Processo 88/2012
Decisão Arbitral
I. Relatório.
1. …, SGPS, S.A., com o NIPC … e sede na Rua de …, em Lisboa (doravante a Requerente), sociedade dominante de um grupo empresarial, o Grupo … (...), sujeito ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS), previsto nos arts. 69º e ss. do Código do IRC, apresentou em 18 de Julho de 2012, requerimento de constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto nos nºs 1 e 2 do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), constante do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, invocando ainda os artigos 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março.
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído no CAAD, no dia 12 de Setembro de 2012, para apreciar e decidir o presente processo, conforme consta da respectiva acta junta aos autos.
2. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente declarou não pretender proceder à designação de árbitro, pelo que a constituição do Tribunal Arbitral se processou em conformidade com o disposto no nº1 do artigo 6º e no nº1 do artigo 11º do RJAT, mediante decisão do Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, de 24 de Julho de 2012 foi designado árbitro o Prof. Doutor Luís Menezes Leitão, ora signatário.
A reunião prevista na alínea c) do nº1 do art. 11º do RJAT teve lugar em 12 de Setembro de 2012, conforme consta da respectiva Acta, que é assim a data em que o Tribunal Arbitral se considera constituído (nº 8 do artigo 11º do RJAT). Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.
3. A pretensão objecto do pedido de pronúncia arbitral consiste na declaração de ilegalidade dos actos de autoliquidação da derrama municipal do Grupo … relativos aos anos de 2009 e 2010, nos valores respectivamente de 12.067,74€ e 16.719,10 €, com a sua consequente anulação, e ainda no pagamento de juros indemnizatórios, em consequência da indevida entrega de imposto nos cofres do Estado.
4. Sustenta a Requerente, em síntese a sua pretensão no seguinte:
4.1. A Requerente é a sociedade dominante do Grupo … (...), que se encontra abrangido pelo Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS), nos termos dos arts. 69º e ss. do Código do IRC.
4.2. Relativamente aos exercícios fiscais de 2009 e 2010 e de acordo com o art. 70o fiscal.﷽ida de um processo de execuçento em obedicentes ao grupo".º do Código do IRC, na redacção então vigente, a Requerente calculou o lucro tributável do grupo.
4.3. A Requerente apurou e procedeu ao pagamento, a título de derrama, dos montantes de € 12.067,74€ para 2009 e de € 16.719,10 para 2010 (docs. nºs 3 a 7 juntos com a petição inicial).
4.4. A Requerente seguiu esse entendimento em obediência ao Ofício Circulado nº 20132, de 14 de Abril de 2008, e para evitar uma muito provável liquidação adicional de IRC e juros compensatórios, seguida de um processo de execução fiscal.
4.5. É, no entanto, opinião da Requerente que a derrama deverá ser apurada sobre o lucro tributável do Grupo ... e não sobre os lucros individuais das sociedades que compõem o Grupo.
4.6. Segundo a Requerente, com a entrada em vigor da Lei das Finanças Locais 2/2007, de 14 de Janeiro, a Derrama passou a ser calculada sobre o valor do lucro tributável sujeito e não isento de IRC, em alternativa à colecta.
4.7. E devido à omissão da Lei das Finanças Locais deverá entender-se que a base de incidência da derrama é determinada de acordo com as regras do IRC em vigor para o RTEGS constantes do art. 70º do Código do IRC (redacção à data dos factos).
4.8. Com efeito, entende a Requerente que, sendo a derrama um imposto acessório do IRC, deverá a derrama nos grupos de sociedades ser calculada de forma agregada, como se de um só imposto se tratasse.
4.9. Considera, por isso, a Requerente ter direito à restituição da derrama indevidamente paga relativamente aos exercícios de 2009 e 2010, nos valores respectivamente de 12.067,74€ e 16.719,10 €, e ainda dos respectivos juros compensatórios.
4.10. Em 30 de Dezembro de 2011, a Requerente apresentou reclamação graciosa nº … da autoliquidação de IRC de 2009 e 2012 ao nível do grupo nos termos do disposto no nº1 do art. 131º do CPPT, a qual foi indeferida por despacho proferido em 26 de Abril de 2012, pelo Senhor Chefe de Divisão da Justiça Administrativa da Autoridade Tributária e Aduaneira, deduzindo por esse motivo o presente processo arbitral.
5. Ao abrigo do art. 17º do RJAT a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), ora Requerida, apresentou a sua Resposta, onde, além de impugnar os factos alegados, suscita as seguintes excepções:
5.1. A incompetência do Tribunal Arbitral para decidir a presente questão, uma vez que os sujeitos activos da derrama são os municípios, os quais não se encontram vinculados à jurisdição arbitral.
5.2. A necessidade de intervenção provocada do Município ao abrigo do art. 325º do Código de Processo Civil arguindo a ilegitimidade da AT para estar presente em juízo como única demandada, pois face à natureza da derrama municipal a legitimidade passiva para intervir no litígio seria igualmente do município enquanto sujeito passivo do imposto, os quais deveriam ser representados em juízo pelo Representante da Fazenda Pública e não pela AT.
5.3. Por impugnação a AT vem dizer que a derrama o em sede de IRCes de tributaççãutaçnto do lucro tributnte questpo".é hoje um imposto autónomo do IRC que apenas se socorre das regras de cálculo do IRC para efeitos de apuramento do lucro tributável, pelo que as especificidades de tributação em sede de IRC não são legalmente acolhidas para efeitos de sujeição à derrama.
5.4. Efectivamente, o art. 14º da LFL, ao se referir "ao rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território", imporia que a derrama fosse imputada a cada um dos sujeitos passivos por parte dos Municípios em que estes gerariam rendimentos e não genericamente a todo o Grupo, uma vez que cada uma das sociedades que o integram é sujeito passivo de IRC.
5.5. Foi aliás esta a justificação que esteve na base da alteração do art. 14º da LFL pela Lei 64-B/2011, a qual passou a consagrar expressamente que "quando seja aplicável o regime especial da tributação dos grupos de sociedades, a derrama incide sobre o lucro tributável individual de cada uma das sociedades do grupo, sem prejuízo do disposto no art. 115º do Código do IRC", considerando a AT que esta alteração reveste carácter interpretativo da legislação anterior.
II. Fixação do thema decidendum.
6. As questões com natureza de excepção dilatória que, por poderem obstar ao conhecimento do mérito do processo, haverá que resolver previamente são as seguintes:
a) competência do Tribunal Arbitral;
b) legitimidade da Requerida.
7. Já o julgamento de mérito terá por objecto a sindicação por este Tribunal:
a) da arguida ilegalidade dos actos de autoliquidação da derrama municipal do Grupo de Sociedades ... relativa aos exercícios de 2009 e 2010, com a sua consequente anulação, a ser julgada procedente a referida ilegalidade;
b) da existência do direito da Requerente a juros indemnizatórios à taxa legal, calculados desde a data em que a derrama foi paga.
III. Fundamentação fáctica.
8. Antes de entrar na apreciação das questões assim enunciadas, começando pelas excepções dilatórias e prosseguindo, na hipótese de nenhuma daquelas vir a ser aceite pelo Tribunal, ao conhecimento de mérito, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respectiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental e o processo administrativo tributário junto, e em face dos factos alegados, se fixa como segue:
8.1. No dia 29 de Maio de 2010, a Requerente entregou a Declaração Modelo 22 de IRC, à qual foi dado o número de Identificação …, relativa ao exercício de 2009, assinalando ser "Declaração Geral - Grupos de Sociedades".
8.2. No quadro 09 da Declaração, a Requerente indicou, nos campos "Soma algébrica dos Resultados Fiscais" e "Valor Líquido" o valor negativo de 15.929.212,83. Após dedução de prejuízos fiscais dedutíveis de 1.636.069,99 do Exercício N-6, de 2.415.759,73 do Exercício N-5 e 8.897.653,26 do Exercício N-1, a Requerente deixou em branco o campo relativo à matéria colectável não isenta.
8.3. No quadro 10 da Declaração a Requerente procedeu ao cálculo do imposto, inscrevendo, no que aqui releva: (a) no campo relativo à derrama, o valor de 12.067,74; (b) no campo relativo ao IRC a recuperar a quantia de 29.681,64; (c) no campo relativo ao IRC a pagar, em branco.
8.4. No dia 31 de Maio de 2011, a Requerente entregou a Declaração Modelo 22 de IRC, à qual foi dado o número de Identificação …, relativa ao exercício de 2010, assinalando ser "Declaração de Grupo".
8.5. No quadro 09 da Declaração, a Requerente indicou, nos campos "Soma algébrica dos Resultados Fiscais" e "Valor Líquido" o valor negativo de 16.454.693,63. Após dedução de prejuízos fiscais dedutíveis de 1.667.015,10 do Exercício N-6 e de 8.177.488,12 do Exercício N-2 e 15.397.036,48 do Exercício N-1, a Requerente deixou em branco o campo relativo à matéria colectável não isenta.
8.6. No quadro 10 da Declaração a Requerente procedeu ao cálculo do imposto, inscrevendo, no que aqui releva: (a) no campo relativo à derrama, o valor de 16.719,10; (b) no campo relativo ao IRC a recuperar a quantia de 20.951,12; (c) no campo relativo ao IRC a pagar em branco.
8.7. A Requerente procedeu ao pagamento das referidas importâncias apuradas a título de derrama.
8.8. Em 30 de Dezembro de 2011, a Requerente apresentou reclamação graciosa nº … da autoliquidação de IRC de 2009 e 2012 ao nível do grupo nos termos do disposto no nº1 do art. 131º do CPPT, a qual foi indeferida por despacho proferido em 26 de Abril de 2012, pelo Senhor Chefe de Divisão da Justiça Administrativa da Autoridade Tributária e Aduaneira.
IV. Fundamentação de Direito.
IV.A. Das excepções dilatórias.
9. Conforme acima se referiu, vêm arguidas pela Requerida as excepções dilatórias de incompetência do Tribunal Arbitral e de ilegitimidade da Requerida. Por razões de prioridade lógica, iniciar-se-á a apreciação sobre a competência do Tribunal, após o que se averiguará da questão da ilegitimidade.
a) Da competência do Tribunal Arbitral.
10. Nos termos do art. 2º, nº1, a) do RJAT, os tribunais arbitrais são competentes para apreciar as pretensões de declaração de ilegalidade dos actos de liquidação e de autoliquidação de tributos. Por sua vez, o nº1 do art. 4º do mesmo diploma determina que a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais depende de portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça. Foi assim publicada a Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, resultando dos seus arts. 1º e 2º que a Direcção-Geral dos Impostos e a Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo ficaram vinculadas à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida, com algumas excepções.
Uma das excepções, constante do art. 2º a) da Portaria 112-A/2011 é precisamente a das pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, retenções na fonte e pagamentos por conta que nncia do Tribunal Arbitral.e afectar a competut a apreciaças inistros da que a vincuçaçt.d has general authority over any internaão tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos arts. 131º a 133º do CPPT.
Conforme resulta do disposto em 8.8. a Requerente apresentou reclamação graciosa das autoliquidações da derrama de 2009 e 2010, nos termos do disposto no nº1 do art. 131º do CPPT, a qual foi indeferida. Não se verifica por esse motivo a excepção à competência deste Tribunal Arbitral para apreciação da ilegalidade dos actos de autoliquidação, constante da alínea a) do art. 2º da Portaria nº 112-A/2011.
Haverá, no entanto, que apreciar se o facto de os sujeitos activos da derrama serem os municípios constitui factor determinante da incompetência do Tribunal Arbitral.
Parece claro, no entanto, que face à Portaria 112-A/2011, essa exclusão só se poderia verificar se os municípios administrassem esse imposto, ou seja, procedessem à sua liquidação e cobrança. Sendo essa liquidação e cobrança realizadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, que sucedeu às anteriores Direcção-Geral dos Impostos e Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo, parece claro que não é o facto de os municípios virem a ser os últimos destinatários dessa receita que pode afectar a competência do Tribunal Arbitral.
Ora, resulta da LFL na redacção anterior à Lei do Orçamento de Estado para 2012, que em relação à derrama, aos municípios cabe exclusivamente: a) deliberar anualmente o seu lançamento, fixando a respectiva taxa até ao limite legal (art. 14º, nº1); b) comunicar tempestivamente a sua deliberação à Autoridade Tributária e Aduaneira (art. 14º, nºs 8 e 9); c) receber o produto da sua cobrança, líquido dos encargos de administração, suportados pela Autoridade Tributária e Aduaneira (art. 14º, nº 10, e art. 13º, nº4); d) aceder a informação actualizada sobre a mesma (art. 11º a)).
Os municípios não possuem assim quaisquer competências relativas à administração deste imposto. Efectivamente, não lhes compete receber declarações fiscais, controlar a sua autoliquidação, emitir liquidações substitutivas ou adicionais, cobrar a derrama ou receber e decidir reclamações graciosas relativas à sua liquidação. Os municípios apenas podem deliberar se querem ou não lançá-la e qual a respectiva taxa, dentro do limite legal. Mas a partir do momento em que comunicam essa deliberação à Autoridade Tributária e Aduaneira toda a administração desse imposto local fica fora da sua competência. Tal é aliás confimado nestes autos pelo facto de a Requerida ter decidido julgar improcedente a reclamação ordinária apresentada pela requerente sem necessidade de qualquer intervenção do município.
É por isso evidente a improcedência da excepção de incompetência do Tribunal Arbitral, estando a matéria em litígio incluída na competência do Tribunal Arbitral nos termos do art. 1º da Portaria nº 112-A/2011, dado que não se verifica nenhuma das excepções previstas no art. 2º do mesmo diploma.
Pelo exposto, julga-se improcedente a excepção dilatória de incompetência do Tribunal Arbitral.
b) Da ilegitimidade da Requerida.
11. Conforme acima se referiu, a Autoridade Tributária e Aduaneira, ora Requerida, deduziu a excepção dilatória da sua própria ilegitimidade, considerando que a mesma não poderia ser demandada isoladamente do município, que é o sujeito activo deste imposto.
É manifesto que a Requerida não tem qualquer razão nesta excepção que invoca nem se poderia admitir a intervenção provocada do Município, ao abrigo dos arts. 325º e ss. CPC, uma vez que este não está vinculado à presente jurisdição arbitral, como aliás salientou a Requerida. Não se vê por isso como poderia o município ser demandado através de intervenção provocada para intervir nestes autos, nem se vê que interesse teria em contradizer, sabendo-se que, conforme acima se salientou, não lhe cabem quaisquer competências relativamente à administração do imposto.
A Requerida invoca o disposto nos arts. 7º do Decreto-Lei nº 433/99, de 26 de Outubro, e 54º, nº2, do ETAF. É, no entanto, manifesto que estas disposições não são aplicáveis ao caso sub judice, dado que se referem a tributos administrados pelas autarquias locais e por estas liquidados, o que, como se viu, não é o caso da derrama municipal.
A Requerida é assim parte legítima, dado que tem interesse directo em contradizer, improcedendo consequentemente também a excepção da ilegitimidade passiva.
12. Conclui-se assim que
1. O Tribunal Arbitral é competente, nos termos do RJAT e da Portaria 112-A/2011.
2. A Requerida tem legitimidade processual passiva.
IV.B. Da ilegalidade da autoliquidação da derrama.
13. Não havendo mais excepções dilatórias a conhecer, há que entrar agora na primeira questão de mérito que se reconduz à ilegalidade da autoliquidação da derrama.
Para determinar se ocorreu ou não essa ilegalidade haverá que apurar se, sendo a derrama municipal devida por um grupo societário sujeito ao RETGS, deverá a mesma incidir sobre o lucro tributável do grupo calculado "através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais de cada uma das sociedades pertencentes ao grupo" (art. 70º CIRC) ou antes sobre o lucro tributário individual de cada uma das sociedades integrantes do grupo?
Para esclarecimento dessa questão importa atentar no disposto no nº1 do art. 14º da LFL (redacção anterior à Lei 62-B/2011), o qual dispunha o seguinte:
"Os municípios podem deliberar lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5% sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português, que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território".
Essa disposição foi sistematicamente interpretada na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo como implicando a referência ao lucro tributável do grupo e não ao lucro individualmente considerado de cada uma das sociedades que o compõem. Cfr. os Ac. STA de 2/2/2011, emitido no processo 0909/10, 22/6/2011 emitido no processo 0309/11, e 2/5/2012 emitido no processo 0234/12.
Efectivamente, conforme salienta MANUEL ANSELMO TORRES, "A relevância dos prejuízos fiscais na matéria colectável da derrama", em Fiscalidade nº 38, Abril/Junho 2009, p. 159, estando a derrama numa relação de dependência relativamente ao IRC é evidente que o regime da derrama tem que ser estabelecido com base no IRC. A posição da Requerida, baseada no Ofício-Circulado 20132/2008, de 14 de Abril, implicaria estabelecer que a base da incidência da derrama coincidisse com a base da incidência do IRC, mas o mesmo já não acontecesse com a sua matéria colectável. Ora, não se vê que base legal possa existir para se estabelecer essa distinção.
Efectivamente, sendo a base de incidência da derrama o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, haverá que recorrer às normas do Código de IRC para apurar a matéria colectável da derrama. Ora, prevendo o CIRC, nos seus artigos 69.º a 71.º, um regime especial de tributação dos grupos de sociedades, e tendo a Requerente optado, como a lei lhe faculta, pela aplicação desse regime para determinação da matéria colectável em relação a todas as sociedades do grupo, a determinação do lucro tributável, para efeitos de IRC, é apurada através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações individuais das sociedades que pertencem ao grupo. Consequentemente, a determinação do lucro tributável para efeitos da derrama tem que ser realizada exactamente pela mesma via.
É um facto que a norma do art. 14º nº8 da LFL passou a dispor, em virtude da alteração a que foi sujeita pelo art. 57º da Lei 64-B/2011, de 30 de Dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2012, que "quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, a derrama incide sobre o lucro tributável individual de cada uma das sociedades do grupo sem prejuízo do disposto no artigo 115º do Código do IRC". No entanto, é manifesto, ao contrário do alegado pela Requerida, que esta lei não reveste natureza interpretativa mas antes inovadora, na medida em que veio inovar legislativamente, perante uma interpretação pacífica na jurisprudência. Nesse sentido já se pronunciou o STA no Acórdão de 2/5/2012 emitido no processo 0234/12.
Como bem escreve JOÃO BAPTISTA MACHADO, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, Coimbra, Almedina, 1968, p. 287, "a lei interpretativa, para o ser, há-de consagrar uma solução a que a jurisprudência, pelos seus próprios meios, poderia ter chegado no domínio da legislação anterior. Significa este pressuposto, antes de mais, que, se a LN vem na verdade resolver um problema cuja solução constituía até ali matéria em debate, mas o resolve fora dos quadros da controvérsia anteriormente estabelecida, deslocando-o para um terrreno novo ou dando-lhe uma solução que o julgador ou o intérprete não estavam autorizados a dar-lhe, ela será indiscutivelmente uma lei inovadora".
E a pp. 288, o mesmo autor refere: "Por outro lado, se a LN vem na verdade fornecer a resposta a uma questão jurídica cuja solução era lacunosa no sistema jurídico anterior, mas decide esta questão jurídica dentro de quadros sistemáticos inteiramente novos relativamente aos da LA, de modo a poder dizer-se que o intérprete, dentro dos quadros desta última lei e recorrendo aos procedimentos de preenchimento das lacunas que o respectivo sistema admitia, estava impedido de chegar a uma solução idêntica — a LN neste ponto será também inovadora, ainda que no domínio de vigência da LA não se tenha chegado a formar qualquer corrente jurisprudencial ou doutrinal relevante, ainda que o problema não tenha chegado a ser sequer discutido. Na hipótese de lacuna existente no sistema da LA dever ser preenchida, no domínio da vigência desta lei, pelo recurso a uma analogia legis ou a uma analogia juris, cremos que nunca a disposição da LN que venha resolver a mesma questão de direito através duma regra jurídica diferente da que resultaria com segurança daquela analogia poderá ter natureza interpretativa".
Mas há ainda outro argumento ponderoso contra a aceitação da qualificação como lei interpretativa da nova redacção do art. 14º, nº8, da LFL. É que, nos termos do art. 13º CC, a lei interpretativa é retroactiva, aplicando-se aos factos passados (facta preterita) e apenas ressalvando os litígios já terminados (causae finitae). Ora, as leis fiscais apenas se podem aplicar para o futuro, atenta a consagração constitucional da proibição da irretroactividade da lei fiscal (art. 103º, nº3, da Constituição). O art. 12º, nº1, da Lei Geral Tributária determina consequentemente que "as normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroactivos".
É assim de excluir qualquer aplicação retroactiva do art. 14º, nº8, LFL, a pretexto do seu carácter interpretativo que, conforme se salientou, não ocorre.
Nestes termos, estando as autoliquidações objecto do presente processo arbitral inquinadas do vício de violação de lei por erro de direito, são as mesmas ilegais, pelo que devem ser anuladas na sua totalidade.
VI.C. Da obrigação de pagamento de juros indemnizatórios.
A Requerente solicita ainda a condenação da Requerida na condenação em juros indemnizatórios, alegando que apenas em virtude do Ofício Circulado nº 20132/2008, de 14 de Abril, foi obrigada a preencher a sua autoliquidação incluindo a derrama sem o que a mesma nem sequer seria aceite pelo sistema informático da Requerida.
Efectivamente, o art. 43º, nº1, LGT, determina que "são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido".
O nº2 do mesmo artigo acrescenta que "considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas".
Ora, verificando-se que, embora a Requerente tenha efectuado a autoliquidação da derrama na declaração que entregou, o erro é imputável aos serviços em virtude da publicação do Ofício Circulado nº 20132/2008, de 14 de Abril, pelo que procede o pedido de pagamento de juros indemnizatórios.
V. Decisão.
Conclui-se assim que:
a) O Tribunal Arbitral é competente, nos termos do RJAT e da Portaria nº 112-A/2011;
b) A Autoridade Tributária e Aduaneira, Requerida nestes autos, tem legitimidade processual passiva;
c) A decisão do Tribunal Arbitral, vinculando a Autoridade Tributária e Aduaneira, vinculará os credores dos impostos que, no caso em apreço, esta administrou e administra, nada impedindo a que o Tribunal Arbitral profira decisão de mérito no caso;
Termos em que se decide:
d) Julgar improcedentes as arguidas excepções de incompetência do Tribunal Arbitral e de ilegitimidade passiva da Requerida;
e) Julgar procedente a impugnação da legalidade das liquidações de derrama municipal relativas aos exercícios de 2009 e 2010 nos montantes respectivamente de €12.067,74 e de €16.719,10, por violação de lei, anulando-se consequentemente tais liquidações, e condenando-se a Requerida à restituição dessas importâncias;
f) Julgar procedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios à taxa legal contados desde a data do pagamento das respectivas derramas até ao momento da restituição das correspondentes quantias.
Fixa-se o valor do processo em €28.786,84 nos termos do art. 97ºA, nº 1, a), aplicável por força do das alíneas a) e b) do nº1 do artigo 29º do RJAT e do nº2 do artigo 3º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Fixa-se o valor das custas do processo em € 1530, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar integralmente pela Requerida, uma vez que a Requerente obteve deferimento integral do pedido, nos termos nº 2 do art. 12º e do nº 4 do art. 22º do RJAT e do nº3 do art. 4º do citado Regulamento.
Registe e notifique.
Lisboa, 29 de Novembro de 2012
(Luís Menezes Leitão)