Decisão Arbitral
Requerente: A... –…, S.A.
Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira
I. RELATÓRIO
A... –…, S.A. , NIPC …, com sede na …, B…, … (doravante apenas designada por Requerente) apresentou, em 22-12-2015, um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida).
A Requerente pede a declaração de ilegalidade (i) do indeferimento (presumido) da reclamação graciosa deduzida contra os actos de autoliquidação de IRC dos anos de 2012 e 2013, por não dedução do pagamento especial por conta (“PEC”) aos montantes devidos a título de tributações autónomas, no valor de € 22.917,34 (2012) e € 13.497,04 (2013), bem como (ii) dos próprios actos de autoliquidação objecto da reclamação. Subsidiariamente, a Requerente pede que seja declarada a ilegalidade da liquidação de tributações autónomas por ausência de base legal para a sua efectivação. Sendo considerado procedente os pedidos deduzidos, a Requerente requer também a condenação da Requerida ao reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 23-12-2016 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nessa mesma data.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a ora signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 16-02-2016 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 02-03-2016.
Notificada para se pronunciar, a Requerida apresentou requerimento em que sustenta a legalidade dos actos impugnados, pugnando pela improcedência do pedido deduzido pela Requerente.
Tendo a Requerente dispensado a produção da prova testemunhal inicialmente indicada, por despacho de 20-05-2016 foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo sido concedido às partes prazo para apresentação de alegações escritas sucessivas, o que ambas vieram fazer.
II. DO PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL
A Requerente solicita a declaração de ilegalidade do indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra as autoliquidações de IRC do ano de 2012 e 2013, bem como das próprias autoliquidações de imposto, por considerar ter havido erro na determinação do montante a pagar. Com efeito, entende a Requerente que o valor dos pagamentos especiais por conta pagos ao longo dos anos e registados a favor da Requerente seria dedutível ao montante das tributações autónomas apuradas em 2012 e 2013, respectivamente € 22.917,34 e € 13.497,04.
Em sede das alegações produzidas, a Requerente conclui o seguinte:
“A) São incontáveis as decisões arbitrais que afirmaram e reafirmaram que as tributações autónomas são IRC e, mais ainda, que por isso se lhes aplica não só o artigo 45.º, n.º 1, alínea a), do CIRC (na versão em vigor em 2012/13), mas também o artigo, 89.º e ss, entre outras normas dirigidas à liquidação e pagamento do IRC.
(…)
D) Aplica-se, pois, igualmente, à colecta das tributações autónomas aqui em causa, a norma dirigida à colecta do IRC constante da alínea c) (actual d)) do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC, por não se vislumbrar obstáculo a tanto na “sua especial forma de incidência e taxas aplicáveis”.
E) É importante relembrar isto, porquanto é desprestigiante e contraditório que quando está em causa a colecta do IRC referida na alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º do CIRC, se inclua aí a colecta das tributações autónomas, e mais à frente, para as alíneas b) e c) (actuais c) e d)) do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC, se exclua da mesma colecta do IRC a colecta produzida pelas tributações autónomas. A colecta das tributações autónomas não pode ser simultaneamente colecta de IRC para efeitos de um artigo e não ser colecta de IRC para efeitos de um outro artigo, sob pena de flagrante contradição do intérprete.
(…)
I) Quanto em especial ao PEC, se ele é IRC, se o PEC é adiantamento por conta do IRC, se está previsto o seu abate à colecta do IRC, e se a tributação autónoma é IRC, como é, o resultado da interpretação declarativa da lei, solidamente ancorada em abundantíssima e uníssona jurisprudência, é de que o PEC é dedutível à colecta do IRC gerada pela tributação autónoma. Contrariamente ao entendimento fixado na decisão arbitral proferida no processo (Tribunal singular) n.º 113/2015-T.
J) Nada na letra da lei, absolutamente nada, permite impedi-lo. E não há aqui eventual lacuna exposta pelo espírito do PEC, qual seja o do seu espírito anti-abuso.
K) Com efeito, a pressão do PEC para evitar a evasão fiscal declarativa cede perante e na medida em que haja colecta de IRC apurada. Isso é de lei: artigo 90.º, n.º 2, alínea c) – desde 2014, alínea d) – do CIRC. Assim sendo, por aqui (objectivo anti-evasão fiscal do PEC) não se sai do ponto de partida da interpretação declarativa: sendo a tributação autónoma em IRC colecta de IRC, e comungando do objectivo, finalidade, espírito do IRC de assegurar a tributação do rendimento real (tributação substitutiva), conforme entendimento esmagador da jurisprudência, nada há que se oponha à aplicação a esta colecta da dedução do PEC.
L) Só é possível ao intérprete romper com o sólido e jurisprudencialmente alicerçado raciocínio “PEC é pagamento por conta de IRC, PEC é dedutível à colecta de IRC, a tributação autónoma é IRC, logo PEC é dedutível à colecta da tributação autónoma”, quando aparta e nega, assuma-o ou não, uma das três premissas que desembocam na conclusão.
M) Em suma, e como acima se tentou mostrar, se o carácter anti-abuso do PEC não impede a sua dedução ao IRC de base, incluindo ao IRC de base fruto ele mesmo de diversíssimas normas anti-abuso (como se detalhará a seguir), não se vislumbra suporte legal ou “espiritual” (finalidades do PEC) algum para excluir a colecta em IRC da tributação autónoma de interagir com os créditos por PEC.
N) Também o carácter anti-abuso da tributação autónoma não é motivo “no plano do espírito” para afastar a aplicação da interpretação declarativa que determina a dedução do PEC à colecta da tributação autónoma em IRC.
O) Se A manipula os preços de venda ou de compra para transferir lucro para a entidade relacionada B, domiciliada numa zona de baixa tributação, intervém o mecanismo anti-abuso dos preços de transferência, que origina um aumento da colecta do IRC, que nem por isso (isto é, que nem pelo facto de resultar da aplicação de um mecanismo anti-evasão) deixa de estar disponível para efeitos de todas as deduções à colecta, incluindo a do PEC.
(…)
Q) Nem por isso, isto é, nem pelo facto do carácter anti-abuso destas disposições fiscais, a colecta adicional de IRC imputável às mesmas deixa de ser o que é – colecta de IRC – para efeitos, também, de interacção com o PEC. O PEC é, pois, hoje deduzido à colecta de IRC resultante da aplicação de normas anti-abuso do próprio Código do IRC e, por isso, a colecta resultante do “combate a abusos” fiscais.
R) Donde que também com recurso ao invocado espírito ou finalidade das tributações autónomas não se veja como, nem por que razão, haveria a colecta resultante das mesmas de ficar afastada das dedutibilidades previstas na lei para o IRC de que é parte integrante.
(…)
T) A propósito de alguns pontos específicos da douta Resposta da AT é de acrescentar ainda o seguinte, conforme melhor desenvolvido supra:
i) É irrelevante que a tributação autónoma em IRC e o IRC directamente sobre o lucro se apurem de diferentes modos; aqui está em causa momento a jusante, em que as respectivas colectas primárias já estão apuradas; a este propósito veja-se ainda atrás, por exemplo, os acórdãos arbitrais nos processos n.ºs 769/2014-T, 219/2015-T, 369/2015-T, 370/2015-T, 637/2015-T, 673/2015-T, 740/2015-T e 784/2015-T, ou a declaração de voto de vencido do árbitro Professora Leonor Fernandes Ferreira, no processo n.º 697/2014-T: depois de aplicadas as respectivas taxas às respectivas matérias colectáveis (colecta primária), estas duas colectas do IRC convergem, designadamente para efeitos de aplicação dos artigos 89.º e ss do CIRC.
ii) É irrelevante o que tem sido ou deixado de ser a vivência prática. Não é pelo facto de a vivência ser esta ou aquela que a lei perde a sua autonomia e natureza de comando, para passar a ser uma realidade comandada, no caso por hábitos, reflectidos ou irreflectidos. Acresce que, e muito embora não seja isso que aqui se discute, do ponto de vista conceptual e de texto legal, nada, sendo a tributação autónoma IRC, se opõe a que também esta grandeza (que constitui parcela cada vez maior do IRC) seja paga faseada e antecipadamente em prestações (pagamento por conta), ou que entre nos cálculos (enquanto IRC suportado) do artigo 92.º do CIRC.
iii) Neste caso concreto não está em causa a utilização de crédito de imposto por dupla tributação internacional pelo que é irrelevante o que a AT argumenta a esse respeito. Mas sempre se dirá que se as tributações autónomas são tidas pela AT e pela jurisprudência como IRC, designadamente por serem ainda tributação sobre o rendimento/lucro, na qualidade de substituto da proibição de dedução de certas despesas ao lucro tributável, é no mínimo apressado excluir esta parte da colecta do IRC da dedução à colecta por dupla tributação internacional, havendo maneiras de calcular eventuais conversões necessárias para o efeito.
iv) É irrelevante, uma vez que não está aqui em causa qualquer crédito fiscal ao investimento, mas de toda a forma sempre se dirá que como a AT bem sabe (basta ler, por exemplo, os regimes do CFEI, SIFIDE, RFAI, etc.), e ao contrário do que parece querer afirmar, não há apuramento separado de lucro imputável ao investimento que beneficiou de um incentivo fiscal sob a forma de crédito fiscal em IRC. Se o investimento correr mal mas a empresa gerar colecta de IRC sobre o rendimento por via de outros projectos, absolutamente nada impede a dedução a esta colecta do crédito fiscal obtido por via do investimento que não gera lucros.
v) Ou seja, não existe nenhuma indexação da utilização do crédito fiscal à rendibilidade do investimento: colecta de IRC de qualquer outra proveniência pode ser usada para abater o crédito de imposto. Sendo que na colecta de IRC se inclui a da tributação autónoma em IRC, conforme jurisprudência esmagadoramente dominante (nenhuma dúvida interpretativa subiste a este respeito) dos tribunais, e conforme entendimento da própria AT. Mais ainda, essa mesma jurisprudência afirma e reafirma que a tributação autónoma em IRC é também tributação sobre o rendimento/lucro: função de substituir colecta que seria gerada pela tributação sobre o rendimento/lucro, não fora a dedução de certas despesas.
vi) No caso concreto não está em causa uma sociedade fiscalmente transparente, pelo que são irrelevantes as considerações da AT em torno desse tema. Mas sempre se dirá que a regra de adaptação prevista no n.º 5 do artigo 90.º do CIRC só se aplica, conforme resulta do seu texto e da sua lógica, na medida em que se esteja perante a situação de imputação da matéria colectável das sociedades transparentes a terceiro (o sócio ou membro) ao abrigo do artigo 6.º do CIRC. Na medida em que se esteja perante IRC (no caso, o das tributações autónomas) em que não há tal imputação aos sócios, não há qualquer dissociação nem consequentemente se aplica a regra de adaptação que expressamente a pressupõe.
vii) Ou seja: ao IRC fora da transparência fiscal, como é o caso, sempre, das tributações autónomas (artigo 12.º do CIRC), não se aplica, por definição, a regra de adaptação pensada e prevista para o IRC (o sobre o lucro) travado, por substituído pela tributação de terceiro, pela transparência fiscal. Pretender o contrário é ilógico e desligado por completo do propósito e do pressuposto no n.º 5 do artigo 90.º do CIRC.
viii) Para que invoca a AT o n.º 7 (actual n.º 9) do artigo 90.º do CIRC (na numeração em 2012/13), se ninguém aqui pede que os créditos por PEC sejam usados para além das forças da colecta da tributação autónoma em IRC?
xi) No mais e como se analisou acima a propósito da decisão arbitral proferida no processo n.º 113/2015-T, o facto de o PEC ser pagamento por conta de IRC em nada obstaculiza o acerto de contas com a colecta de IRC gerada pela tributação autónoma. Pelo contrário, o facto de o PEC ser pagamento por conta de IRC, permite-o.
U) Quanto em especial à intervenção efectuada pela LOE 2016 em sede de tributação autónoma em IRC, invocada pela AT na sua douta Resposta, julga-se ser de concluir o seguinte:
i) É jurisprudência pacífica (e doutrina da AT, quando lhe convém) que a tributação autónoma em IRC, é IRC; e que se lhe aplicam as normas de liquidação do IRC constantes do artigo 89.º e ss do CIRC.
ii) Refira-se que não são verdadeiras certas afirmações da AT com o intuito de passar a ideia de que não aplica o n.º 2 (deduções à colecta) do artigo 90.º do CIRC à colecta das tributações autónomas. Porque aplica: as retenções na fonte são (pacificamente) abatidas à colecta da tributação autónoma. E o mesmo sucede com os pagamentos (normais) por conta, cujo reembolso se faz (cfr. artigo 104.º, n.º 2, do CIRC) desde sempre quando não seja suficiente o conjunto das colectas do IRC de base e da tributação autónoma em IRC. Tudo isto se faz, se aplica, desde sempre.
iii) A incongruência está na recusa da AT em aplicar o mesmo à colecta das tributações autónomas em IRC com respeito a outras parcelas igualmente dedutíveis à colecta do IRC. E a impossibilidade lógica está na interpretação da mesma exacta expressão no mesmo exacto preceito (o n.º 2 do artigo 90.º do CIRC: “Ao montante apurado nos termos do número anterior são efectuadas as seguintes deduções…”) com sentidos opostos consoante a parcela dedutível, ou alínea em causa, é uma, ou outra.
iv) Caindo igualmente, aparentemente, em impossibilidade lógica, a LOE 2016 se por um lado reafirmou que o artigo 89.º do CIRC se aplica à tributação autónoma (parte 1 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC), por outro lado excluiu a tributação autónoma do n.º 2 do artigo 90.º seguinte (parte 2 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC). E a ambas estas prescrições, de sentido contrário, atribuiu, à primeira vista, e contraditoriamente, carácter interpretativo. Esta aparência não resiste, porém, à análise, pelas razões que se sumariarão infra.
v) Antes, porém, de se entrar na análise qualitativa e conceptual, sublinhe-se que o prisma da contagem dos votos (ou do pesar da inclinação da jurisprudência) até 30 Março de 2016 é um primeiro sintoma de que se está perante uma lei inovadora quanto à exclusão prescrita na parte 2 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC (como se desenvolveu supra).
vi) Passando à análise qualitativa e conceptual, como se afirma no acórdão do STJ uniformizador de jurisprudência, proferido no processo n.º 075143, de 2 de Março de 1994, citando BAPTISTA MACHADO, “[p]ara tanto, é de ter presente a noção que de lei interpretativa nos deu Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 247: Para que uma lei nova possa ser realmente interpretativa são necessários, portanto, dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou, pelo menos, incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação ou aplicação da lei.”
vii) Pode, e deve, concluir-se que o artigo 135.º da LOE 2016 se refere apenas à parte 1 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, interpretação que pela negativa é autorizado pela manifesta incorrecção da redacção daquele artigo 135.º (conforme desenvolvido supra), revelador do pouco cuidado que o legislador teve em ser preciso, e que pela positiva é autorizada pela presunção de que o legislador adoptou as soluções mais acertadas e pela directriz da interpretação conforme à Constituição (em fase mais adiantada deste segmento das conclusões apresentar-se-á fundamento adicional para esta interpretação do artigo 135.º da LOE 2016).
viii) Acresce, conforme desenvolvido supra, que a atribuição de natureza interpretativa a uma norma fiscal não desencadeia por si só a aplicação do regime de aplicação de leis no tempo previsto no Código Civil. Concretizando, e sintetizando, o regime de aplicação de leis no tempo previsto no Código Civil (onde se inclui por direito próprio o seu artigo 13.º), não se aplica no que respeita a matérias que disponham de um regime privativo para o efeito, em obediência a princípios distintos, como é o caso (actualmente) dos impostos: cfr. artigo 12.º da LGT e artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
ix) Em qualquer caso o artigo 13.º do Código Civil e a prescrição de retroactividade que aí se contém só se aplica a normas interpretativas, por oposição a falsas normas interpretativas. E a parte 2 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC é, supondo que foi realmente intenção do legislador atribuir-lhe carácter interpretativo (matéria a que se regressará ainda infra), uma falsa norma interpretativa.
x) Com efeito, onde se encontra a norma interpretada, o objecto da interpretação? De parte alguma da LOE 2016 resulta identificada a norma que a parte 2 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC visaria interpretar. O que constitui mais um sintoma de que se está perante uma novidade normativa, por oposição a visão interpretativa de norma velha.
xi) Admitindo, a benefício de raciocínio, que a norma objecto de interpretação seja o n.º 2 do artigo 90.º do CIRC (não se vê outra possível candidata), a pergunta relevante passa então a ser esta: que ambiguidade se detecta na referência aí ao IRC que não fosse partilhada então também e na mesma medida quer pelo precedente n.º 1 do mesmo artigo 90.º, quer pelo precedente artigo 89.º?
xii) Que se veja, nenhuma ambiguidade ou opacidade: todas estas normas se dirigem à liquidação do IRC, sem qualquer ambiguidade, na fase pós regulamentação da colecta primária (que se obtém pela aplicação das taxas de IRC às matérias colectáveis de IRC, nos termos dos antecedentes artigos 1 a 88.º do CIRC).
xiii) O que nos leva a mais uma forte razão para considerar que a parte 2 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC não é interpretativa para efeitos de aplicação da lei no tempo, isto é, para efeitos de activar o disposto no artigo 13.º do Código Civil (supondo, a benefício de raciocínio, que este é aplicável em matérias que dispõem de regulamentação privativa em sede de aplicação de lei no tempo).
xiv) Com efeito, como podem ambas as partes, 1 e 2, do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, serem simultaneamente interpretativas do que dispõem os artigos 89.º e 90.º do CIRC (ambos inseridos na mesma fase da liquidação do IRC, pós obtenção da colecta primária), em sentidos opostos? Como podem ser simultaneamente interpretativas no sentido de que o IRC do artigo 89.º inclui também as tributações autónomas (parte 1 do n.º 21 do artigo 88.º), e no sentido oposto de que o IRC do artigo 90.º, pelo menos o do seu n.º 2, não, inclui as tributações autónomas?
xv) Não podem, isso é uma impossibilidade lógica e sistémica. Uma das duas prescrições, ou a da parte 1, ou a da parte 2, do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, não tem, e não te necessariamente, por impossibilidade lógica, carácter interpretativo.
xvi) E sabendo-se da esmagadora jurisprudência, acompanhada pela AT, no sentido da qualificação da colecta da tributação autónoma em IRC como possuindo a natureza de IRC, fácil é concluir que quem nesta dualidade de prescrições de sentido oposto tem natureza interpretativa é a parte 1. E que portanto, e necessariamente, a parte 2 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC tem carácter inovatório (contra-corrente, no caso contra a inserção da colecta primária da tributação autónoma na colecta do IRC).
xvii) E com isto reforça-se a primeira das razões qualitativas acima apresentadas: a impossibilidade lógica detectada, a antinomia, só se resolve se se interpretar a atribuição de natureza interpretativa ao novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, pelo artigo 135.º da LOE 2016, como querendo referir-se à parte 1, e não à parte 2, do referido n.º 21.
xviii) Se, não obstante todas as razões que acima se elencaram, se entender ainda assim que (i) que o artigo 135.º da LOE 2016 (Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março) atribuiu natureza interpretativa também à parte 2 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, isto é, também ao segmento normativo “não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global [de tributação autónoma em IRC] apurado”, introduzido pela mesma LOE 2016 (pelo seu artigo 133.º), (ii) e que daí resultaria a aplicação do artigo 13.º do Código Civil enquanto prescreve a aplicação retroactiva das leis interpretativas,
xix) está-se em crer que se estará então perante uma inconstitucionalidade material do referido artigo 135.º da LOE 2016, por violação da proibição de retroactividade em matéria de impostos prevista no artigo 103.º, n.º 3 da Constituição, quer se tenha concluído, quer não (e entende-se que não), estar-se perante uma lei materialmente interpretativa (veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 172/00, e bem assim SALDANHA SANCHES in Fiscalidade, n.º 1, Janeiro de 2000, “Lei Interpretativa e Retroactividade em Matéria Fiscal, pp 77 e ss, em especial 87 e 88), e no seu Manual de Direito Fiscal, 3.ª Edição, Coimbra Editora 2007, p 193 e ss, em especial 196), e JÓNATAS E. M. MACHADO e PAULO NOGUEIRA DA COSTA, Curso de Direito Tributário, Coimbra Editora 2012, p 76.
xx) A inconstitucionalidade que se suscita prende-se com o imposto, com a colecta, da tributação autónoma (e não com a putativa “colecta” do PEC”), cujo facto tributário se consumou, se fechou, no(s) exercício(s) aqui em causa: liquidação, apuramento, e pagamento, de mais imposto “tributação autónoma em IRC”, caso se aplique retroactivamente a prescrição do LOE 2016 que extingue as deduções à colecta deste imposto.”
III. DA RESPOSTA DA REQUERIDA
A Requerida apresentou contestação pugnando pela improcedência dos pedidos deduzidos pela Requerente, concluindo o seguinte:
“8. (…) E se dúvidas subsistissem sobre a autonomia das Tributações Autónomas, passemos o pleonasmo, atente-se à declaração de voto do juiz Vítor Gomes no Acórdão do TC n.º 18/2011, proc.º 204/2010, onde o mesmo afirma que «Embora formalmente inserida no CIRC e o montante que permita arrecadar seja liquidado no seu âmbito e a título de IRC, a norma em causa [art.º 88.º] respeita a uma imposição fiscal que é materialmente distinta da tributação nesta cédula, (…)» e mais adiante «Com efeito,, estamos perante uma tributação autónoma, como diz a própria letra do preceito. E isso faz toda a diferença.(…)».
9. Autonomia essa que foi recentemente confirmada, em acórdão proferido em 13 de abril de 2016, no Acórdão do TC n.º 197/2016, proc.º 465/2015, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20160197.html em relação à taxa aplicável às despesas abrangidas pelo n.º 13 do artigo 88.º do CIRC, (…).”
10. O Orçamento de Estado para 2016 aditou o número 21 ao artigo 88.º do CIRC, atribuindo ao mesmo com carácter interpretativo, onde: «A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos do artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.»
(…)
12. A norma constante do Orçamento de Estado para 2016 e que tanta indignação causa à Requerente, limita-se a, como a Requerida já defendeu, e por tal, por razões de economia processual, se abstém de repetir tais considerações, a evidenciar aquele que sempre foi o espírito daquela norma.
13. É, que, pese embora, a mera conveniência e as discordâncias teóricas da Requerente, tais inquietações não retiram à norma sub juditio o carácter interpretativo que lhe está subjacente.
14. Percorrendo todo o itinerário percorrido pela Requerida e as conclusões que daí se retiram (ao contrário do que pretende a Requerente demonstrar) é notório que o raciocínio evidenciado e pré existente à aprovação da norma, refuta integralmente os argumentos da Requerente no que à questão de fundo dos autos se refere.
15. De onde que, a existência da norma ora posta em causa, e sobretudo o efeito que lhe foi atribuído, se traduz numa mera evidência clarificadora.
16. Com efeito, a Requerida na sua Resposta demonstra um raciocínio claro, lógico e, sobretudo coerente, em que a única conclusão lógica e pura a extrair, num raciocínio interpretativo e de integração sistemática e de coerência com o espírito da matéria em apreço (tributações autónomas) sempre levaria ao entendimento manifestado há décadas (goste-se ou não!) pelos contribuintes e que a requerente vem agora tentar contrariar.
17. Entendimento e prática, que nunca foi posto em causa pela Requerida, nem tão pouco, como pretende a Requerente falsamente demonstrar, foi posto em causa pela esmagadora jurisprudência e «fortíssima corrente jurisprudencial anterior» (sic.)
(…)
24. Esta norma tendo um carácter interpretativo integra-se na lei interpretada (cfr. art.º 13.º do Código Civil), formando ambas um conjunto incindível, ao contrário daquilo que a Requerente prolixa, soporífera e fastidiosamente recanta à exaustão.
25. Considera-se que tem carácter interpretativo «a lei que sobre um ponto em que a regra de direito é incerta ou controvertida vem consagrar uma solução a que a jurisprudência, por si só, poderia ter adoptado» (Baptista Machado, in Aplicação das Leis no Tempo no Novo Código Civil, pág. 286 e segs.).
26. O que significa que, para se poder afirmar que uma lei tem aquela natureza é necessário que, de substancial, ela nada tenha trazido em relação à lei interpretada e se tenha limitado a resolver uma incerteza ou controvérsia jurídicas, dando-lhe um entendimento que a jurisprudência, se o tivesse querido, já poderia ter adoptado.
27. A norma interpretativa visa, pois, pôr fim à controvérsia que se instalou, por mera e exclusiva vontade deste douto mandatário, sobre o sentido que se devia dar a determinada lei, fixando ela própria o sentido que esta deve ter, a qual será vinculante.
28. Trata-se de uma interpretação autêntica que se destina a conferir uma maior certeza e igualdade na aplicação da lei.
29. Ora, no caso em apreço, se bem analisarmos o predito diploma legal, este mais não faz do que aclarar num raciocínio interpretativo, de integração sistemática e de coerência com o espírito da matéria em apreço (tributações autónomas),
30. i.e., o entendimento manifestado desde há décadas quer pelos contribuintes, quer pela própria Requerida e que nunca foi posto em causa quer por aqueles, quer por esta Requerida, nem tão pouco, como pretende a Requerente pela propalada mas inexistente “fortíssima corrente jurisprudencial anterior” (sic.).
31. Repise-se, a norma ora em apreço apenas veio clarificar positivando, como se evidenciou na Resposta apresentada, aquilo que sempre foi o espírito da norma, bem como o entendimento e prática perfilhados pacificamente pela doutrina e pelos contribuintes em geral, os quais nunca foram postos em causa pela AT, pelo que qualquer interpretação dissonante será materialmente inconstitucional.
32. Aliás, desde a criação das Tributações Autónomas, no início da década de 90, e a sua evolução legislativa, sempre foi pacífico por que as tributações autónomas não admitiam qualquer dedução.
33. Com efeito, a lei ao atribuir carácter interpretativo, não se afasta das soluções que já antes se viam firmadas quer pela Lei, quer pela prática jurídico-tributária, antes sim, interpreta e esclarece a aplicação prática dos dispositivos ora controvertidos, revelando uma solução não inovatória, de forma a que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei.
34. É, pois, inquestionável que o julgador e o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adoptar outra solução que não solução que a nova lei vem interpretar e que era já aquela que os contribuintes e a AT adoptavam,
(…)
36. Donde decorre que o aditamento ora em apreço apenas se limita a traduzir a axiomática evidência de toda a teleologia histórica da norma
37. Pese embora que, para a Requerente, esta seja uma matéria controvertida, em total dissonância com aquilo que foi o comportamento e a interpretação reiteradamente tida em conta ao longo dos tempos, quer pelos contribuintes, quer pela AT, a solução definida pela nova lei não se afasta daquilo que era a teleologia do normativo em apreço, bem pelo contrário.
38. Face ao que, não merecem censura os actos tributários impugnados pela ora Requerente, devendo os mesmos permanecer válidos na ordem jurídica.
(…)
40. No que ao efeito interpretativo conferido pelo artigo 135.º constante da Lei do Orçamento de Estado para 2016, apelemos à boa jurisprudência exarada no processo arbitral n.º 673/2015-T, constituído em tribunal colectivo, presidido pelo insigne Conselheiro Jorge Lopes de Sousa (…).
(…)
44. Mais recentemente também as decisões arbitrais proferidas no âmbito do processo n.º 781/2015-T e no processo n.º 784/2015-T, acolheram a posição supra, igualmente considerando que se está perante uma lei verdadeiramente interpretativa, pelo que a interpretação autêntica feita não viola qualquer princípio constitucional, improcedendo a pretensão da Requerente.
45. Finalmente, importa ainda chamar à colação a decisão arbitral proferida no âmbito do Processo n.º 535/2015-T, a qual versou sobre a questão dos autos e foi decidida a favor da Requerida.
46. Em suma, importa, pois, que à presente data já foi a questão decidenda sido alvo de vários acórdãos arbitrais, in casu, o Processo n.º 113/2015-T; Processo n.º 535/2015-T; Processo n.º 673/2015-T, e Processo n.º 781/2015-T; Processo n.º 784/2015-T todas elas corroborando a tese pugnada pela Requerida.
47. Sem prescindir, finalizando, sempre se diga que qualquer interpretação que não aplique a norma constante da Lei Orçamento de Estado para 2016, vertida no artigo 133.º, o qual aditou o número 21 ao artigo 88.º do CIRC, com os efeitos previstos no artigo 135.º, ambos constantes da Lei do Orçamento de Estado para 2016, publicado a 30.03.2016, com entrada em vigor no dia seguinte, nos quais se preconiza, com carácter interpretativo, que
«A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos do artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.»
E que, por conseguinte, permita a dedução à parte da colecta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma quer do pagamento especial por conta efectuado em sede de IRC (PEC), é materialmente inconstitucional, por
a) violação do princípio da legalidade, ínsito no art.º 103.º n.º 2 da CRP,
b) violação do princípio da separação dos poderes, plasmado no art.º 2 da CRP,
c) violação do princípio da protecção da confiança previsto no art.º 2.º da CRP,
d) violação do princípio da igualdade, na sua formulação positiva da capacidade contributiva, decorrente do art.º 13.º, n.º 2 e do 103.º, n.º 2 ambos da CRP.”
IV. SANEADOR
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades e não se suscita qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.
V. MATÉRIA DE FACTO
A. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
1. Em 31-05-2013, a Requerente submeteu a declaração Mod. 22 de IRC referente ao exercício de 2012, com código de identificação …-…-…, em que apurou o montante de € 22.917,34 a título de tributações autónomas (cfr. documento n.º 1 da p.i.).
2. O imposto assim liquidado foi pago em 19-12-2013.
3. Em 19-11-2014, a Requerente submeteu a declaração Mod. 22 de IRC referente ao exercício de 2013, com código de identificação …-…-…, em que apurou o montante de € 13.497,04 a título de tributações autónomas (cfr. documento n.º 2 da p.i.).
4. O imposto assim liquidado foi pago a 06-03-2015.
5. Em 2012, a Requerente detinha um crédito sobre o Estado no montante de € 28.902,00 a título de PEC dos anos de 2008 a 2010, com a seguinte discriminação (cfr. documento n.º 7 da p.i.):
Ano
|
Descrição
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Data de Pagamento
|
Valor
|
2008
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2.º PEC
|
10-12-2008
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€ 14.888,00
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2009
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1.º PEC
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31-03-2009
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€ 6.757,00
|
2009
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2.º PEC
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28-10-2009
|
€ 6.757,00
|
2010
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1.º PEC
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18-06-2010
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€ 500,0
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6. Em 2013, o montante do crédito sobre o Estado referente a PEC era de € 14.014,00, correspondente aos anos de 2009 e 2010 (cfr. documento n.º 7 da p.i.).
7. Os PEC dos exercícios de 2010 (2.ª prestação), 2011, 2012 e 2013 foram pagos após a entrega das declarações de rendimento Mods. 22 identificadas nos pontos 1. e 2. supra, mais concretamente a 20-03-2015 (cfr. documento n.º 7 da p.i.).
8. Em 27-05-2015, a Requerente apresentou uma reclamação graciosa contra as autoliquidações de IRC dos anos de 2012 e 2013.
9. Até à data de submissão do presente pedido de pronúncia arbitral, a Autoridade Tributária e Aduaneira não proferiu decisão expressa sobre a reclamação deduzida, pelo que a 270-09-2015 se presumiu o seu indeferimento tácito.
B. Factos não provados
Não se provaram outros factos com relevância para a decisão arbitral.
C. Fundamentação da matéria de facto
A matéria de facto dada como provada assenta na prova documental apresentada e não contestada.
VI. MATÉRIA DE DIREITO
Em face do exposto, cumpre a este tribunal decidir sobre a possibilidade de o sujeito passivo de IRC poder, ao abrigo da alínea c) do n.º 2 o art. 90.º do CIRC (redacção em vigor à data dos factos), deduzir ao valor das tributações autónomas em sede daquele imposto os montantes entregues ao Estado a título de PEC e que não foram objecto de dedução ou reembolso.
Nas palavras da Requerente, caberá a este tribunal confirmar ou infirmar o raciocínio por aquela defendido de que “PEC é pagamento por conta de IRC, PEC é dedutível à colecta de IRC, a tributação autónoma é IRC, logo PEC é dedutível à colecta da tributação autónoma”.
Para tal, cumpre escalpelizar cada uma das premissas para validar a conclusão lógica que a Requerente delas retira.
Vejamos:
A) Da natureza do PEC
Não obstante se reconhecer que a introdução do PEC teve como objectivo primacial o combate à fraude e evasão fiscal[1], e apesar das vicissitudes e ajustamentos de regime de que foi alvo, é hoje inquestionável, face à redacção do art. 93.º do CIRC, que o PEC assume – como já assumia à data dos factos - a natureza de adiantamento por conta de imposto a pagar. Como tal, ao abrigo do disposto no art. 33.º da LGT, os montantes entregues pelo sujeito passivo serão dedutíveis ao imposto apurado e devido a final.
Nessa medida, o art. 106.º do CIRC não constitui uma norma de incidência objectiva que, complementando os arts. 3.º e 4.º do CIRC, cria uma nova figura tributária. Na verdade, considerando a sua inserção sistemática (no Capítulo VI sob a epígrafe “Pagamento”) e a própria letra da lei, conclui-se que estamos perante uma norma que se limita a definir formas e prazos de pagamento do imposto.
Isto mesmo foi reconhecido pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 494/2009, de 29-09-2009, proc. n.º 595/06: “O PEC é um instrumento tributário que configura uma obrigação fiscal do contribuinte, ao qual é exigido que pague antecipadamente um montante legalmente determinado relativo a um imposto antes do seu apuramento definitivo. No caso em análise, trata-se de um imposto periódico sobre o rendimento, o Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC). A finalidade dos pagamentos por conta (do PEC mas, do mesmo modo, do pagamento normal por conta – PNC) é a de, concretizando a máxima “pay as you earn”, aproximar a data do pagamento, neste caso, do IRC, da data da produção ou obtenção dos rendimentos, sendo certo que a obrigação tributária apenas estará efectivamente definida e quantificada no final do respectivo período de imposição, por referência aos factos tributários que fundam a emergência da obrigação do imposto. Imposições deste género correspondem juridicamente, numa perspectiva estrutural, a actos tributários provisórios e, funcionalmente, a actos cautelares ou caucionais.” (sublinhado nosso).
Como referem J. L. Saldanha Sanches e André Salgado de Matos[2], “(…) do ponto de vista conceptual, os pagamentos especiais por conta são, em confirmação da sua designação, verdadeiros pagamentos por conta – ou seja, um mecanismo de anestesia fiscal utilizado pelo legislador para reduzir a dilação temporal entre o momento da verificação do facto que indicia a existência de capacidade contributiva (a percepção do rendimento) e o momento em que é devido o pagamento da dívida fiscal (…) A diferença entre os pagamentos especiais por conta e os pagamento gerais por conta não é, assim, de natureza, mas apenas de regime”.
Sendo adiantamento do imposto devido a final, no período do IRC que aqui se discute (2012 e 2013), o PEC estava, no entanto, sujeito a um regime especial de dedução e reembolso que resultava da aplicação conjunta da alínea c) do n.º 2 e n.º 7 do art. 90.º e dos n.ºs 2 e 3 do art. 93.º do CIRC (numeração e redacções à data). Mas, como referem os AA. supra mencionados[3], as condições impostas pelo legislador para permitir o reembolso do imposto adiantado em excesso mais não são do que “(…) um procedimento específico de ilisão de uma presunção legal em momento posterior ao do seu funcionamento (…)”, transferindo para o sujeito passivo o ónus de demonstrar perante a Autoridade Tributária que valor considerado para efeitos de quantificação do PEC devido (volume de negócios do ano anterior) não corresponde a rendimento efectivo sujeito a tributação nos termos gerais.
Nessa medida, concluiu-se que este regime especial de dedução ou reembolso – atenta a referida finalidade de combate à fraude e evasão fiscal - não interfere com a qualificação do PEC como um efectivo adiantamento por conta do IRC a apurar relativamente a cada exercício, sendo, por isso mesmo, dedutível ao valor a pagar.
Por esta razão, o CIRC previa e prevê expressamente a dedução do PEC ao IRC a pagar no próprio exercício ou nos exercícios seguintes.
B) Da natureza das tributações autónomas e respectivas regras de liquidação
Esta questão tem sido objecto de intenso debate doutrinário e jurisprudencial, tendo dado origem orientações de sentido divergente.
A título de exemplo, refira-se o acórdão do STA de 21-03-2012, proferido no proc. n.º 830/11, em que se concluiu que as tributações autónomas são imposto sobre a despesa e não sobre o rendimento, ficando nesse acórdão consignado, que “Na verdade, as tributações autónomas, embora formalmente inseridas no CIRC (art. 81º), não visam tributar o rendimento no fim do período tributário, mas sim determinados tipos de despesa, consubstanciando cada despesa um facto tributário autónomo, a que o contribuinte fica sujeito, venha ou não a ter rendimento tributável no fim do período (Cfr. o Voto de Vencido do Senhor Conselheiro VÍTOR GOMES ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/2011.) (…) no que concerne às tributações autónomas, verifica-se que, pese embora tratar-se de uma forma de tributação prevista no CIRC, nada tem que ver com a tributação do rendimento, mas sim com a tributação de certas despesas, que o legislador entendeu, pelas razões atrás apontadas fazê-lo de forma autónoma. Fica, desta forma, evidenciado que as tributações autónomas constituem realidades fiscais completamente diferentes do regime da transparência fiscal quer porque a tributação autónoma não atinge o rendimento, mas sim a despesa enquanto tal, quer porque cada despesa é havida como constituindo facto tributário autónomo sujeito a taxas diferentes das de IRC. E, não obstante as despesas confidenciais só virem a ser tributadas conjuntamente com o IRC, a verdade, porém, é que a matéria colectável sujeita à incidência das taxas de tributação autónoma é o mero somatório das diversas parcelas de despesa”.
No mesmo sentido, o recente acórdão n.º 197/2016 do Tribunal Constitucional de 13-04-2016, processo n.º 465/15, em que se consignou que “Com efeito, como se fez notar, o IRC e a tributação autónoma são impostos distintos, com diferente base de incidência e sujeição a taxas específicas. O IRC incide sobre os rendimentos obtidos e os lucros diretamente imputáveis ao exercício de uma certa atividade económica, por referência ao período anual, e tributa, por conseguinte, o englobamento de todos os rendimentos obtidos no período tributação. Pelo contrário, na tributação autónoma em IRC – segundo a própria jurisprudência constitucional -, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, caracterizando-se como um facto tributário instantâneo que surge isolado no tempo e gera uma obrigação de pagamento com caráter avulso. (…) Como é de concluir, a tributação autónoma, embora prevista no CIRC e liquidada conjuntamente com o IRC para efeitos de cobrança, nada tem a ver com a tributação do rendimento e os lucros imputáveis ao exercício económico da empresa, uma vez que incidem sobre certas despesas que constituem factos tributários autónomos que o legislador, por razões de política fiscal, quis tributar separadamente mediante a sujeição a uma taxa predeterminada que não tem qualquer relação com o volume de negócios da empresa (acórdão do STA de 12 de abril de 2012, Processo n.º 77/12).”
Em relação à doutrina, como refere Rui Morais[4] “está em causa uma tributação que incide sobre certas despesas dos sujeitos passivos, as quais são havidas com constituindo factos tributários. É difícil descortinar a natureza desta forma de tributação e, mais ainda, a razão pela qual aparece prevista nos códigos dos impostos sobre o rendimento”.
Também Casalta Nabais[5] considera que se “trata de uma tributação sobre a despesa e não sobre o rendimento”. No mesmo sentido, cfr. Ana Paula Dourado[6]. Em suma, alguma doutrina e a jurisprudência mencionada do STA e do Tribunal Constitucional consideram que as tributações autónomas são factos tributários autónomos, que incidem sobre a despesa. Assim, a seguir-se esta orientação, as tributações autónomas, apesar de inseridas formalmente no CIRC, dizem respeito a uma tributação distinta do imposto sobre o rendimento.
Acontece, porém, que, é possível identificar várias decisões arbitrais que, embora debruçando-se sobre outra questão de direito em concreto, concluem que as tributações autónomas sempre foram consideradas uma componente do IRC, integrando o respectivo regime jurídico. Vejam-se, designadamente, os seguintes processos: n.ºs 187/2013-T, 209/2013-T, 210/2013‑T, 246/2013-T, 255/2013-T, 260/2013-T, 282/2013-T, 292/2013-T, 298/13-T, 6/2014-T, 36/2014-T, 37/2014-T, 59/2014-T, 79/2014-T, 80/2014-T, 93/2014-T, 94/2014-T, 163/2014-T, 166/2014-T, 167/2014-T e 211/2014-T, 659/2014-T, 697/2014-T e 769/2014-T.
Da jurisprudência mencionada resulta assente que a colecta produzida por via de aplicação das regras de tributação autónoma é verdadeiro IRC, integrando a respectiva dívida deste imposto.
A este propósito, no acórdão arbitral proferido no processo n.º 59/2014-T, ficou consignado, entre o mais, que “se é certo que as tributações autónomas constituem uma forma diferente de fazer incidir impostos sobre as empresas, que poderia constar de regulamentação autónoma ou ser arrumada no Código do Imposto do Selo, também não deixa de ser certo que a opção legislativa por incluir tais tributações no CIRC revela uma intenção de considerar tais tributações como inseridas no IRC, o que se poderá justificar por serem uma forma indirecta, mas, na perspectiva legislativa, equitativa, simples e eficiente, de tributar rendimentos empresariais que escapam ao regime da tributação com directa incidência sobre rendimentos. Conclui-se, assim, que tanto à face do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 192/90, de 9 de Junho, em que, em todas as suas versões, se referia que as tributações autónomas eram em «IRS ou IRC» e não outro tributo, como depois da sua inclusão no CIRC, as tributações autónomas de que são sujeitos passivos pessoas colectivas são consideradas IRC, pelo que lhes serão aplicáveis as normas do CIRC que não contendam com a sua especial forma de incidência e taxas aplicáveis.”
De igual modo, realce-se o que ficou consignado no acórdão arbitral, proferido no processo n.º 187/2013-T, igualmente incidente sobre tributações autónomas relativas a encargos com viaturas, despesas de representação e ajudas de custo: “Neste sentido, dever-se-á atentar, para além de tudo o mais, que o regime legal das tributações autónomas em questão apenas faz sentido no contexto da tributação em sede de IRC. Ou seja, desligado do regime legal deste imposto, carecerão aquelas, por completo, de sentido. A sua existência, o seu propósito, a sua explicação, no fundo, a sua juridicidade, apenas é compreensível e aceitável no quadro do regime legal do IRC. [p 21]. (…) Ou seja, as tributações autónomas do género que ora nos ocupam estão fortemente ligadas aos sujeitos do imposto sobre o rendimento respectivo, e, mais especificamente, à actividade económica por eles levada a cabo. Este aspecto torna-se ainda mais evidente, se se atentar num outro dado fundamental: a circunstância de as tributações autónomas que ora nos ocupam [encargos com viaturas, despesas de representação e ajudas de custo] apenas incidirem sobre despesas dedutíveis. (…) Não obstante, o referido modus operandi pela via da despesa, típico das tributações autónomas em análise, será ainda assim, materialmente conexionável com o rendimento que, em última análise legitima o IRC. (…). Face a tudo o que se vem de expor, considerando-se que as tributações autónomas que incidem sobre encargos dedutíveis em IRC integram o regime, e são devidas a título, deste imposto, e, como tal estão abrangidas pela disposição da alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º do CIRC (…).”
Finalmente, deve sublinhar-se que a jurisprudência reiterada e uniforme atrás mencionada terá levado o legislador, na reforma do IRC efectuada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, a prever expressamente que as tributações autónomas não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável, passando a alínea a) do n.º do artigo 23.ºA- do CIRC a referir-se ao “IRC, incluindo as tributações autónomas (…)”. Esta nova redacção formaliza, assim, sem margem para dúvidas, que as tributações autónomas são, efectivamente, IRC e, nessa medida, terão a natureza de “(…) impostos que directa ou indirectamente incidam sobre os lucros”.
Esta qualificação é, também, subscrita por ambas as Partes que têm sobre esta matéria posição convergente; ambas reconhecem que as tributações autónomas são parte integrante do IRC, correspondendo a colecta deste imposto.
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Tratando-se – como se trata – de IRC, a liquidação das tributações autónomas segue as mesmas regras e procedimentos previstos nos arts. 89.º e 90.º do CIRC (redacção à data). Isso mesmo reconhece a Requerida no art. 38.º da p.i. ao referir que “Convém clarificar que a liquidação das tributações autónomas é efectuada com base nos artigos 89.º e 90.º n.º 1 do Código do IRC mas, aplicando regras diferentes para o cálculo do imposto: (1) num caso a liquidação opera mediante aplicação das taxas do art. 87.º à matéria colectável apurada de acordo com as regras do capítulo III do Código e (2) no outro caso, são apuradas diversas colectas consoante a diversidade dos factos que originam a tributação autónoma”.
É certo que os valores devidos a título de tributações autónomas são calculados com base numa matéria colectável específica, determinada nos termos do art. 88.º do CIRC, diferente da base de incidência do imposto a calcular nos termos dos arts. 15.º e seguintes do CIRC. Da mesma maneira que são, também, distintas as taxas de imposto aplicáveis.
No entanto, contrariamente ao que a Requerida alega, esta distinção não implica que o imposto apurado na autoliquidação efectuada pelo sujeito passivo, nos termos do art. 89.º e n.º 1 do art. 90.º do CIRC, seja distinto, originando duas colectas distintas de imposto.
Na verdade, o art. 90.º do CIRC assumindo-se como a única norma do código que regula o procedimento e forma de liquidação do imposto terá, necessariamente, que aplicar-se às situações identificadas, originando apenas uma colecta de imposto. Assim sendo, quando o legislador remete para o imposto liquidado nos termos do n.º 1 do art. 90.º do CIRC está, precisamente, a referir-se ao imposto calculado às taxas do art. 87.º do CIRC, bem como ao imposto devido a título de tributações autónomas.
Havendo apenas um procedimento de liquidação do IRC (neste caso, autoliquidação), este originará apenas uma colecta de imposto – embora calculada de forma dualista – pelo que as deduções previstas no n.º 2 do art. 90.º do CIRC serão aplicáveis a essa mesma colecta total e não apenas a parte dela.
Nesse sentido, não se poderá considerar justificada e legalmente sustentada a conclusão da Requerida plasmada no art. 39.º da p.i. no sentido de que, não tendo a colecta apurada com base no normativo em causa um carácter unitário - já que comporta valores calculados segundo regras diferentes a que estão associadas finalidades também diferenciadas - as deduções permitidas nos termos do n.º 2 do art. 90.º do CIRC seriam apenas aplicáveis relativamente à componente da colecta com a qual existisse correspondência directa para manter a coerência da estrutura conceptual do regime regra do imposto.
Esta interpretação não tem, a nosso ver, qualquer aderência à letra da lei e ao regime legal em vigor. Nada no CIRC permite semelhante conclusão, sendo antes contrariado pela própria letra da alínea c) do n.º 2 do art. 90.º e do art. 93.º do CIRC que estabeleciam a possibilidade de dedução do PEC ao imposto apurado pelo sujeito passivo na declaração de rendimentos. De todas a limitações à dedução do PEC impostas pelo legislador (nomeadamente as decorrentes dos n.ºs 7 e 8 do art. 90.º do CIRC), nenhuma se refere à necessidade de conexão ou correspondência à colecta ou parte da colecta apurada.
Acresce que o imposto apurado a que se refere o n.º 2 do art. 90.º do CIRC é precisamente o resultante da autoliquidação efectuada pelo sujeito passivo em cumprimento dos arts. 89.º e 90.º, n.º 1, do CIRC, sem que seja feita qualquer destrinça ou individualização em função da taxa de imposto ou da base de incidência.
Consequentemente, da conjugação destas normas resultava a possibilidade legal de dedução dos valores com natureza de PEC à totalidade da colecta de IRC apurada nos termos do n.º 1 do art. 90.º do CIRC que, como referido supra, engloba necessariamente as tributações autónomas apuradas no exercício.
Face ao exposto, em 2012 e 2013, os PEC entregues pelo sujeito passivo e ainda não objecto de dedução ou reembolso seriam dedutíveis aos montantes de tributações autónomas apurados em cada um desses exercícios, nos termos legalmente permitidos (tendo em especial consideração os n.ºs 7 e 8 do art. 90.º do CIRC).
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Sucede que a Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, acrescentou o n.º 21 do art. 88.º do CIRC, atribuindo-lhe carácter meramente interpretativo (art. 135.º). Tendo em conta esta situação, haverá que apurar qual o impacto, se algum, para as conclusões supra.
C) Da alteração introduzida pelo art. 133.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março
Pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, o legislador introduziu o n.º 21 ao art. 88.º do CIRC, com a seguinte redacção:
“A liquidação das tributações autónomas em IRC é efectuada nos termos previstos no art. 89.º e tem por base os valores e taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efectuadas quaisquer deduções ao montante global apurado”.
No art. 135.º da referida Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, o legislador determinou que a norma em causa terá carácter interpretativo.
A verificar-se que, de facto, o novo n.º 21 do art. 88.º do CIRC tem carácter interpretativo, as disposições aí contidas integrarão a norma interpretada desde o seu início de vigência, pelo que este tribunal terá que concluir pela não dedução do PEC aos montantes devidos a título de tributações autónomas, indeferindo a pretensão da Requerente. Isso mesmo resultaria da aplicação ao caso concreto do art. 13.º do Código Civil que “A lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transacção, ainda que não homologada, ou por actos de natureza análoga”.
Cumpre, assim, analisar.
Antes de mais, há que referir que, embora em matéria fiscal os princípios constitucionais da legalidade e da proibição da retroactividade da lei, previstos no art. 103.º da CRP, imponham algumas restrições ao legislador, entende este tribunal que não existe uma proibição constitucional genérica de leis fiscais interpretativas.
Não se acompanha, por isso, a posição defendida por J.L Saldanha Sanches[7] que concluiu que “E por isso não nos parece que a lei interpretativa possa ter lugar em matéria fiscal: se até aqui o que estava em causa eram as leis falsamente interpretativas a revisão constitucional veio impedir os efeitos retroactivos de qualquer norma em matéria fiscal. Incluindo os provocados por lei interpretativa.”. Da mesma forma que se considera que, face à mais recente jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria de interpretação e delimitação da amplitude do princípio da proibição da retroactividade fiscal[8], as conclusões do acórdão n.º 172/2000, de 22-03-2000, proferido no proc. 762/98, deste Tribunal não justificarão uma proibição absoluta de leis interpretativas.
A admissibilidade constitucional de leis interpretativas em matéria fiscal - tal como relativamente a quaisquer normas de natureza fiscal - deverá ser aferida em função das matérias sobre as quais versam e do respectivo conteúdo normativo uma vez que a proibição constitucional da retroactividade da lei fiscal se cinge às matérias de incidência (objectiva, subjectiva, temporal e territorial) do imposto.
Com efeito, como escreve Casalta Nabais[9] da redacção do n.º 3 do art. 103.º da CRP resulta “(…) a proibição de normas fiscais retroactivas de incidência oneradoras ou agravadoras da situação jurídica dos contribuintes (…)” (sublinhado nosso).
O mesmo defendem Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa[10], “A constitucionalidade das normas tributárias retroactivas tem de ser aferida em termos diferentes consoante elas digam respeito aos elementos materiais que concorrem para a definição do tipo normativo tributário (incidência, isenções e taxa) ou a outras matérias (garantia dos contribuintes, procedimento de liquidação e de cobrança). A proibição constante do art. 103.º, n.º 3, da CRP; diz respeito apenas às primeiras. A conformidade constitucional das segundas tem de ser equacionada à luz dos princípios materiais da segurança jurídica e da tutela da confiança que enformam o Estado de direito (art. 2.º da CRP)”.
E a verdade é que a prática jurisprudencial, de que são exemplos os acórdãos do STA de 21-03-2012, proc. n.º 830/11, e de 16-05-2012, proc. n.º 675/11, tem admitido a existência de leis interpretativas de âmbito fiscal.
Partindo-se, assim, da admissibilidade teórica de leis interpretativas em matéria fiscal, cumpre analisar se, no caso em apreço, não obstante a declaração expressa do legislador, estamos efectivamente perante uma lei interpretativa.
Para Ferrer Correia[11] “Na ausência de outros elementos que permitam dar valor interpretativo a uma norma, o critério fundamental a utilizar para tal fim é ‘que o princípio contido na nova lei possa considerar-se ínsito na lei anterior. Ora esse requisito deve julgar-se satisfeito sempre que possa dizer-se que os tribunais decidiriam normalmente, no domínio da legislação anterior, de acordo com tal princípio. (…) É que, verificando-se este pressuposto, cessam as razões que estão na base do princípio da não retroactividade da lei, que se consubstanciam na tutela dos direitos adquiridos e das expectativas concebidas pelos particulares ao agirem ao abrigo das normas da lei precedente. Se a jurisprudência era claramente favorável a um certo entendimento da legislação anterior, e a nova lei o vem confirmar de modo expresso não se vê razão para não definir esta lei como interpretativa e como tal aplicável mesmo para o passado. Em boas contas ninguém poderá queixar-se de ofensas de direitos subjectivos ou de frustração de expectativas, já que os interessados, se tivessem recorrido aos tribunais para fazer valer um suposto direito ou ver esclarecida determinada situação, não teriam muito provavelmente obtido resultado diverso daquele que agora se tornou certo”.
Este é também o entendimento de Baptista Machado[12] que concluiu que “a razão pela qual a lei interpretativa se aplica a factos e situações anteriores reside fundamentalmente em que ela, vindo consagrar uma das interpretações possíveis da lei antiga com que os interessados podiam e deviam contar, não é susceptível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas”. Nestes casos, não há verdadeira retroactividade na aplicação da lei interpretativa porque a interpretação da norma originária efectuada à luz do quadro legal em vigor levaria à mesma solução que a consagrada pelo legislador em norma posterior.
Considera-se, assim, que, para qualificar uma lei como interpretativa, deverão verificar-se os seguintes requisitos:
(i) haver uma questão controvertida ou incerta na lei em vigor; e
(ii) o legislador consagra uma solução interpretativa que resolve a incerteza a que chegariam o intérprete ou o julgador com base no normativo vigente anteriormente à alteração legislativa.
Aplicando estes critérios à situação em apreço, somos levados a concluir que estamos, realmente, perante uma lei interpretativa. Na verdade, a matéria regulada pelo novo n.º 21 do art. 88.º do CIRC era controversa e incerta (tendo dado origem aos processos arbitrais elencados pela própria Requerente), correspondendo a solução consagrada a uma das interpretações plausíveis a que o julgador chegaria, como efectivamente chegou, por exemplo, na decisão arbitral proferida no proc. 113/2015-T, de 30-12-2015. É certo que a solução consagrada legalmente não corresponde à interpretação que este tribunal fez das normas do IRC em vigor à data dos factos, conforme exposto supra, mas não deixa de ser uma solução plausível e fundamentada que encontrou aderência jurisprudencial prévia.
Contra este entendimento não procederá a alegação da Requerente de que, para se estar perante uma efectiva lei interpretativa seria necessária uma corrente jurisprudencial que impusesse determinada solução ao legislador, o que não se verificaria na presente situação dado que alguns dos acórdãos mencionados pela Requerida são posteriores à alteração legislativa.
E esta alegação não procede porquanto, como refere Baptista Machado[13] “(…) Não é preciso que a lei venha consagrar uma das correntes jurisprudenciais anteriores ou uma forte corrente jurisprudencial anterior. Tanto mais que a lei interpretativa surge muitas vezes antes que tais correntes jurisprudenciais se cheguem a formar. (…) Para que uma lei nova possa ser realmente interpretativa são necessários, portanto, dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Se o julgador ou o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adotar a solução que a lei nova vem consagrar, então esta é decididamente inovadora.” (sublinhado nosso).
Essencial é, pois, que a solução consagrada pelo legislador pudesse ser apurada pelo intérprete ou julgador dentro do quadro normativo em vigor e no âmbito da controvérsia ou incerteza gerada pela norma. Como já referido, apesar de a solução consagrada pelo legislador não ser aquela a que este tribunal chegou, como exposto supra, a verdade é que corresponde a uma interpretação possível dentro dos quadros da controvérsia, sustentada logicamente noutras decisões (arbitrais) anteriores.
Acresce que esta conclusão quanto ao carácter interpretativo do novo n.º 21 do art. 88.º do CIRC, com inerente aplicação da mesma nos termos do art. 13.º do Código Civil, não viola o princípio da proibição da retroactividade da lei fiscal decorrente do n.º 3 do art. 103.º da CRP, como alegado pela Requerente por se entender que poria em causa a colecta de tributações autónomas cujos factos tributários se consumaram nos anos de 2012 e 2013. No entender da Requerente, caso se aplique retroactivamente a norma introduzida pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, tal afectará a liquidação e apuramento das ditas colectas, levando ao pagamento de mais imposto “tributação autónoma em IRC” para os exercícios em causa.
Ora, salvo melhor opinião, a questão em discussão nos autos não contende com a colecta a título de tributações autónomas dos anos de 2012 e 2013, que se manterá sempre inalterada qualquer que seja a decisão sobre possibilidade de dedução do PEC. Isto porque, contrariamente ao que parece resultar da posição da Requerente, não há necessária correspondência conceptual entre colecta de imposto e imposto a pagar na sequência da entrega da declaração de rendimentos do art. 120.º do CIRC. Nessa medida, mesmo que o pedido efectuado pela Requerente fosse deferido, esta estaria sujeita exactamente ao mesmo nível de tributação (a colecta seria exactamente a mesma); o que diferiria seria o imposto a entregar ao Estado na sequência da autoliquidação efectuada na Mod. 22 porquanto seriam deduzidos a tal valor os montantes antecipadamente entregues a título de pagamentos especiais por conta.
Acresce que, no entender deste tribunal, a aceitação da natureza interpretativa da referida norma não viola o n.º 3 do art. 103.º da CRP porque, como supra referido, o princípio constitucional em causa proíbe a criação de impostos retroactivos, cingindo, assim, o seu âmbito de aplicação às matérias de incidência sujectiva, objectiva, temporal e territorial. Ora, a norma em causa regula a matéria do pagamento do imposto liquidado, não contendendo com a sua incidência ou quantificação da própria colecta. Improcede, por isso, inconstitucionalidade invocada pela Requerente por alegada violação da proibição da retroactividade do imposto.
Por fim, como também decidido no acórdão arbitral proferido no proc. 673/2015-T citado pela Requerida, não se pode concluir que a atribuição de natureza interpretativa à norma em causa ponha em causa o princípio da segurança jurídica porque, “(…) não havia uma jurisprudência consolidada no sentido da sua dedutibilidade [do pagamento especial por conta]à colecta resultante das tributações autónomas e, pelo contrário, a solução perfilhada no n.º 21 do artigo 88.º, já anteriormente poderia ser adoptadas pelos tribunais, como foi pelo Tribunal Arbitral que proferiu a decisão no processo do CAAD n.º 113/2015-T. Assim, não pode concluir-se que a interpretação autêntica que se faz naquele artigo 88.º, n.º 21, por força do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, seja violadora do princípio constitucional da segurança jurídica, no concerne à parte daquela norma que se reporta à indedutibilidade dos pagamentos especiais por conta à colecta das tributações autónomas.”
Face a tudo o que vem exposto supra, resta concluir pelo carácter interpretativo do n.º 21 do art. 88.º do CIRC, introduzido pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, que, sendo directamente aplicável à situação em apreço, de acordo com o art. 13.º do Código Civil, implicará o indeferimento da pretensão da Requerente por determinar expressamente a referida norma que ao montante de tributações autónomas não serão efectuadas quaisquer deduções.
A atribuição de natureza interpretativa à referida norma não viola os princípios constitucionais da segurança jurídica e da proibição da retroactividade pelo que não se julga inconstitucional o art. 135.º do referido diploma legal.
Consequentemente, as autoliquidações de IRC de 2012 e 2013 têm-se por válidas e conformes à lei, não merecendo qualquer juízo de censura.
VII. DECISÃO
De harmonia com o exposto, decide este Tribunal Arbitral julgar totalmente improcedentes os pedidos deduzidos pela Requerente e, em consequência, absolver a Requerida dos pedidos.
Valor do processo: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 36.414,38, correspondente ao valor total das liquidações impugnadas.
Custas: Nos termos do n.º 4 do art. 22.º do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 1.836,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.
Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às partes.
Lisboa, 30-06-2016
O Árbitro Singular
(Maria Forte Vaz)
[1] Teresa Gil, “Pagamento especial por conta”, in Fisco, n.º 107-108, Ano XIV, Março, 2003, p. 11); Luís Marques, “O pagamento especial por conta no âmbito do regime especial de tributação dos grupos de sociedades”, in Fisco, n.º 107-108, Ano XIV, Março, 2003, p. 3); José João de Avillez Ogando, “A constitucionalidade do regime do pagamento especial por conta”, in Revista da Ordem dos Advogados, vol. 62, Tomo III, 2002, pp. 806 e ainda 821); J. L. Saldanha Sanches e André Salgado de Matos, “O pagamento especial por conta de IRC: questões de conformidade constitucional, in Revista de Direito e Gestão Fiscal, Julho, 2003, p. 10.
[2] Cfr. “O pagamento especial por conta de IRC: questões de conformidade constitucional, in Revista de Direito e Gestão Fiscal, Julho, 2003, p. 8.
[3] Obra citada, p. 24 e seguintes.
[4] Cfr. Apontamentos ao IRC, Almedina, 2009, p. 202 e seguintes
[5] Cfr. Direito Fiscal, Almedina, 6.ª Edição, p. 614
[6] Direito Fiscal, Lições, 2015, p. 237.
[7] Cfr. “Lei interpretativa e retroactividade em matéria fiscal”, Fiscalidade, n.º 1, Janeiro de 2000, p.77 e seguintes.
[8] Acórdão n.º 310/2012, de 20 de Junho, e acórdão 399/2010, de 27 de Outubro.
[9] Cfr. Direito Fiscal, Almedina, 3.ª Edição, p.148.
[10] Cfr. Leo Geral Tributária Anotada e Comentada, Encontro de Escrita, 4.ª Edição, 2012.
[11] Cfr. Colectânea de Jurisprudência, Ano XIV, Tomo IV, p. 35.
[12] Crfr. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1994, p. 246 e seguintes.
[13] Obra citada, p. 246-247.