Wathelet (doravante Advogado-Geral) no Caso C-446/14 Secil – Companhia Geral de Cal e Cimento, S.A. contra a Fazenda Pública, dado que nesse caso se discutem exatamente as mesmas questões sobre que este tribunal terá de proferir uma decisão, sendo a única diferença o ano a que dizem respeito os dividendos a considerar.

 

1. Questão da dedutibilidade integral dos rendimentos, incluídos na base tributária, correspondentes aos lucros distribuídos pela B… e da C… à Requerente.

 

            A principal questão a decidir nos presentes autos arbitrais é a de saber se a diferenciação, estabelecida pela legislação nacional, entre o tratamento dos lucros quando estes são distribuídos por uma sociedade não residente ou em Portugal ou num Estado-Membro da União Europeia é (in)compatível com a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), por se traduzir num regime fiscal menos favorável para os não residentes.

 

            1.1. Enquadramento

 

            De acordo com a legislação portuguesa aplicável à liquidação que se questiona, de um modo geral, sempre que uma sociedade participa no capital de outra sociedade e, nesse contexto, beneficia de uma distribuição de lucros por parte da sociedade participada, esses lucros são incluídos na sua base tributária. Isto é, são considerados como fazendo parte dos rendimentos da sociedade que deles beneficia. A incorporação desses lucros no lucro tributável da sociedade beneficiária gera uma dupla tributação económica, uma vez que o mesmo lucro é tributado na esfera de duas pessoas jurídicas distintas. No sentido de obviar a esta dupla tributação e aos efeitos negativos que tem sobre a atividade económica o legislador fiscal criou alguns mecanismos.

            O mecanismo do artigo 46.º, n.º 1 do CIRC, que a requerente pretende ver ser-lhe aplicado, elimina a dupla tributação económica ao permitir deduzir aos rendimentos incluídos na base tributável os lucros distribuídos, desde que sejam preenchidos vários requisitos. Exige para isso que (i) a sociedade que distribui os lucros tenha a sede e direção efetiva em Portugal ou num Estado da União Europeia (46.º, n.º 5), (ii) esteja sujeita a imposto sobre o rendimento; (iii) a sociedade beneficiária não se encontre abrangida pelo regime da transparência fiscal e (iv) detenha diretamente uma participação no capital da sociedade que distribui os lucros não inferior a 10% ou com um valor de aquisição não inferior a 20 000 000 Euros, tendo esta permanecido na titularidade da beneficiária, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da colocação à disposição dos lucros.

            O mecanismo descrito e de que a requerente pretende beneficiar, tal como resulta da letra da lei, pode apenas ser aplicado a sociedades que preencham os requisitos descritos, o que prima facie não poderia beneficiar a requerente. Isto porque, apesar de, nos termos dos factos provados, a situação sub judice respeitar a maior parte dos requisitos, designadamente (i) o que concerne ao montante e duração da participação detida nas sociedades que distribuem os lucros, (ii) o relativo à sujeição tributação das sociedades: B… (doravante sociedade tunisina) e C… (doravante sociedade libanesa)] e (iii) o respeitante ao facto de a Requerente não estar sujeita a transparência fiscal ─ a sociedade tunisina e a sociedade libanesa não têm residência em Portugal ou num Estado-Membro.

 

            1.2. Direito da União Europeia

           

            Não obstante a limitação decorrente da letra da lei, é possível conceber que, por via do Direito da União Europeia, se possa alargar o âmbito de aplicação do mecanismo do artigo 46.º. do CIRC. Pois, como é sabido, apesar de só os Estados-Membros terem competência em matéria de impostos diretos, o Tribunal de Justiça (TJ) tem sustentado, através das suas decisões, que esses Estados devem exercer essa competência em conformidade com o direito da União Europeia[1]. Evitando assim, violações das cinco liberdades económicas fundamentais, designadamente: (i) a livre circulação de mercadorias (artigos 28.º e seguintes do TFUE); (ii) a livre circulação de trabalhadores (artigos 45.º e seguintes do TFUE); (iii) a liberdade de estabelecimento (artigo 49.º e seguintes do TFUE); (iv) a liberdade de prestação de serviços (artigo 56.º e seguintes do TFUE) e (v) a livre circulação de capital (artigo 63.º e seguintes do TFUE). Ora, é precisamente através da proteção de cada uma destas liberdades, diretamente aplicáveis, que ocorre uma verdadeira harmonização pela via jurisprudencial que se traduz na obrigatoriedade de as legislações nacionais se conformarem a cada uma dessas liberdades.

 

            1.3. Liberdade de circulação de capitais

           

            Tendo como base o circunstancialismo da situação em análise, designadamente o recorte do mecanismo de eliminação da dupla tributação constante do artigo 46.º do CIRC, constata-se que a aplicação desse artigo, unicamente a sociedades com residência na União Europeia ou em Portugal que distribuam lucros, representa, à primeira vista, uma violação da liberdade de circulação de capitais (artigo 63.º do TFUE). Esta liberdade é, aliás, a única que se aplica também face a Estados terceiros, sendo neste momento pacífico que o seu conteúdo é exatamente o mesmo quando estão em causa Estados-Membros e Estados terceiros. Consequentemente, as restrições a esta liberdade são proibidas independentemente de estarem em causa Estados-membros ou Estado terceiros[2], exatamente da mesma forma, sendo as situações perfeitamente comparáveis. Dito de outro modo, todas as restrições relativas à circulação de capital e pagamentos entre os Estados-Membros e entre estes e países terceiros são proibidas[3].

            A sustentação de que, de facto, a não aplicação do regime do artigo 46.º, n.º 1 do CIRC aos dividendos distribuídos pelas sociedades tunisina e libanesa corresponde a uma situação de discriminação intolerável face à livre circulação de capitais (ao dissuadir os contribuintes tributados em Portugal de investir o seu capital na Tunísia e Líbano) pressupõe, consequentemente, por um lado que o artigo 63.º do TFUE seja aplicável a essas situações e por outro que, sendo esse o caso, e havendo, portanto, discriminação, não seja aplicável a cláusula de reserva ou não haja uma justificação válida para essa discriminação.

            Para responder à primeira questão, isto é, saber se o artigo 46.º está ou não abrangido pelo âmbito da liberdade de circulação de capitais (artigo 63.º do TFUE) é necessário esclarecer desde logo se tanto a aquisição de partes sociais numa sociedade como o pagamento de dividendos decorrentes dessa operação quadram ou não com essa liberdade.

            Não há uma definição de «circulação de capital» no Tratado. Importa relevar, no entanto, que o TJ confirmou em vários acórdãos, ao fazer uma lista não exaustiva dos movimentos de capital, que a terminologia aplicada a esses movimentos no Anexo I da Diretiva do Conselho 88/361/ CEE, de 24 de Junho de 1988, para a implementação do antigo artigo 67.º do TCE, hoje revogado, ainda tem alguma relevância. Nesse contexto o TJ decidiu que podem ser reconduzidos aos movimentos de capitais no contexto do artigo 63.º, nomeadamente, os investimentos ditos «diretos», a saber, os investimentos sob a forma de participação numa empresa pela detenção de ações que confere a possibilidade de participar efetivamente na sua gestão e no seu controlo, assim como os investimentos ditos «de carteira», isto é, os investimentos sob a forma de aquisição de títulos no mercado de capitais com o único objetivo de realizar uma aplicação financeira sem intenção de influir na gestão e no controlo da empresa[4].

            Segundo o TJ as restrições aos movimentos de capitais aludidos abrangem «não só as medidas nacionais que, quando aplicadas a movimentos de capitais com destino a países terceiros ou deles provenientes, restringem o estabelecimento ou os investimentos mas também as que restringem os pagamentos de dividendos deles decorrentes»[5].

            Decorre, como consequência do exposto, nas palavras do próprio TJ que «uma sociedade residente num Estado-Membro e que detenha uma participação numa sociedade residente num país terceiro que lhe confere uma influência certa nas decisões desta última sociedade e lhe permite determinar as suas atividades pode invocar o artigo 63.º TFUE para pôr em causa a conformidade com esta disposição de uma legislação do referido Estado-Membro relativa ao tratamento fiscal de dividendos originários do referido país terceiro, não exclusivamente aplicável às situações em que a sociedade-mãe exerce uma influência decisiva na sociedade que procede à distribuição dos dividendos»[6].

            Relativamente à última parte do excerto transcrito, cumpre sublinhar que apesar de em termos históricos, até pela sua relação com a Diretiva sociedades-mãe/sociedades afiliadas, ser concebível a ideia de que o artigo 46.º, n.º 1 do CIRC teria na origem em vista situações de controlo ou influência efetiva, hoje, porém, não obstante poder haver essa preponderância, surge como claro que não se refere exclusivamente a essas situações. Desde logo porque 10% do capital, dependendo da maior ou menor dispersão deste, não garantem um controlo efetivo. Além disso, sendo esta ideia particularmente importante, o requisito dos 10% de participação no capital é alternativo face à aquisição de uma participação no valor de 20 000 000 de Euros, que não tem de corresponder a 10% ou qualquer percentagem pré-definida de participação. Ora, dependendo do tipo de empresa, 20 000 000 de Euros podem representar uma percentagem muito variável em termos de relevância da participação, podendo esta permitir ou não um controlo efetivo. Não se pode, por conseguinte, de modo algum dizer que o artigo 46.º, n.º 1 do CIRC se aplica de forma exclusiva às situações em que a sociedade-mãe exerce uma influência decisiva na sociedade que procede à distribuição dos dividendos.

            Resulta claro, portanto, que o artigo 46.º do CIRC é claramente abrangido pela circulação de capitais, pelo que a recusa de um Estado em conceder eliminação da dupla tributação a dividendos com origem na Tunísia e no Líbano, quando essa eliminação é permitida a favor de dividendos de origem doméstica constitui, uma discriminação[7]. Pois, como é óbvio, essa disposição limita a aquisição de ações nas sociedades desses países, o que não pode ser permitido».

            Salienta a este propósito o Advogado-Geral que «…a legislação portuguesa em causa no processo principal não distingue os dividendos recebidos por uma sociedade residente com base numa participação que lhe confere uma influência certa sobre as decisões da sociedade que procede à distribuição desses dividendos, e que lhe permite condicionar as atividades desta, dos dividendos recebidos com base numa participação que não lhe confere tal influência»[8] e que «consequentemente, no que diz respeito ao Tratado FUE, o presente processo está abrangido pela livre circulação de capitais»[9].

 

            1.4. Cláusula de Salvaguarda

           

            Verificada a suscetibilidade de aplicação do artigo 63.º do TFUE é necessário, todavia, antes de retirar daí consequências plenas, verificar ainda se é suscetível de ser aplicada a cláusula de salvaguarda do artigo 64.º do TFUE. Este artigo permite que, existindo restrições em vigor em 31 de dezembro de 1993 ao abrigo de legislação nacional ou da União adotada em relação a certos movimentos de capitais com países terceiros que envolvam, entre outras operações, o investimento direto (situação de que cuidamos), seja possível obstar à livre circulação de capitais. Isto porque «o objectivo e o contexto jurídico da liberalização dos movimentos de capitais são diferentes consoante se trate das relações entre Estados-Membros e países terceiros ou da livre circulação de capitais entre Estados-Membros, [assim] estes consideraram necessário prever cláusulas de salvaguarda e excepções que se aplicam especificamente aos movimentos de capitais com destino ou provenientes de países terceiros»[10]. A cláusula de salvaguarda tem em vista, ao cabo e ao resto, permitir algum controlo por parte dos Estados, dado que a liberdade de circulação de capitais é normalmente assegurada unilateralmente e sem reciprocidade.

Independentemente de a regra portuguesa que exclui os dividendos distribuídos por sociedades de Estados terceiros do mecanismo da dupla tributação económica configurar ou não uma disposição conforme aos requisitos do artigo 64.º do TFUE, a existência e o teor dos Acordos Euro-Mediterrânico celebrados com a Tunísia e Líbano sempre impediriam a aplicação dessa cláusula de salvaguarda às situações envolvendo sociedades tunisinas e libanesas. Convém lembrar que, o direito português consagra uma cláusula de receção automática plena do direito convencional internacional, cumpridas as formalidades de aprovação, ratificação e publicação (artigo 8.º, n.º 2 da CRP). Daqui decorre que os tratados são fonte imediata de direitos e obrigações para os seus destinatários, podendo ser invocados perante os tribunais.

            Os tratados são superiores hierarquicamente relativamente à lei ordinária. Esta superioridade decorre não só dos artigos 26.º e 27.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, mas igualmente do artigo 8.º n.os 1 e 2 da CRP. Apresenta-se, pois, como claro que, para que a convenção vigore na ordem interna, é necessário que a lei ordinária posterior a não possa revogar. Ou seja, o direito internacional convencional não pode ser afastado por leis ordinárias, surgindo como superior àquelas. Sejam essas leis subsequentes, as quais serão materialmente inconstitucionais se o contrariarem; sejam anteriores, as quais terão de ser suspensas se forem conflituantes com esse direito convencional internacional, só retomando a vigência no caso de suspensão ou cessação da convenção internacional que estiver em causa.

            Aliás, os acordos celebrados com a Tunísia e o Líbano, enquanto tratados mistos, ou seja, tratados celebrados conjuntamente pela União Europeia (na altura Comunidade Europeia) e os Estados-Membros é fonte de Direito por duas vias, enquanto Direito da União Europeia[11] e enquanto Direito Internacional de incorporação automática no nosso sistema jurídico.

            Não obstante estes acordos ter essencialmente em vista a liberalização a nível das liberdades económicas fundamentais e evitar a discriminação, é-lhes ínsita, dada a abrangência dessas liberdades, a questão fiscal pelo impacto que tem sobre elas. O facto de os acordos com Tunísia e o Líbano incorporarem cláusulas que especificamente fazem referência aos impostos atesta isso mesmo. São exemplo aquelas que permitem às partes, designadamente, o direito de distinguir residentes e não residentes para efeitos de tributação. Ora, só faz obviamente sentido a inclusão de cláusulas deste tipo se os acordos como os celebrados com a Tunísia e o Líbano tiverem impacto na legislação fiscal dos Estados signatários. O facto de terem sido assinados pelos vários Estados-Membros, e, portanto, também por Portugal, assegura que lhes subjaz um exercício de uma indiscutível e plena soberania fiscal, o que reforça o seu efeito direto.

            Importa salientar que, anteriormente à assinatura destes acordos, a livre circulação de capitais da Tunísia e do Líbano para Portugal e outros Estados-Membros já estava assegurada; com a eventual aplicação da cláusula de salvaguarda, é certo, mas já existia. Pelo que somos forçados a concluir que o objetivo dos acordos com a Tunísia e o Líbano, à semelhança do que se passou com outros países relativamente aos quais se seguiu o mesmo modelo de acordo, era essencialmente assegurar a reciprocidade desta liberdade. Concretamente, no que respeitava aos investimentos diretos provenientes da União Europeia.

O artigo 34.° do acordo com a Tunísia, constante do Capítulo I, com a epígrafe «Pagamentos correntes e circulação de capitais», do respetivo Título IV, intitulado «Pagamentos, capitais, concorrência e outras disposições em matéria económica», dispõe:

 

«1. No que respeita às transações da balança de capitais, [a União] e a Tunísia assegurarão, a partir da entrada em vigor do presente acordo, a livre circulação de capitais respeitante aos investimentos diretos na Tunísia, efetuados em sociedades constituídas de acordo com a legislação em vigor, bem como a liquidação ou o repatriamento de tais investimentos e de quaisquer lucros deles resultantes.

 

2. As partes consultar‑se‑ão a fim de facilitar a circulação de capitais entre [a União] e a Tunísia e de a liberalizarem integralmente quando estiverem reunidas as condições necessárias.»

 

            O artigo transcrito não se limitou, realce-se, a referir aos investimentos diretos na Tunísia, assegurando relativamente a eles a livre circulação. Veio consagrar ainda, expressamente, que «a Comunidade e a Tunísia assegurarão…a liquidação ou o repatriamento de tais investimentos [diretos] e de quaisquer lucros deles resultantes».

           

            O artigo 31.° do acordo CE‑Líbano, constante do Capítulo 1, com a epígrafe «Pagamentos correntes e circulação de capitais», do respetivo Título IV, intitulado «Pagamentos, capitais, concorrência e outras disposições em matéria económica», dispõe:

 

«No âmbito do presente acordo e sob reserva do disposto nos artigos 33.° e 34.°, não serão impostas restrições à circulação de capitais entre [a União], por um lado, e o Líbano, por outro, nem efetuadas discriminações baseadas na nacionalidade ou no local de residência dos respetivos nacionais ou no local de investimento dos referidos capitais.»

 

Prevendo, por sua vez, o artigo 33.°, constante do mesmo Capítulo 1 desse acordo:

 

«1. Sob reserva de outras disposições do presente acordo e de outras obrigações internacionais da [União] e do Líbano, o disposto nos artigos 31.° e 32.° não prejudica a aplicação de qualquer restrição existente entre as partes à data de entrada em vigor do presente acordo, relativamente à circulação de capitais entre elas que envolva investimento direto, incluindo em bens imóveis, estabelecimento, prestação de serviços financeiros ou admissão de valores mobiliários aos mercados de capitais.

 

2. Contudo, a transferência para o estrangeiro de investimentos feitos no Líbano por residentes [na União] ou na [União] por residentes libaneses ou de lucros deles decorrentes não será afetada.»

 

Não obstante haver diferenças a nível da redação dos preceitos disciplinam os investimentos diretos e repatriamento dos lucros deles resultantes, a solução que propugnam é a mesma. Isto porque, apesar o artigo 31.° do Acordo CE‑Líbano assegurar a livre circulação de capitais «sob reserva [do artigo] 33.° […]», que dispõe, no seu n.° 1, que:

 «[o artigo] 31.° […] não prejudica a aplicação de qualquer restrição existente entre as partes à data de entrada em vigor do presente acordo, relativamente à circulação de capitais entre elas que envolva investimento direto, incluindo em bens imóveis, estabelecimento, prestação de serviços financeiros ou admissão de valores mobiliários aos mercados de capitais».

 

O n.° 2 do referido artigo acrescenta que:

 «[c]ontudo, a transferência para o estrangeiro de investimentos feitos no Líbano por residentes [na União] ou na [União] por residentes libaneses ou de lucros deles decorrentes não será afetada»[12].

 

            Ora, tendo em conta que a solução decorrente das disposições transcritas já decorria, em abstrato, da liberdade de circulação de capitais assegurada a Estados terceiros (sem prejuízo da aplicação de legislação enquadrável na cláusula de salvaguarda ou outras restrições aceites) tem de decorrer desta referência, partindo do pressuposto que os acordos por regra não são redundantes, a conclusão seguinte. Pelo menos no que se refere à circulação de capitais referentes a investimentos diretos envolvendo a Tunísia e o Líbano, as disposições suscetíveis de ser validadas pela cláusula de salvaguarda, isto é, as que estivessem em vigor em 31 de Dezembro de 1993, deixam de ser aplicadas. Resulta claro que uma das implicações que decorre quer do artigo 34.º n.º 1 do acordo com a Tunísia, que entrou em vigor no dia 1 de Março de 1998, quer do artigo 31.º do acordo com o Líbano, que entrou em vigor no dia 1 de abril de 2006, tem de ser esta, representando estes artigos sugestivas clarificações a esse respeito. Enquanto normas subsequentes às normas vigentes em 1993, que reveste natureza superior e que além disso assume natureza especial, sobrepõe-se necessariamente a elas, pelo que afastam uma eventual cláusula de salvaguarda que pudesse impedir a aplicação plena da liberdade de circulação de capitais relativos a investimentos diretos na Tunísia e Líbano.

O Advogado-Geral afirmou a este respeito que «[d]e facto, o artigo 64.° TFUE permite, mas não impõe, a aplicação entre Estados‑Membros e países terceiros de restrições aos movimentos de capitais em vigor em 31 de dezembro de 1993. Por conseguinte, nada impede que os Estados‑Membros renunciem a tais restrições unilateralmente ou … no âmbito de um acordo internacional, na totalidade (como no Acordo CE‑Tunísia) ou parcialmente (como no acordo CE‑Líbano)»[13].

            Aliás, outra não podia ser a consequência, sob pena de os acordos com a Tunísia e o Líbano verem totalmente frustrados os objetivos que claramente pretendem atingir no que concerne à liberdade de circulação de capitais quando estejam em causa investimentos diretos. Convém não esquecer que uma das razões para a consagração da cláusula de salvaguarda contante do artigo 64.º do TFUE foi certamente a inexistência de reciprocidade por parte dos Estados terceiros no que concerne à liberdade de circulação de capitais. Ora, estando esta assegurada relativamente à Tunísia e Líbano, deixa de fazer sentido a aplicação da cláusula de salvaguarda nas relações com estes países. Esta interpretação é, além de tudo o mais, a única consentânea com a observância do princípio da boa fé[14], incontornável na interpretação dos tratados, e que certamente impede que uma das partes no acordo o ponha em causa ao manter uma disposição com ele incompatível.

            A solução veiculada pressupõe, no entanto, que o artigo 34.º, n.º 1 do acordo com Tunísia, e o artigo 31.º do acordo com o Líbano, depois de tida em atenção a sua natureza, contexto, clareza e precisão da redação de cada um deles possam ser aplicados diretamente sem necessidade da adoção de qualquer medida subsequente[15]. Considerados todos esses requisitos, com destaque para os objetivos e contexto em que os acordos foram celebrados, somos levados a concluir que o artigo em causa podem ser aplicados diretamente. Em sintonia, aliás, com o Advogado-Geral que afirmou expressamente: ─ «considero que os artigos 34.° do Acordo CE‑Tunísia e 31.° do Acordo CE‑Líbano têm um efeito direto que pode ser invocado pela A... .»[16].

            Relativamente à questão de saber se a criação de um regime de benefícios fiscais específicos para os dividendos provenientes de países africanos de língua oficial portuguesa e de Timor-Leste, nos termos do artigo 42.º EBF, implicaria a impossibilidade de invocar a cláusula de salvaguarda constante do artigo 64.º TFUE, consideramos que não. Criar uma exceção à regra, num enquadramento específico como é o das relações entre Portugal e esses países, não implica seguramente uma alteração da regra que permanece a mesma tal como consta do artigo 46 do CIRC. Só se este artigo passasse a assumir uma lógica distinta, instituindo procedimentos novos, rompendo com o direito anterior é que poderia ser concebível a impossibilidade de invocação da cláusula de salvaguarda[17], o que manifestamente não parece ser o caso. Em sintonia, aliás, com o Advogado-Geral que afirma que «[n]ão pode concluir‑se que, ao adotar esses regimes específicos, a República portuguesa decidiu abandonar a possibilidade de invocar a cláusula de salvaguarda prevista no artigo 64.° TFUE, cujo alcance pode ser limitado»[18].

           

            1.5. Implicações do artigo 89.º do acordo celebrado com a Tunísia e do artigo 85º do acordo celebrado com o Líbano (Carve-out clauses)

 

            Importa agora determinar se o artigo 89.º do acordo com a Tunísia e o artigo 85.º do acordo com o Líbano põe em causa o afastamento do regime discriminatório do artigo 46.º do CIRC, impedindo eventualmente que o artigo 34.º, n.º 1 do acordo com a Tunísia e o art. 31.º do acordo com o Líbano sejam interpretados no sentido que acabámos de lhes dar.    

              O artigo 89.° do acordo com a Tunísia, constante do Capítulo I do respetivo Título VIII, com a epígrafe «Disposições institucionais, gerais e finais», dispõe:

 

«Nenhuma disposição do presente acordo pode ter por efeito:

 

–  aumentar as vantagens concedidas por uma parte no domínio fiscal em qualquer acordo ou convénio internacional que vincula essa mesma parte,

 

– impedir a adoção ou a aplicação por uma parte de qualquer medida destinada a evitar a fraude ou a evasão fiscal,

 

– impedir o direito de uma parte de aplicar as disposições relevantes da sua legislação fiscal aos contribuintes que não se encontram em situação idêntica no que respeita ao seu local de residência.»

           

O artigo 85.° do referido acordo com o Líbano, constante do Título VIII, com a epígrafe «Disposições institucionais, gerais e finais», dispõe:

 

«Quanto à fiscalidade direta, nada no presente acordo pode ter por efeito:

 

a) Aumentar as vantagens fiscais concedidas por uma das partes em qualquer acordo ou convénio internacional que a vincule;

 

b) Impedir a adoção ou a aplicação por uma parte de qualquer medida destinada a evitar a fraude ou a evasão fiscais;

 

c) Impedir qualquer das partes de aplicar as disposições pertinentes da sua legislação fiscal aos contribuintes que não se encontrem em situação idêntica, nomeadamente no que respeita ao seu local de residência.»

 

            Atendendo à identidade das duas disposições, faremos a análise dos seus efeitos de forma conjunta.

            O primeiro efeito que os artigos transcritos querem prevenir é tão-só que através do acordo se aumentem as vantagens fiscais concedidas por qualquer uma das partes (União Europeia, Estados-Membros, Tunísia e Líbano) no âmbito de qualquer acordo ou convénio que tenham celebrado. Isto é, o que se pretende é circunscrever as vantagens fiscais que decorram dos acordos com a Tunísia e o Líbano às relações entre as partes e não estendê-lo a outros Estados com quem tenham celebrado convénio ou acordos. Pretende-se, portanto, impedir que no plano fiscal e na decorrência de um tratado seja admitida a aplicação do princípio da nação mais favorecida[19]. Esse efeito não tem, por conseguinte, tanto em vista os convénios que vinculem as partes contratantes entre si, mas convénios com Estados terceiros, pelo que não se infere daí qualquer impedimento à não aplicação da eventual cláusula de salvaguarda às situações de investimento direto na Tunísia e no Líbano.

            Neste sentido pronunciou-se o Advogado-Geral ao dizer «a propósito do artigo 89.°, primeiro travessão, do Acordo CE‑Tunísia …considero, tal como a Comissão, que o objeto dessa disposição é evitar que uma norma prevista numa convenção preventiva da dupla tributação celebrada pela República portuguesa com outro Estado que não a República da Tunísia seja extensível a um residente tunisino cujo Estado de residência não seja parte nessa convenção. Ora, a A… não visa obter uma vantagem concedida por uma convenção em matéria de dupla tributação que a República portuguesa tenha celebrado com outro Estado que não a República da Tunísia. O mesmo se aplica ao artigo 85.°, alínea a), do Acordo CE‑Líbano»[20].

            O segundo efeito que pretende impedir que os acordos com a Tunísia e com o Líbano ponham em causa a aplicação de medidas que contrariem a fraude ou evasão fiscal, não é suscetível de quadrar com a situação de que tratamos, não tendo sido sequer levantada essa questão ou verificada a existência de indícios de qualquer situação de evasão ou fraude.

Mesmo que uma eventual situação desse tipo se verificasse, os artigos em análise jamais teriam como efeito impedir que fossem tomadas medidas de reação, transcendo o sentido último e enquadramento de cada um deles qualquer entendimento com esse conteúdo. Também o Advogado-Geral, confirmou este entendimento ao dizer que: «Os artigos 89.°, segundo travessão, do Acordo CE‑Tunísia e 85.°, alínea b), do Acordo CE‑Líbano permitem às partes nesses acordos adotar ou aplicar qualquer medida destinada a evitar a fraude ou a evasão fiscal. Contudo, como não existe nenhuma alegação de fraude ou de evasão fiscal no presente processo, as referidas disposições não se aplicam»[21].

            O terceiro efeito, finalmente, também não levanta qualquer obstáculo à leitura preconizada a propósito dos efeitos do artigo 34.º, n.º 1 do acordo com a Tunísia e do artigo 31.º do acordo com Líbano. Pois, apesar de se permitir que as partes possam distinguir os contribuintes em função da condição de residente, essa distinção não pode jamais ser arbitrária ou redundar num tratamento discriminatório de situações comparáveis em termos objetivos, sob pena de, à revelia do espírito dos próprios acordos, fazer letra morta dos referidos artigos 34.º, n.º 1 e 31.º. Para não falar da violação flagrante do próprio direito da União Europeia que proíbe tanto a discriminação direta como a indireta. A primeira é feita com base na nacionalidade e a segunda assenta normalmente num critério que leva ao mesmo resultado. Curiosamente o TJ sustentou a este propósito que quando distinções com base na residência privem os não residentes de certos benefícios que são garantidos aos residentes podem constituir uma discriminação indireta com base na nacionalidade[22], o que é especialmente relevante para o caso que se julga, na medida em que um tratamento distinto das sociedades tunisinas teria precisamente esses efeitos.

            O mesmo tipo de argumentação pode ser aplicado relativamente à A…, tal como o fez o Advogado-Geral.

            «[A] A… é uma sociedade residente em Portugal e as disposições em causa não permitem que, nessa qualidade, seja vítima de discriminação com base no local da residência das suas afiliadas. A este respeito, recordo a jurisprudência assente do Tribunal de Justiça de acordo com a qual ‘a situação de uma sociedade acionista que recebe dividendos de origem estrangeira é comparável à de uma sociedade acionista que recebe dividendos de origem nacional, na medida em que, em ambos os casos, os lucros realizados podem, em princípio, ser objeto de uma tributação em cadeia’[23] (44). Além disso, não há qualquer dúvida de que a A… se encontra numa situação objetivamente comparável à de um contribuinte português que receba dividendos de origem portuguesa ou de um Estado‑Membro da União ou do EEE. Consequentemente, uma diferença de tratamento como a que resulta da legislação portuguesa em questão no processo principal constitui uma restrição proibida pelos artigos 34.° do Acordo CE‑Tunísia e 31.° do Acordo CE‑Líbano»[24].

            O artigo 89.º do acordo com a Tunísia e o artigo 85.º do acordo com o Líbano não põem, portanto, em causa a liberdade de circulação de capital quando estejam em causa investimentos diretos, assegurando antes reciprocidade na proteção desta liberdade, em concordância com o espírito dos próprios acordos.

            Em concordância com este entendimento o Advogado-Geral expressou a seguinte opinião: «Consequentemente, proponho que o Tribunal de Justiça responda … que uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal, que não permite a dedução integral ou parcial, conforme o caso, de dividendos recebidos de sociedades cuja sede ou direção efetiva se situe fora da União ou do EEE, não pode basear‑se nem no artigo 89.° do Acordo CE‑Tunísia nem no artigo 85.° do Acordo CE‑Líbano»[25].

 

            1.6. Outras Justificações

 

Constatado que nem a cláusula de reserva constante do artigo 64.º do TFUE nem os artigos 89.º do acordo com a Tunísia e o 85.º do acordo com o Líbano têm como efeito pôr em causa a liberdade de circulação de capitais relativa a investimentos diretos feitos na Tunísia e Líbano, resta determinar se a razão invocada pela Autoridade Tributária para justificar a restrição à liberdade de circulação de capitais ao abrigo de razões de interesse geral (artigo 65.º do TFUE) – concretamente, facilitar os controlos fiscais – pode ou não ser aceite. Esta justificação já foi aceite nas relações entre Estados-Membros no célebre caso Futura participations[26]. Contudo, sempre que o argumento dos controlos fiscais tem em vista essencialmente a dificuldade em obter informações e estão em causa Estados-Membros, essa justificação não tem sucesso, pois a Diretiva sobre a troca de informações 2011/16/UE[27] obriga esses Estados a cooperar uns com os outros.

Quando estão em causa Estados terceiros a situação tem uma natureza distinta, desde logo porque estes não estão vinculados por essa diretiva, pelo que, tal como já aconteceu num caso com muitas afinidades com o que se decide, a justificação foi aceite. No acórdão Skatteverket v A o TJ decidiu «que, quando a legislação de um Estado-Membro faz depender uma vantagem fiscal [isenção do imposto sobre o rendimento de dividendos distribuídos sob a forma de ações de um filial] de requisitos cuja observância só pode ser verificada mediante a obtenção de informações junto das autoridades competentes de um país terceiro, esse Estado-Membro pode, em princípio, recusar-se a conceder essa vantagem se for impossível obter essas informações junto desse país terceiro, designadamente por não existir para esse país a obrigação convencional de fornecer informações»[28].

A este propósito o Advogado-Geral salienta que «[t]endo em conta que me parece altamente improvável que os redatores dos Acordos CE‑Tunísia e CE‑Líbano tenham pretendido conceder liberdade total aos movimentos de capitais entre a União e esses dois países, enquanto podiam ser impostas determinadas restrições aos movimentos de capitais entre os Estados‑Membros ou entre os Estados‑Membros e os países terceiros, considero que uma restrição à livre circulação de capitais não violaria os Acordos CE‑Tunísia e CE‑Líbano se fosse justificada por uma das razões imperiosas de interesse geral (54), mais precisamente aquelas a que o órgão jurisdicional de reenvio se refere [eficácia dos controlos fiscais e a luta contra a fraude e a evasão fiscais]»[29]

Relativamente pelo menos à Tunísia, não se levantaria, porém, o problema da obtenção dessas informações, dado que Portugal celebrou com ela uma convenção que prevê a troca de informações[30].

Relativamente ao Líbano, de facto, não seria possível obter essa informação diretamente junto das suas autoridades fiscais. Acontece, porém, que o artigo 46.º do CIRC não faz depender o benefício de isenção da tributação dos dividendos fiscal da satisfação de condições cuja observância só possa ser verificada mediante a obtenção de informações junto das autoridades competentes de um Estado terceiro[31]. Não podendo, por conseguinte, a concessão desse benefício ser recusada sem que seja dada ao contribuinte a oportunidade de fornecer as informações necessárias[32].

No caso concreto, todavia, este problema não se coloca, pois a Autoridade tributária não alega que a concessão do benefício em causa depende «da satisfação de condições cuja observância só pode ser verificada mediante a obtenção de informações junto das autoridades competentes de um Estado terceiro»[33]

Na situação concreta, pelas razões expostas, a justificação apresentada relativa à facilitação dos controlos fiscais não procederia, portanto, o que está em plena sintonia com a posição do Advogado-Geral que escreveu: «Em conclusão, a recusa da eliminação ou da mitigação da dupla tributação económica por uma legislação como a que está em causa no processo principal não pode ser justificada por uma razão imperiosa de interesse geral»[34].

 

***

           

Deste modo, atento o que ficou exposto, procede o vício de violação de lei alegado pela Requerente, por incompatibilidade do n.º 1 do artigo 46.º do CIRC com o artigo 63.º do TFUE, na parte em que restringe a eliminação da dupla tributação económica através da isenção dos dividendos aos sujeitos passivos residentes em Portugal, Estados-Membros da União Europeia ou Estados do EEE, com a consequente anulação dos atos tributários objeto de pronúncia arbitral.

            O artigo 63.º do TFUE impõe, portanto, a um Estado-Membro que aplique um sistema de eliminação da dupla tributação económica aos dividendos pagos a residentes por sociedade residentes que garanta tratamento equivalente aos dividendos pagos a residentes por sociedades residentes na Tunísia e Líbano[35]. A proibição enunciada por esse artigo é clara e incondicional, não necessita de nenhuma medida de execução e confere aos particulares direitos que estes podem invocar em juízo[36].

            Consequentemente a Autoridade Tributária tem de reembolsar os impostos cobrados em violação do direito da União Europeia[37].

            A este propósito o Advogado-Geral reafirmou a regras decorrentes da jurisprudência do Tribunal de Justiça[38] dizendo: «Há que recordar, desde logo, que «[r]esulta de jurisprudência assente do Tribunal de Justiça que o direito de obter o reembolso dos impostos cobrados num Estado‑Membro em violação das regras de direito da União é a consequência e o complemento dos direitos conferidos aos sujeitos passivos pelas disposições do direito da União que proíbem esses impostos, nos termos em que foram interpretadas pelo Tribunal de Justiça. Os Estados‑Membros são assim, em princípio, obrigados a restituir os impostos cobrados em violação do direito da União»[39].

 

V. Termos em que se decide:

 

 1.Quanto ao pedido principal:

 

Face ao exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral, na procedência da impugnação deduzida pela Requerente, com a consequente anulação da autoliquidação relativa ao exercício de 2008, e com a consequente devolução dos impostos pagos pela Requerente.

 

2. Quanto ao pedido de juros indemnizatórios:

 

A Requerente pede juros indemnizatórios, como consequência da anulação da liquidação impugnada.

Resulta do disposto na alínea b) do artigo 24.º RJAT que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado.

Decorre, ainda, do disposto no artigo 43.º, n.º 1, da LGT, que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”. Acrescenta ainda o artigo 61.º, n.º 4, do CPPT que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea”.

E, segundo a jurisprudência superior, nem parece depender de alegação de factos que demonstrem a verificação do prejuízo, já que se trata de facto por si mesmo notório, evidente e que resulta da mera privação da quantia paga indevidamente. – Neste sentido vd.: Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, «Lei Geral Tributária anotada e comentada», 4ª ed., in anotação ao artigo 43º, pág. 342 e ss.; Jorge Lopes de Sousa, «Código de Procedimento e Processo Tributário anotado e comentado», Vol. I, in anotação ao artigo 61º, pág. 470 e ss.; e, ainda do mesmo Autor, «Sobre a Responsabilidade Civil da Administração Tributária por actos ilegais – notas práticas», áreas editora, 2010, pág. 35 e ss.

 

Assim, o artigo 43.º da LGT “não faz senão estabelecer um meio expedito e, por assim dizer, automático, de indemnizar o lesado. Independentemente de qualquer alegação e prova dos danos sofridos, ele tem direito à indemnização ali estabelecida, traduzida em juros indemnizatórios nos casos incluídos na previsão (…)” – Cfr. Ac. STA de 2-11-2006, in proc. n.º 604/06, disponível in www.dgsi.pt; vd. ainda, Jorge Lopes de Sousa «Sobre a Responsabilidade Civil da Administração Tributária por actos ilegais – notas práticas», áreas editora, 2010, pág. 39 e ss.

 

No caso dos autos, a Requerente pagou os montantes fixados em sede de IRC e de derrama, na liquidação impugnada e agora anulada pela presente decisão arbitral. Afigura-se verificada a previsão do n.º 1 do artigo 43.º da LGT.

 

Isto posto, considerando os fundamentos supra expostos que servem de sustentação à decisão proferida sobre o mérito da questão, resulta inequívoco que a tributação que resultou a cargo da Requerente se deveu a erro sobre os pressupostos de direito, imputável aos serviços da AT, que conduziu a uma incorreta aplicação da lei, nacional e comunitária, aplicável ao caso concreto.

 

Consequentemente, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, nos termos do art. 43.º, n.º 1, e 100.º da LGT e 61.º do CPPT, contados desde a data do pagamento das liquidações de imposto anuladas, até à data da emissão da respetiva nota de crédito, contando-se o prazo para esse pagamento do início do prazo para a execução espontânea da presente decisão (artigo 61.º, n.ºs 2 a 5, do CPPT), à taxa apurada de harmonia com o disposto no n.º 4 do artigo 43.º da LGT.

Neste sentido pronunciou-se igualmente o Advogado-Geral: «… o Tribunal de Justiça já decidiu que, «quando um Estado‑Membro tenha cobrado impostos em violação das regras do direito da União, os sujeitos passivos têm direito ao reembolso não apenas do imposto indevidamente cobrado mas igualmente das quantias pagas a esse Estado ou por este retidas em relação direta com esse imposto. Assim sendo, as autoridades fiscais portuguesas devem restituir, com juros, à A… os montantes recebidos em violação dos artigos 34.° do Acordo CE‑Tunísia e 31.° do Acordo CE‑Líbano. Esses montantes correspondem à diferença entre o montante pago pela A… e o que esta teria pago se os dividendos recebidos da B… e da C… tivessem sido considerados pagos por sociedades com sede ou direção efetiva no território da União ou do EEE»[40].

 

3. Quanto ao pedido de reembolso de custos com a pagamento dos custos suportados e a suportar pela Requerente com os honorários e despesas dos seus advogados, bem como outras despesas suportadas com a presente arbitragem, tudo em montante a liquidar futuramente.

 

Atento o disposto no art. 2.º do RJAT, o qual estabelece a competência dos tribunais arbitrais em matéria tributária, este tribunal arbitral não tem competência para decidir tal pedido.

 

VI – DECISÃO

 

Pelos fundamentos, de facto e de direito, supra expostos, decide-se:

a) Julgar improcedentes as exceções dilatórias da incompetência material deste Tribunal e da impropriedade do meio processual;

b) Julgar procedente o pedido principal da Requerente, declarando a ilegalidade do acto de autoliquidação de IRC - € 1.183.128,31 - e derrama - € 70.987,70 - o que perfaz um valor total de tributação de €1.254.116.01.

c) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira na restituição dos impostos pagos por força da aludida liquidação;

d) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal supletiva, desde a arrecadação da receita até à sua devolução;

e) Não apreciar o pedido de reembolso de despesas suportadas com a presente arbitragem honorários e despesas dos advogados, por tal não caber na competência deste Tribunal, absolvendo-se, consequentemente, a Autoridade Tributária e Aduaneira deste pedido.

f) Considerar prejudicado o conhecimento de todos os pedidos subsidiários formulados pela Requerente.

 

VII. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo, nos termos do disposto no art. 97.º-A do CPPT (aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT) e no art. 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT), em € 1.254.116,01.

 

VIII. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do R.J.A.T., fixa-se o montante das custas em €  17.136,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, ficando 90% a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira, e 10% a cargo da Requerente, face ao seu parcial decaimento.

 

 

Lisboa, 15 de julho de 2016.

 

Os Árbitros

 

José Baeta de Queiroz

(Presidente)

 

 

João Sérgio Ribeiro

 

Luísa Anacoreta

 

Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 138.º n.º 5 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º n.º 1 do RJAT.



[1] Cfr. Test Claimants in Class IV of The ACT Group Litigation, C-374/04, de 12 de dezembro de 2006; Amurta, C-379/05, de 8 de novembro de 2007; Aberdeen Property Fininvest Alpha, C-303/07, de 18 de junho de 2009.

[2] Cfr. Skatteverket v A, C-101/05, de 18 de dezembro de 2007, n.º 31.

[3] Cfr. Centro Equestre da Lezíria Grande, C-345/04, de 15 de fevereiro de 2007; Hollman, C-443/06, de 11de outubro de 2007; Haribo, processos apensos C-436/08 e C437/08 de 10 de fevereiro de 2011, Arens-Sikken, C-43/07, de 11 de setembro de 2008; X e O, processos apensos, C-155/08 e C-157/08, de 1 de junho de 2009; Gaz de France, C-247/08, de 1 de outubro de 2009; Comissão Europeia v República Portuguesa, C-267/09, de 5 de maio de 2011.

[4] Cfr. Comissão Europeia v República Portuguesa, C‑171/08, de 8 de julho de 2010, n.º 49; Manfred Trummer and Peter Mayer, C-222/97, de 16 de março de 1999; Commission v. France, C-483/99, de 4 de junho de 2002; Commission v. United Kingdom, C-98/01, de 13 de maio de 2003; Commission v. Netherlands, casos apensos C-282/04 e C-283/04, de 28 de setembro de 2006.

[5] In Test Claimants in the FII Group Litigation, C-35/11, de 13 de novembro de 2012, n.º 103; Haribo, processo apensos C-436/08 e C-437/08, de 10 de fevereiro de 2011, n.º 33; Accor, C-310/09, de 15 de setembro de 2011, n.º 30.

[6] In Test Claimants in the FII Group Litigation, C-35/11 de 13 de novembro de 2012, n.º 104.

[7] Ver Sanz de Lera, C-163/94, de 14 de dezembro de 1995.

[8] In Secil, C-446/14, opinião do Advogado-Geral  Melchior Wathelet, de 27 de janeiro de 2016, n.º 63 .

[9] In Secil, C-446/14, opinião do Advogado-Geral, n.º 65.

[10]  In Skatteverket v A, C-101/05, de 18 de dezembro de 2007, n.º 32.

[11] Haegeman v Belgium, C-181/73, de 30 de abril de 1974.

[12] Cfr. Caso Secil, C-446/14, opinião do Advogado-Geral, n.ºs 112 e 113.

[13] In Secil, C-446/14, opinião do Advogado-Geral, n.ºs 151.

[14] Artigo 31.º, n. º 1 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados.

[15] Cfr. Simutenkov, C-265/03, de 12 de abril de 2005, n.º 21.

[16] In Secil, C-446/14, opinião do Advogado-Geral, n.º 83.

[17] Cfr. Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C‑190/12, n.° 48; ver, igualmente, neste sentido, Test Claimants in the FII Group Litigation, C‑446/04, n.° 192, Holböck, C‑157/05, n.° 41 e A, C‑101/05, n.° 49.

[18] In Secil, C-446/14, opinião do Advogado-Geral, n.º 163.

[19] Em sintonia, aliás com que se tem no domínio da União Europeia. Ver D, C-376/03, de 5 de Julho de 2005.

[20] In Secil, C-446/14, opinião do Advogado-Geral, n.ºs 86, 87 e 88.

[21] In Secil, C-446/14, opinião do Advogado-Geral, n.ºs 89 e 90.

[22] Cfr. Schumacker, C-279/93, de 14 de Fevereiro de 1995.

[23] Cfr. Test Claimants in the FII Group Litigation, C‑35/11, n.° 37. Ver, igualmente, neste sentido, Test Claimants in the FII Group Litigation, C‑446/04, n.° 62 e Haribo Lakritzen Hans Riegel e Österreichische Salinen (C‑436/08 e C‑437/08, EU:C:2011:61, n.° 59.

[24] In Secil, C-446/14, opinião do Advogado-Geral, n.ºs 94, 95, 109 e 110.

[25] In Secil, C-446/14, opinião do Advogado-Geral, n.º 96.

[26] C-250/95, de 15 de Maio de 1997.

[27] Diretiva do Conselho de 15 de Fevereiro de 2011 que veio substituir a Diretiva 77/99/CEE do Conselho, de 19 de Dezembro de 1977.

[28] In Skatteverket v A, C-101/05, de 18 de Dezembro de 2007, n.º 63.

[29] In Skatteverket v A, C-101/05, de 18 de Dezembro de 2007, n.º 125.

[30] Ver artigo 25.º da convenção para eliminar a tributação celebrada entre Portugal e a Tunísia. Cfr. Skatteverket v A, C-101/05, de 18 de Dezembro de 2007, n.º 67.

[31] Cfr. Secil, C-446/14, opinião do Advogado-Geral, n.º 130.

[32] Cfr. Secil, C-446/14, opinião do Advogado-Geral, n.º 135.

[33] In Secil, C-446/14, opinião do Advogado-Geral, n.º 132.

[34] In Secil, C-446/14, opinião do Advogado-Geral, n.º 136.

[35] Cfr. Test Claimants in the FII Group Litigation, C-35/11, de 13 de novembro de 2012, n.º 38.

[36] Cfr. Sanz de Lera, C-163/94, de 14 de dezembro de 1995, n.ºs 41 e 47.

[37] Cfr. Test Claimants in the FII Group Litigation, C-35/11, de 13 de novembro de 2012, n.º 84.

[38] Nicula, C‑331/13, n.° 27, Ver, igualmente, neste sentido, San Giorgio, C-199/82, n.° 12, Metallgesellschaft e o., C‑397/98 e C‑410/98, n.° 84, Test Claimants in the FII Group Litigation, C‑446/04, n.° 202, Littlewoods Retail e o.,  C‑591/10, n.° 24, bem como Test Claimants in the Franked Investment Income Group Litigation (C‑362/12, n.° 30.

[39] In Secil, C-446/14, opinião do Advogado-Geral, n.º 138.

[40] In Secil, C-446/14, opinião do Advogado-Geral, n.º 139, 142 e 143.