Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 108/2013-T
Data da decisão: 2013-11-25  IRC  
Valor do pedido: € 3.062.983,86
Tema: Ajustamentos pelo justo valor
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Acórdão Arbitral

 

 

Os árbitros Dr. Jorge Manuel Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Prof. Doutor Paulo Lourenço e Dr. José Pedro Carvalho (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 15-7-2013, acordam no seguinte:

 

1. Relatório

 

…, SGPS, S.A., NIPC …, apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral colectivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.° e 10.° do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à declaração de ilegalidade do acto de autoliquidação de IRC do exercício de 2010, na sequência de indeferimento tácito de reclamação graciosa.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 07-05-2013.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.° 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo o Exmo. Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, o Dr. Paulo Lourenço e o Dr. José Pedro Carvalho, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 24-06-2013 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 15-07-2013.

A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu, defendendo que o pedido deve ser julgado improcedente.

Na reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, a representante da Requerente declarou prescindir da produção da prova testemunhal e as Partes acordaram em que se realizassem alegações, de forma sucessiva.

As Partes apresentaram alegações.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas excepções.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

2. Matéria de facto

 

2.1. Factos provados

 

Com base nos elementos que constam do processo e do processo administrativo junto aos autos, consideram-se provados os seguintes factos:

 

a) A Requerente integrava, no exercício de 2010, para efeitos de tributação em IRC, um grupo fiscal sujeito ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS), previsto nos artigos 69° e seguintes do Código do IRC, do qual era sociedade dominante;

b) A Requerente procedeu, em 27-5-2011, à submissão electrónica da sua declaração individual de rendimentos (Modelo 22) de IRC respeitante ao exercício de 2010, na qual foi apurado um prejuízo fiscal de EUR 16.385.827,15 (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

c) Em 30-5-2011, a Requerente apresentou a declaração de rendimentos de IRC modelo 22, do grupo de sociedades em que foi apurado um lucro tributável de € 6.489.646,68 (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

c) Durante o ano de 2010 deteve uma participação financeira de 4,91% na "B… —, SGPS, S.A.";

d) A participação referida na alínea anterior encontrava-se mensurada pelo método do justo valor por resultados e registada numa rubrica de "Investimentos mensurados ao justo valor através de resultados";

e) Até ao exercício de 2009, e para efeitos fiscais, a aludida participação encontrava-se registada ao custo de aquisição respectivo, deduzido de um ajustamento que reflectia as sucessivas reduções de mercado;

f) Depois da aprovação do Sistema de Normalização Contabilística, a Requerente passou a proceder ao registo das participações sociais pelo seu justo valor, sendo este também o critério utilizado para efeitos fiscais;

g) Aquando da transição para o regime do Sistema de Normalização Contabilística, a Requerente, tendo latente uma variação negativa correspondente à diferença entre o valor de aquisição da sua participação na "B…" e a sua cotação oficial, fê-la relevar nas rubricas de capitais próprios;

h) Tratando-se de um ajustamento negativo decorrente da aplicação do método do justo valor a participações financeiras em entidades cotadas, e porque a participação era inferior a 5% do capital social da entidade detida, a Requerente considerou apenas relevante, para efeitos fiscais, metade do seu valor;

i) A Requerente inscreveu na sua declaração de rendimentos, no campo 705 — variações patrimoniais negativas (regime transitório previsto nos n°s 1, 5 e 6 do artigo 5.º do DL 159/2009, de 13/7), o montante de € 6.171.317,11, referente, respectivamente a “1/5 do valor dos encargos financeiros associados à participação detida na … (o qual havia sido tributado entre 2007 e 2009", no valor de € 1.119.441,67, e a "1/5 de 5% do ajustamento decorrente da aplicação retrospectiva do método do justo valor" no montante de € 5.051.875,44, sintetizado no quadro que segue:

 

j) Tendo existido durante o exercício de 2010 uma variação negativa da cotação da participação em causa, face ao seu valor à data de 31/12/2009, a Requerente considerou como fiscalmente dedutível apenas 50% da respectiva perda contabilizada, a qual foi de € 14.400.120,00, ou seja, procedeu ao acréscimo ao lucro tributável, no campo 737 — 50% de outras perdas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, da verba de € 7.200.060,00, o que se sintetiza no quadro que segue:

 

 

k) Em 7-12-2012, a Requerente apresentou uma reclamação graciosa em que afirmou, além do mais, que «face à incerteza que o tratamento desta matéria encerra, por um lado, e à postura de afastamento de litígio com a AT, por outro, a Reclamante optou por seguir o entendimento vertido na Ficha Doutrinária relativa ao Processo n° 39/2011, com despacho de 24/02/2011 do Director-Geral dos Impostos, embora, conforme já referido, tal não corresponda ao entendimento que considera ser do ponto de vista técnico o mais adequado» (documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, e processo administrativo junto com a resposta);

l) Na mesma reclamação, a Requerente pediu que fosse a admitida a apresentação de declaração de substituição nos seguintes moldes:

– Dedução no campo 705 do quadro 07 da declaração modelo 22, do valor de €11.223.192,55, em vez de € 6.171.317,11, sendo a diferença (€ 5.051.875,44) motivada pelo facto de pretender deduzir 1/5 do ajustamento decorrente da aplicação retrospectiva do método do justo valor em vez de 1/5 de 50% desse valor:

 

 

– Anulação total do valor declarado (e acrescido) no campo 737 do quadro 07, no montante de € 7.200.060,00:

 

 

 

– Como consequência das alterações, o prejuízo fiscal declarado no campo 301 do quadro 09 da declaração modelo 22 passaria a ser de € 28.637.762,00 ao invés de € 16.385.827,15, sendo a diferença (€ 12.251.935,44) resultante do somatório das verbas supra referidas (€ 5.051.875,44 + € 7.200.060,00)

 

 

m) A reclamação graciosa não foi decidida até 6-5-2103, data em que a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo;

n) Em 6-5-2013, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2.2. Factos não provados

 

Não há factos com relevo para a apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.

 

2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos provados baseiam-se nos documentos indicados para cada um dos pontos e em acordo das Partes.

 

3. Matéria de direito

 

Como é pacificamente aceite por Requerente e Requerida, a questão que se coloca nos presentes autos prende-se com saber qual o tratamento fiscal a dar às perdas decorrentes da aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados.

Concretamente, in casu, verifica-se que a Requerente, no exercício de 2010 foi detentora de uma participação financeira de 4,91% na "B… —, SGPS, S.A.", que, por aplicação do critério contabilístico do justo valor, sofreu duas depreciações correspondentes à diferença entre o valor de aquisição das referidas acções e a sua cotação oficial a 1 de Janeiro, por um lado, e à variação ocorrida no ano de 2010, por outro. É necessário, então, apurar em que medida e em que termos tal depreciação deverá concorrer para a determinação do lucro tributável da Requerente.

A Requerente, conforme decorre do elenco de factos acima dados como provados, apresentou a sua declaração individual de rendimentos (Modelo 22) de IRC respeitante ao exercício de 2010, na qual considerou, na determinação do respectivo lucro tributável:

  • 1/5 de 50% das depreciações resultantes da aplicação do método do justo valor à contabilização da participação financeira em causa, com reporte a 1 de Janeiro de 2010, no total de €5.051.874,44;

  • 50% da depreciação da mesma participação financeira, no ano de 2010 (reportada a 31 de Dezembro), no montante de €7.200.060,00.

Contudo, afirma a Requerente, que apenas apresentou a referida declaração fiscal nos termos indicados, porquanto entendeu que tal lhe era imposto pela leitura que fez da Ficha Doutrinária relativa ao Processo n.º 39/2011, com despacho de 24/02/2011 do Director-Geral dos Impostos.

Entende a Requerente, contudo, que para a determinação do seu lucro tributável, deverá relevar 1/5 da depreciação registada a 1 de Janeiro, num total de €10.103.748,88, e a totalidade da depreciação registada a 31 de Dezembro, num total de €14.400.120,00, e não apenas 50% das mesmas, conforme fez constar da sua declaração.

Deste modo, nos autos apenas é questionada a consideração de apenas 50% da perda contabilística, tanto a decorrente da depreciação da cotação das acções da "B…" verificada no ano de 2010 como a decorrente da aplicação retrospectiva do método do justo valor, e já não a dedução de apenas 1/5 desse valor, que é acatada pela Requerente.

Aceite por ambos os intervenientes processuais está igualmente que a participação financeira em questão deverá ser contabilizada de acordo com o critério do justo valor, e que a mesma foi reconhecida através de resultados.

Fica, desta forma, devidamente delimitada a questão a resolver nos autos, que é, então, a de saber se perda contabilística resultante da aplicação retrospectiva do método do justo valor e a perda contabilística verificada no ano de 2010, decorrente da depreciação da cotação das acções da "B…", devidamente contabilizada de acordo com o critério aplicável do justo valor, e reconhecida em resultados, deverão ser atendidas na totalidade, ou apenas em 50%.

Normativamente, o epicentro do dissídio corporizado nos autos situa-se na norma do artigo 45.º/3 do CIRC aplicável1 cujo texto refere que:

“A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.”.

Nos autos, cumprirá então apurar se esta norma se aplica ou não ao caso em apreço, como defende a ATA na sua resposta, ou se, pelo contrário, a situação sub iudice não se subsume a tal preceito.

Vejamos, então.

 

***

Sustenta a ATA que a norma atrás aludida, ao referir especificamente que “outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio (...), concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”, estará a abranger situações como a dos autos, impondo que a variação patrimonial negativa em questão concorra para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.

Louva-se a ATA na opinião de André A. Vasconcelos2, que se justifica com a extensa abrangência do mesmo.

Refere também a ATA, notando a manutenção da redacção do preceito que nos ocupa face às alterações do CIRC motivadas pelo início da vigência do SNC, que a ausência de alterações verificadas na norma em causa, revela que não se pretendeu que o regime em causa sofresse qualquer alteração, em função das alterações introduzidas no sistema de contabilidade.

Por fim, invoca ainda a ATA o Ac. do Tribunal Constitucional 85/20103, que julgou constitucional a norma em apreço.

 

***

A questão específica em causa nos autos, entronca na questão genérica da determinação do lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC.

A este respeito, o artigo 17.º/1 do CIRC aplicável, dispõe que:

“O lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do exercício e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.”.

O n.º 9 do artigo 18.º do mesmo Código, dispõe que:

“Os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados, excepto quando:

a) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, tratando-se de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social; ou

b) Tal se encontre expressamente previsto neste Código.”.

O artigo 20.º/1 do CIRC dispõe que:

“Consideram-se rendimentos os resultantes de operações de qualquer natureza, em consequência de uma acção normal ou ocasional, básica ou meramente acessória, nomeadamente: (...)

f) Rendimentos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros; (...)

h) Mais-valias realizadas;”.

Paralelamente, o artigo 23.º/1 do mesmo, estatui que:

“Consideram-se gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente: (...)

i) Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros; (...)

l) Menos-valias realizadas;”.

Relativamente às variações patrimoniais positivas, o artigo 21.º/1 do CIRC dispõe que:

“Concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais positivas não reflectidas no resultado líquido do período de tributação, excepto: (...)

b) As mais-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade, incluindo as reservas de reavaliação ao abrigo de legislação de carácter fiscal;”

Já no que se refere às variações patrimoniais negativas, o artigo 24.º/1, também do mesmo diploma, refere que:

“Nas mesmas condições referidas para os gastos, concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do período de tributação, excepto: (...)

b) As menos-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade;”.

No que diz respeito às mais e menos-valias, dispõe o artigo 46.º/1 do mesmo Código, que:

“Consideram-se mais-valias ou menos-valias realizadas os ganhos obtidos ou as perdas sofridas mediante transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere e, bem assim, os decorrentes de sinistros ou os resultantes da afectação permanente a fins alheios à actividade exercida, respeitantes a: (...)

b) Instrumentos financeiros, com excepção dos reconhecidos pelo justo valor nos termos das alíneas a) e b) do n.º 9 do artigo 18.º”

O quadro normativo relevante para a apreciação da questão sub iudice fecha-se com a norma do artigo 45.º/3, também do CIRC aplicável, já transcrita.

 

***

Estabelecido o quadro normativo relevante cumpre partir para a análise e conjugação das diversas normas que o integram.

Tal análise deve ter na devida conta a necessária perspectiva sistemática da sua integração, ponderando, igualmente, o contexto histórico da respectiva génese.

Efectivamente, cada uma das normas tidas como relevantes para a apreciação da questão decidenda, deverá ser compreendida no correspondente enquadramento concreto, daí se retirando o seu conteúdo significante.

Assim, e antes de mais, haverá que ter presente que o actual artigo 45.º/3 do CIRC decorre da renumeração do anterior artigo 42.º/3, efectuada pelo Decreto-Lei DL 159/2009.

Aquele n.º do artigo 42.º em causa, por sua vez, foi introduzido pela Lei 32-B/2002, de 30 de Dezembro, com a seguinte redacção:

“A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remissão e amortização com redução de capital, concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.”.

De acordo com o Relatório do Ministério das Finanças para o Orçamento de Estado de 2003 (p. 33), a intervenção legislativa na área em causa (IRC) guiou-se por “duas prioridades, a saber, o combate à fraude e evasão fiscais e o alargamento da base tributável.”, enquadrando-se a alteração que aqui interessa no âmbito do “Alargamento da base tributável e medidas de moralização e neutralidade” (p. 51).

A redacção actual da norma em análise, resultou já da alteração implementada pela Lei 60-A/2005 de 30 de Dezembro, sendo que nos termos do correspondente Relatório do Ministério das Finanças (p.31), a medida em causa se enquadrou no âmbito do “COMBATE À EVASÃO E FRAUDE FISCAIS E OUTRAS MEDIDAS DIRECCIONADAS À CONSOLIDAÇÃO ORÇAMENTAL”.

Já o n.º 9 do artigo 18.º do CIRC aplicável, obtém directamente a sua justificação no preâmbulo do DL 159/2009, de 13 de Julho, que o introduziu no referido Código, onde se pode ler:

“Ainda no domínio da aproximação entre contabilidade e fiscalidade, é aceite a aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados, mas apenas nos casos em que a fiabilidade da determinação do justo valor esteja em princípio assegurada. Assim, excluem-se os instrumentos de capital próprio que não tenham um preço formado num mercado regulamentado. Além disso, manteve-se a aplicação do princípio da realização relativamente aos instrumentos financeiros mensurados ao justo valor cuja contrapartida seja reconhecida em capitais próprios, bem como as partes de capital que correspondam a mais de 5 % do capital social, ainda que reconhecidas pelo justo valor através de resultados.(...)

No mesmo sentido, identificam-se como activos abrangidos pelo regime das mais-valias e menos-valias fiscais os activos fixos tangíveis, os activos intangíveis, as propriedades de investimento, os instrumentos financeiros, com excepção daqueles em que os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor concorrem para a formação do lucro tributável no período de tributação.”.

Estas intenções expressas têm correspondência naquela norma do n.º 9 do artigo 18.º, bem como na introdução, pelo mesmo diploma legal, das alíneas f) e i) do número 1 dos artigos 20.º e 24.º do CIRC, bem como da alínea b) do n.º 1 do artigo 46.º.

Dentro do conjunto de alterações introduzidas pelo referido Decreto-Lei 159/2009, de 13 de Julho, cumpre ainda salientar que onde até aí se falava de proveitos e ganhos (artigo 20.º), passou-se a falar de rendimentos, e onde antes se falava de custos ou perdas (artigo 23.º), passou-se a falar de gastos.

 

***

A adopção da aplicação do justo valor como critério de valoração contabilístico com relevância fiscal, corresponde a uma alteração coperniciana no regime da tributação dos rendimentos ou gastos resultantes da aquisição de instrumentos financeiros.

Com efeito, previamente à adopção do justo valor, as variações patrimoniais relativas aos instrumentos financeiros eram irrelevantes do ponto de vista da formação do lucro tributável de cada período, por efeito da norma do artigo 21.º/1/b) do CIRC. Apenas no momento da realização da mais ou menos-valia é que assumia relevância fiscal a variação patrimonial verificada.

Este enquadramento fiscal tinha (como tem na parte em que se mantém) três características bem vincadas, a saber:

  • Era uma tributação única, ou seja, que ocorria uma só vez ao longo de todo o período de detenção dos instrumentos financeiros;

  • Estava dependente de uma actuação voluntária do sujeito passivo, na medida em que a transacção dos instrumentos geradores da variação patrimonial, condição da relevância tributária daquela, apenas se daria se e quando o sujeito passivo assim o quisesse;

  • A valorimetria da variação patrimonial era fixada em função da concreta transacção que desencadeava a sua relevância tributária.

A conjugação destas três características que se vêm de apontar, propiciavam, desde logo, um terreno fértil para manipulações contabilísticas e fiscais, já que o sujeito passivo podia optar por desencadear a relevância tributária no momento e termos em que tal lhe fosse fiscalmente mais proveitoso.

Por outro lado, e atenta a relevância da vontade do sujeito passivo no mecanismo de relevância tributária da variação patrimonial, o sistema estabelecido adequava-se à adopção de mecanismos de condicionamento daquela vontade, no sentido de a conformar a comportamentos economicamente mais desejáveis, que, no caso, passam pela preferência de realização de mais-valias, em detrimento da realização de menos-valias.

É neste quadro que se explica o surgimento da norma do anterior artigo 42.º/3 do CIRC, que precede o actual artigo 45.º/3 do mesmo.

Tal norma, quer na sua redacção primitiva, resultante da Lei 32-B/2002, de 30 de Dezembro, quer na que lhe foi dada pela Lei 60-A/2005 de 30 de Dezembro, explica-se objectiva e subjectivamente (ou seja, face à motivação expressa pelo legislador) por necessidades ligadas ao combate à fraude e evasão fiscais e ao alargamento da base tributável, dirigidas à almejada consolidação orçamental das contas públicas.

 

***

A aceitação da aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, operada pelo Decreto-Lei 159/2009, de 13 de Julho, veio introduzir, na parte abrangida, um modelo radicalmente diferente, quer de valorização quer de relevância tributária das variações patrimoniais relativas à detenção daqueles instrumentos.

Com efeito, a intenção do legislador aquando do acolhimento do modelo do justo valor, devidamente evidenciada, foi, assumida e expressamente, a de manter “a aplicação do princípio da realização relativamente aos instrumentos financeiros mensurados ao justo valor cuja contrapartida seja reconhecida em capitais próprios, bem como as partes de capital que correspondam a mais de 5 % do capital social, ainda que reconhecidas pelo justo valor através de resultados”.

Já relativamente a “instrumentos financeiros” que correspondam a menos “de 5 % do capital social”, “cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados, (...) nos casos em que a fiabilidade da determinação do justo valor esteja em principio assegurada”, a intenção legislativa foi a de aceitar “a aplicação do modelo do justo valor”, excluindo o princípio da realização.

Em consonância, o artigo 18.º/9 do CIRC aplicável, veio dispor que, por regra, “Os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados.”. Trata-se aqui de um afloramento evidente e deliberado do assumido princípio da realização.

Contudo, a mesma norma, na sua alínea a), estabelece a excepção a este regime, nos seguinte termos: “excepto quando: a) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, tratando-se de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social;”.

Ou seja, e igualmente conforme assumido pela entidade legislante, quando os “rendimentos ou gastos (...) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor”, “concorrem para a formação do lucro tributável” “desde que”:

  1. Sejam reconhecidos “através de resultados”;

  2. Se tratem “de instrumentos do capital próprio”;

  3. “tenham um preço formado num mercado regulamentado”; e

  4. “o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social.”.

Cumpridas estas condições:

  1. consideram-se rendimentos os resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros (artigo 20.º/1/f) do CIRC); e

  2. consideram-se gastos os resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros (artigo 23.º/1/i) d).

Deste modo, onde antes tínhamos uma relevância tributária única (one-off), aquando da transacção daqueles instrumentos, agora passamos a ter uma relevância tributária continuada. Ou seja, face às novas normas integrantes do regime da relevância tributária da contabilização pelo justo valor de instrumentos financeiros, os rendimentos ou gastos resultantes da aplicação do justo valor a estes passam a relevar directamente para a formação do lucro tributável (artigos 20.º/1/f) e 23.º/1/i) do CIRC ) do próprio ano em que se verificam, cumpridas que sejam determinadas condições (artigo 18.º/9 do CIRC), que incluem a formação do preço num mercado regulamentado, não sendo tributadas as variações patrimoniais verificadas como mais ou menos-valias (artigo 46.º/1/b) do CIRC).

Neste quadro, cessam, manifestamente, de se verificar quaisquer necessidades relativas ao combate da fraude e evasão fiscais, não só porquanto a relevância tributária das variações patrimoniais deixa de estar condicionada por um acto de vontade do sujeito passivo, mas também porquanto a valorimetria é objectivamente fixada.

Por outro lado, e pelas mesmas razões, carece igualmente de sentido qualquer medida de condicionamento da vontade do sujeito passivo, no sentido de favorecer comportamentos economicamente mais “desejáveis” e, como tal, conformes aos interesses do alargamento da base tributável e consolidação orçamental.

 

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Não obstante todas as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 159/2009, de 13 de Julho, o anterior artigo 42.º/3 do CIRC, renumerado para artigo 45.º/3, manteve a respectiva vigência, com a sua redacção inalterada.

Daí que se questione, como ocorre nos autos, se tal norma se aplicará, ou não, às depreciações relativas a instrumentos financeiros, que concorram para a formação do lucro tributável, nos termos do artigo 18.º/9/a) do CIRC.

Prima facie, a resposta a tal questão seria afirmativa, como defende a AT, atenta a abrangência de previsão em questão, apontada já pelo Autor citado por aquela na sua resposta.

Uma leitura atenta e coordenada dos normativos relevantes para a análise da causa, e que já se foram indicando, permitirá, todavia, concluir de outra forma.

Senão vejamos.

O artigo 45.º/3 do CIRC, já transcrito, refere que:

“A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.”

A análise do texto normativo revela com clareza que o legislador elegeu, para nele incluir, três tipos de situações que se deverão ter, em função da presunção de boa técnica legislativa, por distintas, a saber:

  1. “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital”;

  2. “outras perdas (...) relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio”;

  3. “outras (...) variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio”.

Vejamos, então, se a situação dos autos se reconduz a alguma das elencadas situações.

A situação aludida sob a alínea a) supra, será manifestamente inaplicável, não só porque não houve qualquer realização operada mediante transmissão onerosa, como porque o artigo 46.º/1/b) exclui as situações descritas no artigo 18.º/9/a) do conceito de mais valias realizadas. Deste modo, qualquer dificuldade que no caso exista, apenas se poderá reconduzir a alguma das situações elencadas nas alíneas b) e c) supra.

A aparente abrangência indiscriminada das previsões em causa, poderá, contudo, ser razoavelmente mitigada se se atentar que “perdas” e “outras variações patrimoniais negativas”, serão conceitos, não redundantes, mas dotados de um sentido próprio e distinto.

Para compreender tal facto, será necessário recuar aos artigos 23.º e 24.º do mesmo Código, atentando na evolução terminológica operada pelo artigo 159/2009, de 13 de Dezembro.

Com efeito, antes da entrada em vigor deste último diploma, os artigos referidos do CIRC referiam, respectivamente, que:

  • “Consideram-se custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente os seguintes: (...)”;

  • “Nas mesmas condições referidas para os custos ou perdas, concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício, excepto: (...)”.

Verifica-se, deste modo, que aquando da consagração da redacção actual do artigo 45.º/3 do CIRC, este Código distinguiu expressamente, para o que aqui releva, três tipos de situações, a saber:

  1. Custos;

  2. Perdas;

  3. Variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício.

A previsão do artigo 42.º/3 (predecessor do actual 45.º/3), dever-se-á considerar, assim, por reportada a estes conceitos, definidos nos artigos 23.º e 24.º. Deste modo, e por razões óbvias, da previsão daquela norma dever-se-ão ter por excluídos os custos relativos “a partes de capital ou outras componentes do capital próprio”, incluindo-se ali, unicamente, as perdas (tal como definidas no artigo 23.º) e variações patrimoniais negativas (tal como definidas no artigo 24.º), relativas àquelas partes.

E que assim é, ou seja, que a expressão “outras perdas ou variações patrimoniais negativas” utilizada no actual artigo 45.º/3 do CIRC não tem um sentido indiscriminadamente abrangente, mas antes um sentido preciso, definido nos artigo 23.º e 24.º, decorre desde logo do facto de o legislador ter empregue a mesma distinção.

Para além disso, a inclusão no âmbito da norma em causa, não só das perdas (tal como definidas no artigo 23.º) e variações patrimoniais negativas (tal como definidas no artigo 24.º), mas também dos custos (tal como definidos no artigo 23.º), levaria a que, por exemplo, o custo de aquisição de partes de capital apenas concorresse em metade do respectivo valor para o apuramento do lucro tributável, o que seria, obviamente, inconcebível num legislador minimamente razoável.

A alteração normativa implementada pelo Decreto-Lei 159/2009, de 13 de Julho, não terá alterado nada de relevante na matéria em causa. Com efeito, não obstante o corpo do artigo 23.º ter passado a referir-se unicamente a gastos, o certo é que o CIRC continua a utilizar a expressão “perdas”, incluindo no próprio artigo 23.º (cfr. n.º 1, alínea h)). Tal ocorre em coerência, aliás, com o SNC, que nos termos do ponto 2.1.3.e) do anexo ao Decreto-Lei 158/2009 de 12 de Julho, mantém a distinção entre “gastos” e “perdas”.

Deste modo, conclui-se que o artigo 45.º/3 do CIRC aplicável, se reportará a:

  1. diferenças negativas entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital;

  2. outras perdas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio; e

  3. outras variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.

sendo que por “perdas” se deve entender os factos qualificáveis como tal à luz do CIRC, e por “variações patrimoniais negativas” se deverá entender variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício, tal como definidas no artigo 24.º.

Não se incluirão deste modo, no âmbito da norma em causa, os factos qualificáveis como “gastos”, à luz do CIRC, ainda que relativos a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.

A própria AT parece reconhecer isto mesmo, já que no “Manual de Preenchimento do Quadro 07, Modelo 224, a propósito do campo 737, refere que “Neste campo são inscritas, em 50%, as importâncias relativas a outras perdas (que não sejam menos-valias, dado que estas obedecem ao “mecanismo” das mais-valias e menos-valias) relativas a partes de capital ou outras componentes de capital próprio. São, por exemplo, acrescidas neste campo 737 as importâncias correspondentes a 50% das perdas por reduções de justo valor, quando estas se enquadrem no âmbito do artigo 23.º, n.º 1, alínea i), por força do disposto no art.º 18.º, n.º 9, alínea a)”. Sucede que o artigo 23.º/1/i) do CIRC não se refere às importâncias em causa como “perdas”, mas como “gastos”, pelo que será incorrecta a sua inscrição no campo em causa.

De resto, e se dúvidas houvesse, caso o legislador, aquando da entrada em vigor do Decreto-Lei 159/2009 de 13 de Dezembro, pretendesse abranger as situações elencadas no artigo 18.º/9/a) do CIRC, no âmbito do artigo 45.º/3 do mesmo, teria:

  • incluído os “Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”, não no artigo 23.º, mas no artigo 24.º do CIRC5; ou

  • referido tais situações como “perdas resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros” e não como “gastos”.

 

***

No quadro que se acaba de expor, deve-se então considerar que o Decreto-Lei 159/2009, de 13 de Julho veio introduzir, no que respeita à parte abrangida pela aceitação da aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, um regime especial de relevância para o cômputo do lucro tributável, justificado quer pela sua objectividade própria quer pela confessada intenção de aproximação da contabilidade à fiscalidade.

Esta circunstância não é, face à redacção actual do CIRC, susceptível de gerar qualquer tipo de dúvidas, como se verifica, designadamente, pela redacção dos artigos 20.º/1/f) e h), 23.º/1/i) e l), e, em especial 46.º/1/b), face aos quais se evidencia de uma forma clara a intenção do legislador afastar os ajustamentos decorrentes da aplicação do critério do justo valor em instrumentos financeiros, nos termos reconhecidos pelo CIRC, do regime das mais e menos-valias.

Já o regime resultante da conjugação dos artigos 45.º/3 e 46.º do CIRS, apenas faz sentido na perspectiva da atendibilidade das variações patrimoniais em causa sob o prisma do referido princípio da realização.

É que, estando em causa, face a tal princípio, a aferição da variação patrimonial em função de uma transacção, haverá sempre um factor voluntário em relação àquela.

Ou seja, no regime para o qual foi pensada e instituída a norma do artigo 45.º/3, a realização de menos-valias, e demais situações elencadas estava dependente de uma actuação voluntária correspondente à realização das mesmas. Ora, neste quadro, será compreensível que o legislador institua mecanismos de desincentivo a uma actuação susceptível de ser considerada como desvaliosa, no caso a realização de menos-valias ou outras variações patrimoniais negativas. Ao dispor que tais situações apenas relevarão em 50% do montante contabilizado, o legislador fiscal está, objectivamente, a condicionar as actuações abrangidas pela previsão legal, impondo um incentivo negativo às mesmas.

Por outro lado, e estando em causa instrumentos financeiros de valor não objectivamente quantificável, a desconsideração em 50% das variações patrimoniais negativas verificadas, teria também uma função de “compensar” a natural tendência dos operadores económicos para, ao nível fiscal, inflacionarem os prejuízos.

Contudo, aqueles aspectos não se verificarão já nas situações abrangidas pelo artigo 18.º/9/a). Aqui, estando-se perante ajustes decorrentes da contabilização do justo valor, determinado por critérios objectivos (com “um preço formado num mercado regulamentado”), não há qualquer dúvida ou intervenção da vontade do sujeito passivo na verificação do ajustamento patrimonial negativo ou positivo. Ou seja, estes ocorrerão ou não, independentemente da actuação e da vontade do sujeito passivo.

Ora, penalizar, nestes casos, o sujeito passivo com uma desconsideração de 50% do gasto incorrido, seria de todo injustificado, quer de um ponto de vista económico quer de um ponto de vista jurídico.

É que, recorde-se, esta situação de penalização contingente (aleatória, até) injustificada, só se daria por força da excepcionação ao regime do princípio da realização das situações abrangidas pelo artigo 18.º/9/a) do CIRC aplicável. Ou seja, se relativamente a essas situações se aplicasse o regime geral do corpo do artigo 18.º/9, segundo o qual as mesmas não concorreriam “para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados”, a apontada incoerência não se verificaria, já que o facto que desencadearia a concorrência para a formação do lucro tributável apenas se daria por vontade do sujeito passivo, pelo que caberia a este optar por realizar a variação patrimonial negativa, com a consequente penalização fiscal, ou diferir esta para um momento em que fosse menos volumosa ou, até positiva, diminuindo ou eliminando a penalização decorrente da operação para si e para o Erário. É a excepção da alínea a), ao retirar as situações aí previstas do âmbito do princípio da realização, que justifica o novo regime de relevância para o lucro tributável, instituído.

Evidência de tudo o que vem de se dizer, apresenta-se no quadro elaborado de seguida, o qual demonstra a irrazoabilidade da aplicação da norma do artigo 45.º/3 às situações abrangidas pelo artigo 18.º/9/a):

 

Ano

Valor Inv. Financeiro

Variação Patrimonial

Aplicação do artigo 45.º/3 do CIRC

0

Valor de aquisição (V.A.)

0

0

1

V.A.+ 40

+ 40

+40

2

V.A.+ 20

-20

-10

3

V.A

-20

-10

4

V.A.-40

-40

-20

5

V.A.

+40

+40

6

V.A. -20

-20

-10

 

A não aplicação da norma do artigo 45.º/3 do CIRC aos gastos, e concretamente aos “Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”, com a consideração plena das repercussões patrimoniais verificadas, sejam positivas ou negativas, leva a uma coerência da tributação qualquer que seja a altura em que se verifique a alienação do instrumento financeiro. Ou seja, em qualquer altura que se escolha para proceder à alienação do instrumento financeiro, as alterações patrimoniais positivas e negativas compensam-se, de modo que, a final, o sujeito passivo apenas tenha acrescentado ou diminuído ao seu lucro tributável a diferença entre o valor de aquisição e o valor de venda.

Já se se aplicasse a norma do artigo 45.º/3 do CIRC, como pretende a ATA, a partir do momento em que se verifique uma alteração patrimonial negativa, haverá uma discrepância entre a relevância fiscal das variações patrimoniais negativas e positivas, sem qualquer justificação, como se disse, uma vez que aquelas variações ocorrem de forma objectiva e independente da actuação ou vontade do sujeito passivo. Assim, se ao fim do segundo ano o sujeito passivo do exemplo supra procedesse à realização do instrumento financeiro em causa, não obstante ter realizado uma mais-valia de apenas 20 (que seria tributada como tal ao abrigo do princípio da realização), teria, afinal, pago imposto sobre 30 (40-10). Do mesmo modo, se procedesse àquela realização ao fim do terceiro ano, teria pago imposto sobre 20, não obstante não ter tido qualquer acréscimo patrimonial com a operação. E se procedesse à mesma realização ao fim do sexto ano, teria pago imposto como se tivesse tido um acréscimo patrimonial de 30 (80-50), não obstante ter tido uma variação patrimonial efectiva de -20, que, ao abrigo do princípio da realização consagrado no CIRC, seria atendível, ainda que em apenas 50% do respectivo valor (-10)!

Parece claro que tais resultados, meramente aleatórios e sem qualquer justificação substancial que os sustente, não poderão ter sido queridos por um legislador razoável.

É certo que a solução alternativa, que exclui a aplicação do artigo 45.º/3, leva a que, no caso de se verificar, a final, uma menos-valia, esta acabe por ter sido considerada a 100%, e não a 50%, como ocorreria ao abrigo do princípio da realização. Seria o caso de, no exemplo do quadro supra, a realização ocorrer nos anos 4 ou 6. Contudo, esta discriminação positiva (ou melhor, não discriminação negativa) pela opção pelo critério do justo valor, poderá justificar-se, desde logo, porquanto no regime do artigo 18.º/9/a), deixa de fazer sentido qualquer desincentivo à realização de menos-valias, uma vez que as mesmas relevarão fiscalmente independentemente da sua efectiva realização. Não se deverá desconsiderar igualmente que, por um lado, a contabilização pelo justo valor é considerada mais conforme à aproximação entre a contabilidade e a fiscalidade, finalidade confessadamente prosseguida pelo legislador do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, e, por outro, a circunstância de estarmos perante realidades objectivamente avaliadas, sem que haja margem significativas para manipulações fiscalmente convenientes. Ou seja, como se havia adiantado já, não se verificam as razões de combate à fraude e evasão fiscal, nem as razões de consolidação orçamental, que demonstradamente estiveram na génese da norma do artigo 45.º/3 do CIRC.

Deste modo, e em suma, em obediência às imposições hermenêuticas do artigo 9.º do Código Civil, segundo as quais “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (n.º 1), e “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.” (n.º 3), entende-se ser de interpretar o artigo 45.º/3 do CIRC, no sentido de na sua previsão não se incluírem os gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros, que relevem para a formação do lucro tributável nos termos da alínea a) do nº 9 do artigo 18.º.

 

***

Nestes termos, considerando-se que o artigo 18.º/9/a) do CIRC aplicável impõe a concorrência “para a formação do lucro tributável”, sem reservas ou limitações, dos “rendimentos ou gastos” que “(...) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor”, “desde que” sejam reconhecidos “através de resultados”; se tratem “de instrumentos do capital próprio”; “tenham um preço formado num mercado regulamentado”; e “o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social”, não se aplicando, nestes casos, o artigo 45.º/3 do referido Código, na medida em que não estão abrangidos pela previsão normativa do mesmo, entende-se que merecerá provimento o pedido.

 

 

***

4. Decisão

 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade do acto de autoliquidação de IRC praticado pela Requerente relativo ao ano de 2010, por errada aplicação do regime do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, que constitui vício e violação de lei, por erro nos pressupostos de direito, nas partes seguintes da declaração modelo 22, apresentada em 27-5-2011:

 

– no campo 705 do quadro 7, em que inscreveu o montante de € 6.171.317,11, em vez do que deveria ter inscrito que é € 11.223.192,55;

– no campo 737 do quadro 7, em que inscreveu o montante de € 7.200.060,00, em vez do que deveria ter inscrito que é € 0,00;

– nos restantes campos nos quais as alterações anteriores se repercutam, incluindo o campo 301 do quadro 9, em que inscreveu o prejuízo fiscal de € 16.385.827,15, em vez do que deveria ter inscrito que é € 28.637.762,59;

 

b) Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade da reclamação graciosa, por ter incorrido no mesmo vício de violação de lei, ao não deferir a pretensão aí formulada pela ora Requerente de apresentar um declaração de substituição com aquelas alterações dos montantes inscritos naqueles campos.

 

 

5. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 315.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 3.062.983,86.

 

 

 

 

6. Custas

 

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €39.168.00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

Lisboa, 25 de Novembro de 2013

 

 

 

Os Árbitros

 

 

 

 

(Jorge Manuel Lopes de Sousa)

 

 

 

 

 

 

(José Pedro Carvalho) – Relator

 

 

 

 

 

 

(Paulo Lourenço)

 

1 Redacção dada pelo DL 159/2009, de 13 de Julho. Corresponde ao n.º 3 do anterior artigo 42.º, cuja redacção se manteve na íntegra.

2 “O justo valor e o Código do IRC”, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano 3, Número 4, Inverno, página 202.

5 Em rigor, tal seria incoerente, na medida em que o artigo 18.º/9/a) refere-se a “instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados”, e o artigo 24.º se refere, como se viu a “variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício”.