Decisão Arbitral
I – Relatório
1.1. A... – ..., S.A., com sede na Avenida ..., n.º ... – ..., ...-... Lisboa, e com o NIF ... (doravante designada por «Requerente») – na qualidade de sociedade gestora do fundo de investimento imobiliário «B... – Fundo de Investimento Imobiliário Fechado para Arrendamento Habitacional» («Fundo B...») –, em face da liquidação de IMT n.º ... e da liquidação de IS n.º ..., apresentou, a 3/12/2015, um pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante somente designado por «RJAT»), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), visando que seja “declarada a nulidade [ou, caso assim não se entenda, a anulabilidade] das [acima referidas] liquidações, com base na [...] inconstitucionalidade” do “artigo 236.º (Norma Transitória no âmbito do Regime Especial Aplicável aos FIIAH e SIIAH) previsto pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro – na medida em que determina a aplicação do actual Regime Tributário dos FIIAH «aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH antes de 1 de Janeiro de 2014, contando-se, nesses casos, o prazo de três anos previsto no n.º 14 a partir de 1 de janeiro de 2014» – consubstancia um novo regime de caducidade das isenções previstas no n.º 7, alínea a) e n.º 8 do artigo 8.º (Regime Tributário) do Regime Tributário dos FIIAH, revelando uma violação flagrante e inequívoca do princípio da não retroactividade da lei fiscal, plasmado no artigo 103.º (Sistema fiscal), número 3, da Constituição da República Portuguesa”.
1.2. Em 11/2/2016 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Singular.
1.3. Nos termos do art. 17.º, n.º 1, do RJAT, foi a AT citada, enquanto parte requerida, para apresentar resposta, nos termos do referido artigo. A AT apresentou a sua resposta em 3/3/2016, tendo argumentado no sentido da total improcedência do pedido da Requerente, e tendo ainda invocado excepção por incompetência do Tribunal Arbitral.
1.4. A ora Requerente, em requerimento datado de 23/5/2016, pronunciou-se sobre a excepção invocada pela AT, tendo, em síntese, considerado a mesma “improcedente por não provada”.
1.5. Por despacho de 6/6/2016, o Tribunal considerou que, como a ora Requerente já se tinha pronunciado sobre a excepção invocada pela Requerida – estando, assim, cumprido o disposto no art. 18.º, n.º 1, al. b), do RJAT –, se mostrava dispensável, ao abrigo do art. 16.º, al. c), do RJAT, a reunião prevista no referido artigo 18.º e que o processo estava pronto para decisão. Nestes termos, foi fixada a data de 14/6/2016 para a prolação da decisão arbitral.
1.6. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é materialmente competente, o processo não enferma de vícios que o invalidem (vd. infra, “questão prévia”) e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas.
II – Alegações das Partes
2.1. Vem a ora Requerente alegar, na sua petição inicial, que: a) “as liquidações [ora em causa] enfermam de ilegalidade por violação do disposto no artigo 103.º (Sistema fiscal), número 3, da Constituição da República Portuguesa e devem, consequentemente, ser declaradas nulas”; b) “o IMT é um imposto de obrigação única [...]. Esta qualificação é aqui relevante na medida em que as isenções de IMT e de IS, constantes, respectivamente, dos números 7, alínea a), e 8 do artigo 8.º (Regime tributário) do Regime Tributário dos FIIAH, foram reconhecidas a requerimento do Fundo B..., nos termos do artigo 10.º (Reconhecimento das isenções) do Código do IMT, em momento anterior ao do ingresso dos prédios relevantes no património do Fundo B.... Ou seja, no momento em que os prédios – objecto das Liquidações – ingressaram no património do Fundo B..., ficaram definitivamente cristalizadas na ordem jurídico-tributária as isenções de IMT e IS previstas, respectivamente, nos números 7, alínea a), e 8 do artigo 8.º (Regime tributário) do Regime Tributário dos FIIAH”; c) “efectivamente, o facto objecto de tributação é, quer em sede de IMT, quer em sede de IS, a aquisição da propriedade dos prédios relevantes pelo Fundo B.... E as isenções de IMT e IS não eram, à data em que ingressaram no património do Fundo B..., condicionadas à verificação ulterior de quaisquer factos ou circunstâncias nem, tampouco, sujeitas a qualquer regime de caducidade”; d) “não estando [...] legalmente previstos, no momento do reconhecimento da isenção, quaisquer factos ou circunstâncias de que dependia a caducidade da isenção reconhecida, é manifesto que a imposição superveniente desses factos ou circunstâncias a isenções cristalizadas na ordem jurídico-tributária da Requerente enferma de inconstitucionalidade, por violação do princípio da não retroactividade da lei fiscal, consagrado no artigo 103.º (Sistema fiscal), número 3, da Constituição da República Portuguesa”; e) “o artigo 236.º (Norma Transitória no âmbito do Regime Especial Aplicável aos FIIAH e SIIAH) da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, ao estender a aplicação do actual Regime Tributário dos FIIAH «aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH antes de 1 de Janeiro de 2014, contando-se, nesses casos, o prazo de três anos previsto no n.º 14 a partir de 1 de janeiro de 2014» - está a violar de forma directa e inequívoca o princípio da não retroactividade da lei fiscal constitucionalmente consagrado. Com efeito, a extensão aí consagrada configura um novo regime de caducidade das isenções previstas nos números 7, alínea a) e 8 (Regime Tributário) e não uma mera densificação de um critério anteriormente previsto”; f) “no caso sub judice não há quaisquer dúvidas de que os factos tributários que a lei nova pretende regular já produziram todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga”; g) “cabe aqui clarificar se a inconstitucionalidade ora arguida pela Requerente deve ter como consequência a anulabilidade ou a nulidade das Liquidações [...]. [...]. Considerando que o princípio da irretroactividade fiscal reveste o carácter de um direito fundamental, dotado do regime jurídico protector deste direito, o seu desrespeito origina a nulidade do acto, in casu, a nulidade das Liquidações”; h) “a admissibilidade de Impugnação do vício da nulidade sem dependência de prazo não afasta a competência do Tribunal Tributário Arbitral, designadamente, por interpretação literal do artigo 10.º (Pedido de constituição do tribunal arbitral) do RJAT. Efectivamente, o citado artigo 10.º (pedido de constituição do tribunal arbitral) do RJAT não deve ser interpretado no sentido de ser exclusivamente aplicável às situações em que estejam em causa actos cuja impugnação está sujeita a prazo”; i) “sem conceder e por mera cautela de patrocínio, admitindo, subsidiariamente, que o vício (ilegalidade) das Liquidações determina a sua anulabilidade (e não a nulidade), deverão as Liquidações ser anuladas em conformidade, nos termos dos artigos 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e do artigo 102.º, n.º 1, alínea a), do Código do Procedimento e Processo Tributário.”
2.2. Pelo exposto, pretende a ora Requerente, em síntese: “(i) [que seja] declarada a nulidade das Liquidações com base na sua inconstitucionalidade; subsidiariamente, caso assim não se entenda, serem anuladas as Liquidações”; “(ii) ser reembolsada [...] pela totalidade do montante pago por força das Liquidações objecto do presente pedido de pronúncia arbitral, acrescido, nos termos do artigo 43.º (Pagamento indevido da prestação tributária) da Lei Geral Tributária, dos juros indemnizatórios que sejam devidos até à data desse reembolso.”
2.3. Por seu lado, a AT vem alegar, na sua resposta, que: a) “o Tribunal Arbitral não tem competência para aferir ou declarar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do artigo 236.º da Lei 83-C/2013, de 31 de dezembro, como no fundo pretende a Requerente”; b) “a competência para a fiscalização abstrata da legalidade e da constitucionalidade está reservada ao Tribunal Constitucional conforme se estabelece no artigo 281.º da CRP”; c) “o Tribunal Arbitral é incompetente para efetuar uma fiscalização abstrata quer da legalidade, quer da constitucionalidade do artigo 236.º da Lei 83-C/2013, de 31 de dezembro”; d) “a incompetência do Tribunal Arbitral para proceder à apreciação abstrata da constitucionalidade consubstancia uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, conducente à absolvição da instância quanto à pretensão em causa, de acordo com o previsto no artigo 576.º/1 e 2 e no artigo 577.º-a) do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º/1-e) do RJAT”; e) “alega a Requerente que as liquidações impugnadas ofendem o conteúdo fundamental de um direito e como tal são nulas de acordo com o preceituado na alínea d) do n.º 2 do artigo 133.º do CPA na redação em vigor à data dos factos”; f) “o Supremo Tribunal Administrativo tem-se pronunciado no sentido que os atos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental hão-de ser aqueles que contendem com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos”; g) “[...] e, de acordo com a jurisprudência emanada deste tribunal, os atos tributários que contendem com o princípio da legalidade são anuláveis, mas não nulos. [...]. Do exposto resulta assim que as liquidações impugnadas não ofendem o conteúdo essencial de um direito fundamental, e mesmo que se verificasse qualquer vício, o mesmo deverá ser cominado com a anulabilidade e não com a nulidade”; h) “considera a Requerente que as liquidações impugnadas são ilegais, pois, no seu entender, o artigo 236.º da Lei 83-C/2013, de 31 de dezembro, que aprovou o orçamento do estado para 2014, é inconstitucional por violação do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa”; i) “resulta assim evidente [das alterações introduzidas pelo art. 236.º da Lei que aprovou o OE para 2014 e que alterou o regime especial temporário aplicável aos FIIAH] que a partir de 1 de janeiro de 2014 a isenção de IMT dos imóveis integrados no Fundo tendo em vista o arrendamento foi alargada até 2015, contudo, para efeitos de cumprimento do pressuposto de afetação dos imóveis a habitação, passou a ser exigida prova da existência de contrato de arrendamento para habitação permanente”; j) “a referida lei regulou a aplicação no tempo das alterações introduzidas nos seguintes termos, tendo estabelecido que estas alterações aplicam-se: a) Aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH a partir de 1 de janeiro de 2014; b) Aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH antes de 1 de janeiro de 2014 e o prazo de 3 anos conta-se a partir de 01.01.2014; ou seja, lei estabelece um período transitório para aplicação das alterações para que o novo requisito estabelecido na lei apenas seja aferido para o futuro. Situação diferente seria se o legislador não tivesse consagrado este período transitório fazendo caducar todos as isenções em curso que não fizessem prova de que possuíam os requisitos legais”; l) “considera a Requerente que não é legítimo ao legislador impor supervenientemente quaisquer factos ou circunstâncias que determinam a caducidade do direito à isenção em obediência ao princípio da não retroatividade da lei fiscal. Importa em primeiro lugar referir que a lei não estabeleceu nenhum novo requisito, mas apenas concedeu um prazo para cumprimento desse requisito. Prazo esse que apenas se inicia após a entrada em vigor da lei nova”; m) “não se trata pois de alterar os pressupostos, condições de atribuição ou de reconhecimento de um benefício fiscal, mas tão só e apenas, regular o período de tempo para efeitos de comprovação do cumprimento de um requisito previamente estabelecido”; n) “em obediência ao princípio constitucional da irretroatividade dos impostos, as normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, em consonância com o princípio geral da aplicação das leis no tempo segundo o qual, na ausência de atribuição expressa de eficácia retroativa, a lei só dispõe para o futuro (art.º 103.º, n.º 3, da CRP; art.º 12.º, n.º 1, da LGT; art.º 12.º, n.° 1, do CCivil). Ora, como se verifica no caso em apreço, a contagem do prazo de 3 anos a que se refere a lei nova para a celebração do contrato de arrendamento apenas ocorre após a vigência da lei nova”; o) “não se verifica no caso em apreço qualquer situação de retroatividade da lei fiscal”; p) “improcede [...] o pedido de pagamento de juros indemnizatórios pois não se verifica qualquer erro na atuação da entidade requerida, muito menos um erro imputável aos serviços, ficando assim afastada a aplicação do artigo 43.º da LGT”.
2.4. A AT conclui, por fim, que “devem ser julgadas procedentes as excepções invocadas [excepção de incompetência], ou, caso assim não se decidir, deve a presente acção arbitral ser julgada improcedente, absolvendo-se a entidade Requerida do pedido com as demais consequências legais.”
III – Factualidade Provada, Não Provada e Respectiva Fundamentação
3.1. Consideram-se provados os seguintes factos:
i) A ora Requerente solicitou à AT a liquidação de IMT e IS dos actos de alienação de imóveis pelo «Fundo B...», conforme a seguinte informação: prédio U-...-L, sito na Rua ..., Urbanização..., Lote ... – ...Esq., inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., …; liquidação de IMT n.º ... e liquidação de IS n.º ..., nos valores, respectivos, de €5049,03 e €1509,96 (somados, correspondem ao valor ora em causa: €6558,99) – vd. Doc. 1.
ii) O prédio ora em causa foi adquirido beneficiando das isenções de IMT e de IS que constam, respectivamente, do n.º 7, al. a), e do n.º 8 do artigo 8.º do Regime especial aplicável aos FIIAH (as quais foram reconhecidas a requerimento, nos termos do art. 10.º do CIMT).
iii) As liquidações supra referidas foram pagas pela ora Requerente a 27/10/2015 (vd. cópias das respectivas guias que constam do Doc. 2).
iv) Inconformada com referidas liquidações, a ora Requerente apresentou o seu pedido de pronúncia arbitral a 3/12/2015.
3.2. Não há factos não provados relevantes para a decisão da causa.
3.3. Os factos considerados pertinentes e provados (v. 3.1) fundamentam-se na análise das posições expostas pelas partes e da prova documental junta aos autos.
IV – Questão Prévia
Como se referiu no relatório da presente decisão, a Requerida invocou, na resposta de 3/3/2016, a excepção de incompetência do presente Tribunal Arbitral. Cabe, assim, averiguar se a mesma é procedente, atendendo, também, ao que consta do requerimento da Requerente de 23/5/2016, no qual esta se pronuncia sobre aquela excepção.
Alega a Requerida, na sua resposta, que “o Tribunal Arbitral não tem competência para aferir ou declarar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do artigo 236.º da Lei 83-C/2013, de 31 de dezembro, como no fundo pretende a Requerente”, uma vez que “a competência para a fiscalização abstrata da legalidade e da constitucionalidade está reservada ao Tribunal Constitucional conforme se estabelece no artigo 281.º da CRP”, e que “o Tribunal Arbitral é incompetente para efetuar uma fiscalização abstrata quer da legalidade, quer da constitucionalidade do artigo 236.º da Lei 83-C/2013, de 31 de dezembro”. Conclui, pelo acima citado, que o Tribunal Arbitral é incompetente “para proceder à apreciação abstrata da constitucionalidade”, incompetência esta que “consubstancia uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, conducente à absolvição da instância quanto à pretensão em causa, de acordo com o previsto no artigo 576.º/1 e 2 e no artigo 577.º-a) do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º/1-e) do RJAT”.
Sucede, contudo, que, como se observa pela leitura dos presentes autos, a Requerente não pediu a declaração de inconstitucionalidade ou a fiscalização abstracta da legalidade. Embora a Requerente refira, no início da sua p.i., que pretende “aferir se o artigo 236.º [...] consubstancia um novo regime [...], revelando uma violação inequívoca do princípio da não retroactividade da lei fiscal, plasmado no artigo 103.º [...], n.º 3, da Constituição da República Portuguesa”, o pedido feito, a final, comprova que a Requerente pretende que seja declarada “a nulidade [ou anulabilidade] das Liquidações com base na sua inconstitucionalidade”, ou, como reafirma a Requerente, no seu requerimento de 23/5/2016, “com o fundamento de que [as liquidações em causa] se baseiam na aplicação de norma que viola a Constituição e a lei”.
Ora, sendo certo que o Tribunal Arbitral não tem competência para aferir ou declarar a inconstitucionalidade de normas, não lhe está vedada, no entanto, quer a recusa de aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, quer a aplicação de norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo. Estes dois casos são, precisamente, os que possibilitam, nos termos do disposto nos arts. 280.º, n.º 1, als. a) e b), da Constituição da República Portuguesa, e 25.º, n.º 1, do RJAT, a recorribilidade das decisões arbitrais para o Tribunal Constitucional.
Pelo acima exposto, conclui-se ser improcedente a invocada excepção de incompetência.
I. V – Do Direito
No caso aqui em análise, são duas as questões de direito controvertidas: 1) saber se as liquidações de IMT e IS são ilegais, porque realizadas ao abrigo do artigo 236.º da Lei 83-C/2013, de 31/12, que a Requerente entende ser inconstitucional por violação do disposto no artigo 103.º da CRP (e, ainda, nulas por alegada ofensa de conteúdo esssencial de um direito fundamental, nos termos do artigo 133.º, n.º 2, al. d), do CPA); e 2) saber se são devidos juros indemnizatórios à Requerente.
Vejamos, então.
1) Alega a ora Requerente que as liquidações em causa são ilegais porque realizadas ao abrigo do art. 236.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31/12 (LOE 2014) – artigo que a Requerente considera inconstitucional por violação do referido art. 103.º da CRP.
Em seu entender, “o artigo 236.º (Norma Transitória no âmbito do Regime Especial Aplicável aos FIIAH e SIIAH) da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, ao estender a aplicação do actual Regime Tributário dos FIIAH «aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH antes de 1 de Janeiro de 2014, contando-se, nesses casos, o prazo de três anos previsto no n.º 14 a partir de 1 de janeiro de 2014» – está a violar de forma directa e inequívoca o princípio da não retroactividade da lei fiscal constitucionalmente consagrado. Com efeito, a extensão aí consagrada configura um novo regime de caducidade das isenções previstas nos números 7, alínea a) e 8 (Regime Tributário) e não uma mera densificação de um critério anteriormente previsto.” Pelo exposto, conclui a ora Requerente que “no caso sub judice não há quaisquer dúvidas de que os factos tributários que a lei nova pretende regular já produziram todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga”.
Não parece, contudo, que esta seja a questão aqui em causa.
Antes do mais, convém observar a Lei n.º 64-A/2008, de 31/12, que aprovou o regime especial aplicável aos FIIAH. Nesse regime previa-se, nomeadamente: no n.º 7 do artigo 8.º, que ficavam isentos do IMT “as aquisições de prédios urbanos ou de fracções autónomas de prédios urbanos destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente” pelos referidos fundos; e, no n.º 8 daquele mesmo artigo, que ficavam isentos de IS “todos os actos praticados, desde que conexos com a transmissão dos prédios urbanos destinados a habitação permanente que ocorra por força da conversão do direito de propriedade desses imóveis num direito de arrendamento sobre os mesmos”.
A Lei n.º 83-C/2013, de 31/12, alterou a redacção do referido art. 8.º, aditando os n.os 14 a 16, que aqui se reproduzem:
“14 - Para efeitos do disposto nos n.os 6 a 8 do referido art. 8.º, considera-se que “os prédios urbanos são destinados ao arrendamento para habitação permanente sempre que sejam objecto de contrato de arrendamento para habitação permanente no prazo de três anos contados do momento em que passaram a integrar o património do fundo, devendo o sujeito passivo comunicar e fazer prova junto da AT do respectivo arrendamento efectivo, nos 30 dias subsequentes ao termo do referido prazo.
15 - Quando os prédios não tenham sido objeto de contrato de arrendamento no prazo de três anos previsto no número anterior, as isenções previstas nos n.os 6 a 8 ficam sem efeito, devendo nesse caso o sujeito passivo solicitar à AT, nos 30 dias subsequentes ao termo do referido prazo, a liquidação do respetivo imposto.
16 - Caso os prédios sejam alienados, com exceção dos casos previstos no artigo 5.º, ou caso o FIIAH seja objeto de liquidação, antes de decorrido o prazo previsto no n.º 14, deve o sujeito passivo solicitar igualmente à AT, antes da alienação do prédio ou da liquidação do FIIAH, a liquidação do imposto devido nos termos do número anterior”.
No art. 236.º da referida Lei n.º 83-C/2013, de 31/12, consagrou-se, ainda, a seguinte norma transitória:
“1 - O disposto nos n.os 14 a 16 do artigo 8.º do regime especial aplicável aos FIIAH e SIIAH, aprovado pelos artigos 102.º a 104.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, é aplicável aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH a partir de 1 de janeiro de 2014.
2 - Sem prejuízo do previsto no número anterior, o disposto nos n.os 14 a 16 do artigo 8.º do regime especial aplicável aos FIIAH e SIIAH, aprovado pelos artigos 102.º a 104.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, é igualmente aplicável aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH antes de 1 de janeiro de 2014, contando-se, nesses casos, o prazo de três anos previsto no n.º 14 a partir de 1 de janeiro de 2014”.
Daqui se conclui que a referida Lei estabeleceu um período transitório para aplicação das alterações legais, tendo em vista, segundo afirma a Requerida (vd. §24 a 28 da resposta), evitar a caducidade de “todas as isenções em curso que não fizessem prova de que possuíam os requisitos legais”. Acrescenta, ainda, que “a lei não estabeleceu nenhum novo requisito, mas apenas concedeu um prazo para cumprimento desse requisito. Prazo esse que apenas se inicia após a entrada em vigor da lei nova.”
No mesmo sentido, salienta, por exemplo, a decisão arbitral datada de 14/3/2016, proferida no proc. 398/2015-T, que “a obrigatoriedade de destinar o imóvel ao arrendamento habitacional não é requisito das alterações introduzidas pelo Orçamento de Estado para 2014, mas sim um requisito do regime fiscal dos FIIAH ab initio, aliás natural decorrência das motivações que levaram à criação destes fundos. Contudo, não foi este o caso em apreço [...]. As liquidações de IMT efectuadas [...] não tiveram por base a sua manutenção no fundo por um período igual ou superior a 3 anos sem que tivesse havido afectação a arrendamento para habitação permanente. [...].”
Com efeito, como também se refere na decisão arbitral datada de 22/4/2016, proferida no proc. n.º 691/2015-T: “O Orçamento do Estado para 2014 vem, é certo, estabelecer um novo requisito para a isenção: caso a afectação a arrendamento para habitação permanente não ocorra no período de 3 anos após a entrada do imóvel no fundo, o fundo deverá requerer a liquidação do IMT que não foi liquidado. Contudo, não foi este o caso em apreço [...]. As liquidações de IMT e de Imposto do Selo em causa não tiveram por base a sua manutenção no fundo por um período igual ou superior a 3 anos sem que tivesse havido afectação a arrendamento para habitação permanente. [...]. De facto, as liquidações em apreço, conforme decorre das notas de liquidação juntas ao processo, basearam-se no facto de ter sido dado aos imóveis “destino diferente daquele em que assentou o benefício” [veja-se, também no caso dos presentes autos, a mesma descrição, que figura nos documentos constantes do Doc. 1 apenso aos autos]. Assim sendo, entendemos que não está em causa a retroactividade, ou não, da norma aplicada”.
De facto, está suficientemente demonstrado que o prédio em causa foi alienado, com a consequente afectação do mesmo a finalidade diversa daquela para que foram concedidas as isenções. Não se trata aqui, pois, de uma questão de prazo, como alegou a ora Requerente.
A este respeito, e como também bem salienta a DA datada de 2/5/2016, proferida no proc. 689/2015-T, “a alienação do prédio sempre determinaria a caducidade da isenção por aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 14.º do EBF, não estando, portanto, em causa, na situação sub judice, qualquer aplicação retroativa de norma que venha a introduzir novo regime de caducidade das isenções, tampouco existe lesão de expectativas do Requerente ou agravamento da sua posição fiscal, pelo que entendemos assim que as liquidações de IMT e Imposto de Selo em crise são legais. Fica, pois, prejudicada a análise da questão suscitada pela Requerente quanto à alegada retroatividade do regime previsto pelo artigo 236.º da Lei do Orçamento de Estado para 2014 na medida em que, como supra ficou demonstrado, os condicionalismos que originaram as liquidações de imposto em crise em nada se relacionam com os aditamentos originados pelo referido artigo, tão só com a alienação do imóvel e consequente afetação a fim diferentes daquele para que foram concedidas as isenções de IMT e de Imposto do Selo.”
Pelas razões notadas, com as quais se concorda, conclui-se – também no presente caso –, que a análise da questão da alegada retroactividade do regime constante do art. 236.º está prejudicada, e que não ocorreu, em resultado das liquidações em causa, lesão injustificada de expectativas da ora Requerente ou um agravamento injustificado da sua posição fiscal. Nestes termos, conclui-se, consequentemente, que as liquidações de IMT e IS ora em causa se devem manter integralmente na ordem jurídica.
Note-se, por último, e como nota final, que, no presente caso, nunca estaria em causa a (também alegada pela Requerente) nulidade por “ofensa de conteúdo essencial de um direito fundamental”, uma vez que, como tem sido entendimento uniforme da jurisprudência do STA, o vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito (que é o que aqui poderia estar em causa) gera mera anulabilidade, a menos que o acto tributário atentasse contra o conteúdo de um direito fundamental (situação esta que, claramente, não está aqui em causa) – o que não sucede mesmo que tenha havido violação dos princípios da legalidade tributária ou da não retroactividade da lei fiscal (vejam-se, a este respeito e a título de mero exemplo, os seguintes Acórdãos do STA: n.º 1709/03, de 28/1/2004; n.º 1938/03, de 3/3/2004; n.º 1259/04, de 22/5/2005; n.º 669/05, de 9/11/2005; n.º 612/05, de 23/11/2005; n.º 231/13, de 26/6/2013; n.º 481/13, de 26/2/2014; n.º 1916/13, de 12/3/2014; n.º 703/14, de 21/1/2015).
Ver, também, no mesmo sentido, o seguinte excerto do Ac. do TCAN de 26/3/2015 (proc. 00354/08.0BEPRT): “Alega [...] o Recorrente [que o imposto em causa] é nulo por [...] ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental. Decorre do disposto no art. 133.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), do Código do Procedimento Administrativo aplicável ex vi do 2.º, alínea c), da LGT, que são nulos os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade, nomeadamente os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental. Não lhe assiste razão [ao Recorrente]. Os actos que ofendem um direito fundamental hão-de ser aqueles que contendem com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos; não aqueles que contendem apenas com o princípio da legalidade, como sucede no caso dos autos. [...] é pacífico na jurisprudência do contencioso tributário que a nulidade de norma em que se baseie um acto de liquidação não implica a nulidade deste, gerando apenas uma situação de ilegalidade abstracta da liquidação [...] (cf. nesse sentido, entre muitos outros, os acórdãos do STA de 25/05/2004, proc. n.º 208/04, 9/11/2005, proc. 669/05, 7.05.2008, proc. n.º 1034/07, de 5.07.2007, proc. n.º 479/06, de 16/09/2009, proc. n.º 0418/09, e de 23/10/2013, proc. n.º 0579/13). Assim sendo, o acto tributário que aplique normas [alegadamente] inconstitucionais [...] não origina a nulidade da liquidação, mas gera mera anulabilidade, estando em causa vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito.”
2) Nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, ter havido erro imputável aos serviços do qual resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
É, por isso, condição necessária para a atribuição dos referidos juros a demonstração da existência de erro imputável aos serviços. Nesse sentido, vd., por ex., os seguintes arestos: “O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do art. 43.º da LGT [...] depende de ter ficado demonstrado no processo que esse acto está afectado por erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à AT.” (Ac. do STA de 30/5/2012, proc. 410/12); “O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária pressupõe que no processo se determine que na liquidação «houve erro imputável aos serviços», entendido este como o «erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à Administração Fiscal»” (Ac. do STA de 10/4/2013, proc. 1215/12).
Ora, não tendo havido, como decorre do que se disse em 1), qualquer erro imputável aos serviços, conclui-se pela improcedência do pedido de pagamento de juros indemnizatórios à Requerente.
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VI – DECISÃO
Em face do supra exposto, decide-se:
- Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se integralmente na ordem jurídica os actos de liquidação ora impugnados, e absolvendo-se, em conformidade, a entidade requerida do pedido.
- Julgar improcedente o pedido também na parte que diz respeito ao reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor da requerente.
Fixa-se o valor do processo em €6558,99 (seis mil quinhentos e cinquenta e oito euros e noventa e nove cêntimos), nos termos do art. 32.º do CPTA e do art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
Custas a cargo da Requerente, no montante de €612,00 (seiscentos e doze euros), nos termos da Tabela I do RCPAT, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do disposto no art. 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique.
Lisboa, 14 de Junho de 2016.
O Árbitro
(Miguel Patrício)
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Texto elaborado em computador, nos termos do disposto no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.