Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 159/2016-T
Data da decisão: 2016-07-22  IUC  
Valor do pedido: € 6.498,81
Tema: IUC - Incidência Subjetiva; presunções legais
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Decisão Arbitral

 

 

Requerente – A…, S.A., NIPC: …

Requerida - Autoridade Tributária e Aduaneira (AT)

 

O Árbitro designado - Maria de Fátima Alves

 

1           RELATÓRIO

 

1.1     – A…, S.A, com o NIPC: … (devidamente identificada nos respetivos autos), Reclamante no procedimento tributário, acima e à margem referenciado, doravante, denominada “Requerente”, veio, invocando o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e artigo n.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante RJAT) e, do n.º 1 do artigo 102.º e  da alínea a) do artigo  99.º, ambos, do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT) e nos números 1 e 2 alínea d) do artigo 95.º da Lei Geral Tributária(LGT), requerer a constituição do Tribunal Arbitral Singular, com vista a:

 

-   A anulação dos atos de liquidação relativos ao Imposto Único de Circulação (doravante designado por IUC), referente aos anos de 2011 e 2012, respeitante a 49 veículos constantes do processo de Reclamação Graciosa, anexa ao Pedido de Pronúncia Arbitral, cfr., cópias dos documentos que se encontram anexadas aos autos com a denominação de doc. n.º 1 e doc. 2, cujo teor se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;

-   O reembolso do valor total de € 6.498,81, acrescidos dos respetivos juros indemnizatórios previstos no n.º 1 do artigo 43.º da LGT e no artigo 61.º do CPPT.

 

1.2     Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou, como árbitro singular, Maria de Fátima Alves, que comunicou a aceitação do encargo, no prazo aplicável:

 

-   Em 10-05-2016 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico,

-   Pelo que, o tribunal arbitral foi constituído em 25-05-2016, conforme o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro;

-   Verificando-se a Resposta da Requerida (AT), em 27-06-2016, ao abrigo do artigo 17.º do RJAT;

-   Consequentemente foi dispensada a reunião de partes, ao abrigo do artigo 18º do RJAT, em 08-07-2016 e, determinado a prolação da Decisão Arbitral para o dia 22-07-2016.

 

1.3     A Requerente tem como objeto social a importação, em exclusivo, de todos os veículos automóveis da marca B para o mercado nacional, pelo que, na fundamentação do seu pedido de pronúncia arbitral, afirma, em resumo, o seguinte:

-A Requerente, no âmbito da sua atividade, só importa os veículos, mediante as encomendas efetuadas diretamente pelos concessionários à Requerente;

-A requerente “tem como objeto social o comércio de automóveis, respetivas peças e acessórios (doc. 6)”;

-Que uma vez importados “todos os veículos são imediatamente vendidos aos concessionários da marca”

-Sendo os concessionários que os vendem ao consumidor final;

-Verificando-se, assim, que as viaturas não entraram no circuito rodoviário no interesse, por conta ou, por virtude da detenção, posse ou propriedade da Requerente;

-Porque, quando a Requerente importa os veículos, estes são de imediato faturados pela Requerente, aos respetivos concessionários e entregues, de seguida, nas instalações dos respetivos concessionários, para entrega imediata aos consumidores finais;

-Pelo que, a propriedade dos veículos é sempre do concessionário;

-Verificando-se, no entanto, que nas respetivas faturas de venda, só estão mencionados os números dos respetivos chassis, uma vez que as matrículas, são pedidas pelos concessionários da respetiva marca, após a venda, pela Requerente e, os concessionários da marca, por sua vez vendem os veículos automóveis, aos clientes finais, passando, estes, a serem os efetivos utilizadores dos correspondentes veículos;

-É de acrescer que, só formalmente, a matrícula e o registo são feitos em nome do Importador, mas é o concessionário da marca que, efetivamente, solicita as matrículas, visto já ser ele o proprietário dos veículos;

-À Requerente, na qualidade de importador nacional da marca, responsável pela introdução das viaturas no consumo, é-lhe imputável (cfr., art. 5.º do CISV) o imposto sobre veículos, imposto distinto do IUC, em regras de incidência autónoma;

-Sendo que, as viaturas, in casu, para efeitos de IUC, foram vendidas pela Requerente, antes da data da respetiva matrícula, não estando, por isso, sujeita a IUC, até porque, a compra de um veículo novo, pressupõe, sempre, a faturação efetuada por um concessionário e não por um Importador nacional da marca, no caso subjudice, a Requerente;

 

-   Atentos os factos apresentados, não pode ser imputado à Requerente a propriedade dos referidos veículos, não podendo ser sujeito passivo do imposto, face à letra e espírito do artigo 3.º do Código do Imposto Único de Circulação (doravante designado por CIUC);

-   É um facto que o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, considera a propriedade do veículo automóvel, a pessoa em nome do qual o mesmo se encontre registado, no entanto, no caso” subjudice”, o preenchimento e transmissão da Declaração Aduaneira de Veículo (DAV), por parte da Requerente, na qualidade de Operador Registado e a apresentação do pedido do certificado de matrícula não procede nem se confunde com o facto gerador do Imposto Único de Circulação (IUC);

-   Sendo que, os registos dos veículos na competente Conservatória do Registo Automóvel, não é condição de transmissão de propriedade, uma vez que tal registo visa, somente, dar publicidade à situação jurídica dos bens, conforme resulta, designadamente, do preceituado no artigo n.º 1 do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de fevereiro;

-   Pelo que a tributação tributária relativa ao CIUC não pode apenas incidir sobre quem conste no registo como proprietário dos veículos, há que considerar os seus efetivos proprietários.

 

1.4     A Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por AT), procedeu à junção do Processo Administrativo Tributário e apresentou Resposta, da qual se retira que os atos tributários, em crise, não enfermam de qualquer vício de violação de Lei, pronunciando-se pela improcedência da requerida e pela manutenção dos atos de liquidação controvertidos, defendendo, sumariamente o seguinte:

 

-   Os sujeitos passivos do imposto único de circulação são as pessoas que figuram no registo como proprietários dos veículos, conforme o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, o que no caso subjudice, se verifica quanto à Requerente;

-   Verificando-se, para tal, que o registo dos veículos esteja em nome de uma determinada pessoa para que a mesma corporize a posição de sujeito passivo da obrigação fiscal de IUC;

-   Que, notoriamente, é errada a interpretação que a Requerente faz do preceituado no artigo 3.º do CIUC, na medida em que incorre numa “interpretação enviesada da letra lei” e na “adoção “de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal”, seguindo, ainda, a Requerente, uma “interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo, em apreço e, bem assim em todo o CIUC”.

 

 

2           QUESTÕES DECIDENDAS

 

2.1     Face ao exposto nos números anteriores, relativamente à exposição escrita, das partes e, aos argumentos apresentados, as principais questões a decidir são as seguintes:

 

-   A impugnação feita pela Requerente relativa à liquidação material dos atos de liquidação, relativamente aos anos de 2011 e 2012, referente ao IUC sobre os veículos supra referenciados na PI;

-   A errada interpretação e aplicação das normas de incidência subjetiva do imposto único de circulação liquidado e cobrado, o que constitui, a questão central a decidir no presente processo;

-   O valor jurídico do registo dos veículos automóveis.

 

 

3           FUNDAMENTOS DE FACTO

 

3.1     Em matéria de facto, relevante para a decisão a proferir, dá o presente Tribunal por assente, face aos elementos existentes nos autos, os seguintes factos:

 

-   A Requerente apresentou elementos probatórios dos veículos automóveis em questão,  correspondente ao  momento anterior ao período de tributação – cfr. cópias de faturas de venda dos veículos aos respetivos concessionários da marca B, que demonstram que a respetiva venda aos concessionários foram efetuadas, em momento anterior ao da matricula das mesmas, demonstrando, também, exemplos descritos nos documentos n.ºs 8 e 9, sendo que todos os documentos estão junto aos autos, que se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais.

 

FUNDAMENTAÇÃO DOS ATOS PROVADOS

 

3.1.1        Os factos dados como provados estão baseados nas faturas de venda aos concessionários, junto aos autos (constantes no PA, e anexas à PI, Dc.s n.º 1), que se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais.

 

3.1.2        FACTOS NÃO PROVADOS

                           -Não existem factos dados como não provados, dado que todos os factos tidos como relevantes para a apreciação do pedido foram provados.

 

 

4-FUNDAMENTOS DE DIREITO

 

3.2     O Tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º n.º 1, alínea a), 5.º n.º 2, alínea a), 6.º n.º 1, 10.º n.º 1, alínea a) e n.º 2 do RJAT:

 

-   As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas, ex vi, artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo n.º 1 da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março;

-   O processo não enferma de nulidades;

-   Não existindo questão prévia sobre a qual o Tribunal se deva pronunciar.

 

                         - O pedido, objecto do presente processo é a declaração de anulação dos atos de liquidação de IUC relativo aos veículos automóveis melhor identificados nos autos.

 

3.2.1        Condenação da AT ao reembolso do montante do imposto relativo a tais liquidações no valor de € 6 498,81;

3.2.2        Condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios sobre o mesmo montante.

 

3.3     Segundo o entendimento da AT, basta que no registo, o veículo conste como propriedade de uma determinada pessoa, para que essa pessoa seja o sujeito passivo da obrigação tributária.

 

3.4     A matéria de facto está fixada, tal como consta do n.º 3.1 supra, importando, agora, determinar o Direito aplicável aos factos subjacentes, de acordo com as questões decidendas, identificadas no n.º 2.1 supra, sendo certo que a questão central, em causa, nos presentes autos, relativamente à qual existem entendimentos absolutamente opostos entre a Requerente e a AT, consiste em saber se o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC relativo à incidência subjetiva do imposto único de circulação consagra ou não uma presunção ilidível.

 

3.5     Tudo analisado e, tendo em conta, por um lado, as posições das partes em confronto, mencionadas nos pontos 1.3 e 1.4 supra e, considerando, por outro lado, que a questão central a decidir é a de saber se o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC consagra ou não uma presunção legal de incidência tributária, cumpre, neste contexto, apreciar e proferir decisão.

 

 

4           QUESTÃO DA ERRADA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA NORMA DE INCIDÊNCIA SUBJETIVA DO IUC

 

4.1     Considerando ser pacífico o entendimento, na doutrina, de que na interpretação das leis fiscais valem plenamente os princípios gerais de interpretação, os quais serão, apenas e naturalmente, limitados pelas exceções e particularidades ditadas pela própria Lei, objeto de interpretação. Trata-se de um entendimento que tem vindo a merecer acolhimento nas Leis Gerais Tributárias de outros países e que veio também a ter assento no artigo 11.º da nossa Lei Geral Tributária, o que vem, aliás, sendo frequentemente sublinhado pela jurisprudência.

É consensualmente aceite que tendo em vista a apreensão do sentido da lei, a interpretação socorre-se, a priori, em reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei, o que significa, procurar o seu sentido literal, valorando-o e aferindo-o à luz de outros critérios, intervindo, os designados elementos de natureza lógica, racional ou teleológicos e de ordem sistemática:

 

-   A propósito da interpretação da lei fiscal, há a considerar a jurisprudência, nomeadamente, os Acórdãos do STA de 05-09-2012, processo nº 0314/12 e de 06-02-2013, processo 01000/12, disponíveis em www.dgsi.pt, a importância do disposto no artigo 9.º do Código Civil (CC), enquanto elemento fundamental da hermenêutica jurídica;

-   Dispõe o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC que “São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”;

-   A formulação usada no referido, artigo, socorre-se da expressão “considerando-se” o que suscita a questão de saber se, a tal expressão, pode ser atribuído um sentido presuntivo, equiparando-se à expressão “presumindo-se”, trata-se de expressões frequentemente utilizadas, com sentidos equivalentes;

-   Como ensina Jorge Lopes de Sousa, in Código do Procedimento e do Processo Tributário, Anotado e Comentado, volume I, 6ª Edição, Área Editora, SA, Lisboa 2011, p. 589, que em matéria de incidência tributária, as presunções podem ser reveladas pela expressão “presume-se” ou por expressão semelhante, aí se mencionando diversos exemplos  dessas presunções, referindo-se a constante no artigo 40.º, n.º 1 do CIRS, em que se usa a expressão “presume-se” e a constante no artigo 46.º n.º 2, do mesmo Código, em que se faz uso da expressão “considera-se”, enquanto expressão com um efeito semelhante àquela e consubstanciando, igualmente, uma presunção;

-   Na formulação legal exarada no nº 1 do artigo 3º do CIUC, em que se consagrou uma presunção, revelada pela expressão “considerando-se”, de significado semelhante e de valor equivalente à expressão “presumindo-se”, em uso desde a criação do imposto em questão;

-   O uso da expressão “considerando-se” mais não visou do que o estabelecimento de uma aproximação mais vincada e nítida entre o sujeito passivo do IUC e o efetivo proprietário do veículo, o que está em sintonia com o reforço conferido `a propriedade do veículo, que passou a constituir o facto gerador do imposto, nos termos do artigo 6º do CIUC;

-   A relevância e o interesse da presunção, em causa, que historicamente foi revelado por intermédio da expressão “presumindo-se” e que agora, se serve da expressão “considerando-se”, reside na verdade e na justiça que, por essa via, se confere às relações fiscais e, que corporizam valores fiscais fundamentais, permitindo tributar o real e efetivo proprietário e não aquele que, por circunstâncias de diversa natureza, não passa, por vezes, de um aparente e falso proprietário. Se o caso, assim não fosse considerado, não se admitindo e relevando a apresentação de elementos probatórios destinados à demonstração de que o efetivo proprietário é, afinal, pessoa diferente da que consta do registo e, que inicialmente, e em principio, se supunha ser o verdadeiro proprietário, aqueles valores seriam objetivamente postergados.

 

4.2     Há a considerar, também, o princípio da equivalência, inscrito no artigo 1.º do CIUC, que tem subjacente o princípio do poluidor-pagador e, concretiza a ideia nele inscrita de que, quem polui deve, por isso, pagar. O referido princípio tem assento constitucional, na medida em que representa um corolário do disposto na alínea h) do n.º 2 do artigo 66.º da constituição, tendo, também, assento no direito comunitário, seja ao nível do direito originário, artigo 130.º-R, do Tratado de Maastrich (Tratado da União Europeia, de 07-02-1992), onde o aludido princípio passou a constar como suporte da Política Comunitária, no domínio ambiental e que visa responsabilizar quem contribui com os prejuízos que advêm para a comunidade, decorrentes da utilização dos veículos automóveis, sejam assumidos pelos seus proprietários-utilizadores, como custos que só eles devem suportar.

 

4.3     Atentos os factos supra descritos, importa salientar que  os já referidos elementos de interpretação, sejam os relacionados com a interpretação literal, apoiada nas palavras legalmente utilizadas, sejam as respeitantes aos elementos lógicos de interpretação, de natureza histórica ou de ordem racional, apontam, todos eles, no sentido de que a expressão “considerando-se” tem um sentido equivalente à expressão “presumindo-se”, devendo, assim entender-se que o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC consagra uma presunção legal que, face ao artigo 73.º da LGT, onde se estabelece que “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”, será necessariamente ilidível, o que significa que os sujeitos passivos são, em princípio, as pessoas em nome de quem tais veículos estejam registados. Serão, pois, essas pessoas, identificadas nessas condições a quem a AT se deve, necessariamente, dirigir;

-   Mas será, em princípio, dado que no quadro de audição prévia, de carácter obrigatório, face ao disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 60.º da LGT, a relação tributária poderá ser reconfigurada, validando-se o sujeito passivo inicialmente identificado, ou redirecionando-se o procedimento no sentido daquele que for, afinal, o verdadeiro e efetivo, sujeito passivo do imposto em causa.

-   O contribuinte tem o direito de ser ouvido, mediante audição prévia (José Manuel Santos Botelho, Américo Pires Esteves e José Cândido de Pinho, in Código do Procedimento Administrativo, Anotado e Comentado, 4ª edição, Almedina, 2000, anotação 8 do artigo 100.º).

-   A audição prévia que, naturalmente, se há de concretizar em momento imediatamente anterior ao procedimento da liquidação, corresponde à sede e altura própria para, com certeza e segurança se identificar o sujeito passivo do IUC.

 

5           SOBRE O VALOR JURíDICO DO REGISTO

 

5.1     Relativamente ao valor jurídico do registo, importa notar o que estabelece o n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de fevereiro (diversas vezes alterado, sendo a última por via da Lei n.º 39/2008, de 11 de agosto), quando estatui que “o registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respetivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”:

-O artigo 7.º do Código do Registo Predial (CRP), aplicável, supletivamente, ao registo de automóveis, por força do artigo 29.º do CRA, dispõe que “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”;

                -O registo definitivo não constitui mais do que uma presunção ilidível, admitindo, por isso, contraprova, como decorre da lei e a jurisprudência vem assinalando, podendo ver-se, entre outros os Acórdãos do STJ n.º 03B4369 de 19-02-2004 e n.º 07B4528, de 29-01-2008, disponíveis em: www.dgsi.pt;

                 -Portanto, a função legalmente reservada ao registo é por um lado a de publicitar a situação jurídica dos bens, no caso em apreço, dos veículos e, por outro lado, permite-nos presumir que existe o direito sobre esses veículos e que o mesmo pertence ao titular, como tal inscrito no registo, não tem uma natureza constitutiva do direito de propriedade, mas apenas declarativa, daí que o registo não constitua condição de validade da transmissão do veículo do vendedor para o comprador;

                 -Os adquirentes dos veículos tornam-se proprietários desses mesmos veículos por via da celebração dos correspondentes contratos de compra e venda, com registo ou sem ele;

                 -Neste contexto cabe lembrar que, face ao disposto no n.º 1 do artigo 408.º do CC, a transferência de direitos reais sobre as coisas, no caso subjudice, veículos automóveis, é determinado por mero efeito do contrato, sendo que nos termos do disposto na alínea a) do artigo 879.º do CC, entre os efeitos essenciais do contrato de compra e venda, avulta a transmissão da coisa;

                  -Face ao exposto, torna-se claro que o pensamento legislativo aponta no sentido de que o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, consagra uma presunção “júris tantum, consequentemente ilidível, permitindo, assim, que a pessoa, que, no registo, está inscrita como proprietária do veículo, possa apresentar elementos de prova destinados a demonstrar que tal propriedade está inserida na esfera jurídica de outra pessoa, para quem a propriedade foi transferida.

 

6           A PRESUNÇÃO DO ARTIGO 3.º DO CIUC E A DATA EM QUE O IUC É EXIGÍVEL

 

6.1     A PRESUNÇÃO DO ARTIGO 3.º DO CIUC

 

-   A AT considera que a presunção que existe no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC é decorrente de uma interpretação contra legem, decorrente de uma leitura enviesada da letra da lei e, por isso, violadora da unidade do sistema jurídico, contudo, e salvo o respeito devido, o entendimento da jurisprudência vai no sentido de que se deve considerar a existência de uma presunção legalmente ilidível, pelo que consequentemente serve os valores e interesses questionados, quer ao nível da justiça fiscal material, quer ao nível das finalidades ambientais visadas pelo IUC;

-   No referente à unidade do sistema jurídico é de relevar tudo o que foi supracitado, nomeadamente, sobre o ratio do artigo 1.º do CIUC; sobre as normas e princípios da LGT; sobre as normas pertinentes e aplicáveis ao registo de veículos automóveis, sobre a interpretação que melhor serve e alcança a mencionada unidade e assegura a conexão dessas mesmas normas, considerando-se a presunção legal que se encontra preceituado no artigo 3.º do CIUC.

 

6.2     DATA EM QUE O IUC É EXIGÍVEL

 

-   O IUC é um imposto de tributação periódica, cuja periodicidade corresponde ao ano que se inicia no ato da matrícula ou em cada um dos seus aniversários, conforme o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 4.º do CIUC;

-   É exigível nos termos do n.º 3 do artigo 6.º do referido Código;

-   Sendo de referir que, quanto à liquidação do IUC tributado à Requerente sobre os veículos supra referenciados, nos anos de 2011 e 2012, não são de considerar, porque ao momento dos factos tributários as viaturas não lhe pertenciam, pois os referidos veículos quando são importados já são destinados a serem vendidos, de imediato, aos respetivos concessionários da marca B, e, são estes que pedem a respetiva matrícula que titulam os veículos, para poderem ser vendidos aos clientes finais.

 

6.2.1        Em relevância sobre o ónus da prova, estipula o artigo 342.º n.º 1 do CC “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”;

6.2.2        Também o artigo 346.º do CC (contraprova) determina, que “à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinados a torná-los duvidosos; se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova.” (Como afirma Anselmo de Castro, A., 1982, ED. Almedina Coimbra, “Direito Processual Civil Declaratório”, III, p. 163, “recaindo sobre uma das partes ónus probatório, à parte contrária basta opor contraprova, sendo esta uma prova destinada a tornar duvidosa os factos alegados pela primeira”.

Assim, no caso dos autos, o que a Requerente tem que provar, afim de ilidir a presunção que decorre quer do artigo 3.º do CIUC, quer do próprio Registo Automóvel, é que ela Requerente nunca poderia ser a proprietária dos veículos em causa, uma vez que a Requerente só se limita a importar os veículos da marca B, que depois vende, de imediato, aos respetivos concessionários, facto verificado no período a que dizem respeito as liquidações impugnadas. Propõe provar, segundo resulta dos autos, é que a propriedade dos veículos, não lhe pertenciam nos períodos a que as liquidações dizem respeito, até porque são os concessionários que pedem a respetiva matrícula, cfr., documentos anexos à Reclamação Graciosa, constantes do PA e junto aos autos, que se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais.

 

6.3     ILISÃO DA PRESUNÇÃO

 

-   A Requerente, como se refere em 3.1., relativamente aos factos provados, alegou, com o propósito de afastar a presunção, não ser proprietário dos veículos, aquando da ocorrência dos factos tributários, oferecendo para o efeito os seguintes documentos:

-   Cópias de faturas de venda aos correspondentes concessionários da marca B;

-   Desta forma, a propriedade dos referidos veículos, não lhe pertenciam, porque a Requerente é só o Importador de carros da marca B, para o território nacional e, que de imediato, os transfere para os respetivos concessionários da marca, cfr., faturas de venda, com a denominação dos chassis correspondentes, uma vez que o número das respetivas matrículas são pedidas pelos mesmos concessionários, que vão depois vendê-los aos clientes finais;

 

-    Decorre daqui, que à data em que o IUC era exigível quem detinha a propriedade dos veículos automóvel não poderia ser a Requerente!

 

7           OUTRAS QUESTÕES RELATIVAS À LEGALIDADE DOS ATOS DE LIQUIDAÇÃO

 

-   Relativamente à existência de outras questões atinentes à legalidade dos atos de liquidação, tendo em conta que está ínsito no estabelecimento de uma ordem de conhecimentos dos vícios, tal como o previsto no artigo 124.º do CPPT, que procedendo o pedido de pronúncia arbitral baseado em vícios que impedem a renovação das liquidações impugnadas, fica prejudicado, porque inútil, o conhecimento de outros vícios, não se afigura necessário conhecer das demais questões suscitadas.

 

8           REEMBOLSO DO MONTANTE TOTAL PAGO

 

-   Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT e, em conformidade com o aí estabelecido, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação, vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários ”Restabelecer a situação que existiria se o ato tributário, objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”

-   Trata-se de comandos legais que se encontram em total sintonia com o disposto no artigo 100.º da LGT, aplicável ao caso, ex vi, do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, no qual se estabelece que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, correspondendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei”.

-   O caso constante nos presentes autos, suscita a manifesta aplicação das mencionadas normas, posto que, na sequência da ilegalidade dos atos de liquidação, referenciados, neste processo, terá, por força dessas normas, de haver lugar ao reembolso dos montantes pagos, seja a título do imposto pago, seja dos correspondentes juros indemnizatórios, como forma de alcançar a reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade.

 

 

9           DO DIREITO A JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

10       -A declaração da ilegalidade e consequente anulação de um ato administrativo confere ao destinatário do ato o direito à reintegração da situação em que o mesmo se encontraria antes da execução do ato anulado.

-   No âmbito da liquidação do imposto, a sua anulação confere ao sujeito passivo o direito à restituição do imposto pago e, em regra, o direito a juros indemnizatórios, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT e artigo 61.º do CPPT.

 

-   Pelo que tem, a Requerente, direito a juros indemnizatórios sobre o montante de imposto pago, referente à liquidação anulada.

 

 

11       DECISÃO

 

Face ao exposto, este Tribunal Arbitral decide:

-   Julgar procedente o pedido de declaração da ilegalidade da liquidação do IUC, respeitante aos anos de 2011 e 2012, relativamente aos veículos automóveis identificados no presente processo, anulando-se, consequentemente, os correspondentes atos tributários;

-   Julgar procedente o pedido de condenação da Administração Tributária no reembolso da quantia indevidamente paga, no montante de 6.498,81 Euros, acrescidos dos respetivos juros indemnizatórios, legalmente devidos, condenando a Autoridade Tributária e Aduaneira a efetuar estes pagamentos.

 

VALOR DO PROCESSO:

 

- Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º n.º 2 do CPC e 97.º-A, n.º 1 do CPPT e no artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de €6.498,81 (seis mil, quatrocentos e noventa e oito euros e oitenta e um cêntimos).

 

CUSTAS:

 

-De harmonia com o n.º 4 do artigo 22.º do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 612,00, nos termos da Tabela I, anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária Aduaneira.

 

Notifique-se, as partes.

Lisboa, 22-07-2016

 

O Árbitro

 

Maria de Fátima Alves

 

(o texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código do Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1 alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), regendo-se a sua redação pela ortografia atual)