Decisão Arbitral
I – RELATÓRIO
1. A empresa A…, Sociedade Unipessoal, Lda. pessoa coletiva n.º …, com sede na Rua …, no lugar e freguesia de …, doravante Requerente, tendo procedido ao pagamento do Imposto Único de Circulação (IUC) de um veículo respeitante aos anos de 2011, 2012 e 2013, no valor total de € 3879,71 €, apresentou, em 15 de março de 2016, um pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante «RJAT», em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
Na referida pronúncia arbitral pede-se que seja declarada a ilegalidade e correspondente anulação das liquidações de IUC respeitantes ao referido veículo, condenando-se a Requerida a anular todas as liquidações e consequentes condenações em processo de contraordenação, bem como a pagar as custas do processo arbitral.
2. Nos termos do disposto nos artigos 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou o signatário como árbitro singular em 10 de maio de 2016, tendo o mesmo comunicado a aceitação dessa incumbência. Neste sentido, nesta mesma data foram as Partes notificadas da designação, não tendo, qualquer delas, manifestado a intenção de recusar a designação do árbitro.
Nestas circunstâncias, em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 25 de maio de 2016.
3.1. Nos termos do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2 do RJAT, a AT foi notificada, enquanto parte requerida, para no prazo de 30 dias apresentar resposta e, caso entendesse, solicitar a produção de prova adicional, devendo no mesmo prazo remeter cópia do processo administrativo, o que sucedeu em 27 de junho de 2016.
3.2 Nessa resposta, a Requerida sustentou a legalidade das liquidações efetuadas, concluindo que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente, com a consequente manutenção na ordem jurídica dos atos de tributação impugnados, e ser absolvida.
3.3. Na subsequente tramitação, foram as Partes notificadas em 28 de junho de 2016, no sentido de dispensarem a reunião prevista no artigo 18.º, n.º 1 do RJAT, dado estar em causa unicamente matéria de direito, no que concordaram, conforme comunicações de 1 e 5 de julho de 2016, respetivamente, dispensando, além do mais, a apresentação de alegações finais escritas.
II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
4. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído, é materialmente competente e as Partes gozam de personalidade e capacidade judiciária, sendo legítimas, à luz dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
O processo não padece de vícios que o invalidem e não existem incidentes que importe resolver nem questões prévias sobre as quais o Tribunal Arbitral se deva pronunciar.
III – FUNDAMENTAÇÃO
Alegações das Partes
5.1 A Requerente, na petição inicial, a fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, no essencial, alegou o seguinte:
a) Foi proprietária do veículo pesado de mercadorias da marca Scania, com o n.º de quadro … e a matrícula nacional …-…-…, que vendeu à empresa B…, Unipessoal, Lda., com morada na Rua … n.º … – …, em …, Figueira da Foz, em 31 de julho de 2007, tendo, para o efeito, juntado o duplicado da fatura de venda n.º 3039, da referida data, que revela que a venda foi efetuada por um preço de 2000 € (1662,89 € + 347,11 € de IVA);
b) O veículo foi pago em 02 de agosto de 2007, em numerário, mediante crédito da referida importância na conta que a Requerente possuía na C… (C…);
c) Após a aquisição, a compradora do veículo não procedeu ao registo de propriedade do mesmo, como era sua obrigação, tendo-se a Requerente visto na contingência de, em 22 de novembro de 2012, requerer junto do IMTT a apreensão do veículo tendo em vista solicitar o posterior cancelamento da matrícula, o que sucedeu em 26 de novembro de 2013;
d) Foi citada em sede de execução fiscal para o pagamento do IUC do ano de 2011, no valor de 1031,43 € (liquidação 2011 …), do ano de 2012 no valor de 1054,73 € (liquidação 2012 …) e do ano de 2013 no valor de 1031,43 € (liquidação 2013 …);
e) A sua citação apenas resulta do facto da adquirente do veículo não ter cumprido o dever de proceder ao registo da viatura;
f) Paralelamente, foi citada pessoalmente para o pagamento da coima referente ao não pagamento do IUC do ano de 2013, no valor de 405,04 €, e do ano de 2011, no valor de 357,08 €;
g) De acordo com a doutrina dominante, e com a jurisprudência arbitral tributária, de que menciona oito decisões, o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC integra uma presunção ilidível, podendo o sujeito passivo que consta do registo de propriedade do veículo exonerar-se do seu pagamento, demonstrando a não correspondência entre a realidade e aquele registo;
h) Demonstra-o juntando cópia da respetiva fatura e do talão de depósito emitido pela C… comprovativo de que o pagamento lhe foi efetuado, uma vez que os contratos de compra e venda de veículos automóveis não estão sujeitos a qualquer forma específica;
Conclui, pedindo a anulação das liquidações com fundamento na ilegalidade e erro nos pressupostos, condenando-se a AT a anular todas as liquidações e consequentes condenações em processos de contraordenação e a pagar as custas do processo arbitral.
5.2 Por seu turno, em resposta à petição inicial, a Requerida veio alegar o seguinte:
a) O artigo 3.º, n.º 1 do CIUC estabelece que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”, pelo que o legislador tributário estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários, sendo esta interpretação a que melhor preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal, pelo que entender que o legislador consagrou aqui uma presunção, seria inequivocamente efetuar uma interpretação contra legem;
b) O legislador não usou a expressão «presumem-se», como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: «são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados», encontrando-se o normativo fiscal repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do n.º 1 do artigo 3.º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, para efeitos de residência, de localização, casos do CIMT, CIRS e CIRC, em normas que identifica, pelo que foi uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador;
c) É este, aliás, o entendimento adotado pela jurisprudência dos nossos tribunais, conforme decorre do Processo n.º 210/13.0BEPNF, em que o Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel acolheu a posição sufragada pela AT, nos termos supra explicitados, tendo decidido pela improcedência do recurso interposto pelo sujeito passivo;
d) Também o elemento sistemático de interpretação da lei demonstra que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando, o entendimento sufragado por esta, qualquer apoio na lei, porquanto tal resulta não apenas do aludido artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, mas também de outras normas consagradas no referido Código, como o artigo 6.º, n.º 1 do CIUC, que sob a epígrafe «Facto Gerador e Exigibilidade» preceitua que «O facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional.»;
e) Da articulação entre o âmbito da incidência subjetiva do IUC e o facto constitutivo da correspondente obrigação de imposto decorre inequivocamente que só as situações jurídicas objeto de registo geram o nascimento da obrigação de imposto;
f) Por sua vez, dispõe o n.º 3 do mesmo artigo que «o imposto considera-se exigível no primeiro dia do período de tributação referido no n.º 2 do artigo 4.º», ou seja, o momento a partir do qual se constitui a obrigação de imposto apresenta uma relação direta com a emissão do certificado de matrícula, no qual devem constar os factos sujeitos a registo; g) Tal posição, está ainda patente na circunstância de o registo automóvel a que a AT tem ou pode ter acesso, e o certificado no qual devem constar os atos sujeitos a registo, cuja exibição poderá ser exigida ao interessado pela mesma AT, conterem todos os elementos destinados à determinação do sujeito passivo, sem necessidade de acesso aos contratos de natureza particular que conferem tais direitos, enunciados pelo CIUC como constitutivos da situação jurídica de sujeito passivo deste imposto;
h) Na falta de tal registo, naturalmente, será o proprietário notificado para cumprir a correspondente obrigação fiscal, pois, tendo em conta a atual configuração do sistema jurídico, a AT não terá que proceder à liquidação do imposto com base em elementos que não constem de registos e documentos públicos e, como tal, autênticos.
i) A não atualização do registo, nos termos do disposto no artigo 42.º do Regulamento do Registo Automóvel (RRA), é imputável na esfera jurídica do sujeito passivo do IUC e não na do Estado, enquanto sujeito ativo do imposto, pelo que fazer tábua rasa da obrigatoriedade de registo automóvel nos casos controvertidos nestes autos, seria lançar a AT na mais absoluta incerteza, não sendo tal situação manifestamente, a desejada e, portanto, instituída pelo legislador, pois a aceitar-se tal posição, a AT teria que proceder à liquidação de IUC relativamente a esse «outrem» identificado pela pessoa constante do registo automóvel a quem havia primeiramente liquidado o IUC, que por sua vez também poderia alegar e provar que entretanto já celebrou contrato de compra e venda, locação financeira, aluguer de longa duração, etc, com outrem, mas que não registou, ou que desmantelou a viatura, mas que não o comunicou;
j) Está em causa a segurança e certeza jurídicas (o instituto do registo deixaria de proporcionar a segurança e certeza que constituem as suas finalidades principais), assim como, o poder/dever da AT de liquidar impostos;
l) Mesmo admitindo que, do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial, a ausência de registo não afeta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real, nos termos estabelecidos no CIUC (que, no caso em apreço, constitui lei especial, a qual, nos termos gerais de direito derroga a norma geral), o legislador tributário quis intencional e expressamente, que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados;
m) À luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pela Requerente no sentido de que o sujeito passivo do IUC é o proprietário efetivo, independentemente de não figurar no registo automóvel o registo dessa qualidade, é manifestamente errada, na medida em que é a própria ratio do regime consagrado no CIUC que constitui prova clara de que o legislador fiscal pretendeu criar um IUC assente na tributação do proprietário do veículo tal como constante do registo automóvel;
n) Com efeito, o CIUC procedeu a uma reforma do regime de tributação dos veículos em Portugal, alterando de forma substancial o regime de tributação automóvel, passando os sujeitos passivos do imposto a ser os proprietários constantes do registo de propriedade, independentemente da circulação dos veículos na via pública, e a sua aprovação teve como objetivo estabelecer procedimentos tendentes a adaptar o registo automóvel ao novo regime de tributação, de molde a evitar os problemas existentes, nomeadamente, os relacionados com o facto de existirem muitos veículos não registados em nome do real proprietário;
o) Acresce que, de acordo com o n.º 1 do artigo 6.º do CIUC, o facto gerador do imposto é constituído pela propriedade e registo do veículo, tal como atestado pela matrícula ou registo em território nacional e a exigibilidade do imposto considera-se verificada no primeiro dia do período de tributação referido no artigo 4.º, n.º 2 do CIUC, isto é correspondendo “ao ano que se inicia na data da matrícula ou em cada um dos seus aniversários relativamente aos veículos das categorias A, B, C, D e E, sendo devido pelo proprietário em nome do qual os mesmos se encontrem registados, quer no IMT, quer na Conservatória do Registo Automóvel (CRA), à altura do cumprimento da obrigação fiscal, determinado no n.º 2 do artigo 4.º do CIUC;
p) Deste modo, a propriedade do veículo em causa encontrava-se registada a favor de A…, Sociedade Unipessoal Lda, em situação ativa, pelo que de acordo com os artigos 1.º a 6.º do CIUC, encontram-se reunidos todos os elementos de incidência objetiva, subjetiva e temporal, facto gerador do imposto e exigibilidade para a liquidação do IUC dos anos de 2011 a 2013, pelo que os atos tributários em crise não enfermam de qualquer vício de violação de lei;
q) A interpretação veiculada pela Requerente é contrária à Constituição, ao por em causa princípios como o da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade, uma vez que desvaloriza a realidade dos registos em detrimento de uma «realidade informal», sendo insuscetível de um controlo mínimo por parte da Requerida;
r) É ofensiva do princípio da eficiência do sistema tributário, na medida em que se traduz num entorpecimento e encarecimento das competências atribuídas à Requerida, com óbvio prejuízo para os interesses do Estado Português, estando nos antípodas daquele princípio e da própria reforma da tributação automóvel na medida em que, ao pretender desconsiderar a realidade do registo, uma realidade que constitui a pedra angular na qual assenta todo o edifício do IUC, gera para a Requerida, e em última instância para o Estado Português, custos administrativos adicionais, entorpecimento do desempenho dos seus serviços, ausência de controlo do tributo e inutilidade dos sistemas de informação dos registos;
s) Representa uma violação do princípio da proporcionalidade, na medida em que o desconsidera totalmente no confronto com o princípio da capacidade contributiva, quando na realidade a Requerente dispõe dos mecanismos legais necessários e adequados à salvaguarda daquela sua capacidade (v.g., o registo automóvel), sem que, contudo, os tenha exercitado em devido tempo;
t) O valor probatório dos documentos juntos pela Requerente com vista a apreciar a respetiva virtualidade de elisão da presunção, não é de forma alguma suficiente para comprovar que a Requerente não era a proprietária do veículo nas datas de exigibilidade do imposto, pois são cópias da fatura e do original do recibo, que não se encontra assinado nem foi entregue ao “comprador”, e não provam inequivocamente que o negócio tenha sido efetuado, não sendo idóneos para comprovar a venda do veículo em causa, uma vez que não passam de documentos unilateralmente emitidos pela proprietária do veículo, demonstrando apenas a vontade da Requerente, não sendo aptos para comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, uma vez que não revelam por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte do pretenso adquirente, não faltando casos de emissão de recibos referentes a transmissões de bens e/ou de prestações de serviços que nunca chegaram a concretizar-se;
u) As regras do registo automóvel (ainda) não chegaram ao ponto de recibos unilateralmente emitidos pelos proprietários dos veículos, poderem substituir o Requerimento de Registo Automóvel, aliás documento aprovado por modelo oficial, pelo que não tendo apresentado novas provas que tivessem a potencialidade de afastar a presunção legal da propriedade decorrente do registo automóvel, também já as não poderá apresentar, citando em seu abono uma decisão interlocutória proferida pelo Tribunal Arbitral Coletivo presidido pelo magistrado Jorge Lopes de Sousa, a 2012-10-25, no âmbito do processo arbitral que, sob o n.º 75/2012-T, correu termos no CAAD;
v) A Requerente apenas requereu a apreensão do veículo em 22.11.2012 e o cancelamento da matrícula em 26.11.2013, cinco anos depois, transcrevendo o entendimento perfilhado na decisão arbitral n.º 220/2014-T deste centro de arbitragem, acerca do valor probatório de documentos com vista à elisão do registo automóvel, e por se referir à compra e venda, aplicar-se, mutatis mutandis à presente situação, sendo este entendimento corroborado pelo recente acórdão do Tribunal Central Administrativo - Sul (TCA SUL) proferido em 19-03-2015, no âmbito do processo n.º 08300/14, que, em síntese, dispõe que estando o IUC legalmente configurado para funcionar em integração com o registo automóvel «não basta à parte contrária opor a mera contraprova para – a qual se destina a lançar mão da dúvida sobre os factos (cfr. artigo 346.º do C. Civil), que torne os factos presumidos duvidosos. Pelo contrário, ela tem de mostrar que não é verdadeiro o facto presumido, e de forma que não reste qualquer incerteza de que os factos resultantes da presunção não são reais.»;
x) Em matéria de responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais, a Requerida refere que o registo automóvel não se encontra na sua esfera de competências, mas sim atribuída ao Instituto dos Registos e do Notariado (IRN) a quem cabe transmitir à Requerida as alterações que se venham a verificar quanto à propriedade dos veículos automóveis, sendo que o registo da propriedade constitui um elemento essencial no sistema de informação entre a Requerida e demais entidades públicas, e não é suscetível de ser controlado por ela, pois inexiste qualquer obrigação acessória declarativa quanto a esta matéria, o que significa que o IUC é liquidado de acordo com a informação do registo oportunamente transmitida pelo IRN e não com a informação gerada pela própria Requerida;
z) Não tendo a Requerente tido o cuidado da atualização do registo automóvel, como aliás podia e lhe competia [artigo 5.º/1-a) do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de fevereiro, e artigo 118.º/4 do Código da Estrada], e tendo mandado cancelar a matrícula do veículo aqui em apreço, cinco anos depois, em 26.11.2013, é forçoso concluir que a Requerente não procedeu com o zelo que lhe era exigível, e ao não ter procedido com o zelo que lhe era exigível, levou inexoravelmente a Requerida a limitar-se a dar cumprimento às obrigações legais a que está adstrita e, paralelamente, a seguir a informação dos registos que lhe foi fornecida por quem de direito, pelo que só pode queixar-se de si mesma quanto às liquidações ora colocadas em crise, uma vez que não foi a Requerida quem deu azo à dedução do pedido de pronúncia arbitral, mas sim a própria Requerente. Por isso, deve a mesma ser condenada ao pagamento das custas arbitrais.
Em conclusão, a Requerida entende como evidente a conformidade legal dos atos objeto do presente pedido, falecendo, consequentemente, as pretensões formuladas pela Requerente, e na medida em que esta não conseguiu afastar a presunção legal da propriedade do veículo registado em seu nome, sendo que os documentos apresentados, enquanto documentos meramente unilaterais, são insuscetíveis, por si só, de fazer prova inequívoca da alegada alienação, deve o pedido de pronúncia arbitral ser considerado improcedente, por não provado, mantendo-se na ordem jurídica os atos tributários de liquidação impugnados e absolvendo-a, em conformidade, do respetivo pedido, com a consequente condenação da Requerente nas custas arbitrais.
6. Em matéria de facto, relevante para a decisão a proferir, dá este Tribunal Arbitral como provado, face aos elementos constantes dos autos, os seguintes factos:
a) A Requerente foi proprietária do veículo pesado de mercadorias da marca Scania, com o n.º de quadro …, e a matrícula nacional atribuída …-…-….
b) Em 31 de julho de 2007, foi emitida a fatura de venda n.º 3039, de 31.07.07, em que se identifica como comprador a empresa B…, Unipessoal, Lda., conforme duplicado junto.
c) O preço de venda foi de 2000 € (dois mil euros), os quais foram pagos em numerário no dia 2 de agosto de 2007, mediante depósito na conta que a Requerente possuía na C…, conforme cópia de talão comprovativo.
d) Após a venda, o adquirente do veículo não procedeu ao seu registo da propriedade na CRA.
e) Em 22 de novembro de 2012, a Requerente requereu junto do IMT a apreensão do veículo, tendo em vista requerer o posterior cancelamento da matrícula, o que fez em 26 de novembro de 2013.
e) Foi citada em sede de execução fiscal para o pagamento do IUC do ano de 2011, no valor de 1031,43 € (liquidação 2011 …), do ano de 2012 no valor de 1054,73 € (liquidação 2012 …) e do ano de 2013 no valor de 1031,43 € (liquidação 2013 …).
f) Paralelamente, foi citada pessoalmente para o pagamento da coima referente ao não pagamento do IUC do ano de 2013, no valor de 405,04 € e do ano de 2011, no valor de 357,08 €.
IV – FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS E NÃO PROVADOS
7. Os factos foram dados como provados tendo em consideração os documentos trazidos ao processo pela Requerente, cuja autenticidade não foi posta em causa pela Requerida, consubstanciados na petição inicial e nos anexos que a acompanhavam, assim como também no processo administrativo enviado pela Requerida.
8. Não há factos dados como não provados com relevância para a tomada de decisão.
V - FUNDAMENTOS DE DIREITO
9. Em função do que se deixa exposto, para apreciar a legalidade das liquidações efetuadas em sede de IUC, importa que seja encontrada uma resposta para as seguintes questões de direito controvertidas:
a) Sentido e alcance da norma constante do artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, em matéria de incidência subjetiva;
b) Como concatenar o disposto no artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, relativamente à incidência subjetiva, com o artigo 6.º, n.º 1, no que concerne ao facto gerador e à exigibilidade do imposto;
c) A aptidão da fatura (complementada pela respetiva transferência bancária) para efeitos de prova das transmissões dos veículos;
d) Em que medida a interpretação defendida pela Requerente é desconforme à Constituição, ao por em causa princípios como o da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade.
a) SENTIDO E ALCANCE DO ARTIGO 3.º, N.º 1 DO CIUC EM MATÉRIA DE INCIDÊNCIA SUBJETIVA
10. A Requerida afirma que o legislador tributário ao estabelecer no artigo 3.º do CIUC, quem são os sujeitos passivos estabeleceu expressa e intencionalmente quem são os sujeitos passivos do imposto, considerando como tais os proprietários em nome dos quais os veículos se encontrem registados.
Não usou a expressão «presumem-se» como poderia ter feito nos seguintes termos, «São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome dos quais os mesmos se encontrem registados», pelo que pretender que o legislador na redação que adotou consagrou uma presunção seria efetuar uma interpretação contra-legem que não preservaria a unidade do sistema fiscal.
Esta interpretação é contrariada pela Requerente que afirma que o referido artigo 3.º integra uma presunção ilidível, podendo o sujeito passivo que consta do registo de propriedade do veículo exonerar-se do seu pagamento, demonstrando a não correspondência entre a realidade e aquele registo.
11.1 No domínio da lei fiscal, o artigo 11.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária (LGT) estabelece que na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e os princípios gerais de interpretação e de aplicação das leis, preceituando que «persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários» - n.º 3 do mesmo artigo.
Em face deste critério legal, os princípios gerais de interpretação e aplicação das leis devem ser procurados no artigo 9.º do Código Civil (CC), o qual estabelece que o intérprete não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
Mais acrescenta que não pode, todavia, ser considerado pelo intérprete um pensamento legislativo que não tenha na lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, devendo na fixação do sentido e alcance presumir-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
11.2 Os antecedentes da incidência subjetiva nos impostos revogados pelo CIUC - Decreto-Lei n.º 143/78, e Decreto-Lei n.º 116/94, e a sua articulação com as regras do registo, nunca ofereceram dúvidas de que o legislador, ao utilizar a palavra «presumindo-se», remetia para a noção constante do artigo 349.º do CC, que lhe permitia extrair a conclusão do facto dos veículos se encontrarem matriculados ou registados no nome de uma determinada pessoa, ou seja a de que essa pessoa seria a proprietária, todavia, sujeita a poder ser ilidida mediante prova em contrário, conforme o impunha o artigo 350.º, n.º 2, do mesmo código, e como as próprias normas tributárias o reafirmavam.
A expressão «até prova em contrário», constava no Decreto-Lei n.º 143/78, e também no Decreto-Lei n.º 116/94, e vinha já de anteriores diplomas, pelo que nunca houve dúvidas de que legalmente era possível a um qualquer interessado demonstrar de que não era o proprietário do referenciado veículo, reforçando a natureza presuntiva «juris tantum» da norma.
A incidência subjetiva modelada nestes termos articulava-se com a função do registo em matéria de definição da propriedade automóvel.
Com efeito, o Decreto-Lei n.º 47 952, de 22 de setembro de 1967, no seu artigo 1.º estabelecia como finalidades do registo a individualização dos proprietários e, em geral, a publicidade aos direitos inerentes aos veículos automóveis, as quais vieram a transitar para o Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de fevereiro, tendo sido estabelecido no artigo 5.º, n.º 1, alínea a), que estão sujeitos a registo obrigatório, entre outros o direito de propriedade e de usufruto dos veículos automóveis.
11.3 Com a aprovação do CIUC o legislador substituiu a palavra «presumindo-se» por «considerando-se», e eliminou a expressão «até prova em contrário», pelo que a conjugação destas duas alterações, torna admissível uma interpretação no sentido defendido pela Requerida, de que o legislador tributário quis intencional e expressamente que fossem considerados como sujeitos passivos do imposto os proprietários em nome dos quais os veículos se encontrem registados.
11.4 Uma interpretação perentória é possível, dado que a incidência não se rege por presunções, mas quando existem ou são admissíveis, levantam-se questões para as quais é necessário encontrar uma explicação razoável.
A primeira tem a ver com o artigo 73.º da LGT de acordo com o qual «As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário», sendo certo que estamos precisamente a tratar da sensível questão da incidência.
A LGT é um diploma transversal e de patamar superior, e a palavra «sempre» constante do artigo 73.º tem um significado perentório. Uma alteração da natureza da norma que sempre vigorou no domínio dos impostos que recaíam sobre a circulação dos veículos tem um significado de tanta repercussão que é imprescindível fazer uma avaliação das suas consequências.
Por isso, e pelas razões que a seguir se adiantam, não nos parece que o regime de presunção que sempre vigorou tenha sido simplesmente deixado cair e substituído por uma norma de interpretação rígida.
11.5 O legislador tinha consciência das circunstâncias em que inovava e das suas próprias limitações no plano legislativo e no funcionamento da organização tributária à época, donde, no entendimento do tribunal arbitral, ter enveredado por uma redação que pretendeu simplesmente reforçar a tónica na propriedade do veículo, enquanto facto gerador do imposto, sem cair no exclusivismo do registo oficial.
A função da base de dados de proprietários de veículos da CRA, sempre teve em vista a regulação das responsabilidades a nível da sociedade civil, sendo um mero produto da atividade declarativa dos proprietários em virtude de transmissões a que os veículos fossem sujeitos, e para a qual não havia qualquer sanção coativa específica relativamente aos incumprimentos, salvo o pagamento de uma taxa agravada no caso de se apresentar a registar a transmissão fora do respetivo prazo.
Com efeito, na altura da publicação do CIUC havia um enorme desfasamento entre o parque automóvel nacional existente e os registos de veículos que constavam na conservatória de registo automóvel.
Segundo a informação da época veiculada pelos órgãos de comunicação social, os serviços oficiais, estimariam haver, pelo menos, um milhão de matrículas a mais do que o efetivo parque automóvel. A isso aludiu a deputada Helena Pinto, do Bloco de Esquerda, numa sessão de debate parlamentar ocorrida em 13 de março de 2008, ao referir que «Existem hoje mais de um milhão e meio de veículos automóveis cujo registo de propriedade não corresponde ao seu proprietário atual.»
Na verdade, durante muitos anos, os veículos eram abatidos sem qualquer controlo ambiental, por via de desmantelamentos em sucateiros, que funcionavam a céu aberto, muitas vezes nas periferias das grandes cidades, não havendo qualquer comunicação às autoridades competentes, uma vez que o quadro legal de destruição de veículos em fim de vida, com intervenção de um operador autorizado, apenas começou a ser definido a partir do Decreto-Lei n.º 292-B/2000, de 15 de novembro.
Por outro, era igualmente prática corrente efetuarem-se as transmissões dos veículos, para o que bastava, e basta, um contrato verbal, sem que houvesse suficiente diligência para levar tais factos ao registo na conservatória, não obstante haver o referido agravamento da taxa de registo. Aliás, como era público e notório, em muitos casos, não obstante serem assinados pelas Partes, era acordado o não preenchimento do campo correspondente à data da celebração que ficava em branco, de forma a poder ser preenchido mais tarde, quando o comprador achasse oportuno, assim se eximindo da penalização pelo atraso do registo.
11.6 Por isso, conhecidas essas circunstâncias, impunha-se a adoção de soluções que permitissem uma evolução para um regime totalmente inovador, de forma que a instituição do novo sistema implicasse o mínimo de custos de contexto.
Com efeito, não deixaria de ser atentatório das garantias genéricas dos contribuintes, as quais recolhem proteção constitucional, que, num curto espaço de tempo, se pretendesse regularizar a situação de propriedade de praticamente um quarto dos veículos que constituíam o parque automóvel nacional, sob pena de os proprietários de direito, fossem ou não os verdadeiros donos dos veículos, ficarem inexoravelmente sujeitos ao pagamento do imposto, sendo certo que as dificuldades não seriam apenas para os contribuintes mas também para a própria administração tributária que, num tão curto espaço de tempo, teria de ter operacionalizada uma estrutura que desse resposta a tão significativo número de situações pré-contenciosas.
11.7 Algumas das medidas constaram logo da própria Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho de 2007, ao prescrever-se que, no que respeita aos veículos abrangidos pelo imposto municipal sobre veículos, o imposto de circulação e o imposto de camionagem, apenas seriam abolidos em 1 de janeiro de 2008, dando tempo a que a administração fiscal, nesses seis meses subsequentes, se organizasse para as novas regras de cobrança, assim como para que os sujeitos passivos compreendessem e melhor se inteirassem das novas regras de cumprimento do imposto.
O mesmo se diga, relativamente à avaliação do custo/benefício do ato tributário levada a cabo pelo legislador em sede de IUC, que, mau grado ter erigido o princípio da equivalência como parâmetro da tributação, desde logo, excluiu da mesma os automóveis ligeiros de passageiros e de utilização mista com peso bruto não superior a 2500 Kg matriculados até 1981, assim como os motociclos, ciclomotores, triciclos e quadriciclos até 1987.
11.8 Estas medidas, só por si, pouco resolveriam, dada a amplitude das questões que se suscitavam, pelo que houve necessidade de se adotarem outro tipo de medidas legislativas.
É neste contexto que é publicado o Decreto-Lei n.º 20/2008 de 31 de janeiro, que alterou diversas normas do RRA, e sobretudo o Decreto-Lei n.º 78/2008, de 6 de maio, que criou um regime excecional de regularização da base de dados de veículos do Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, que se constituíram instrumentos importantes para uma depuração da base de dados da CRA ao presumir o abate legal de veículos que não se tivessem apresentado às inspeções periódicas nos últimos quatro anos.
Ainda assim, havia a clara noção de que tais medidas continuariam a ser insuficientes, dado que era do conhecimento público que muitos veículos que se encontravam em circulação não tinham a sua situação de registo regularizada.
Por isso, coube à extinta Direção Geral dos Impostos a crucial responsabilidade de, no primeiro ano de aplicação do CIUC, em 2008, verificado o incumprimento do pagamento do imposto, «acordar» dezenas ou centenas de milhares de proprietários de situações adormecidas em que os veículos, não obstante terem sido, em tempos, transmitidos, se encontravam ainda em circulação, uma vez que se apresentavam regularmente às inspeções periódicas, e nunca tinham sido objeto de atualização nos registos da conservatória automóvel.
Na verdade, em muitos casos, os veículos tinham sido transmitidos há cinco, dez ou mesmo quinze anos, sem que alguma vez tivessem sido registados no nome do novo adquirente, não se lembrando, sequer, os alienantes proprietários se os referidos veículos tinham alguma vez sido ou não registados no nome desse adquirente, dado que era uma informação desprovida de interesse, na medida em que não era a eles que lhes cabia a obrigação de efetuar o registo. Por outro lado, a questão do pagamento dos antigos impostos de circulação nem se colocava, na medida em que era um imposto sobre o uso, e esses proprietários bem sabiam bem que não os utilizavam, pelo que nenhuma responsabilidade lhes advinha em termos fiscais.
Com as constatações dos incumprimentos dos prazos legais de pagamento do IUC e as subsequentes notificações para pagamento, assim terão sido detetadas muitas situações de irregularidade do registo e prevenidos os sujeitos passivos «registados» para que regularizassem as situações, de modo a que nos anos posteriores não se repetissem tais liquidações.
Mais recentemente, o Decreto-Lei n.º 177/2014, de 15 de dezembro, deu mais um passo na facilitação da fiabilidade da base de dados do registo ao criar um procedimento especial para o registo de propriedade de veículos adquiridos por contrato verbal, viabilizando que o mesmo possa ser efetuado pelo vendedor do veículo, assim se desonerando dos encargos que resultam da qualidade de titular, seja no plano da responsabilidade civil, rodoviária, ou agora no próprio plano tributário.
12.1 O intérprete da lei não pode desvendar na lei um pensamento legislativo que não tenha na lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
Por isso, importa indagar se no ordenamento jurídico existe alguma similitude ou semelhança entre a palavra «presume-se», que foi eliminada, e a palavra «considerando-se», que foi instituída.
Sobre esta questão, há tomadas de posição na doutrina e também na jurisprudência.
12.2 Em anotação e comentário ao artigo 73.º da LGT, Diogo Leite de Campos, Benjamim Rodrigues, J. Lopes de Sousa, in «Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada», – 4.ª edição, 2012, páginas 651 e 652, referem que as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão «presume-se» ou semelhante, citando os exemplos dos n.ºs 1 a 5 do artigo 6.º, em que se refere presunções relativas a rendimentos da categoria E do CIRS, que a própria AT, mediante reconhecimento, pode ilidir.
Também nos n.ºs 3 e 4, do artigo 89.º A da LGT, sobre os pressupostos para a avaliação indireta das manifestações de fortuna em sede de IRS, o legislador recorre à palavra «considera-se» com um significado semelhante a «presume-se».
No direito civil há igualmente disposições legais que vão no mesmo sentido, como é o caso do artigo 243.º, n.º 3 do CC quando dispõe que «Considera-se sempre de má-fé, o terceiro que adquiriu o direito posteriormente ao registo da ação de simulação quando a este haja lugar», pelo que, parece-nos não subsistir dúvidas quanto à possibilidade do legislador exprimir de forma diferente a mesma intenção legislativa.
Em anotação ao artigo 3.º do IUC, também os fiscalistas A. Brigas Afonso e Manuel Teixeira Fernandes, in «Imposto sobre Veículos e Imposto Único de Circulação, Códigos anotados», Coimbra Editora, 2009, página 187, se pronunciam no sentido de que «não se registam alterações relativamente à situação que vigorou no âmbito dos extintos IMV, ICi e ICa.».
12.3 Em termos de jurisprudência, no campo arbitral há um alargado consenso sobre o entendimento a conferir a tal alteração.
A esse propósito citam-se, a título meramente exemplificativo as decisões arbitrais proferidas no âmbito do CAAD n.ºs 14/2003-T, 26/2013-T, 27/2013-T, 73/2013-T, 170/2013-T, 217/2013-T, 286/2013-T, 294/2013-T, 46/2014-T, 216-T/2014-T, 250/2014-T e 192/2015-T, envolvendo a intervenção de árbitros diferenciados, todas convergentes no sentido de identificar uma presunção no artigo 3.º, n.º 1 do CIUC.
Esta convergência interpretativa está em linha com o Acórdão n.º 8300/14 CT – 2.º Juízo, de 19 de março de 2015, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, segundo o qual, «O citado artigo 3.º n.º 1 do CIUC consagra uma presunção legal de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário, sendo que tal presunção é ilidível, por força do artigo 73.º da LGT.» - (n.º 8, in fine, do sumário do citado acórdão).
A Requerida, na apreciação da reclamação graciosa, citou e transcreveu parte da fundamentação da sentença proferida no Processo 210.13.0BEPNF do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, que se nos afigura ser um caso isolado, dado ser a única, pelo que deve ser contextualizado nesses precisos termos.
12.4 Em matéria de trabalhos preparatórios da legislação que se aprecia, designadamente do artigo 3.º n.º 1 do CIUC, na sua génese esteve um Grupo de Trabalho criado pelo Despacho Conjunto n.º 290/2006, de 27 de março, 2.ª série, dos Ministros de Estado e das Finanças e do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional.
Nas orientações que então se transmitiram, consta a adoção de princípios de modernização do imposto e a busca de soluções integradas que permitam segurança e eficácia nas liquidações e cobranças através do envolvimento em processos de transmissão eletrónica de dados e acesso à informação de entidades externas ao Ministério das Finanças. No que respeita especificamente ao imposto de circulação, que se viria a designar por IUC, as orientações não apontaram qualquer alteração à forma legal de instituição dos sujeitos passivos do imposto, sendo que a incidência é uma matéria de grande sensibilidade.
Embora os trabalhos preparatórios da lei não colham de um modo geral os favores da doutrina, os mesmos, na medida em que foram executados por técnicos diretamente dependentes da Administração Fiscal e não por personalidades independentes escolhidas pela sua competência, podem esclarecer-nos melhor quanto às ideias e ao espírito que o legislador quis imprimir à lei, valendo como contributo quando se evidencia que tais ideias e princípios foram incorporados na lei, o que, no presente caso, genericamente, acaba por se verificar.
13.1 Em função do que se deixa exposto, o Tribunal Arbitral está convicto de que a alteração terminológica havida no âmbito do IUC não afastou o regime presuntivo da lei civil e que o mesmo se mantém, nos termos em que sempre vigorou.
13.2 Ao exprimir-se em termos de que «…considerando-se como tais …», transformou a presunção legal explícita numa figura que se configura igualmente como uma presunção, se bem que de forma implícita, nos seus limites, tendo ido tão longe quanto lhe foi possível na operacionalização e modernização de um imposto que sempre tinha tido caraterísticas diferentes, de tributação do uso em vez da propriedade.
13.3 Ultrapassado o período crítico de 2008, em que a atividade da ex-DGCI foi fundamental no saneamento da base de sujeitos passivos, e operadas alterações legais significativas na forma de constituição dessa base de dados, julgamos que haverá condições para que possa vingar a interpretação sustentada pela Requerida, a qual seria desejável, principalmente para as segundas transmissões de veículos, mas para isso, haverá que empreender um grande esforço legislativo de forma a afastar o aspeto presuntivo que emana da norma.
b) Valor jurídico do registo para efeitos de tributação do IUC, tendo em conta o disposto no artigo 3.º, n.º 1, (incidência subjetiva) e artigo 6.º, n.º 1, (facto gerador e exigibilidade do imposto), ambos do CIUC
14.1 A resposta para a questão do valor jurídico do registo para efeitos de tributação do IUC não pode deixar de ter presente a resposta encontrada para a questão da alínea anterior.
Para a Requerente, o facto do artigo 3.º, n.º 1 do CIUC determinar que «são sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas de direito público ou privado, em nome dos quais os mesmos se encontrem registados» não significa que esta regra não seja alterada, provando-se o seu contrário.
Nos contratos de compra e venda de veículos automóveis, a transmissão da propriedade não está sujeita a qualquer forma específica, sendo inclusivamente admitidos contratos verbais de compra e venda, operando-se independentemente de o comprador a registar em seu nome.
Este ponto de vista é rejeitado pela Requerida, que considera que o entendimento da Requerente não tem correspondência com a ratio legis nem com a mens legislatori, pois o legislador tributário no artigo 6.º do CIUC estabeleceu claramente as premissas quanto ao facto gerador do imposto, bem como da sua exigibilidade, consignando que tal facto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional.
14.2 De acordo com o artigo 408.º, n.º 1 do CC a transferência de direitos reais sobre as coisas verifica-se por mero efeito do contrato, pelo que os adquirentes dos veículos ao celebrarem os contratos de compra e venda tornam-se proprietários dos mesmos pela simples transmissão da coisa, independentemente de os registarem ou não.
O registo não tem efeitos constitutivos mas meramente declarativos. Pretende acautelar a segurança no comércio jurídico, avalizado pela chancela de uma entidade pública, cujo objetivo é evitar ou reduzir a litigância sobre a propriedade dos bens, mas, no caso dos automóveis, enquanto coisas, o seu papel não vai além de uma função simplesmente declarativa, baseada na apresentação de um modelo de requerimento oficial. O que determina a transmissão é, salvo as exceções previstas na lei, a vontade das partes expressa no contrato verbal.
Em função do disposto no artigo 7.º do Código do Registo Predial, aplicável por remissão do artigo 29.º do CRA, «O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define», pelo que, sendo estabelecida uma presunção legal de propriedade, não pode a mesma deixar de ser confrontada com o disposto no artigo 350.º, n.º 2 do CC, segundo o qual as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, exceto nos casos expressamente previstos na lei.
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre esta questão, parece pacífica (acórdãos 03B4369, de 19.02.2004, e 07B4528, de 29.01.2008) no sentido de o registo funcionar «(apenas) como mera presunção, ilidível (presunção juris tantum) da existência do direito (artigos 1.º, n.º 1, e 7.º do CRP e 350.º, n.º 2 do CC) bem como da respetiva titularidade, nos termos dele constantes…».
14.3 A ratio legis é uma expressão do sentido ou do pensamento legislativo subjacente à norma que permite ao intérprete tentar desvendar o que o legislador pretendeu.
Reportado à epígrafe «Facto gerador e exigibilidade», o artigo 6.º, n.º 1, refere que «O facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional.», e é exigível no primeiro dia do período de tributação referido no n.º 2 do artigo 4.º - n.º 3 do referido artigo («O período de tributação corresponde ao ano que se inicia na data da matrícula ou em cada um dos seus aniversários, relativamente aos veículos das categorias A, B, C, D, e E …»).
14.4 O regime fiscal do IUC aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho, integrou uma reforma global da fiscalidade automóvel, em que se pretendeu criar um denominador comum na tributação ambiental e estabelecer uma maior aproximação entre as receitas cobradas a partir do antigo Imposto Automóvel, muito elevadas, e o imposto de circulação, de reduzida expressão financeira.
Por outro lado, a natureza de imposto de circulação que os impostos revogados sempre tiveram, em que a incidência subjetiva era gerada pela disponibilidade e uso do veículo na via pública pelo seu condutor, em detrimento da titularidade dos registos na conservatória, sempre relegaram para segundo plano a questão da articulação entre as autoridades tributárias e as entidades a quem incumbe a atividade do registo,
Muito embora desde sempre o sistema presuntivo existente em matéria de registo suscitasse problemas em matéria de responsabilização civil, fosse por acidentes, atropelamentos, práticas de infrações rodoviárias, uso para a prática de crimes, etc, a questão agravou-se com o alargamento do mercado e com a respetiva massificação das vendas, levando a uma certa despersonalização da própria propriedade do veículo, uma vez que muitos veículos chegam a ser vendidos no mesmo ano mais do que uma vez.
Esta intensificação das sucessivas mudanças de propriedade, a par de se ter constituído ao longo dos anos como um problema cada vez maior para decidir diferendos, ainda assim nunca chegou para convencer o legislador a mudar a natureza do registo, ou seja, ter a função que a Requerida pretende que tenha no domínio fiscal, de constituir uma premissa para o facto gerador do IUC e da sua exigibilidade, consignando que tal facto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional.
Por isso, a manutenção do sistema de registos tal como ele se encontra concebido há quase cinquenta anos, quando outras entidades como o IMTT procuraram no Código da Estrada resposta para as insuficiências da informação dos registos, designadamente em termos de atualização da informação, leva-nos a considerar as referidas normas como soluções instrumentais de selecionar sujeitos passivos que sejam suscetíveis de suportar a liquidação e cobrança do imposto e não como soluções subjetivas absolutas como defende a Requerida.
Se o sujeito passivo revelar que já não é o proprietário do veículo e o provar, ou, pelo menos, o demonstrar com um mínimo de credibilidade, cabe ao sujeito ativo seguir a informação que lhe for prestada, e notificar o efetivo proprietário para proceder ao respetivo pagamento, quer do IUC e dos juros indemnizatórios, quer da sanção que o compensa da incúria do proprietário do veículo.
14.5 Ao se advogar a questão da notificação do efetivo proprietário, dá-se visibilidade a uma questão que as Partes não trouxeram para os autos, mas que deve igualmente ser tida em conta. Com efeito, conforme decorre do artigo 1.º, o CIUC «obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra de igualdade tributária».
A oneração deve recair nos contribuintes em função do custo ambiental e viário que ocasionam, ora se alguém vem aos autos tributários dizer que não é o proprietário do veículo e como tal não tem o poder de direção e de utilização do veículo e, consequentemente, a capacidade de regular a produção do custo ambiental e viário, naturalmente que a equivalência que se procura atingir por via das imposições, não pode ser encontrada no proprietário de direito mas sim no proprietário «de facto».
c) A aptidão da fatura para efeitos de prova das transmissões dos veículos
15.1 Da matéria de facto dada como provada, a Requerente foi proprietária do veículo pesado de mercadorias da marca Scania, com a matrícula …-…-…, que, em 31 de julho de 2007, vendeu à empresa B..., Unipessoal, Lda., tendo emitido a fatura de venda n.º 3039, de 31 de julho de 2007, de que junta uma cópia;
Como contrapartida da referida venda, foi depositada, em 2 de agosto de 2007, na conta bancária da C… da Requerente, a importância de 2000 €, estando identificado o depositante mas não estando evidenciada a sua ligação à empresa.
15.2 A documentação existente aponta para uma simples relação comercial entre empresas, em que uma vendeu à outra um veículo usado que, em função da ordem dos elementos da matrícula, teria à data da venda cerca de nove anos de antiguidade, e pela natureza do bem transmitido não está sujeita a formalismos especiais.
15.3 Embora a Requerida afirme que a referida documentação não é suficiente para comprovar que a Requerente não era a proprietária do veículo nas datas de exigibilidade do imposto, pois são cópias da fatura e do original do recibo, que não se encontra assinado nem foi entregue ao «comprador», e não provam inequivocamente que o negócio tenha sido efetuado, não sendo idóneos para comprovar a venda do veículo em causa, uma vez que não passam de documentos unilateralmente emitidos pela proprietária do veículo, demonstrando apenas a vontade da Requerente, não sendo aptos para comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, uma vez que não revelam por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte do pretenso adquirente, não faltando casos de emissão de recibos referentes a transmissões de bens e/ou de prestações de serviços que nunca chegaram a concretizar-se, no caso concreto, o Tribunal Arbitral considera que há uma manifesta conexão entre a emissão da fatura e o recebimento da importância devida pela venda.
Contrariamente às transações de bens do comércio dito normal, em que, em regra, existem prazos de pagamento dos bens, verifica-se que se tratou da venda de um bem (usado) pertencente ao ativo de uma empresa de transportes em vista de integrar o ativo de outra empresa, presumidamente também dedicada ao transporte de mercadorias.
Não tendo sido suscitada dúvida em concreto quanto à autenticidade da referida fatura, e a Requerida está especialmente habilitada para o poder fazer, dado o manancial de informação de que atualmente dispõe em termos de acompanhamento contabilístico e fiscal, nem do talão de depósito da entidade bancária apresentado a comprovar o recebimento do preço de venda, não se vê quaisquer razões que levem a afastar a aptidão da fatura como meio de prova da transmissão do veículo, as quais, de resto, no geral, suportam e são a base da cobrança de importantes impostos pela AT, em especial do IVA e do IRC.
Por isso, o argumento de que a fatura é um documento unilateral, insuficiente para constituir meio de prova da ocorrência da transmissão não é especialmente valorizado, mais a mais quando, juntamente com a fatura, é entregue um documento (cópia) de um talão de depósito bancário comprovativo de que, em data imediatamente a seguir, tinha sido depositado na conta da Requerente, um montante na precisa importância constante da fatura.
Com efeito, tem de se considerar muito improvável que alguém vá depositar 2000 euros na conta de outrem por coisa nenhuma, ou seja subjacente a tal depósito numa conta de uma empresa estará, com elevada probabilidade, subjacente o pagamento de uma transação ou da prestação de um serviço, pelo que o imediatismo da faturação/pagamento inculca a altíssima probabilidade de tal depósito, naquele preciso montante, corresponder ao pagamento do preço do trator que se vendeu.
15.4 O facto de uma muita pequena percentagem de faturas poderem corresponder a transações não efetuadas ou serem mesmo faturas falsas, como, por vezes, assinalam os órgãos de comunicação social e a própria AT na divulgação de infrações que são detetadas, não pode por em causa a seriedade e a confiança do comércio nacional e internacional nos processos de transmissão e regulação da propriedade dos bens, prevalecendo, para efeitos fiscais, a presunção de veracidade a que se refere o artigo 75.º n.º 1 da LGT e a força probatória do artigo 376.º do CC.
Nos termos em que se verificou a transação, não se vê razões para a desclassificar, não se vendo, igualmente, motivos, por ausência de registo, para que a condição de proprietário não tenha deixado de se ter verificado, uma vez o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real.
15.5 O acórdão do TCAS n.º 8300/14 já atrás mencionado verbera a fatura e a nota de débito como documentos saídos da empresa, na fase de liquidação da importância a pagar pelo comprador, como documentos que não fazem prova do respetivo pagamento do preço pelo mesmo comprador, (somente a emissão de fatura/recibo ou de recibo faz prova do pagamento e quitação) mas, no caso concreto, há um talão emitido pela entidade bancária, C…, comprovativo de que alguém depositou aquela importância (2000 €) na conta da Requerente.
d) Em que medida é observado o respeito pela Constituição, ao serem postos em causa princípios como o da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade
16.1 A Requerida sustenta que a interpretação veiculada pela Requerente é contrária à Constituição, ao por em causa princípios como o da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade.
Importa, por isso, analisar sucintamente em que medida esses princípios podem ser postos em causa.
Confiança e segurança jurídica
16.2 Alega a Requerida que a desvalorização da realidade registal em detrimento de uma «realidade informal» inviabiliza um controlo mínimo da cobrança do imposto e é ofensiva do basilar princípio da confiança e segurança jurídica que deve enformar qualquer relação jurídica, aqui se incluindo a relação tributária.
No seu entendimento, a não atualização do registo, nos termos do disposto no artigo 42.º do RRA será imputável na esfera jurídica do sujeito passivo do IUC e não na do Estado, enquanto sujeito ativo do imposto, dado que, a não se entender assim, o instituto do registo deixaria de proporcionar a segurança e certeza que constituem as suas finalidades principais.
No entendimento do tribunal arbitral, ao se ter concluído pelo regime presuntivo da norma fiscal e pelo caráter instrumental da base de dados da CRA no contexto da cobrança do IUC, não se verifica a alegada violação.
O instituto do registo continua a assegurar a segurança e a certeza jurídica nos mesmos termos que ao longo de quase cinquenta anos sempre assegurou, pois o legislador não sentiu necessidade de proceder a qualquer alteração, ainda que tivesse tido uma boa razão para o fazer, que era evitar uma aparente incoerência normativa entre a legislação que regula os registos e a legislação fiscal que se aproveita dos mesmos.
16.3 No caso concreto, a transmissão do veículo sub judice ocorreu em 31 de julho de 2007, ou seja um mês depois da publicação da Lei n.º 22-A/2007 de 29 de julho, mas em período em que a referida legislação ainda não se encontrava em vigor.
Sendo a lei já conhecida, muito embora entrasse em vigor apenas em 1 de janeiro de 2008, poderia admitir-se que na venda do veículo a Requerente devesse ter sido mais previdente, acompanhando a fase seguinte da entidade compradora, ou seja o registo do veículo, de modo a não ser surpreendido com liquidações de IUC inoportunas.
No entanto, julga este tribunal arbitral, que para o cidadão comum, e neste caso, para a Requerente, que se crê situar dentro do padrão médio da pequena e média empresa, tal exigência seria, na ocasião da transmissão, excessiva.
Atentos os procedimentos que sempre tinham existido em matéria de alienação e registo de veículos, não era fácil para qualquer sujeito passivo, que não dispusesse de uma boa assessoria técnico/jurídica, avaliar em profundidade as consequências trazidas pela legislação acabada de divulgar.
O próprio Comunicado de Imprensa, divulgado pelo Gabinete do Ministro de Estado e das Finanças, em 19 de dezembro de 2007, (www.min-financas.pt), ao se debruçar sobre as «Novas Regras e prazos do Imposto Único de Circulação a partir de Janeiro de 2008», projetava as alterações futuras, mas nada referia (alertava) relativamente às situações que eram suscetíveis de retroativamente serem atingidas pelas regras da nova legislação, e que o legislador tinha perfeitamente identificadas, donde a própria emissão de legislação nesse sentido.
16.4 Na Decisão Arbitral n.º 424/2015-T, de 8 de março de 2016, em que a Requerida tinha suscitado esta mesma questão dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança à luz da Constituição, o relator depois de discorrer sobre os ensinamentos do professor J.J. Gomes Canotilho, concluiu, em termos que se subscrevem integralmente, de que «Decorre desta doutrina, que as pessoas ao alienarem os seus veículos hão de estar seguras de que, caso procedam à venda dos veículos de que são proprietários e, não sendo os mesmos registados em nome dos adquirentes, os efeitos jurídicos daí resultantes serão os previstos e decorrentes das normas legais em vigor e da sua adequada interpretação, face às finalidades legais dessas mesmas normas, o que in casu, levou a que o tribunal arbitral considerasse o registo como presunção ilidível da existência do direito e que só as pessoas que provocam custos viários e ambientais devam ser tributadas».
Por isso, é convicção de que, no caso concreto, a confiança e segurança jurídica não se mostram afetadas, outrossim se o sujeito passivo fosse penalizado por uma conduta, que sempre tinha sido legal e para a qual, apenas por razões muito ponderosas, mas que não tinham a ver com o tributo em si mesmo, se teria justificado solicitar a apreensão do veículo.
Eficiência do sistema tributário
16.5 A Requerida considera que a interpretação da Requerente é ofensiva do princípio da eficiência do sistema tributário, na medida em que se traduz num entorpecimento e encarecimento das competências atribuídas à Requerida, com óbvio prejuízo para os interesses do Estado Português, na medida em que traz custos administrativos adicionais, entorpecimento do desempenho dos seus serviços, ausência de controlo do tributo e inutilidade dos sistemas de informação dos registos.
O artigo 267.º da Constituição da Republica Portuguesa impõe que a Administração Pública se estruture em termos de evitar a burocratização, princípio reafirmado no artigo 5.º, n.º 1 do Novo Código do Procedimento Administrativo ao preceituar que «deve pautar-se por critérios de eficiência, economicidade e celeridade».
O artigo 55.º da LGT embora não exprima literalmente o termo eficiência, refere a proporcionalidade e a celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados.
O que se impõe é dentro do quadro normativo oferecido pelo legislador, a administração tributária se organizar e encontrar soluções administrativas e técnicas, de modo a que, com os recursos humanos, financeiros e materiais que dispõe, consiga potenciar a sua capacidade de realização das finalidades tributárias.
O legislador apontou caminhos para a melhoria dessa eficiência, como sejam a informatização de procedimentos, a utilização da via eletrónica, nalguns casos obrigatória, para o cumprimento de obrigações tributárias, a celebração de protocolos com diversas entidades para efeitos diversos, incluindo a liquidação de impostos, mas a atuação da administração tributária terá de se conter nos estritos limites da legalidade do imposto.
A administração tributária tem normalmente meios e recursos para dar resposta às exigências legais da cobrança do imposto, pelo que o entorpecimento da sua atividade só acontecerá, no caso dos proprietários que constam do registo automóvel não se reconhecerem como sujeitos passivos, se por inércia ou outra incapacidade, não forem criados os mecanismos necessários de perseguição do devedor fiscal, preferencialmente, para maior celeridade, utilizando a via eletrónica.
Em abstrato, o ajustamento entre os fins prosseguidos e os meios selecionados para os atingir é uma tarefa de racionalização administrativa a desenvolver sem imposição de obrigações excessivas ou espúrias aos contribuintes, num quadro de proporcionalidade.
Por outro lado, a Requerida tem uma importante faculdade de iniciativa e persuasão junto do legislador, dado que onde vislumbrar a existência de estrangulamentos legislativos ou o aparecimento de dificuldades interpretativas suscetíveis de comprometer as suas realizações em termos de objetivos, pode ser pró-ativa e propor que sejam criadas essas normas que removam esses obstáculos, podendo, desde logo contar com a sensibilidade do poder legislativo, dado que a este também lhe interessa que exista um quadro de legalidade que permita o cumprimento dos objetivos.
Donde, a questão da eficiência no plano da constitucionalidade só se colocar se, exauridas as capacidades da Requerida, for de todo impossível inovar e recriar novas metodologias que lhe permitam alcançar os objetivos resultantes do cumprimento das suas atribuições, o que no caso dos autos não fica evidenciado.
Princípio da proporcionalidade
16.6 A Requerida argumenta que a interpretação veiculada pela Requerente põe em causa o princípio da proporcionalidade, na medida em que o desconsidera totalmente no confronto com o princípio da capacidade contributiva, quando na realidade a Requerente dispõe dos mecanismos legais necessários e adequados à salvaguarda daquela sua capacidade (v.g., o registo automóvel), sem que, contudo, os tenha exercitado em devido tempo.
Decorre do artigo 266.º, n.º 2 da CRP, que estabelece os princípios fundamentais da Administração Pública, que os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e devem atuar no exercício das suas funções com respeito pelo princípio da proporcionalidade.
A LGT refere no artigo 55.º que a administração tributária exerce as suas atribuições na prossecução do interesse público, de acordo igualmente com o princípio da proporcionalidade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários.
No estrito âmbito da proporcionalidade, o artigo 46.º do CPPT preceitua que «Os atos a adotar no procedimento serão os adequados aos objetivos a atingir, de acordo com os princípios da proporcionalidade, eficiência, praticabilidade e simplicidade».
O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 041177, de 01.07.1997, dimensiona-o em termos da «congruência, adequação ou idoneidade do meio ou da medida para lograr o fim legalmente proposto».
No ponto de vista do tribunal arbitral, a conclusão a que se chegou sobre a natureza presuntiva do artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, que não deixa de combinar com a própria unidade do sistema jurídico, não fere o princípio da proporcionalidade, uma vez que, exigido o respeito pelas garantias dos contribuintes, se esse respeito implica redirecionar a liquidação para outro contribuinte, que é identificado como o efetivo proprietário do veículo e que tem o poder de dele dispor, à AT cabe criar esse mecanismo de «perseguição» do sujeito passivo, aliás muito facilitado, no que toca à comunicação entre sujeitos passivos coletivos e a própria AT, dada a exigência da via eletrónica.
17. A Requerida aponta ainda para o facto de a Requerente não ter procedido com o zelo que lhe era exigível, uma vez que não atualizou o registo automóvel, como aliás podia e competia, apenas tendo mandado cancelar a matrícula do veículo, cinco anos depois, em 26.11.2013.
Este tribunal arbitral não dispõe de elementos que lhe permitam concluir por uma falta de zelo da Requerente, nomeadamente, porque ao tempo, ela não tinha qualquer possibilidade de atualização do registo que, para os vendedores, como acima se viu, só veio a acontecer em 2014.
18. Dos montantes exigidos pela Requerida, um montante corresponde a IUC liquidado e não pago que se encontra em execução fiscal, correspondentes aos anos de 2011, 2012 e 2013 e outro montante corresponde a coimas referentes ao não pagamento do IUC do ano de 2011, no valor de 357,08 € e do ano de 2013, no valor de 405,04 €.
Nos termos do artigo 53.º do RGIT as decisões de aplicação de coima e sanções acessórias podem ser objeto de recurso para o tribunal tributário de 1.ª instância, salvo nos casos em que a contraordenação é julgada em 1.ª instância pelo tribunal comum. Subjacentes às mesmas há a prática de uma infração tributária sem natureza criminal, entendida a infração como facto típico, ilícito e culposo declarado punível por lei tributária anterior.
No caso, as coimas aplicadas resultam do incumprimento do pagamento da prestação tributária no período legalmente fixado.
Nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, a competência dos tribunais arbitrais compreende a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta.
Por outro lado, nos termos do artigo 24.º, n.º 1, alínea c), do mesmo RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, rever os atos tributários que se encontrem numa relação de prejudicialidade ou de dependência com os atos tributários objeto da decisão arbitral.
Assim sendo, o tribunal arbitral abstém-se de conhecer do pedido da Requerente, no que respeita às coimas, cabendo à Requerida extrair as consequências da procedência do pedido arbitral.
VI - CUSTAS ARBITRAIS
19. O disposto nos artigos 22.º, n.º 4 do RJAT, e 4.º, n.º 4 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, (RCPAT) preceituam que na decisão arbitral consta a fixação do montante e a repartição pelas partes das custas diretamente resultantes do processo arbitral.
Uma vez que ambas as Partes sucumbiram na defesa dos atos tributários impugnados, cabe-lhes suportar as custas do processo arbitral na proporção desse decaimento.
VII – DECISÃO
Nestes termos, o Tribunal Arbitral Singular decide o seguinte:
1) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a consequente anulação dos atos de liquidação relativos ao veículo objeto de apreciação, por vício de violação de lei, em razão de erro nos pressupostos de facto e de direito, determinando-se a eliminação da exigência do pagamento do IUC dos anos de 2011, 2012 e 2013, totalizando 3117,59 €.
2) Abster-se de conhecer do pedido da Requerente, no que toca às liquidações referentes às coimas aplicadas em sede de contraordenação.
3) Condenar a Requerida e a Requerente no pagamento de custas arbitrais, na proporção em que decaíram relativamente ao valor do processo.
Nos termos do disposto no artigo 97.º A, do CPPT, aplicável por força do que se dispõe no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e no artigo 3.º, n.º 2 do RCPAT, é fixado o valor do processo em € 3879,71 (três mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e um cêntimos), importância correspondente à soma dos montantes das liquidações impugnadas, cuja anulação foi requerida.
Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, aplicável por remissão do seu artigo 4.º, n.º 1, as custas são fixadas no valor de € 612 (seiscentos e doze euros), sendo 491,80 € (quatrocentos e noventa e um euros e oitenta cêntimos) a pagar pela Requerida, e 120,20 € (cento e vinte euros e vinte cêntimos) a pagar pela Requerente.
Notifique-se.
Lisboa, 13 julho de 2016.
O Árbitro Singular
António Manuel Melo Gonçalves