DECISÃO ARBITRAL
1. RELATÓRIO
1.1. A…, Lda. (Requerente), pessoa colectiva n.º…, com sede no…, Rua …, n.º…, …, na …, em Paço de Arcos, apresentou em 02/02/2016, pedido de pronúncia arbitral, no qual peticiona a anulação de 12 actos de liquidação referentes ao Imposto Único de Circulação (IUC) e dos correspondentes juros compensatórios, relativos aos anos de 2011 e 2012.
1.2. O Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou, em 08/03/2016, como árbitro singular o signatário desta decisão.
1.3. No dia 20/04/2016 ficou constituído o tribunal arbitral.
1.4. Cumprindo-se o disposto no n.º 1 do artigo 17.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) foi a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) notificada, em 21/04/2016, para, querendo, apresentar resposta e solicitar a produção de prova adicional.
1.5. Em 26/04/2016 foi solicitado à Requerente a identificação dos actos de liquidação em causa, a respectiva data de notificação, matrícula, ano do imposto, valor do imposto e respectivos juros compensatórios e, bem assim, a junção de todos os anexos indicados no pedido de pronúncia arbitral.
1.6. Em 06/05/2016 a Requerente reconheceu a existência de alguns “manifestos lapsos de escrita” no pedido de pronúncia arbitral apresentado em 02/02/2016, tendo incluído os documentos que se encontravam em falta.
1.7. Consequentemente, o tribunal arbitral determinou algumas rectificações ao pedido de pronúncia arbitral apresentado em 02/02/2016 e, bem assim, a junção dos Anexos I e II em complemento dos documentos indicados no pedido de pronúncia arbitral.
1.8. Em 16/05/2016 a AT apresentou a resposta.
1.9. O tribunal arbitral em 18/05/2016 decidiu dispensar a realização da reunião a que n.º 1 do artigo 18.º do RJAT se refere, com fundamento no princípio da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo, convidando ambas as partes para, querendo, apresentarem alegações escritas facultativas e agendou a data para prolação da decisão final.
1.10. Em 30/05/2016 a Requerente apresentou alegações escritas facultativas.
1.11. A AT não apresentou alegações escritas facultativas.
2. SANEAMENTO
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.
As partes têm personalidade e capacidade judiciária e são legítimas, não ocorrendo vícios de patrocínio.
Não existem nulidades, excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito e de que cumpra oficiosamente conhecer.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado dentro do prazo previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT, pelo que é tempestivo.
Verificam-se, consequentemente, as condições para ser proferida a decisão final.
3. POSIÇÕES DAS PARTES
São duas as posições em confronto, a da Requerente, vertida no pedido de pronúncia arbitral (e nas alegações subsequentes) e a da AT na sua resposta.
Em síntese, a Requerente entende que:
a) A Requerente é uma sociedade comercial que tem por objecto social a importação, comercialização, distribuição de automóveis, partes, peças, acessórios ou outros serviços complementares ou relacionados, nos quais se incluem serviços de assistência técnica;
b) No âmbito da actividade comercial, a Requerente importa para Portugal veículos automóveis da marca B…, que são, também, por si vendidos aos concessionários, que integram a rede distribuição e, são estes últimos, por sua vez, que revendem os veículos aos consumidores finais, seus clientes;
c) A Requerente alega que sendo um operador registado, os veículos automóveis podem ser por si introduzidos no consumo através da impressão das Declarações Aduaneiras de Veículo (DAV);
d) Com a emissão das DAV, e depois de pago o imposto, a Requerente solicita junto do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P. (IMTT) a atribuição de um certificado de matrícula, o que apenas faz quando a sua rede de concessionários a informa de que celebrou contrato de compra e venda de um determinado veículo;
e) A Requerente refere, ainda, o facto de que a obtenção de um certificado de matrícula obriga a apresentação da DAV, razão pela qual o primeiro registo é efectuado em nome da Requerente;
f) Sustenta a Requerente que, tendo em consideração o disposto nos artigos 3.º, n.º 1, e 6.º, n.º 1, do Código do IUC, o facto gerador do IUC é constituído pela propriedade do veículo tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional;
g) Sustenta, porém, a Requerente que, no ano da matrícula ou registo do veículo em território nacional, o proprietário dispõe de 60 dias para registar o veículo e, após este registo, inicia-se a contagem do prazo de 30 dias para liquidação e pagamento do imposto, pelo que entre o momento em que é atribuída a matrícula e o termo do prazo para liquidação e pagamento do imposto, está em causa um prazo de 90 dias, nos termos do disposto no artigo 17.º, n.º 1, do Código do IUC e do artigo 42.º, n.º 2, do Regulamento do Registo Automóvel (RRA);
h) Sustenta, ainda, a Requerente no seu pedido de pronúncia arbitral que o artigo 18.º, do Código do IUC dispõe que na ausência de registo, findo o prazo de 60 dias para registo, o imposto devido no ano da matrícula é liquidado ao sujeito passivo com base na DAV;
i) Deste modo, a Requerente conclui que se a propriedade dos veículos for transmitida antes do decurso do prazo para o registo dos veículos e, antes do imposto ser liquidado e exigível, é possível afastar a responsabilidade do anterior proprietário registado (o proprietário inicial) do veículo;
j) Sustenta a Requerente que, ainda que nalguns casos, findo o prazo de sessenta dias para registo, ainda estivesse registada como proprietária dos referidos veículos, na verdade os mesmos já haviam sido transmitidos;
k) Ou seja, de acordo com a Requerente, findo o prazo de sessenta dias para registo, já os veículos haviam sido transmitidos para um terceiro (o concessionário) que, por seu turno, os transmitiu aos consumidores finais antes do imposto se mostrar exigível;
l) Sustenta a Requerente que o artigo 3.º do Código do IUC consagra assim uma presunção ilidível, a qual é afastada através da junção de documentação que comprova a transmissão dos referidos veículos antes do termo do prazo para registo e, consequentemente, antes do imposto se mostrar exigível;
m) Nesta medida, à data de liquidação e vencimento das liquidações de IUC em apreço, a Requerente considerou não ser proprietária dos veículos constantes das notificações e, bem assim, não ser responsável pelo pagamento do imposto;
n) Alega, ainda, a Requerente que o registo da propriedade automóvel não tem efeito constitutivo da propriedade, mas sim natureza declarativa e, bem assim, que a propriedade dos veículos é determinada por efeito do contrato, de acordo com o artigo 897.º, alínea a) do Código Civil;
o) Em suma, a Requerente sustenta que há um erro de facto e de direito na interpretação e aplicação das normas de incidência subjectiva do IUC, pelo que deve ser determinada a anulação dos 12 actos de liquidação relativos ao IUC, referentes a 12 veículos identificados pelo número de matrícula e, bem assim, dos correspondentes juros compensatórios.
Doutro modo, sustenta a AT que:
a) A AT considera que a emissão de certificado de matrícula implica a apresentação de uma DAV por parte da Requerente e o pagamento do correspondente imposto ISV, e origina automaticamente o registo da propriedade do veículo ao abrigo do artigo 24.º do RRA [1] em nome da entidade que procedeu à sua importação do veículo e pedido de matrícula, ou seja a Requerente;
b) Logo, o primeiro registo de cada veículo é concretizado em nome da entidade importadora, neste caso da Requerente (que ocorreu efectivamente, no caso concreto);
c) Sustenta a AT que nos termos do artigo 24.º do RRA, o importador figura no registo como primeiro proprietário do veículo e nesse sentido é, de acordo com o estatuído no artigo 3.º e no artigo 6.º, ambos do Código do IUC, sujeito passivo de imposto;
d) Nesta medida, sendo a Requerente a importadora das viaturas cabe-lhe nessa qualidade a sua introdução no consumo em território nacional, através da entrega da DAV e correspondente pagamento do ISV, sendo-lhe emitida a matrícula e efectuado o primeiro registo em seu nome;
e) Segundo a AT é, pois, manifestamente irrelevante a venda aos seus concessionários antes da atribuição da matrícula;
f) O legislador tributário, no artigo 6.º do Código do IUC, estabeleceu claramente as premissas quanto ao facto gerador do imposto, bem como da sua exigibilidade, consignando inequivocamente que tal facto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional;
g) Segundo a AT, o legislador tributário não ficcionou que o imposto seria devido pelo proprietário do veículo que se encontrasse registado nos 60 dias a que alude artigo 42.º, n.º 2 do RRA, o qual seria pago nos 30 dias posteriores nos termos do artigo 17.º do Código do IUC;
h) Nem tão-pouco ficcionou que os importadores, não obstante procedam à venda dos veículos antes da atribuição do certificado de matrícula, possam assim ver excluída a incidência subjectiva de IUC;
i) Assim, tendo a Requerente solicitado preenchido a DAV, pago o ISV e pedido o certificado de matrícula, e concomitantemente o veículo registado em seu nome, ela preenche inelutavelmente o facto gerador do imposto (incidência objectiva / subjectiva), sendo-lhe exigível o seu pagamento nos termos do artigo 3.º do Código do IUC;
j) Ora, aquando da introdução do veículo no consumo através do certificado de matrícula solicitado pela Requerente, esta preenche duplamente – matrícula e registo – a incidência subjectiva do imposto;
k) Por outro lado, o artigo 18.º do Código do IUC veio consagrar como regra a sujeição a imposto do sujeito passivo que apresentou a declaração aduaneira e solicitou a emissão da matrícula, se a viatura não for registada em nome doutrem no prazo de 60 dias a que alude o disposto no artigo 42.º do RRA acrescido do prazo para liquidação e pagamento estatuído no artigo 17.º do Código do IUC;
l) A AT invoca, ainda, que o entendimento propugnado pela Requerente com vista a afastar a incidência subjectiva e tributação do IUC, em caso de vender o veículo antes da atribuição da matrícula além de não ter acolhimento legal viola os princípios constitucionais da legalidade e justiça tributária, da capacidade contributiva;
m) A AT invoca, ainda, a ausência de prova da transmissão dos veículos em causa, uma vez que a Requerente não juntou o comprovativo do requerimento automóvel, com vista a aferir quem figura como vendedor do veículo atendendo a que, conforme referido pela própria Requerente, com a emissão da factura é transferida a propriedade;
n) Com efeito, pese embora de não terem sido juntas aos autos as correspondentes facturas, entende a AT que estes documentos não são idóneos para comprovar a opção de compra por parte dos locatários, uma vez que as mesmas não passam de documentos unilateralmente emitidos pela Requerente e, como tal, não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois tais documentos não revelam por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (a aceitação) por parte dos pretensos adquirentes.
4. MATÉRIA DE FACTO
4.1. FACTOS QUE SE CONSIDERAM PROVADOS
Em face dos documentos carreados para o processo, dá-se como provado que:
4.1.1. A Requerente foi notificada de 12 actos liquidação de IUC, referentes aos anos
de 2011 e 2012, por parte do Serviço de Finanças de Oeiras -…, em Setembro de 2015, no valor de € 2.039,12 para, querendo, exercer o respectivo direito de audição prévia.
4.1.2. A Requerente exerceu o direito de audição prévia, nos termos do qual considerou que à data da liquidação e vencimento do imposto, os veículos já não se encontravam registados em seu nome, pelo que não deveria ser considerada sujeito passivo de IUC.
4.1.3. A Requerente foi notificada da resposta ao direito de audição prévia, nos termos do qual não foi dado provimento ao direito de audição.
4.1.4. A Requerente foi notificada das demonstrações de liquidação de IUC, referentes aos anos de 2011 e 2012, por parte do Serviço de Finanças de Oeiras -…, em Novembro e Dezembro de 2015, no valor de € 2.039,12, a saber:
Matrícula
|
Ano
|
Liquidação Oficiosa
|
Valor IUC
|
Valor
Juros
|
Montante Total
|
…-… -…
|
2011
|
2011…
|
310,04
|
52,46
|
362,50
|
…-… -…
|
2011
|
2011…
|
124,15
|
19,50
|
143,65
|
…-… -…
|
2012
|
2012…
|
160,78
|
18,98
|
179,76
|
…-… -…
|
2012
|
2012…
|
160,78
|
17,20
|
177,98
|
…-… -…
|
2012
|
2012…
|
96,57
|
10,32
|
106,89
|
…-… -…
|
2012
|
2012…
|
96,57
|
10,32
|
106,89
|
…-… -…
|
2012
|
2012…
|
96,57
|
10,40
|
106,97
|
…-… -…
|
2012
|
2012…
|
96,57
|
10,40
|
106,97
|
…-… -…
|
2012
|
2012…
|
96,57
|
10,40
|
106,97
|
…-… -…
|
2012
|
2012…
|
321,45
|
34,59
|
356,04
|
…-… -…
|
2012
|
2012…
|
128,43
|
13,82
|
142,25
|
…-… -…
|
2012
|
2012…
|
128,43
|
13,82
|
142,25
|
TOTAL
|
|
|
1 816,91
|
222,21
|
2 039,12
|
4.1.5. Considera-se, ainda, provado o processo de transmissão de propriedade ao consumidor final, de cada um dos 12 veículos, sobre o qual foi liquidado IUC e os correspondentes juros compensatórios, na medida em que foi junta documentação bastante (cfr. factura de venda ao concessionário, factura de venda do concessionário ao consumidor final e auto de entrega do veículo).
4.2. FACTOS QUE NÃO SE CONSIDERAM PROVADOS
Não existem factos com relevo para a decisão que não tenham sido dados como provados.
5. O DIREITO
5.1. DA INCIDÊNCIA SUBJECTIVA DO IUC
De acordo com o disposto no artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC, “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.”.
Ora, o recurso ao registo automóvel como elemento estruturante do funcionamento deste imposto evidencia-se, de resto, ao longo de todo o Código do IUC.
Refira-se, ainda, o teor do artigo 6.º do Código do IUC, relativo à definição do facto gerador da obrigação de imposto, nos termos do qual, este “(…) é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional.”. [2]
Deste preceito, decorre igualmente que os veículos que não estejam, nem devam estar, sujeitos a registo em território português, apenas ficam sujeitos a este imposto se permanecerem no mesmo por um período superior a 183 dias. [3]
Trata-se, pois, de uma norma que, recorrendo ao elemento registal, estabelece, simultaneamente, o facto gerador do imposto e a respectiva conexão fiscal.
É, também, dos elementos do registo automóvel que se extrai o momento do inicio do período de tributação [4], bem como, de uma maneira geral, todos os elementos necessários à liquidação do imposto em causa, como é, designadamente, o caso da cilindrada, antiguidade da matrícula, tipo de combustível e nível de emissão de dióxido de carbono (CO2). [5]
Contudo, da dependência do regime de tributação do IUC em relação ao registo automóvel não se pode deixar de concluir, que a norma de incidência subjectiva na parte em que considera como proprietário a pessoa em nome do qual o veículo se encontre registado constitui uma mera presunção (legal) de incidência.
Importa, pois, recorrer a outros elementos interpretativos, em especial, à respectiva noção legal.
Atendendo ao teor literal do artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC, importa analisar, em especial, a expressão “considerando-se como tais”, em especial na perspectiva do disposto no artigo 9.º, n.º 2 do Código Civil, quando estabelece não poder ser compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo que não tenha na respectiva letra um mínimo de correspondência verbal ainda que imperfeitamente expresso.
É certo que o actual texto não usou o termo “presumem-se”, ao contrário do que constava do extinto Regulamento do Imposto Sobre Veículos. [6]
Poderá o facto do legislador ter optado pela expressão “considerando-se” inviabilizar a possibilidade de estarmos perante uma presunção legal?
Ora, examinando o ordenamento jurídico português, encontramos diversos exemplos de normas que consagram presunções utilizando o verbo “considerar”, muitas das quais empregues no gerúndio (“considerando” ou mesmo “considerando-se”).
São disso exemplo as normas a seguir apresentadas. No Código Civil, entre outras, os artigos 314.º, 369.º, n.º 2, 374.º, n.º 1, 376.º, n.º 2 e 1629.º. Já no Código da Propriedade Industrial, a título meramente exemplificativo, o artigo 98.º onde também o termo “considerando” é usado num contexto presuntivo.
Também no ordenamento jurídico tributário podemos encontrar o verbo “considerar” com um sentido presuntivo.
Segundo Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, na anotação ao artigo 73.º, n.º 3 da Lei Geral Tributária (LGT) “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, revelada pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real”, dando de seguida alguns exemplos de normas em que é utilizado o verbo “considerar” como é, designadamente, o caso do artigo 21.º, n.º 2 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), ao estabelecer que “para efeitos de determinação do lucro tributável, considera-se como valor de aquisição dos incrementos patrimoniais obtidos a título gratuito o seu valor de mercado não podendo ser inferior ao que resultar da aplicação das regras de determinação do valor tributável previstas no Código do Imposto do Selo”.
Sustentam os autores, a propósito deste artigo 21.º, n.º 2 do Código do IRC que “para além de esta norma evidenciar que o que está em causa em sede de tributação de mais-valias é apurar o valor real (o de mercado), a limitação ao apuramento do valor real derivada das regras de determinação do valor tributável previstas no CIS não poder deixar de ser considerada como uma presunção em matéria de incidência, cuja ilisão é permitida pelo artigo 73.º da LGT”. [7]
Pode, ainda, referir-se a este propósito, o disposto no artigo 89-A.º, n.º 4 da LGT, no qual está, igualmente, consagrada uma presunção, sem que tenha sido usado o termo “presume-
-se”, mas sim “considera-se”. [8] [9]
Tendo em conta que o sistema jurídico deve formar um todo coerente, os exemplos acima referidos, acompanhados da doutrina e jurisprudência indicadas, por apelo ao elemento sistemático, permitem concluir que não é só quando é usado o verbo “presumir” que estamos perante uma presunção, mas também o uso de outros termos ou expressões podem, igualmente, servir de base a presunções, nomeadamente o termo “considera-se”, mostrando-se desta forma cumprida a condição estabelecida no artigo 9.º, n.º 2 do Código Civil.
Se é certo, porém, que o elemento literal, por si só, não pode ser considerado inteiramente decisivo, quando acompanhado de outros elementos é bastante relevante e indicador do verdadeiro sentido da norma em análise, apontando para que a expressão “considerando-se como tais” seja equivalente à expressão “presumindo-se como tais”.
Socorramo-nos, agora, do elemento racional ou teleológico o qual se reveste da maior importância para determinar o sentido da norma em apreço.
Sob a epígrafe “princípio da equivalência” estabelece o artigo 1.º do Código do IUC que “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.
A respeito da noção do princípio da equivalência defende Sérgio Vasques que “Em obediência ao princípio da equivalência, o imposto deve ser conformado em atenção ao benefício que o contribuinte retira da actividade pública, ou em atenção ao custo que imputa à comunidade pela sua própria actividade” [sublinhado nosso]. [10]
Prossegue, ainda, o autor, sustentando que “(…) um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também. Logo pelo que se diz se percebe que a concretização do princípio da equivalência dita especiais exigências no tocante ao desenho da matéria colectável e à estrutura das taxas”. [11]
Por outro lado, “Quando um tributo se prefigure como a contrapartida do custo provocado por um grupo determinado de contribuintes, há que buscar junto dos mesmos os indícios desse custo. Assim, no âmbito do imposto único de circulação, instituído pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho, a definição da base tributável e a estrutura de taxas está voltada também para uma regra de equivalência, pretendendo-se «procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária». E por isso, o Código do IUC toma como elementos fundamentais, na fixação das respectivas taxas, a cilindrada e o nível de emissões de CO2 dos veículos ligeiros, ou o peso bruto, número de eixos, tipo de suspensão e antiguidade dos veículos pesados, buscando, em vez da capacidade contributiva, a «capacidade contaminante» de cada veículo.” [sublinhado nosso]. [12]
Ora, no que ao desenho da matéria colectável e à estrutura das taxas diz respeito, aponta, ainda, Sérgio Vasques que “(…) no contexto da reforma do imposto automóvel (…), se sugere a delimitação da base de incidência e a fixação das taxas não apenas em função da cilindrada, mas em função também do peso dos veículos, do potencial poluidor e dos níveis de segurança apresentados. O novo imposto de circulação que se propõe afirma-se ter a mesma filosofia de base que os impostos de circulação e camionagem: destina-se a compensar o direito de circular na via pública, isto é, os efeitos nefastos resultantes da circulação de veículos” [sublinhado nosso]. [13]
Atentemos, por momentos, na exposição de motivos que acompanhou a Proposta de Lei n.º 118/X, de 1 de Março de 2007, a qual deu origem à Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho, que aprovou o Código do Imposto sobre Veículos e o Código do IUC.
Com efeito, na mencionada exposição de motivos, é referido que “A reforma a que a presente proposta dá corpo resulta, portanto, da necessidade imperiosa de trazer clareza e coerência a esta área do sistema fiscal e da necessidade, mais imperiosa ainda, de subordiná-la aos princípios e preocupações de ordem ambiental e energética que hoje em dia marcam a discussão da tributação automóvel”.
Ainda de acordo com a referida Proposta de Lei, ambos os impostos “constituem algo diferente, figuras já do século em que vivemos, com as quais se pretende, com certeza, angariar receita pública, mas angariá-la na medida do custo que cada indivíduo provoca à comunidade”.
E este desígnio (de angariar receita pública na medida do custo que cada indivíduo provoca à comunidade) encontra-se, de resto, bem vincado no Anexo II da referida Proposta de Lei quando, no que respeita especificamente ao Código do IUC, é afirmado “(…) como elemento estruturante e unificador (…) consagra-se o princípio da equivalência, deixando assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária”.
Assim, e no que ao princípio da equivalência diz respeito, somos levados a concluir ser este um princípio estruturante do IUC.
Como é, aliás, referido na mencionada Proposta de Lei, os veículos devem, pois, ser tributados em função, nomeadamente, do seu potencial poluidor e dos níveis de segurança apresentados. [14]
Por todo o exposto e atendendo, por um lado, ao lugar sistemático que o princípio da equivalência ocupa no Código do IUC, ao elemento histórico corporizado na Proposta de Lei n.º 118/X, de 1 de Março de 2007 e, bem assim, ao elemento racional subjacente à reforma da tributação automóvel referido nos parágrafos anteriores, só faz sentido conceber a expressão “considerando-se como tais”, no contexto do artigo 3.º do Código do IUC, como reveladora da presença de uma presunção ilidível.
5.2. DA NOÇÃO DE PRESUNÇÃO
À luz do disposto no artigo 349.º do Código Civil, as “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”.
As presunções constituem, pois, meios de prova, tendo esta por função a demonstração da realidade dos factos. [15]
Assim, quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que a ela conduz.[16]
Não obstante “as presunções legais podem, todavia, ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos em que a lei o proibir”. [17]
Como refere o Acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ, relativo ao Processo n.º 002663, “a presunção representa o juízo lógico pelo qual, argumentando segundo o vínculo de causalidade que liga uns com outros os acontecimentos naturais e humanos, podemos induzir a existência ou o modo de ser de um determinado facto que nos é desconhecido em consequência de outro facto ou factos que nos são conhecidos.”.
Prossegue o referido Acórdão que “as presunções legais são juris et de jure, quando não admitem prova em contrário; juris tantum, quando podem ser afastadas por prova que se lhes oponha. No primeiro caso, impede-se a prova em contrário; no segundo, inverte-se o ónus de prova.”.
Ora, “as presunções funcionam como modo de ultrapassar as dificuldades de prova, por se referirem, por exemplo, a factos que não se objectivam pela sua própria natureza, havendo uma aparência que merece protecção - oponibilidade a terceiro de acção de simulação registada, seja também quando é mais difícil de produzir para quem teria normalmente que suportar o ónus probatório (relevatio ab onere probandi).” [sublinhado nosso].
Conclui o STJ que “(…) as presunções juris tantum constituem a regra, sendo as presunções juris et de jure a excepção. Na dúvida, a presunção legal é juris tantum, por não se dever considerar, salvo referência da lei, que se pretendeu impedir a produção de provas em contrário, impondo uma verdade formal em detrimento do real provado.” [sublinhado nosso].
Tratando-se de presunções de incidência tributária, estas são sempre ilidíveis. [18]
Assim, não poderá deixar de entender-se que a expressão “considerando-se como tais” utilizada no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC, configura uma presunção legal, a qual é ilidível, nos termos gerais e, em especial, por força do disposto no artigo 73.º da LGT.
Conforme referido anteriormente, as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.
Segundo José Maria Fernandes Pires (Coordenador), Gonçalo Bulcão, José Ramos Vidal e Maria João Menezes, em anotação ao artigo 73.º da LGT, “Quando respeitem a normas de incidência, as presunções são sempre relativas” [sublinhado nosso]. [19]
Ora, as presunções de incidência tributária podem ser ilididas através do procedimento contraditório próprio previsto no artigo 64.º do CPPT ou, em alternativa, por via da reclamação graciosa ou da impugnação judicial dos actos tributários que nelas se baseiem.
No caso em apreço, a Requerente não utilizou o referido procedimento próprio, pelo que o presente pedido de pronúncia arbitral consubstancia o meio próprio para ilidir a presunção de incidência subjectiva do IUC que suporta as liquidações tributárias cuja anulação constitui o objecto do presente pedido.
Assim, uma vez concluído que o artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC consagra uma presunção ilidível, cumpre, ainda, analisar se esta presunção foi efectivamente ilidida por parte da Requerente.
Nesta medida, deve a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veículo e, nesse sentido, que foi considerada pela Requerida como sujeito passivo de imposto, demonstrar mediante elementos de prova disponíveis que não é o real proprietário do veiculo e, bem assim, que a propriedade foi transferida para outrem.
Ora, no caso em apreço, a Requerente produziu prova documental, conforme resulta da apresentação das facturas de venda aos concessionários, das facturas de venda dos concessionários aos consumidores finais e autos de entrega do veículo, e que demonstram que à data das liquidações não se considerava proprietária dos veículos em causa.
Todavia, a AT considerou que esta prova não seria bastante, pelo facto de a Requerente não ter junto “(...) aos autos o comprovativo do requerimento automóvel, com a ferir quem figura como vendedor do veículo tendo em conta que como refere com a emissão da factira tranferiu a propriedade.”.
Com efeito, entendemos que as facturas de venda apresentadas e os autos de entrega do veículo gozam de presunção de veracidade e, neste sentido, de idoneidade e força bastante para ilidir a presunção que resulta das liquidações, de acordo com o disposto no artigo 75.º da LGT.
Neste sentido, consideramos que a AT ao não ter tido em consideração a prova documental junta pela Requerente, se encontra em erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que determina a anulação dos correspondentes actos de liquidação.
Por outro lado, em matéria de liquidação e de pagamento do imposto, estabelece o artigo 17.º , n.º 1 do Código do IUC que, no ano da matrícula ou registo do veículo em território nacional, o imposto é liquidado pelo sujeito passivo do imposto nos 30 dias posteriores ao termo do prazo legalmente exigido para o respectivo registo. Sendo que, de acordo com o artigo 42.º, n.º 2, do RRA, tratando-se de registo inicial de propriedade, o veículo deverá ser registado no prazo de 60 dias a contar da data da atribuição da matrícula.
Ou seja, no ano da matrícula, apenas é possível determinar o sujeito passivo do IUC findo o prazo para registo, ou seja, o prazo de 60 dias, contados da matrícula, pelo que apenas nesse momento o imposto se mostra exigível.
Corroborando, aliás, este mesmo entendimento, o Código do IUC estabelece no seu artigo 18.º, n.º 1, alínea a), sob a epígrafe “Liquidação Oficiosa” que, “Na ausência de registo de propriedade do veículo efectuado dentro do prazo legal, o imposto devido no ano da matrícula do veículo é liquidado e exigido: a) Ao sujeito passivo do imposto sobre veículos com base na declaração aduaneira do veículo, ou com base na declaração complementar de veículos em que assenta a liquidação desse imposto, ainda que não seja devido (...)”.
Na prática, de acordo com esta disposição legal, apenas nas situações em que a propriedade do veículo não é registada no prazo legal de 60 dias (artigo 42.º, n.º 2, do RRA) é que o imposto é exigido ao sujeito passivo do Imposto sobre Veículos.
No entanto, não pode confundir-se o sujeito passivo do Imposto sobre Veículos (no caso em apreço, o operador registado) com o sujeito passivo do IUC.
Na verdade, a lei é bastante clara, o sujeito passivo do Imposto sobre Veículos apenas fica responsável pelo pagamento do imposto se não for possível determinar o sujeito passivo do IUC findo o prazo legalmente estabelecido para registo.
Deste modo, nas situações em que o sujeito passivo do Imposto sobre Veículos logra demonstrar que transmitiu os veículos em causa a terceiros antes do termo do prazo para registo, deverá concluir-se que logrou ilidir a presunção estabelecida no artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC.
Aqui chegados, impõe-se concluir que a Requerente, enquanto operador registado, embora tenha, no exercício da sua actividade comercial, importado os veículos em apreço, procedido à sua introdução no consumo, através da emissão da DAV, pago o Imposto sobre Veículos e solicitado, junto do IMTT, a atribuição de matrícula, não é sujeito passivo do IUC, uma vez que logrou demonstrar, através da junção dos meios de prova identificados anteriormente que no prazo de 60 dias para registo transmitiu os veículos a terceiros.
Ou seja, a Requerente logrou demonstrar que os veículos em apreço foram transmitidos dentro do prazo de 60 dias para registo e, consequentemente, antes do imposto se tornar exigível.
Em face do exposto, e no que diz respeito à exigibilidade do imposto, conclui-se que a propriedade dos veículos em apreço foi transmitida mediante contrato de compra e venda e, bem assim, que à data em que o IUC se tornou exigível a Requerente já não era proprietária, conforme resulta da prova documental junta por esta.
6. DECISÃO
Nestes termos e com a fundamentação acima descrita, o tribunal arbitral decide:
a) Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade das liquidações de IUC respeitante aos anos de 2011 e 2012, relativamente a todos os veículos cujas matrículas estão identificadas nos autos, anulando assim os correspondentes actos de liquidação; e
b) Condenar a AT a pagar as custas do presente processo.
7. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 2.039,12 (dois mil e trinta e nove euros e doze cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
8. CUSTAS
Custas a suportar pela Requerente, no montante de € 612 (seiscentos e doze euros), nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos do n.º 2 do artigo 22.º do RJAT.
Notifique.
Lisboa, 30 de Junho de 2016
O árbitro,
(Hélder Filipe Faustino)
Texto elaborado em computador, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 131.º, do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.
[1] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 55/75, de 12 de Fevereiro e na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 178-
-A/2005, de 28 de Outubro.
[2] Cfr. artigo 6.º, n.º 1 do Código do IUC.
[3] Cfr. artigo 6.º, n.º 2 do Código do IUC.
[4] Cfr. artigo 4.º do Código do IUC.
[5] Cfr. artigos 7.º e 9.º do Código do IUC.
[6] De acordo com a redacção do então artigo 3.º, n.º 1 do Regulamento do Imposto Sobre Veículos (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 143/78, de 12 de Junho e revogado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho), “o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontram matriculados ou registados.” [sublinhado nosso].
[7] Cfr. “Lei Geral Tributária Comentada e Anotada”, pp. 651 e 652.
[8] Op. cit., anotações 7 e 12 aos artigos 75.º e 89-A.º da LGT, respectivamente, pp. 667 e 782, e, bem assim, os Acórdãos de 2 de Maio de 2012, Processo n.º 0381/12 e de 17 de Abril de 2013, Processo n.º 0433/13.
[9] Segundo José Maria Fernandes Pires (Coordenador), Gonçalo Bulcão, José Ramos Vidal e Maria João Menezes, “O rendimento padrão não coincide com o valor despendido, sendo determinado de acordo com uma presunção de rendimento, legalmente definida, tido por razoável face ao tipo e ao montante da despesa efectuada. No desenho legal deste n.º 4 do artigo 89.º-A o legislador não pretende tributar rigorosamente o valor despendido.” [sublinhado nosso], Op. cit., pág. 945.
[10] Cfr. “Os Impostos Especiais de Consumo”, Almedina, 2000, pág. 110 e segs.
[12] Cfr. Sérgio Vasques e Tânia Carvalhais Pereira, “Os Impostos Especiais de Consumo”, Almedina 2016, pág. 94 e segs.
[14] Vide Sérgio Vasques, Op. cit., pág. 124.
[15] Cfr. artigo 341.º do Código Civil.
[16] Cfr. artigo 350.º, n.º 1 do Código Civil.
[17] Cfr. artigo 350.º, n.º 2 do Código Civil.
[18] Cfr. artigo 73.º da LGT.
[19] Cfr. “Lei Geral Tributária Comentada e Anotada”, Almedina, 2015, pág. 810.