Decisão Arbitral
I. RELATÓRIO
A…, SA, pessoa coletiva…, com sede na Avenida…, nº…, … -…, em Lisboa, apresentou um pedido de constituição do Tribunal Arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT), com o objectivo de obter a declaração de ilegalidade do indeferimento das reclamações graciosas apresentadas relativas aos actos de liquidação de IS identificados nos autos, no valor de €3.159,20.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Presidente do CAAD em 28 de Janeiro de 2016 e automaticamente notificado à AT.
Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 20 de Abril de 2016.
A AT respondeu, defendendo a extinção da instância arbitral, face à verificação da extemporaneidade do pedido ou, caso assim não se entenda, a improcedência do pedido.
Foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, em face do teor da matéria contida nos autos, tendo as partes sido notificadas para apresentar alegações escritas facultativas.
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária, são legítimas e estão representadas (artigo 4.º, e n.º 2 do artigo 10 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades, sendo que será apreciada prioritariamente a excepção invocada pela Requerida.
II. MATÉRIA DE FACTO
Com base nos elementos que constam do processo junto aos autos, consideram-se provados os seguintes factos:
A) O … serviço de finanças do concelho de Vila Nova de Gaia, emitiu os seguintes actos de liquidação do Imposto do Selo da verba 1.1. da Tabela Geral na quantia total de €3.159,20 (três mil cento e cinquenta e nove euros e vinte cêntimos):
· Liquidação n.º …
· Liquidação n.º …
· Liquidação n.º …
· Liquidação n.º …
· Liquidação n.º …
B) Tais actos de liquidação referem-se às aquisições, por adjudicação da Requerente, nos autos de insolvência n.ºs …/12… TBMTS, correndo termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Matosinhos; …/11… TBMAI que correu termos no 3.º Juízo com competência Cível do Tribunal Judicial da Maia; …/13… TBGDM, que correu termos no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Gondomar; …/12… TJPRT, correndo termos no 2.º Juízo com competência Cível do Tribunal Judicial do Porto; …/13… TJPRT, correndo também termos no 2.º Juízo com competência Cível do Tribunal Judicial do Porto respeitantes respetivamente a B…, C…, D…, E… e F…, não empresários, nem titulares de empresas proprietários dos prédios em causa;
C) A Requerente procedeu ao pagamento dos actos de liquidação identificados;
D) A Requerente apresentou reclamação graciosa de cada um dos actos de liquidação identificados;
E) A 13 de Outubro de 2015, a Requerente foi notificada dos actos de indeferimento das reclamações graciosas apresentadas;
Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7 do CPPT e a prova documental junta aos autos, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
III. MATÉRIA DE DIREITO
A principal questão que se coloca nos presentes autos reconduz-se a saber se a compra de bens imóveis, no âmbito dos processos de insolvência respeitantes a não empresários, nem titulares de empresas proprietários dos prédios em causa, é ou não isenta de IS, por força do disposto no artigo 269.º do Código da Insolvência e de Recuperação da Empresas (doravante CIRE).
A este propósito, a Requerente alega no seu pedido de pronúncia arbitral o seguinte:
1. O CIRE regulamenta a insolvência das pessoas singulares, ainda que não titulares de qualquer estabelecimento e empresa deixada de lado pelo anterior CEPEREF (ver artigo 2.º, nºs 1, alínea a), e 35.º e seguintes do CIRE), no Título XIII que contém os benefícios fiscais dos processos de insolvência e recuperação;
2. Nos termos do artigo 250.º do CPEREF apenas são aplicáveis aos processos de insolvência de não empresários ou titulares de empresa os Títulos IX e X;
3. “A contrario” é integralmente aplicável o Título XIII, que contém os benefícios emolumentares e fiscais aplicáveis nos processos de insolvência dos não empresários ou titulares de empresa;
4. O artigo 269.º é, assim, aplicável, ainda com as necessárias adaptações, aos processos de insolvência dos não empresários ou titulares de empresa;
5. É o que resulta de interpretação conforme a Constituição, nos termos do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 30 de Maio de 2012, processo n.º 949/11;
6. Dessa interpretação conforme a Constituição, resulta obrigatoriamente a paridade, sob pena e violação do princípio da igualdade, dos benefícios fiscais dos empresários individuais e dos não empresários ou titulares de empresa.
7. O artigo 269.º, alínea d), do CPEREF isenta de IS, a cedência dos bens do devedor aos credores, não distinguindo se o bem cedido é bem da empresa ou património do insolvente não empresário ou titular de empresa, nem distingue o título por que a cessão deve ser efectuada;
8. Não se vislumbra, assim, qualquer base legal para a presente liquidação adicional.
Por sua vez a AT alega, em síntese, o seguinte:
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Por excepção: o objecto dos presentes autos, como resulta do teor do pedido formulado pelo Requerente, são os actos de liquidação e não o acto de indeferimento da reclamação graciosa, que consubstanciam actos diferentes no conteúdo, na forma e nos requisitos legais, sendo intervenções processualmente distintas e diferenciadas;
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Conforme se verifica pela leitura do pedido a Requerente nunca se refere à legalidade da decisão das reclamações graciosas, e vem solicitar ao Tribunal, isso sim, que “são assim ilegais as liquidações efectuadas, solicitando-se a sua anulação e, na medida em que o imposto foi pago o pagamento de juros indemnizatórios.”;
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Assim, a tempestividade do pedido de pronúncia arbitral formulado é aferida em relação aos actos de liquidação, verificando-se no caso em apreço que o mesmo é manifestamente extemporâneo;
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Do exposto resulta assim que se verifica no caso em apreço a caducidade do direito de acção, o que constitui uma excepção dilatória que determina a absolvição da Requerida da instância ao abrigo da alínea h) do n.º 1 do artigo 89.º do CPTA e alínea e) do n.º 1 do 287.º do CPC, aplicável ex vi artigo 2.º do RJAT a qual, desde já, se requer.
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Por Impugnação: em causa nos presentes autos está a aplicação do reconhecimento de isenção de IMT prevista no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE e a isenção do imposto do selo prevista no art.º 269.º/1-e);
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Ora, no caso em apreço não estamos perante uma transmissão onerosa de bens que integram a universalidade de empresa ou estabelecimento vendido, permutados ou cedidos no âmbito do plano de insolvência ou de pagamentos ou da liquidação da massa insolvente, mas sim um ato de venda de um bem em processo de liquidação da massa falida.
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O objetivo da venda é a liquidação de um património e não a revitalização da empresa.
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No que respeita, concretamente à isenção do imposto do selo, a al. e) do artigo 269.º do CIRE, inclui a transmissão separada do estabelecimento dos bens imóveis que integram o activo imobilizado ou permutável da empresa, não sendo aplicável quando o insolvente não for uma empresa ou, dado que se trata de um empresário em nome individual, os bens imóveis vendidos, permutados ou cedidos não integrem o activo da empresa de que é titular.
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Para que a AT incorra no dever de pagamento de juros indemnizatórios, é necessário que se verifique uma qualquer ilegalidade que denote o carácter indevido da prestação tributária à luz das normas substantivas, ilegalidade essa que terá de ser necessariamente imputável a erro dos serviços;
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Conforme se demonstrou, as liquidações em causa não provêm de qualquer erro dos Serviços mas decorre diretamente da aplicação da lei.
11. Em face do exposto resulta assim evidente, que as liquidações de IS ora controvertidas não padecem de ilegalidade alguma, devendo, por isso, permanecer na ordem jurídica e, por conseguinte, não assiste à Requerente o direito ao pagamento de quaisquer juros indemnizatórios, devendo ser considerada como improcedente a pretensão da Requerente e a Entidade Requerida absolvida de todos os pedidos.
Vejamos o que deve ser entendido.
a) Da excepção de Intempestividade do Pedido
Na resposta apresentada, vem a AT defender-se por excepção que, caso se verifique, conduz à absolvição da instância.
A apreciação da excepção de intempestividade do pedido depende da questão de saber se a Requerente impugnou os actos de indeferimento das reclamações graciosas apresentadas ou se, ao invés disso, se limita a impugnar cada um dos actos de liquidação de IS de per si.
Ora, a Requerente identifica com clareza na sua petição arbitral quer os actos de liquidação de IS, quer os processos de reclamação graciosa apresentados e as respectivas decisões finais.
Mais resulta da petição arbitral que as reclamações graciosas apresentadas foram indeferidas por despacho do Chefe de Finanças de …, juntando-se cópia daqueles actos decisórios.
Tendo em conta que os actos que decidiram as reclamações graciosas são actos de segundo grau, em que é analisada a legalidade dos actos de liquidação identificados, considera-se que a Requerente identifica suficientemente os actos objecto da petição arbitral como sendo os actos de decisão das reclamações graciosas apresentadas por referências aos actos de liquidação subjacentes.
Em consequência, não procede a excepção de intempestividade do pedido deduzida pela Requerida.
b) Do Pedido
Resulta do artigo 11.º da Lei Geral Tributária (LGT) que a interpretação da lei fiscal deve ser efectuada atendendo aos princípios gerais de interpretação.
Os principais gerais de interpretação estão estabelecidos no artigo 9.º do Código Civil (CC), nos seguintes termos:
“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
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Considerando os argumentos expostos pelas partes importa, assim, analisar o disposto no artigo 269.º, alínea e) do CIRE e determinar se a compra de bens imóveis, no âmbito dos processos de insolvência respeitantes a não empresários, nem titulares de empresas proprietários dos prédios em causa, é ou não isenta de IS.
A este propósito dispõe o artigo 269.º do CIRE o seguinte:
“Estão isentos de imposto do selo, quando a ele se encontrem sujeitos, os seguintes actos, desde que previstos em planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente:
a) As modificações dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos sobre a insolvência;
b) Os aumentos de capital, as conversões de créditos em capital e as alienações de capital;
c) A constituição de nova sociedade ou sociedades;
d) A dação em cumprimento de bens da empresa e a cessão de bens aos credores;
e) A realização de operações de financiamento, o trespasse ou a cessão da exploração de estabelecimentos da empresa, a constituição de sociedades e a transferência de estabelecimentos comerciais, a venda, permuta ou cessão de elementos do activo da empresa, bem como a locação de bens;
f) A emissão de letras ou livranças.”
Considerando o teor literal do disposto na alínea e) do artigo 269.º do CIRE resulta que se encontram isentas de IS a venda de elementos do activo da empresa, desde que previstos em planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.
Em consequência, o sentido literal da norma em apreço confere isenção de IS às vendas de elementos do activo de empresas, não se podendo aqui entender incluídas as vendas de bens de pessoas singulares, não empresários ou titulares de empresas, uma vez que tal não está previsto na norma em análise.
Considerando o elemento racional da interpretação jurídica, deve considerar-se que toda e qualquer norma foi criada com uma determinada finalidade e que, consequentemente, deve ser entendida no sentido que melhor responda ao resultado que se pretendeu alcançar.
Neste sentido, dir-se-á que a isenção fiscal criada pelo artigo 269.º e) do CIRE parece ter tido como finalidade facilitar a realização dos actos ali descritos, anulando o impacto dos encargos fiscais normalmente associados a esses actos.
A ratio da norma poderia, por isso, em princípio, abranger os actos de venda que tivessem origem em insolvência de pessoas singulares, não empresários ou titulares de empresas, pois, sendo o objectivo da norma o de facilitar a realização daquelas operações em situações de insolvência ou de recuperação, não se vislumbra nenhum impedimento a tal previsão legal quanto às pessoas singulares.
Não obstante, a norma em análise prevê clara e expressamente que a isenção de IS se aplica à “venda, permuta ou cessão de elementos do activo da empresa” e não prevê que a isenção de IS se aplica à venda, permuta ou cessão de elementos detidos por pessoas singulares. Em consequência, Ubi lex non distinguir nec nos distinguere debemus.
Donde, a isenção de IS prevista na alínea e) do artigo 269.º do CIRE só se aplica relativamente a bens imóveis que integrem o património de uma empresa e não a bens imóveis de pessoas singulares (Vide Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no âmbito do processo n.º 765/2013, de 3 de Julho de 2013 e no âmbito do processo 866/13, d,e 25 de Setembro de 2013).
Considerando que, no caso em apreço, a Requerente adquiriu, por adjudicação, no âmbito dos processos de insolvência já identificados, prédios respeitantes a não empresários, nem titulares de empresas proprietários dos prédios em causa, a situação não é subsumível à previsão da alínea e) do artigo 269.º do CIRE, que se refere exclusivamente à venda de “elementos do activo da empresa”.
IV. DECISÃO
Termos em que este Tribunal Arbitral decide:
A) Julgar totalmente improcedente a excepção de caducidade invocada pela Requerida;
B) Julgar totalmente improcedente o pedido de anulação dos actos de indeferimento das reclamações graciosas apresentadas;
C) Condenar a Requerente nas custas do presente processo, por ser a parte vencida.
V. VALOR DO PROCESSO
Em conformidade com o disposto no artigo 306.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, 97.º-A, n.º 1 a) do CPPT e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o valor do pedido é fixado em €3.159,20.
VI. CUSTAS
Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e no artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €612, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerente.
Notifique-se.
Lisboa, 22 de Junho de 2016
A Árbitro
Magda Feliciano
(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, da alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)