Acórdão Arbitral
Os árbitros Conselheiro José Baeta de Queiroz (árbitro-presidente), Dr. Paulo Lourenço e Professor Doutor Paulo Nogueira da Costa (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 5 de fevereiro de 2016, acordam no seguinte:
1. Relatório
A…, SA (de aqui em diante, Requerente), pessoa coletiva nº…, apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral coletivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.° e 10.° do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante, AT, ou Requerida), com vista à declaração de ilegalidade do ato de liquidação de retenções na fonte de IRS do ano de 2014, na sequência de indeferimento tácito de um recurso hierárquico.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 27 de novembro de 2015.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n° 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os acima identificados, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 21 de janeiro de 2016 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 5 de janeiro de 2016.
A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu, defendendo que o pedido deve ser julgado improcedente.
Por despacho de 8 de março de 2016, o tribunal entendeu que não havia justificação para a reunião prevista no artigo 18º do RJAT, dispensando-se, por isso, essa diligência, convidando-se as partes a, querendo, alegarem, no prazo de 15 dias, de forma sucessiva.
A Requerente e a Requerida apresentaram as suas alegações nos dias 1 de abril de 2016 e 19 de abril de 2016, respetivamente.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
a. A Requerente lançou na conta 231 (remunerações a pagar) os subsídios de férias referentes aos órgãos sociais e aos trabalhadores;
b. De igual modo, lançou na mesma conta, as importâncias correspondentes à resolução dos contratos de trabalho de 5 trabalhadores.
c. A Requerente lançou na conta 238 (outras operações com o pessoal) os adiantamentos de salários a trabalhadores.
d. As importâncias retidas acima mencionadas foram lançadas na conta 242 (retenções de impostos sobre rendimentos-trabalho dependente, independente, prediais e sobretaxa).
e. A Requerente entregou, em novembro de 2014, a guia nº…, referente às retenções na fonte acima referidas e respeitantes ao período de outubro de 2014, que contemplava um montante de imposto a pagar correspondente a € 100 298,92.
f. Mais tarde, em dezembro de 2014, a Requerente procedeu à substituição da guia supra mencionada mediante a entrega de uma nova guia a que corresponde o nº…, referente às retenções de imposto do mesmo período de 2014, no montante de € 1 631,32.
g. A Requerente apresentou uma reclamação graciosa (…2015…), peticionando a anulação da guia nº…, respeitante a retenções na fonte de IRS do mês de outubro de 2014.
h. Em 27 de março de 2015, a Requerente foi notificada do projeto de indeferimento da reclamação e para exercer, querendo. no prazo de 15 dias, o direito de audição prévia.
i. No dia 13 de abril de 2015, a Requerente exerceu o direito de audição e, em 28 de maio de 2015, foi notificada do indeferimento da reclamação graciosa.
j. No dia 30 de junho de 2015, a Requerente apresentou um recurso hierárquico (…2015…) contra o indeferimento da reclamação graciosa.
k. O recurso hierárquico foi parcialmente deferido por despacho da senhora Diretora da Direção de Serviços do IRC, de 11 de janeiro de 2016, exarado na informação nº …/2016.
l. A Direção de Serviços do IRC anulou o imposto autoliquidado referente a rendimentos empresariais e profissionais, no montante de € 606,57, bem como o imposto referente a rendimentos prediais, no montante de € 1 074,75, tendo em conta que tais valores estavam já incluídos na guia nº…, igualmente referente ao mês de outubro de 2014.
m. A Autoridade Tributária e Aduaneira manteve a liquidação do imposto, no montante total de € 97 965,00, em relação ao restante rendimento.
n. A Requerente apresentou os extratos das contas 231 (remunerações a pagar), 238 (outras operações com o pessoal), 242 (retenções de impostos sobre o rendimento – trabalho dependente, independente, prediais e sobretaxa) e 63 (gastos com o pessoal), respeitantes ao exercício de 2014.
o. A contabilidade e as declarações apresentadas pela Requerente evidenciam que os pagamentos e as retenções foram efetuados no mês de outubro de 2014.
2.2. Factos não provados
Não obstante ter apresentação os extratos das contas e outros documentos que, no seu entender, justificam os pagamentos, a Requerente não fez prova efetiva do momento em que pagou, nomeadamente através da junção de documentos bancários que evidenciem os montantes pagos e as datas em que os referidos pagamentos ocorreram.
Nesta conformidade, dá-se como não provado o momento em que foram efetuados os pagamentos aos trabalhadores.
2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos ao processo, designadamente, no processo administrativo, que tudo aqui se dá por reproduzido, e no acordo das Partes.
3. Matéria de direito
A questão a decidir no âmbito do presente processo diz respeito à necessidade de saber se a Requerente tinha ou não a obrigação de proceder à entrega das retenções na fonte referentes às remunerações do mês de outubro de 2014.
A Requerente sustenta que o pagamento foi efetuado no mês de dezembro de 2014 e que remeteu prova documental idónea à aferição da veracidade dos factos alegados, designadamente juntando aos autos os extratos das contas respeitantes a todo o exercício de 2014, a saber:
a. Conta 231: Remunerações a pagar;
b. Conta 238: Outras operações com o pessoal;
c. Conta 242: Retenções de impostos sobre rendimentos-trabalho dependente, independente, prediais e sobretaxa;
d. Conta 63: Gastos com o pessoal.
A Requerente, para justificar a sua tese, refere que, após a análise do extrato da conta 231, verifica-se que foram efetuados os seguintes pagamentos:
a. subsídios de férias no valor global de 89.528,72, correspondendo € 2.324,50 a órgãos sociais e € 87.204,22 aos restantes trabalhadores, o que origina uma retenção na fonte de € 28.882,00;
b. valores pagos a 5 trabalhadores na sequência da resolução do contrato de trabalho por estes efetuada, com justa causa, no valor global de € 11 .933.79, a que corresponde uma retenção na fonte de € 3.825,00.
A Requerente, ao verificar que na declaração de remunerações de outubro de 2014 foram incluídos valores respeitantes a esse mês e que não haveria liquidez para o pagamento procedeu à substituição desta declaração, a qual deu origem à liquidação nº… .
No entanto, continua a Requerente, por manifesto lapso, aquando da anulação de rendimentos incluídos naquela declaração, foram anulados todos os valores declarados. quando apenas se pretendia anular os valores correspondentes aos pagamentos que, efetivamente, não haviam sido efetuados.
No que diz respeito à conta 238, a Requerente entende que, após a respetiva análise, é possível verificar que no mês de outubro foram efetuados pagamentos a trabalhadores, respeitantes a adiantamentos de salários, no valor global de € 12.510,17, a que corresponde uma retenção na fonte de € 1.135,00.
Em relação à conta 242, a Requerente invoca que, apesar de a sobretaxa extraordinária de IRS do ano de 2014 ser devida independentemente do pagamento ou não dos rendimentos, a verdade é que não existe forma de, informaticamente, submeter a declaração para pagamento sem a submissão dos rendimentos.
Em resumo, a Requerente defende que foram incluídas na declaração referente ao mês de dezembro de 2014 todos os valores pagos em outubro desse mesmo ano, os quais, por lapso, foram indevidamente anulados.
A Autoridade Tributária e Aduaneira, por seu lado, refere que não é necessário, para que o vencimento se torne efetivo, que tenha sido efetivamente pago e recebido, bastando que tenha sido colocado à disposição.
Por outro lado, importa ainda, de acordo com a Autoridade Tributária e Aduaneira, recorrer à contabilidade da Requerente como o instrumento que reflete a imagem verdadeira e apropriada da empresa e que a identifica como estando elaborada de acordo com as regras contabilísticas decorrentes do SNC.
Na contabilidade, importa distinguir o fluxo económico, que regista os gastos e os rendimentos, do fluxo financeiro, que regista as despesas e as receitas, numa ótica de pagamento e de recebimento.
Finalmente, conclui a Autoridade Tributária e Aduaneira, o registo contabilístico na conta 242-Retenção na fonte sobre rendimentos-significa que os rendimentos já foram colocados à disposição dos respetivos beneficiários, razão pela qual a guia de retenção nº…, referente ao mês de outubro de 2014, deve ser mantida no valor de € 92 388,00.
Vejamos, então.
Estabelece o nº 1 do artigo 98º do Código do IRS que “Nos casos previstos nos artigos 99º a 101º e noutros estabelecidos na lei, a entidade devedora dos rendimentos sujeitos a retenção na fonte, as entidades registadoras ou depositárias, consoante o caso, são obrigadas, no ato do pagamento, do vencimento, ainda que presumido, da sua colocação à disposição, da sua liquidação ou do apuramento do respetivo quantitativo, consoante os casos, a deduzir-lhes as importâncias correspondentes à aplicação das taxas neles previstas por conta do imposto respeitante ao ano em que estes atos ocorrem”.
Por outro lado, o nº 3 do mesmo artigo refere que “As quantias retidas nos termos dos artigos 99º a 101º devem ser entregues até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que foram deduzidas”.
Para além da obrigação de retenção, existe ainda a obrigação de natureza contabilística previstas na alínea a) do nº 1 do artigo 119º do Código do IRS, normativo que estipula que as entidades devedoras de rendimentos são obrigadas a possuir registo atualizado das pessoas credoras, ainda que não tenha havido lugar a retenção do imposto, do qual constem, nomeadamente, o nome, o número fiscal e respetivo código, bem como a data e valor de cada pagamento ou dos rendimentos em espécie que lhes tenham sido atribuídos.
Posto isto, importa então determinar o que se entende por colocação dos rendimentos à disposição.
Como ensina Manuel Faustino, O dever de retenção na fonte e outros deveres autónomos de cooperação em IRS, Áreas Editora, coleção Fiscalidade, 2003, pág. 45 e seguintes, “Colocar à disposição significa, para o devedor, desonerar-se do cumprimento da obrigação que lhe incumbe sem precisar da colaboração do credor. Razão pela qual também parece inadmissível, em relação ao devedor, a oponibilidade da vontade do credor, se essa vontade não tiver uma justificação legal. A colocação à disposição do credor, pelo devedor, da prestação a que se encontra vinculado constitui uma forma válida de cumprimento das obrigações pecuniárias quando o credor, sem motivos justificados, a não aceitar ou não praticar os atos necessários ao cumprimento da obrigação por parte do devedor”.
De acordo ainda com o referido autor, “Supondo, por exemplo, que no dia do pagamento da remuneração mensal o trabalhador a quem a mesma é devida se encontra ausente por qualquer razão, o crédito daquela numa conta existente na contabilidade da empresa em nome do trabalhador, sem qualquer restrição quanto ao levantamento do crédito, configura uma situação de colocação à disposição”.
No caso concreto em apreço não é isso que se verifica, já que, mesmo invocando a existência de um registo contabilístico compatível com o fluxo financeiro acima mencionado, como sustenta a Autoridade Tributária e Aduaneira, a verdade é que não ficou demonstrado que o crédito em causa se encontrava disponível sem restrições a favor dos respetivos credores e que estes, sem qualquer motivo justificado, não aceitaram ou não praticaram os atos necessários ao recebimento.
Por outro lado, para além do argumento contabilístico, assente na diferença entre o fluxo económico e o fluxo financeiro, a Autoridade Tributária e Aduaneira não invocou outros argumentos relevantes que, de alguma forma, pudessem demonstrar que os rendimentos foram efetivamente colocados à disposição dos respetivos beneficiários, pelo que não é seguro que tal colocação não se verificou em outubro de 2014.
A Requerente pretende demonstrar que o pagamento apenas foi efetuado em dezembro de 2014, utilizando, para o efeito, a contabilização das operações de pagamento e de retenção na fonte.
Porém, a contabilização das operações afigura-se manifestamente insuficiente para demonstrar o mês em que foram efetuados os pagamentos e as consequentes retenções na fonte.
Na verdade, ainda que a contabilidade evidencie de forma clara a regularidade das operações supra descritas, a verdade é que a entrega, quer aos beneficiários, quer ao Estado, das importâncias que se mostrem devidas pode não se concretizar, nomeadamente por indisponibilidade financeira.
Aliás, mesmo com as operações devidamente contabilizadas, essa é a fronteira normalmente utilizada para distinguir o crime de abuso de confiança fiscal da mera contraordenação, tendo presente que no primeiro caso há efetiva apropriação de importâncias que deveriam ser entregues nos cofres do Estado.
Dispõe o nº 1 do artigo 74º da Lei Geral Tributária que “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoca”.
O artigo 75º, nº 1 da referida lei, estipula que “Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos”.
O afastamento dessa presunção compete, no caso concreto em apreço, à Requerente, por força do estatuído no supramencionado artigo 74º da Lei Geral Tributária, já que, contrariamente ao que a sua contabilidade revela, invoca que o pagamento apenas foi realizado em dezembro de 2014 e não em outubro do mesmo ano.
Nesta conformidade, uma vez que a Requerente não logrou demonstrar, por forma diferente da contabilidade, que o pagamento foi efetuado em dezembro, a sua pretensão não pode prevalecer.
4. Decisão
De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em julgar improcedente o pedido arbitral formulado, mantendo-se o indeferimento do recurso hierárquico e, consequentemente, a liquidação referente às retenções na fonte de IRS do ano de 2014.
5. Valor do processo
De harmonia com o disposto no artigo 315.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 100 298,92.
6. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3 060,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.
Lisboa, 15 de julho de 2016
Os Árbitros
(José Baeta de Queiroz)
(Paulo Lourenço)
(Paulo Nogueira da Costa)