Processo 47/2013-T
Decisão Arbitral
RELATÓRIO
A…, contribuinte fiscal n.º …, residente na Rua …, - doravante “Requerente” – apresentou pedido de pronúncia arbitral, a 18 de Março de 2013, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em matéria tributária, doravante apenas designado por “RJAT”), em que é “Requerida” a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante “AT”.
O Requerente (R) optou por não designar árbitro, pelo que o Conselho Deontológico do CAAD procedeu à designação do Senhor Dr. Jorge Carita. O Tribunal Arbitral foi constituído no dia 22 de Maio de 2013, por despacho do Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico.
Pedido
O R. pretende a anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, n.º 2012 …, relativa ao ano de 2008, com todas as consequências legais, nomeadamente, em matéria de juros; a condenação da Requerida na devolução ao Requerente do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, desde a data do pagamento, 18.01.2013, até ao integral reembolso; e a condenação da Requerida nas custas do processo.
A liquidação, que se contesta, é o resultado de uma correcção pela Autoridade Tributária da declaração de IRS, relativa ao ano de 2008, apresentada pelo R., de forma a abranger e tributar mais-valias que este havia considerado excluídas de tributação. O R. pagou o imposto a 18.01.2013, cuja liquidação ora questiona com os seguintes fundamentos:
Os factos apresentam-se desta forma: a 31.07.2008 os sócios da Sociedade A…, Lda. – doravante, a Sociedade -, celebraram um contrato promessa com a sociedade B…, S.A., pelo qual prometeram vender cerca de 90% do capital detido na sociedade. A 29.10.2008 os sócios da sociedade deliberaram e aprovaram a transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima e o R., que havia adquirido 5% do capital da sociedade por quotas em 2005 por € 5.000,00, passou a deter 5% do capital da sociedade anónima. A 31.10.2012 os sócios alienaram, em conjunto, 90% das participações sociais, tendo o R. vendido a totalidade da sua participação social pelo preço de € 356.006,75, realizando um ganho de € 351.006,75.
Na declaração de IRS relativa ao ano de 2008, o R. qualificou este ganho como excluído de tributação, por considerar tratar-se de uma alienação onerosa de acções detidas por mais de 12 meses – excluída de tributação por lei, art.º 10, n.º 2, al. a), e art.º 43, n.º 4, al. b), ambos do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS, na redacção em vigor à data dos acontecimentos). De facto, ao abrigo do disposto no último, a data de aquisição da sua participação social remontaria a 2005.
Contudo, a AT, após acção inspectiva, na qual se apurou o contexto da alienação das participações sociais de onde resultou o ganho que o R. havia considerado excluído de tributação, decidiu aplicar a Cláusula Geral Anti-Abuso (CGAA), prevista no art.º 38, n.º 2 da Lei Geral Tributária (LGT), considerando que o fim único ou determinante da transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima teria sido o de eliminação da tributação que seria devida em resultado do negócio jurídico alternativo. Em consequência, o acto de transformação societária tornou-se ineficaz para efeitos fiscais.
Alegações do R.
O R. apresentou requerimento para impugnação deste acto de liquidação, fundamentado, essencialmente, na inexistência dos pressupostos de aplicação da Cláusula Geral Anti-Abuso. O R. rebate os argumentos decisivos para a aplicação da CGAA pela AT, assentes na posição da AT face aos factos, que é a que se apresenta: o R. vendeu as suas acções na sociedade, cujas mais-valias estariam excluídas de imposto porque as detinha há mais de 12 meses; a sociedade foi transformada em sociedade anónima pouco tempo antes (2 dias) da consumação da venda das acções; se tivesse sido vendida enquanto sociedade por quotas, as mais-valias seriam tributadas à taxa de 10%; donde se deduz que a transformação da sociedade terá sido dirigida essencial ou principalmente, por meios artificiosos e com abuso de formas jurídicas, à eliminação da tributação que seria devida em resultado de negócio jurídico de idêntico fim económico (a venda de quotas).
O R. contesta, em primeiro lugar, a legalidade da inspecção com base em vícios de procedimento (art.º 54 do Código de Processo e de Procedimento Tributário - CPPT), considerando que o prazo para a realização da mesma foi desrespeitado, que se realizaram duas inspecções sobre o mesmo objecto, e que se violaram garantias procedimentais e a obrigação de adequada fundamentação - em violação do art.º 63 da LGT e artigos 36 e 62 do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária – RCPIT.
Em segundo lugar, o R. considera também que a fundamentação apresentada pela AT para a aplicação da CGAA padece de vários vícios, nos termos dos artigos 60, n.º 7, e 77 da LGT e 63 do CPPT. Sustenta para tal que a aplicação do art.º 38, n.º 2 da LGT está sujeita a um especial dever de ponderação e fundamentação, o qual a AT terá violado ao apresentar uma fundamentação deficiente, parcial e errónea, desprezando prova relevante apresentada pelo contribuinte, e também insuficiente, não tendo o Fisco efectuado diligências a que estaria legalmente obrigado, no intuito da descoberta da verdade material (na óptica do R., a AT não teria indagado sobre a motivação fulcral para a realização da transformação da sociedade). Por outro lado, considera o R. que a fundamentação não contradita minimamente a argumentação exposta na audição prévia, em particular, quanto à verificação do elemento normativo. Por fim, o R. alega que a AT decidiu influenciada por um preconceito contra o contribuinte, “vendo em cada atitude um comportamento fraudatório fiscal”.
Em terceiro lugar, o R. procede, a uma análise dos pressupostos legais para aplicação da Cláusula Geral Anti-Abuso - sistematizados pela doutrina em quatro elementos: meio, resultado, intelectual, e normativo - concluindo pelo não preenchimento dos mesmos. Em consequência, haveria também uma violação dos artigos 10, n.º 2, al. a) conjugado com o art.º 43, n.º 4, al. b) do CIRS com a redacção em vigor em 2008.
Por último, o R. fundamenta o pedido de juros indemnizatórios no preenchimento dos requisitos do art.º 43 da LGT: acto de liquidação ilegal imputável a erro dos serviços, de que resultou o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente previsto.
Alegações da AT
A Requerida respondeu, em 02.06.2013, contestando a argumentação do R..
Em primeiro lugar, a AT procede a uma pormenorizada descrição do procedimento de inspecção. Em relação à alegada violação do prazo para o procedimento inspectivo, a AT argumenta que o art.º 36, n.º 2 do RCPIT “tem que ser interpretado numa lógica sistemática”, apelando à diferente natureza do procedimento de inspecção e do procedimento de aplicação da Cláusula Geral Anti-Abuso. Na lógica da AT, “sendo a decisão do procedimento de aplicação da CGAA prejudicial ao procedimento de inspecção, a sua abertura a 2011/10/12, através do ofício n.º 60072/0504, faz com que os actos de inspecção só sejam realizados depois da sua conclusão”. Assim, no entender da AT, o procedimento de inspecção foi concluído no prazo legalmente estipulado de 6 meses.
Relativamente à suposta falta de fundamentação, entende a AT que a decisão de aplicação da CGAA se encontra legalmente fundamentada através do despacho do Director Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira de 23.08.2012. A AT procede à análise dos elementos pressupostos da aplicação da CGAA, concluindo pela verificação dos mesmos, considerando que a “operação desenvolvida é manifestamente artificial e abusiva e teve como objectivo a transformação artificial de uma mais-valia a pagar, numa mais-valia excluída de tributação”.
A AT refuta a argumentação apresentada pelo R., no sentido da ilegalidade da aplicação da CGAA, por considerar que a “apreciação da motivação dos adquirentes para exigirem que o acto de transformação social ocorresse antes da sua aquisição terá de atender à verificação de vantagens económicas directas ou do afastamento de qualquer tipo de impedimentos administrativos ou legais”, considerando que a transformação “não traz qualquer benefício de carácter económico, financeiro ou outro, à entidade compradora (…)”.
Do Procedimento
A reunião do Tribunal Arbitral, prevista no art.º 18 do RJAT, ocorreu no dia 26.09.2013, no Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), em Lisboa.
Foram inquiridas as testemunhas arroladas pelo Requerente C…, D…, e E….
Deliberou-se juntar a posteriori os depoimentos das testemunhas F…, indicada pelo R., e G…, arrolado pela AT, de acordo com o princípio de aproveitamento dos actos processuais, ouvidas, no âmbito do processo n.º 46/2013-T, sobre a mesma factualidade.
Prescindiu-se da apresentação das alegações orais. Posteriormente foram notificadas as partes para apresentação de alegações escritas.
Alegações Escritas
A 14.10.2013, o R. apresentou as alegações escritas, em que remete para a Petição Inicial que entende manter a sua validade, e enuncia os factos que considera dever dar-se por provados. Relativamente aos pressupostos de aplicação da CGAA, o R. concentra-se, essencialmente, no elemento normativo, apresentando jurisprudência do CAAD e doutrina no sentido do seu não preenchimento.
A AT apresentou as alegações escritas no dia 17.10.2013, reiterando a argumentação apresentada na Resposta ao Requerimento inicial, e refutando, em particular, a relevância da jurisprudência e doutrina apresentada pelo R. quanto ao preenchimento do elemento normativo da CGAA. Defende também a impossibilidade de apresentar prova “inequívoca” no que concerne ao elemento intelectual, apelidando esta prova de “diabólica”.
SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos do art.º 2, n.º 1, al. a) do RJAT. O processo não enferma de vícios que o invalidem e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas (art.º 10, n.º 2, do RJAT).
MATÉRIA DE FACTO
Provados
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O R. adquiriu, em 2005, duas quotas, a E… e H…, por preço igual ao seu valor nominal: €2.500 cada.
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A 31.07.2008 foi celebrado um contrato promessa de compra e venda de participações sociais entre a B…, S.A. e os sócios da sociedade comercial por quotas A…, Lda., pelo qual os segundos se comprometeram a vender à primeira, 90% do capital da sociedade.
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A B…, S.A., é uma sociedade integrada no grupo de sociedades controladas pela sociedade suíça I…, S.A., à qual cedeu a sua posição contratual.
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Em 29.10.2008, os sócios da sociedade A…, Lda., deliberaram, por unanimidade, transformar a sociedade por quotas em sociedade anónima e procederam ao seu registo junto da Conservatória do Registo Comercial de ….
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Em 31.10.2008, o R. vendeu a sua participação social à empresa I…, S.A., correspondente a 5000 acções ordinárias, tituladas, ao portador, com o valor nominal de € 1,00 cada, pelo preço de € 356.006,75.
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O R. realizou uma mais-valia de € 351.006,75, que não declarou em sede de IRS por a considerar excluída de tributação, ao abrigo do disposto nos artigos 10, n.º 2, al. a, e 43, n.º 4, al. b) do CIRS, na redacção em vigor em 2008.
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O R. votou favoravelmente a transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima.
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No decurso de acção inspectiva a terceiro, apurou-se que o R. alienou as participações sociais dois dias após a transformação da forma societária da sociedade.
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O Director de Finanças de … autorizou, por despacho, a 22.08.2011, que fosse efectuado um procedimento de inspecção tributária, destinado à verificação do cumprimento das obrigações fiscais do R., pela Direcção de Finanças do ….
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A 14.09.2011 foi emitida Ordem de Serviço (n.º OI2011…) para início de procedimento externo de inspecção ao R., relativo ao exercício de 2008, em sede de IRS.
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O R. foi notificado em 20.09.2011 (Ofício n.º …/…) para juntar documentos, no âmbito do procedimento de inspecção, relacionados com a venda da sua participação social.
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No dia 12.10.2011 (Ofício n.º …/…) determinou-se a abertura de procedimento de aplicação da Cláusula Geral Anti-Abuso com vista a apurar se a transformação da sociedade tinha sido justificada, ou apenas motivada por razões fiscais – Notificado ao R. a 14.10.2011 (Ofício n.º …….).
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O R. foi notificado a 31.10.2011 para apresentar cópia do contrato-promessa celebrado a 31.07.2008 (Ofício n.º …/…).
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O R. foi notificado, por carta-aviso (ofício n.º …/…), a 20.01.2012, da visita, a curto prazo, de técnicos dos Serviços de Inspecção Tributária.
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A 02.03.2012, o R. foi notificado para exercer direito de audição sobre a proposta de aplicação da CGAA (Ofício n.º …/…), o que fez a 26.03.2012.
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A AT determina a aplicação da CGAA, tornando ineficaz o acto de transformação societária, sendo o R. notificado da decisão a 14.06.2012 (Ofício n.º …/…). Esta decisão, e o procedimento conducente à mesma, são confirmados e ratificados pelo Director de Finanças de … (Parecer de 12.07.2012) e pelo Director Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira (Despacho de 23.08.2012).
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Com base na Ordem de Serviço n.º OI2011…, de 14.09.2011, foi realizada acção inspectiva entre os dias 03.10.2012 e 22.10.2012, com o objectivo de implementar as correcções necessárias, conforme Nota de Diligência junta ao processo (NDO20121537).
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Em 26.10.2012 foi expedido ofício em que se notificava o R. do início do procedimento de inspecção, da conclusão do procedimento de inspecção e para exercício do direito de audição, tendo sido apresentado o respectivo Projecto de Relatório da Inspecção Tributária.
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O R. não foi notificado dos despachos de prorrogação do prazo de inspecção externa.
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O R. foi notificado do Relatório de Inspecção Tributária, a 29.11.2012 (Ofício n.º …/…), que apurou mais-valias tributáveis a 10%, liquidadas no valor de € 35.100,68, e da alteração dos rendimentos declarados, a 30.11.2012 (Ofício n.º …….).
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A 27.12.2012, o R. recebeu a notificação da liquidação do imposto, juros compensatórios e acerto de contas.
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Em 18.01.2013, o R. pagou a liquidação contestada, no valor de € 35.100,68.
Não Provados
Não se prova que a transformação societária tenha sido motivada por questões relacionadas com a gestão, dimensão, ou imagem societária.
Fundamentação
Os factos foram dados como provados com base na prova junta ao processo.
DIREITO
Afigura-se ao Tribunal Arbitral que a ordem de conhecimento das questões colocadas tendo em conta o regime do artigo 124º do CPPT, aplicáveis ex vi artigo 29º do RJAT, é a seguinte:
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Inspecção
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Fundamentação
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CGAA
De facto, a preterição de formalidades essenciais no procedimento de inspecção, como serão o cumprimento dos prazos e as notificações e fundamentação da prorrogação dos prazos, conduzem à nulidade do acto, o que, naturalmente, inquina a validade do acto final de liquidação, baseado nas correcções apuradas pela inspecção, pelo que iniciaremos a apreciação das questões de Direito pela inspecção.
1. Da Inspecção
- Caducidade do direito de liquidação
Em primeiro lugar, cabe verificar se a o direito de liquidação foi exercido dentro do prazo estabelecido no art.º 45, n.º 1 da LGT: 4 anos. Tratando-se de um imposto periódico, o prazo conta-se a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário (art.º 45, n.º 4 da LGT), ou seja, a 31.12.2008. Assim, começa o prazo a correr no dia 01.01.2009, e corre até ao dia 31.12.2012.
Assim, e sem prejuízo do que se decide a propósito dos vícios da acção inspectiva, é importante clarificar que a liquidação, notificada ao R. no dia 27.12.2012, ocorreu dentro do prazo.
- Prazo para iniciar o procedimento de aplicação da CGAA
Também a título preliminar, é importante notar que o procedimento de aplicação da CGAA foi instaurado em prazo. Isto porque, a anterior norma do art.º 63, n.º 3 do CPPT, por ser de natureza procedimental, era imediatamente aplicável (conforme jurisprudência do CAAD, nomeadamente P123/2012-T, e P124/2012-T), e, por outro lado, porque o momento determinante para avaliar a lei aplicável, é o da abertura do procedimento de aplicação da CGAA. Assim, mesmo tendo os factos que dão causa a procedimento ocorrido anteriormente, aplicava-se o art.º 63, n.º 3 com a “nova” redacção dada pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, por ser esta a norma em vigor aquando da abertura do procedimento de aplicação da CGAA.
Deste modo, tendo entrado em vigor a 01.01.2009 esta alteração, já se considerou que o momento de início da contagem do prazo de três anos era o do “início do ano civil seguinte ao da realização do negócio jurídico objecto das disposições anti-abuso”, diferentemente do que se dispunha anteriormente (“após a realização do acto ou da celebração do negócio jurídico objecto da aplicação das disposições anti-abuso”).
Assim, praticado o acto de transformação da sociedade em 29.10.2008, o prazo para iniciar o procedimento começou a contar-se a 01.01.2009, correndo até 31.12.2011, tendo-o sido efectivamente a 12.10.2011 (e notificado a 14.10.2011), logo, dentro do prazo de três anos que a lei previa.
- Falta de notificação inicial
O primeiro vício que encontramos na apreciação do procedimento inspectivo é o da falta de notificação do início do procedimento. O regime do RCPIT quanto ao procedimento de inspecção destina-se aos próprios serviços e a assegurar que, através de uma regulação mais minuciosa, a inspecção causa a mínima perturbação possível ao contribuinte.
Nos termos do art.º 51, n.º 2 do RCPIT, o início do procedimento de inspecção é determinado pela data em que se considera o sujeito passivo notificado. Esta notificação está sujeita a uma forma especial pois corresponde à própria ordem de serviço assinada pelo sujeito passivo ou seu representante.
Ora, no processo, encontra-se apenas a Ordem de Serviço n.º OI 2011…, que determina a abertura de uma inspecção externa, parcial, com o fim de comprovação e verificação do cumprimento das obrigações pelo sujeito passivo, ao abrigo do art.º 12, n.º 1, al. a) do RCPIT. Contudo, não se encontra documentada a assinatura do R. ou seu representante, nem se refere a recusa do mesmo (conforme prevê o art.º 51, n.º 4 do RCPIT).
Todavia, e ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, consagrado também no art.º 16, e) do RJAT, não sendo esta questão suscitada pelo R. no requerimento inicial nem nas alegações finais, presume-se que a ordem de serviço foi de facto assinada pelo R., dando início, validamente, ao procedimento de inspecção.
- Falta de notificação dos despachos de prorrogação
O art.º 36, n.º 2 do RCPIT estabelece um prazo máximo de 6 meses para conclusão da inspecção, com a possibilidade de duas prorrogações, por um período de 3 meses cada. Assim, no máximo, um procedimento de inspecção poderá decorrer durante 12 meses. Ora, como ficou acima estabelecido, o procedimento iniciou-se a 14.09.2011, pelo que a sua conclusão, e admitindo que as prorrogações fossem válidas, deveria ocorrer, no máximo, no dia 14.09.2012.
No entanto, nos termos do art.º 62, n.º 2 do RCPIT, o procedimento apenas se considera concluído quando o relatório final de inspecção é notificado ao contribuinte por carta registada – o que, no caso, aconteceu a 29.11.2012, ou seja, estaria fora do prazo de 12 meses.
Mais ainda, segundo o R., não teria sido respeitada a obrigatoriedade de notificação das prorrogações do prazo – art.º 36, n.º 4 do RCPIT. A notificação de actos lesivos ao contribuinte é uma imposição constitucional, conforme se infere do art.º 268, n.º 3 da CRP.
Refira-se, no entanto, a orientação jurisprudencial do STA relativa a este tema. De facto, vários acórdãos, nomeadamente o Ac. STA de 29/11/96, rec. N.º 0695/06, Ac. STA de 27/02/2008, rec. N.º 0955/07, e Ac. STA de 07/05/2008, rec. N.º 0102/08, apontam no sentido de que o prazo referido no art.º 36 do RCPIT é meramente ordenador e que o seu desrespeito não constitui irregularidade procedimental invalidante das liquidações decorrentes da inspecção. Afirma-se ainda que os vícios próprios do procedimento inspectivo não se comunicam ao acto de liquidação.
Lê-se no Ac. STA de 27.02.2008, rec. N.º 0955/07, por referência à sentença que o motivou, que “a ultrapassagem do prazo de seis meses previsto no n° 2 do artigo 36° do RCPIT para o procedimento de inspecção, não tem qualquer efeito na validade dos actos tributários que sejam praticados com base nas conclusões do relatório de inspecção, pelo que o acto de liquidação impugnado não padece de qualquer ilegalidade”.
Lê-se também no mesmo acórdão que “os procedimentos inspectivo e de liquidação são distintos entre si, ainda que este tenha carácter meramente preparatório ou acessório, o que não significa que as ilegalidades nele cometidas se projectem, fatalmente, na liquidação, invalidando-a”, e que “o vício (…) é próprio do procedimento inspectivo, não se comunica ao de liquidação”.
No mesmo sentido, Martins Alfaro, em comentário ao art.º 36 do RCPIT (Anotado), refere a falta de notificação de prorrogação gera apenas ineficácia desta prorrogação, e que o termo da inspecção tem “natureza de previsão e, por isso, a ultrapassagem do termo previsto não implica qualquer consequência jurídica”1.
Contudo, coloca-se, neste caso, uma questão mais complexa, que diz respeito à ultrapassagem não só do prazo de 6 meses, mas do prazo máximo total de 12 meses. Chamamos neste ponto a atenção para alguma jurisprudência do Tribunal Constitucional. No Ac. 514/08, da 3ª Secção, discutiu-se, precisamente, se a interpretação do art.º 36, n.º 2 RCPIT, referente ao prazo de inspecção, perfilhada pelo STA – particularmente relevante para o nosso caso, a interpretação de que a ultrapassagem do prazo estabelecido no artigo não tem efeito invalidante dos actos de liquidação de impostos baseados no procedimento de inspecção cuja duração excedeu o prazo legal e de que o prazo, no que respeita à Autoridade Tributária, tem efeitos meramente ordenadores – seria conforme à Constituição.
Decidiram os Juízes Conselheiros que esta interpretação da norma respeita os princípios constitucionais da proporcionalidade, da igualdade e justa repartição de custos, da confiança e da segurança jurídica. Para este Tribunal, a perspectivação dos prazos para a inspecção como ordenadores seria necessária, adequada e proporcional, face ao interesse público da obtenção de receitas públicas para assegurar o funcionamento de um Estado Social de Direito, seria também justa pois permitiria que a igualdade horizontal entre os cidadãos fosse devidamente efectivada, e não prejudicaria a protecção do direito do contribuinte já que a sua protecção é realizada por outros meios como o regime de caducidade do direito do Estado a liquidar o imposto ou da prescrição das dívidas tributárias. Lê-se no acórdão, no considerando 8., que “em situações de especial complexidade, pode revelar-se necessária a ultrapassagem dos prazos de tramitação legalmente previstos, prevalecendo o interesse público na obtenção de receitas destinadas a suportar as prestações sociais do Estado sobre o interesse individual dos contribuintes a uma célere definição da sua situação jurídico-tributária.”
No mesmo sentido, vide Ac. 457/2008 e Ac. 566/2008, do Tribunal Constitucional.
Concluímos, assim, e no que toca aos prazos, que a inspecção é válida.
- Procedimento de aplicação CGAA
Note-se, todavia, que não aderimos à tese defendida pela AT relativa à autonomia dos dois procedimentos: de inspecção externa e de aplicação da CGAA. Em primeiro lugar, porque a construção desta tese padece de incoerência. De facto, se os dois procedimentos fossem totalmente autónomos, correriam de forma paralela, sem interferirem na realização um do outro, o que contraria a ideia de que o procedimento de aplicação da CGAA, devido à sua importância, prejudicaria o procedimento de inspecção. Contudo, a AT afirma exactamente que o início do procedimento de aplicação da CGAA suspende o procedimento de inspecção externa.
A tese da AT carece de qualquer apoio legal: não há nenhuma disposição legal que sustente que o procedimento de aplicação da CGAA suspenda a inspecção. Mais ainda, o procedimento de aplicação da CGAA é regulado de forma parca pelo art.º 63 do CPPT pelo que podemos apenas concluir que as suas regras de procedimento não são tão específicas como a AT quer fazer parecer, devendo, à falta de regulamentação especial, recorrer-se aos artigos da LGT e RCPIT que regulam a inspecção (art.º 2, a) CPPT).
É importante perceber que o acto de aplicação da CGAA é um acto administrativo tributário, inserido no procedimento de inspecção que, embora seguindo um conjunto de regras próprias, não é autónomo nem desligado do procedimento principal (a inspecção).
Assim, não consideramos que o procedimento de aplicação da CGAA seja totalmente autónomo do procedimento de inspecção. O procedimento de aplicação da CGAA mais não é que um procedimento conducente a um acto específico praticado, de algum modo, se não no âmbito, pelo menos tendo como suporte, elementos recolhidos no contexto da acção inspectiva, pelo que estará também sujeito às regras que a regulam, em particular, os prazos, e permanecerá ligado ao procedimento de inspecção.
2. Da Fundamentação
O R. alega ainda que a aplicação da CGAA exige uma especial fundamentação, “em função das suas vicissitudes concretas e como forma de tutela dos direitos dos contribuintes”, dever este que a AT teria incumprido.
De facto, o R. tem, em parte, razão. Nos termos legais, as decisões em matéria tributária que afectem direitos dos contribuintes - como são aquelas que impõem prestações tributárias - devem ser fundamentadas de facto e de direito (artºs. 124º. e 125º. do Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei nº. 442/91, de 15 de Novembro, e, em especial, art.º 63, n.º 3 CPPT – redacção actual).
A falta de fundamentação de um acto administrativo traduz um vício de forma que acarreta a nulidade do acto2.
A especificação dos fundamentos de facto e de direito dos actos administrativos é um ónus da administração, cujo incumprimento impossibilita o contribuinte de impugnar os actos que lhe impõem obrigações e deveres. De facto, a falta de fundamentação da decisão da administração fiscal impede ao contribuinte o acesso aos Tribunais, com salvaguarda de todas as garantias inerentes, direito este que é constitucionalmente garantido.
Vejamos: tanto a proposta como a decisão final de aplicação da CGAA cumprem perfeitamente o disposto no art.º 63, n.º 3, al. a) do CPPT pois identifica-se o negócio jurídico realizado e qual seria o negócio jurídico lícito alternativo, bem como as normas aplicáveis. Entendemos ser intenção do R. atacar, em particular, a alegada demonstração de que a prática do acto foi dirigida, essencial ou principalmente, à redução, eliminação, ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais (nos termos da alínea b) do mesmo artigo). Ou seja, essencialmente, a prova do elemento intelectual.
Ora, na verdade, e como afirma a AT, nas alegações escritas, esta prova é uma “prova diabólica” pois a prova de uma intenção, da subjectividade subjacente a um acto jurídico, não pode ser efectuada com absoluta segurança e certeza, a menos que o próprio visado a confesse expressamente. No caso, a AT estabelece prova indiciária, e é esta prova que conduz à aplicação da CGAA. Como refere a AT “os elementos recolhidos em sede de Inspecção tributária demostram, para além de qualquer dúvida razoável, que nos presentes autos se verifica uma preponderância da motivação fiscal face à motivação não fiscal (…)” pois “(…) argumentos invocados aliados à evidente vantagem fiscal, traduzida na ausência de tributação na venda das acções, não permite outra conclusão, à luz da lógica mundana e da experiência que não seja o efectivo cumprimento do ónus probatório que competia à AT e, por conseguinte, a verificação no caso vertente do elemento intelectual.”
Não obstante as falhas que o R. lê na fundamentação, na verdade, o que a lei exige é o preenchimento destes dois pressupostos referidos, como se pode concluir da letra do n.º 3, do art.º 63 do CPPT, ao referir que “contém necessariamente”.
Ainda assim, analisemos: quanto ao primeiro vício invocado da desconsideração de prova apresentada pelo R., diga-se que, da conjugação do princípio da verdade material (art.º 6 RCPIT) com o princípio do contraditório (art.º 8 RCPIT), resulta a possibilidade de desconsiderar certos elementos pois “o princípio do contraditório não pode pôr em causa os objectivos das acções de inspecção tributária nem afectar o rigor, operacionalidade e eficácia que se lhes exigem” (art.º 8, n.º 2 do RCPIT). A AT goza de alguma margem de apreciação face aos elementos de prova apresentados, não lhe sendo exigido que se limite a aderir aos mesmos, podendo contestá-los ou não lhes conferir a importância que o R. confere.
Relativamente à alegada insuficiência da fundamentação devido ao facto de a AT não ter efectuado diligências a que estava obrigado, nos termos do art.º 29, n.º 1 e 3 do RCPIT, note-se que estas disposições referem uma faculdade (“pode”) dos funcionários do serviço de inspecção, de forma a garantir a eficácia da inspecção na obtenção da verdade material, e não uma obrigatoriedade. Não há, portanto, um vício de procedimento.
Quanto à alegada falta de investigação, não se prova que seja verdade, visto que a AT efectua diligências no sentido da obtenção da verdade material, como a análise do quadro factual em torno do acto de transformação da sociedade, ao abrigo do disposto no art.º 6 do RCPIT, que permite à Autoridade Tributária “adoptar oficiosamente as iniciativas adequadas a esse objectivo”. Ainda que se discorde ou censure as iniciativas concretamente adoptadas, a verdade é que a Autoridade goza de alguma discricionariedade na escolha destes meios.
No que concerne ao alegado vício de falta de contradita dos argumentos expostos na audição prévia, refira-se que o contraditório a que o contribuinte tem direito, não implica uma refutação literal dos argumentos invocados. O art.º 60, n.º 7 LGT obriga a que se tenha em consideração os novos elementos suscitados, o que a AT de facto fez, apresentando, contudo, uma fundamentação, ao abrigo da sua livre apreciação, que não os referindo expressamente, os engloba.
Por fim, a acusação de que a fundamentação perpassa um “preconceito” contra o R. carece de sustentação. A AT, face a indícios fortes de um comportamento abusivo do R., investigou e conclui em sentido desfavorável ao R.. Não é censurável que a AT proceda a uma perseguição efectiva de comportamentos eventualmente abusivos, de forma a garantir o cumprimento do princípio da igualdade na repartição da carga tributária e na prossecução das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas (art.º 103, n.º 1 CRP).
Consideramos, assim, não se verificar nenhum vício na fundamentação apresentada pela AT.
3. Da Aplicação da Cláusula Geral Anti-Abuso
A CGAA é composta por quatro elementos: o elemento meio, o elemento resultado, o elemento intelectual, e o elemento normativo, que passamos a analisar.
Elemento meio
O elemento meio traduz a via utilizada para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal. Para considerar este elemento preenchido, teremos que atender aos “actos ou negócios jurídicos cuja estrutura se encontra determinada em função de determinado fim fiscal”3. No caso sub judice, é da combinação de apenas dois actos que resulta a eliminação do imposto que seria devido – a transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima e a venda das participações sociais.
Na verdade, a transformação da sociedade pode constituir um acto normal na vida de uma sociedade, justificável em função de razões económicas. Porém, não se provando esta motivação “normal”, o acto de transformação constituirá um acto anómalo, artificioso, dirigido apenas a, a posteriori, escapar à tributação legalmente devida. Estes actos obedecem apenas a uma lógica de montagem jurídica, em que se transcende o universo económico no âmbito do qual seriam licitamente praticados.
Assim, cada um dos actos isoladamente considerado não contende, em princípio, com o Direito. A anti-juridicidade é aferida tendo em consideração a globalidade da actuação do contribuinte, da qual se retira a intencionalidade que a motiva. No plano civil, os actos não padecem de vícios, permanecendo válidos. Todavia, da comparação com os negócios jurídicos alternativos possíveis que melhor, ou de igual forma, cumprem a finalidade económica-jurídica, conclui-se que, no plano fiscal, os actos praticados se dirigiram à obtenção de uma vantagem que de outra forma não seria obtida, e, por isso, devem ser desconsiderados.
Como nos ensina Saldanha Sanches, “às empresas, e apenas às empresas, compete a escolha dos meios específicos pelos quais realizarão os seus negócios: necessário é que exista, como motivo para a sua escolha, não uma certa via de obtenção de uma poupança fiscal contra a intenção expressa da lei, mas, sim, o que pode considerar-se uma razão comercial legítima. A operação deve ser capaz de resistir ao business purpose test (…) [que] nada mais é do que uma razão comercial legítima tal como pode vir a ser demonstrada pelo sujeito passivo, em particular, no caso de este ter adoptado uma via pouco habitual”4.
Ora, é precisamente este teste que a operação realizada não é capaz de “passar”. Vejamos,
O R. invoca o relatório justificativo da transformação da forma societária, que apresenta, no essencial, dois motivos para a sua efectivação: “a) razões atinentes à dinâmica da sociedade (crescimento e diversificação da actividade da empresa, encontrar novas oportunidades de negócio); b) razões ao nível dos sócios (potenciar a sua associação com outras entidades em face de novas oportunidades de negócio)”.
O R. apresenta a Declaração da I…, datada de 2 de Março de 2012, junta com o requerimento inicial, na qual se afirmam, no ponto 7., as razões económicas justificativas para a transformação da sociedade. Contudo, este documento está desfasado da realidade temporal sob análise - mais de 3 anos depois da celebração do negócio –, pelo que, ao abrigo do princípio da livre valoração de prova (art.º 607, n.º 5, do Código de Processo Civil - CPC), não se afigura adequado valorá-lo, ou, pelo menos, com o efeito pretendido pelo R.
Note-se que não está aqui em causa a veracidade do documento (cujo valor probatório está fixado por lei, no art.º 376 do Código Civil - CC), mas a relevância no contexto da prova produzida para demonstrar o que se alega.
As testemunhas arroladas pelo R. corroboraram a tese defendida pelo R. acerca da suposta justificação não-fiscal para a transformação da forma societária. Todavia, pese embora sejam testemunhas idóneas (art.º 495 do CPC), o facto de serem partes no negócio que constitui um dos actos constitutivos da estrutura artificiosa que ora analisamos, leva-nos a não considerar as suas afirmações relativas ao fim do negócio – ao abrigo dos artigos 396 do CC e 607, n.º 5 do CPC, relativos à livre apreciação dos testemunhos.
Em sentido contrário, a AT invoca o Considerando IX do Contrato-promessa, segundo o qual a compra poderia ter por objecto quotas ou acções, e alega que as vantagens indicadas são aparentes e que para a compradora seriam insignificantes. Isto porque a real conveniência da transformação prévia da sociedade residiria na vantagem fiscal. Alega a AT que se a transformação fosse uma condição essencial para a realização do contrato, naturalmente estaria prevista de forma inequívoca no contrato-promessa - ou seja, ainda que estabelecida como condição prévia na Cláusula 3, al. f) do Contrato-promessa, não resulta claro que seja esta a vontade das partes em face do parágrafo terceiro, do ponto segundo, da mesma cláusula, em que se prevê que as “condições prévias são estabelecidas em benefício exclusivo da B… que poderá, caso assim entenda, renunciar a todas ou algumas delas, dispensando a sua verificação”.
Note-se que, embora seja verdade que a Cláusula 3, ponto segundo, par. terceiro, relativiza a imperatividade das condições impostas, podendo duvidar-se da sua essencialidade, a referência a quotas, no contexto de todo o contrato promessa, não é tão relevante como a AT quer fazer parecer. Na verdade, uma leitura cuidada do contrato revela várias referências à condição da prévia transformação da sociedade, o que indica que aquela referência é, de facto, errónea e poderá representar um lapso na redacção do contrato.
A AT invoca também que, se fosse realmente uma condição essencial, não se perceberia o porquê de proceder à transformação apenas dois dias antes da celebração do contrato, tendo o contrato-promessa sido celebrado três meses antes. Seguindo o mesmo raciocínio, se fosse essencial sempre teria uma influência determinante na determinação do preço da venda, o que não se verifica (conforme a própria Declaração de desinteresse da I…, ponto 10).
De outro lado, sendo a compra relativa a 90% das participações sociais, não faria sentido que os vendedores justificassem a transformação social com base em factos que só ocorreriam no futuro, já fora do seu controlo, e tendo sempre a compradora a possibilidade de transformar a sociedade a posteriori.
Assim, afirma a AT que os motivos económicos invocados no relatório justificativo de transformação da sociedade não se efectivaram. Por um lado, o “desenvolvimento futuro da empresa” não diria respeito à vendedora, que não teria interesse directo neste desenvolvimento (até porque se encontrava desde Janeiro de 2008 limitada a actos de gestão corrente – cláusula 6.1 do Contrato-Promessa) mas à compradora, adquirente da quase totalidade da sociedade, com o poder de decisão sobre a forma jurídica a assumir pela sociedade; os “ganhos de eficiência e projecção” não se capitalizariam dentro do período de tempo em que os vendedores detinham ainda o controlo, e proveito, dos ganhos da sociedade, o mesmo valendo para o argumento da “gestão mais profissional e controlo mais eficiente”; e, por fim, não se poderá concluir que a actividade da sociedade se tenha alterado após a transformação, no que aos vendedores diz respeito.
Por fim, refere que a própria operação de transformação não é de tal forma onerosa, seja a nível de trâmites burocráticos ou das exigências materiais, que justifique a sua imposição à entidade vendedora. Na verdade, num plano de razoabilidade e no contexto deste negócio, o valor do mesmo, em perspectiva, tornaria irrisório o custo da transformação. Prova disto é que a operação de transformação não é tida em consideração na determinação do preço da aquisição, como já acima fizemos referência.
Concluindo, e atendendo ao contrato promessa, parece ser, de facto, vontade inequívoca das partes a transformação da sociedade em sociedade anónima. Este contrato-promessa apresenta-se, assim, como um indício em sentido contrário aos apresentados pela AT para justificar a aplicação da CGAA. Todavia, as justificações invocadas e o timing da transformação não isentam a operação de suspeita no que toca à sua motivação real.
No limite, o factor que suscita a suspeição, e bem, da AT face ao negócio é o (curto) espaço de tempo que medeia entre a alteração da forma e a venda. A este factor de suspeição alia-se a incapacidade de apresentar uma justificação económica que dissipe essa suspeita. De facto, as supostas justificações que se elencam suscitam vários problemas. Por um lado, não podemos ajuizar da bondade da transformação aos olhos da compradora, mas sim da perspectiva de quem realiza efectivamente a operação, que é uma operação jurídica, com consequências jurídicas e fiscais, que extravasam o feixe das relações momentâneas entre as duas entidades. Neste sentido, a justificação invocada pelo R. que se prende com o gerar de “bom ambiente”, propício à realização do contrato, não serve como justificação económica, nem financeira, nem comercial, nem jurídica, nem outra que legitime a transformação. As relações entre o comprador e o vendedor não configuram justificação suficiente.
Deste modo, não colhem os argumentos relativos às supostas razões económicas justificativas alegados pelo R.
Elemento Resultado
O elemento resultado corresponde à vantagem fiscal e equivalência económica obtidas. A vantagem fiscal é aferida por comparação com a operação “normal”, a operação que “será razoável admitir, teria sido praticada para atingir aquele resultado não-fiscal, não fosse a busca da vantagem fiscal preponderante na escolha de formas do contribuinte”5. A vantagem fiscal será, portanto, a “situação pela qual, em virtude da prática de determinados actos se obtém uma carga tributária mais favorável ao contribuinte do que aquela que resultaria da prática dos actos normais e de efeito económico equivalente, sujeitos a tributação”6.
Esta comparação deverá ter por base a idoneidade dos actos em comparação produzirem resultados (não fiscais) equivalentes, ou seja, actos que para efeitos económicos, sejam sucedâneos.
No caso concreto, e em relação à aferição dos resultados fiscais diferentes, não devemos ir mais além do que o que resulta claro da lei: as mais-valias, resultantes da diferença entre o preço de realização e o preço de aquisição (art.º 10, n.º 4, al. a), art.º 44 e 48 do CIRS) de quotas, eram tributadas a 10% (art.º 72, n.º 4, conjugado com o art.º 10, n.º 1, al. b), do CIRS na redacção em vigor em 2008,), sendo que a alienação de participações sociais não o era (art.º 10, n.º 2, al. a), conjugado com o art.º 43, n.º 4, al. b), do CIRS, na redacção em vigor em 2008), pelo que o regime que regia a última era obviamente mais vantajoso.
No que concerne à equivalência do resultado não fiscal, e tendo em consideração que a compradora adquiriu 90% da sociedade, o resultado económico, qualquer das formas societárias que assumisse a sociedade, seria sempre o de obter o controlo da titularidade da sociedade e da direcção e administração.
Como acima referimos, não consideramos provado que algum motivo económico justifique a transformação societária face à factualidade do caso concreto. Não se contesta a maior idoneidade de uma sociedade anónima como forma de uma sociedade que vale cerca de 7 milhões de euros, nem se pretende afirmar que a AT descarta, por princípio, os argumentos aduzidos. Na verdade, o que suscita a suspeita, como já referimos, é o timing para tal decisão, face às vantagens fiscais que daí advêm, e a não verificação das correspondentes vantagens económicas naquele espaço de tempo.
O R. alega ainda que a sua participação minoritária na sociedade e no negócio seria irrelevante para a concretização do negócio em moldes diferentes dos acordados. Em primeiro lugar, cabe referir que o facto de deter 5% das participações sociais não anula a vantagem que obterá com a venda, também a nível fiscal, que se projecta sobre todos os vendedores. Por outro lado, ainda que se afirme que a vontade do R. era irrelevante face à sua posição minoritária no contexto da assembleia geral, a verdade é que a transformação societária foi aprovada por unanimidade, logo, com o voto favorável do R., o que no contexto de apreciação dos factos afigura-se-nos suficiente para afastar o argumento da relevância, ou não, da vontade do R. para a efectivação da transformação.
Quanto ao argumento de que a negociação, tendo sido conduzida apenas pelo sócio maioritário, demonstraria a passividade de todos os outros sócios envolvidos na transacção, não nos parece determinante. Na verdade, o sócio maioritário, o Dr. E…, negoceia em nome e por conta de todos, salvaguardando os interesses de todos os sócios. Deste modo, não se prova que a negociação por apenas um dos sócios não se dirigisse ao fim fiscal que aproveitaria aos outros, ainda que ao próprio não aproveitasse.
Aferida a equivalência económica da venda da sociedade enquanto sociedade por quotas ou enquanto sociedade anónima, e a diferença no resultado fiscal destas operações, concluímos que é a motivação fiscal que determina a actuação do contribuinte. Ora é precisamente esta natureza da motivação que torna o acto censurável (v. elemento intelectual).
Elemento Intelectual
O elemento intelectual corresponde à motivação do contribuinte. Este elemento caracteriza-se pela alteração das prioridades que devem mover o contribuinte. De facto, para que o elemento intelectual esteja preenchido, necessário será que a finalidade fiscal prevaleça sobre a finalidade não-fiscal, conduzindo, como já vimos, à opção por um acto com equivalente idoneidade para a produção de certo efeito económico em comparação com outro alternativo, que não viria a produzir tratamento fiscal tão vantajoso.
Como refere Gustavo Courinha, “não basta decorrer da análise dos actos ou negócios jurídicos em causa, a obtenção de um resultado fiscalmente vantajoso e um resultado não fiscal equivalente”. Exigível será, de igual modo, que “as escolhas e as formas adoptadas pelo contribuinte sejam fiscalmente dirigidas (tax driven), e que aquele (resultado fiscal) prevaleça sobre este (resultado não fiscal)”7.
A motivação subjacente aos actos possivelmente abusivos é apurada de per si. O elemento intelectual preenche os elementos meio e resultado, enforma-os, pois só da verificação do elemento intelectual se pode censurar a verificação desses.
Contudo, a prova desta opção subjectiva por certos actos ou operações constitui uma probatio diabólica, devido à quase impossibilidade de provar, para além de um juízo de probabilidade, a vontade do contribuinte, precisamente o que o contribuinte oculta ou dissimula, e que sem a qual o meio utilizado ou resultado obtido não são censurados.
Daí que, na impossibilidade de obter uma prova irrefutável - a confissão do próprio contribuinte -, a AT é obrigada a recorrer a elementos indiciários e presuntivos, num contexto de razoabilidade e normalidade, extraindo, com razoável segurança, a vontade do sujeito dos actos celebrados. Neste processo, a AT poderá ter em consideração qualquer elemento passível de indiciar a vontade do contribuinte e apoiar a sua conclusão.
Assim, “na caracterização dos objectivos dos actos ou contratos, não é também à motivação psicológica das partes – de muito difícil determinação – mas ao carácter anómalo ou não para os fins tidos em vista pelas partes das formas jurídicas utilizadas que se deve atender. (…) Não é necessária para a aplicação da norma a indagação dos motivos pessoais das partes, bastando a demonstração dos fins do negócio de acordo com a interpretação das suas cláusulas, mas obviamente a aplicação da norma do número 2 [do art.º 38 da LGT] do presente artigo depende necessariamente de um juízo de facto sobre a vontade efectiva dos sujeitos passivos do imposto, como se manifesta nos documentos do acto ou do contrato.”8
Refira-se também que o recurso ao método indiciário não é único em direito fiscal. Também a avaliação por métodos indirectos (art.º 39 do CIRS, e art.º 87 e ss. da LGT) assenta sobre indícios ou indicadores.
No caso concreto, o indício mais forte a ter em consideração é o facto de entre a transformação da sociedade e a venda das participações ter mediado um curtíssimo período de dois dias, o que não permitiria que os vendedores obtivessem algum ganho concreto enquanto detentores das participações sociais objecto de alienação, ao que acresce o facto de o contrato-promessa ter sido celebrado três meses antes, tempo suficiente para proceder à operação de transformação societária. A tónica da suspeita assenta sobre esta operação que se afigura “apressada” e apenas justificável face à vantagem fiscal que seria obtida automática e imediatamente após a venda sob a forma de acções.
Por outro lado, outro indício forte assenta no facto de as razões económicas apresentadas, das quais já se demonstrou não aproveitarem os vendedores, não serem determinantes para o comprador. De facto, embora o contrato-promessa aponte no sentido da transformação ser uma condição essencial, a verdade é que admite a sua derrogação. Acresce que a Declaração de desinteresse da compradora surge três anos após a prática dos factos, e a pedido dos próprios vendedores, o que só aguça a suspeita da Autoridade Tributária, o que nos parece justificado.
Mais ainda, o próprio R. reconhece que para os vendedores seria indiferente a forma societária da sociedade, e ambas as partes afirmam a sua irrelevância na formação do preço, pelo que, e mais uma vez, não se provando com razoabilidade a justificação económica da transformação para a compradora, resta apenas um motivo plausível: aquele que se prende a vantagem fiscal subjacente à operação.
Em conclusão, os indícios revelados demonstram a motivação fiscal subjacente à operação de transformação, não se considerando provada a justificação económica apresentada pelo R. para a operação.
Elemento Normativo
O elemento normativo representa a reprovação normativo-sistemática da vantagem obtida.
Alega o R. que o elemento normativo não se preenche no caso presente. O R. alega que a transformação não merece reprovação do sistema normativo tributário, “mas o louvor e o desejo” deste. Para tal, ancora-se numa interpretação dos artigos 10, n.º 2, al. a), e 43, n.º 4, al. b), do CIRS (na redacção em vigor em 2008), segundo a qual o sistema jurídico desejaria, “à época, que as sociedades comerciais assumissem a natureza de sociedades anónimas: por melhor governo; maior profissionalismo na gestão; melhor controlo; e hipotética abertura do capital em bolsa…” e de tal forma que “para lá da isenção”, concederia também uma “benesse suplementar”, que consistiria na isenção de imposto incidente sobre as acções alienadas, se estas resultassem da transformação de quotas detidas por mais de 12 meses. Conclui, então, o R. que não é possível afirmar que a transformação se realiza por meios artificiosos e fraudulentos “quando é a própria lei positiva que consente e deseja o resultado utilizado pelo contribuinte” e, mais, que sendo a transformação uma “operação real, prevista expressamente na lei comercial, com motivações concretas de validade insuspeita” e correspondendo a um “direito potestativo da sociedade e dos sócios, com efeitos externos” não será reconduzível a um abuso ou estratagema fiscal.
Nas alegações escritas, o R. apresenta jurisprudência do CAAD que tem seguido a posição do Professor Saldanha Sanches – as decisões dos processos 123/2012-T, 124-2012-T, e 138/2012-T. O Professor Saldanha Sanches sustentava que apenas se poderia qualificar um negócio jurídico como artificioso se da norma, em que se baseia a Administração Tributária para o fazer, fosse possível o sujeito passivo encontrar o “fundamento da possível reacção administrativa”, na qual “sejam claramente assinalados os comportamentos susceptíveis de ser considerados, em função da intenção claramente expressa do legislador, como tendo a intenção principal da redução ilegítima da carga fiscal”9. O autor refere-se assim ao imperativo de previsibilidade da lei fiscal, corolário da segurança jurídica na relação jurídico-tributária.
Saldanha Sanches afirma, em consequência, que “não podemos ter um recurso administrativo ao instituto da fraude à lei nos múltiplos sectores em que o legislador (…) deixou que se multiplicassem as situações (…) de não tributação de certos tipos de negócios jurídicos”. O autor apelida estas situações de “lacunas conscientes de tributação”, das quais será exemplo paradigmático o caso da transformação da sociedade por quotas em anónima seguida da alienação dessas acções. Diz-nos o autor que “não pode deixar de se aceitar fiscalmente a transformação de uma sociedade comercial em sociedade por acções mesmo que a transformação seja motivada por razões exclusivamente fiscais” e que “a operação em si mesma (…) poderia ser catalogada entre as que têm uma mera motivação fiscal e, por isso, desconsiderada, mas para tal seria necessário que houvesse da parte do legislador uma intenção clara de tributar”10.
Nesta linha, a referida Jurisprudência do CAAD concentra-se no elemento normativo, independentemente da verificação dos outros elementos da CGAA, defendendo que será legítimo que o contribuinte opte pela via legal menos onerosa, num contexto de racionalidade económica, considerando o acto alegadamente abusivo como ainda constituindo planeamento fiscal legítimo (“técnica de redução da carga fiscal pela qual o sujeito passivo renuncia a um certo comportamento por este estar ligado a uma obrigação tributária ou escolhe, entre as várias soluções que lhe são proporcionadas pelo ordenamento jurídico, aquela que, por acção intencional ou omissão do legislador fiscal, está acompanhada de menos encargos fiscais”11).
Lê-se até na decisão arbitral relativa ao processo 123/2012-T que “é o legislador que opta, expressamente, por tributar a venda das quotas, e por não tributar a venda das acções naquele contexto”.
Ora, pese embora os argumentos de peso apresentados, não podemos seguir esta posição.
Como referimos, o Elemento Normativo identifica a desconformidade do resultado obtido através do acto abusivo com a ratio legis, espírito ou propósito da lei e os princípios do sistema fiscal. Ou seja, ao contrário do que pretende o R. fazer crer, não estamos aqui apenas a aplicar as disposições dos artigos 10, n.º 2, al. a), e 43, n.º 4, al. b) do CIRS, de forma isolada, mas em conjugação com o art.º 38, n.º 2 da LGT.
Citando G. Lopes Courinha: “A desconsideração fiscal de tais actos ou negócios só sucederá quando, cumulando-se todos os supra referidos elementos, se demonstre que o efeito fiscal obtido (sempre em atenção aos efeitos não fiscais identicamente obtidos) merece um juízo de reprovação pelo Direito”12.
Em primeiro lugar, diga-se que a Constituição e a lei pressupõem a tributação segundo a capacidade contributiva (artigos 103 e 104 CRP). Este é um princípio geral do sistema tributário aplicável mesmo quando a tributação incide sobre a alienação das participações sociais, que seria pervertido se se seguisse a orientação acima apresentada.
Como explica Lima Guerreiro, “com a cláusula geral anti-abuso tenta-se combater, (…) em nome da justiça e da igualdade, a contradição entre as formas jurídicas adoptadas pelas partes e os fins económicos dos contratos. (…) Nos casos excepcionais em que os fins económicos se afastem dos típicos das formas jurídicas adoptadas, (…) justifica-se que o legislador faça actuar as cláusulas anti-abuso, fazendo prevalecer sobre a certeza e segurança das relações jurídico-tributárias interesses de natureza pública que no caso se desenham de relevo claramente superior, pois a sua lesão poria em causa os fundamentos da tributação em geral”.13 Neste contexto, o autor afirma que a aplicação da cláusula pressupõe uma “actuação contra os fins essenciais do ordenamento jurídico-tributário”14 e defende que “a cláusula anti-abuso não representa qualquer ofensa ao princípio da tipicidade. A garantia constitucional da tipicidade deve continuar a ser respeitada em relação ao acto ou negócio jurídico de resultado económico equivalente, cuja frustração o autor da conduta pretendeu evitar”15.
É verdade que subjacentes à exclusão de mais-valias provenientes da alienação das acções detidas por um período superior a 12 meses (nos termos do anterior art.º 10, n.º 2, al. a) do CIRS) estavam critérios exclusivos de política fiscal como forma de incentivar e dinamizar o mercado de capitais e atrair investimento.
Todavia, como refere a AT, este incentivo estava direccionado aos “investidores que transformam e aproveitam a nova forma de gestão”, e não apenas aos que se aproveitam da inépcia do legislador em prever todas as situações em que pode ocorrer este planeamento abusivo, sendo que a teleologia do artigo é clara.
O aproveitamento ilícito, através de meios artificiosos ou fraudulentos do regime de exclusão tributária, não pode deixar de merecer censura normativo-sistemática por parte do ordenamento jurídico. O art.º 38, n.º 2 da LGT estabelece uma cláusula geral anti-abuso, para sancionar comportamentos abusivos, na previsão da qual se inclui o acto de transformação de uma sociedade por razões unicamente fiscais. O facto de o legislador não ter expressamente previsto a tributação das mais-valias decorrentes da alienação de participações sociais, e sim das quotas, não significa que queira premiar aqueles “mais expeditos” que alterem a forma societária antes da alienação, com a intenção única de escapar à tributação devida com o negócio alternativo.
Como refere a Requerida, “não pode dizer-se que o legislador tenha querido o aproveitamento de formas fiscais menos onerosas, dando ao contribuinte a possibilidade de escolher os negócios mais vantajosos, apenas por motivações fiscais”. Por outro lado, a norma do art.º 10, n.º 2, do CIRS foi revogada, acabando com o regime de preferência dos accionistas mais antigos, o que pode também ser interpretado como uma forma de o legislador reagir aos abusos perpetrados em nome de uma alegada “abertura legislativa”.
Como se refere no acórdão do TCA Sul 04255/10 de 15/02/2011, a razão de ser das normas anti-abuso está fundada na necessidade de estabelecer meios de reacção adequados para garantir o cumprimento do princípio da igualdade na repartição da carga tributária e na prossecução da satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas (nos termos do art.º 103, n.º 1, da CRP). Reconhece-se nessa decisão que “(…) é inerente à racionalidade económica a minimização dos impostos a suportar, podendo utilizar-se várias vias para atingir tal desiderato, embora a fronteira de distinção entre elas nem sempre seja fácil de vislumbrar e nesse sentido são seguidas normalmente as vias da gestão ou planeamento fiscal da evasão ou elisão fiscal e da fraude fiscal (…) pelo que, dentro dos limites da lei e do direito, o sujeito passivo pode escolher as formas menos onerosas de tributação tendo como limite da sua pretensão minimizadora a fraude à lei.” (destaque nosso).
Por outro lado, consideramos que o raciocínio defendido por Saldanha Sanches impediria qualquer aplicação da CGAA pois, ou a conduta está expressamente proibida por lei, ou, nos casos de aplicação de cláusula geral anti-abuso, bastaria haver uma lacuna ou uma disposição menos clara, que o contribuinte poderia “manipular” a teleologia da norma.
No que concerne ao argumento relativo ao direito potestativo dos sócios em transformar a sociedade em sociedade anónima, remetemos para o acórdão citado, que tão bem esgrime esta questão.
Lê-se no acórdão: “XVI) A interpretação da norma constante do art.º 38, n.º 2, da L.G.Tributária, deve ser operada em conformidade com a Constituição, sob pena de declaração da inconstitucionalidade da mesma, nomeadamente devido à violação do disposto no art.º 103, da Constituição da República, o que passando muito embora pelo respeito pela liberdade de opção quanto às formas de gestão empresariais visando obter todas as vantagens fiscais possíveis, assim devendo ser restringidas as limitações públicas a tal liberdade de opção empresarial, não deve ser entendida como um direito absoluto, mas apenas aceitável no plano de razoabilidade com base num relacionamento social que se pretende justo e equilibrado face à óbvia constatação da existência de direitos conflituantes (cfr.art°.18, n°.2, da Constituição da República).
XVII) Um dos limites à liberdade de gestão empresarial, é o da subsistência e manutenção do sistema fiscal visando a satisfação das necessidades financeiras do Estado e demais entidades públicas no quadro de uma repartição justa do rendimento e da riqueza criados (cfr.art°.103, n°.1, da Constituição da República), estabelecendo a lei, para tanto, mecanismos de planeamento fiscal, ao mesmo tempo que visa prevenir a ocorrência de situações de evasão e fraude fiscais por razões de justiça social nessa medida se justificando a adopção de decisões de limitação legítima de direitos, liberdades e garantias em confronto.
XVIII) Sendo certo que a liberdade de gestão fiscal tem a sua expressão nas liberdades de iniciativa económica e de empresa, contempladas nos artigos 61, 80, al. c), e 86, da Constituição da República, também o é que a legitimação da liberdade das empresas, guiando-se pelo planeamento fiscal, passa, nomeadamente, pela escolha da forma e organização da empresa (…).
XX) Assim, não estando, nem podendo estar em causa a liberdade de escolha do contribuinte na conformação dos seus negócios, ou, dito de outro modo, não estando em causa o exercício da sua autonomia privada, o que se limita é a possibilidade de a vontade do contribuinte ser relevante no que respeita ao grau da sua oneração fiscal (…).” (destaque nosso).
Ou seja, não colhe o argumento de que é o próprio legislador que, não proibindo expressamente o acto abusivo, deseja ou incentiva a prática do mesmo. A teleologia do art.º 38, n.º 2, é clara: sancionar comportamentos elisivos, portanto, comportamentos que só aparentemente são legais, que se escondem sob operações artificiais, às quais não subjaz uma verdadeira razão económica.
Ora, o contribuinte optou por uma actuação que traduz uma mudança meramente artificial - como se demonstrou -, e o Direito não tolera esta artificialidade.
Por outro lado, também não colhe o argumento de que a operação realizada é tutelada pela liberdade de empresa e de iniciativa económica. Estes direitos não são absolutos e consentir num exercício abusivo destes direitos, consistiria numa perversão e consequente negação dos mesmos.
Em conclusão, considera-se o elemento normativo da CGAA como preenchido. O comportamento do R. é anti-jurídico, atentando contra o espírito das próprias normas que invoca para se defender, merecendo, assim, a reprovação normativo-sistemática quanto à vantagem que abusivamente obtém.
Conclusão
Estão preenchidos os elementos da CGAA, devendo o acto de transformação ser desconsiderado para efeitos fiscais.
Valor do Processo
Fixa-se o valor do processo em € 35.100,68 nos termos art.º 97-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 29 do RJAT e do n.º 2 do art.º 3 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Custas
Custas a cargo do Requerente, fixando-se o respectivo montante em € 1.836,00, de acordo com o art.º 12, n.º 2 do RJAT, do art.º 4 do RCPAT, e da Tabela I anexa a este último.
DECISÃO
Termos em que se julga não assistir razão ao R., devendo a liquidação do imposto efectuada pela AT manter-se na ordem jurídica. Consequentemente improcedem os pedidos relativos aos juros indemnizatórios e à condenação da AT em custas.
Notifique-se.
Lisboa, 20 de Dezembro de 2013
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O Árbitro
Jorge Carita