DECISÃO ARBITRAL
1. Relatório
A - Geral
A… – SOCIEDADE GESTORA DE FUNDOS DE INVESTIMENTO, S.A., com sede na …, com o capital social de €1.550.000,00, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de … sob o número único de matrícula e de identificação fiscal … na qualidade de sociedade gestora do fundo de investimento «B... – FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO FECHADO PARA ARRENDAMENTO HABITACIONAL» registado junto da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, com o número de identificação fiscal … (de ora em diante designada “Requerente”), apresentou, no dia 27.11.2015, um pedido de constituição de tribunal arbitral singular em matéria tributária, que foi aceite, visando: (i) a declaração de nulidade dos actos de liquidação de Imposto Municipal sobre as Transmissões de Imóveis (“IMT”) e de Imposto do Selo (“IS”) que lhe foram notificados pelos documentos n.º ... e n.º ..., respectivamente, ambos de 27.10.2015, (doc. n.º 1 junto aos autos com o pedido de pronúncia arbitral) e (ii) a condenação da Administração Tributária a Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios por pagamento indevido de prestações tributárias.
1.1. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art.º 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou como árbitro Nuno Pombo, não tendo as partes, depois de devidamente notificadas, manifestado oposição a essa designação.
1.2. Por despacho de 15.12.2015, a Administração Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada “Requerida”) procedeu à designação das Senhoras Dra. … Dra. … para intervirem no presente processo arbitral, em nome e representação da Requerida.
1.3. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi constituído a 05.02.2016.
1.4. No dia 05.02.2015 foi notificado o dirigente máximo do serviço da Requerida para, querendo, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar produção de prova adicional.
1.5. No dia 07.03.2015 a Requerida apresentou a sua resposta.
B – Posição da Requerente
1.6. A Requerente é a sociedade gestora a quem compete a gestão do fundo de investimento «B... – FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO FECHADO PARA ARRENDAMENTO HABITACIONAL», que é um fundo de investimento imobiliário fechado para arrendamento habitacional (de ora em diante designado “FUNDO B...”).
1.7. À data da entrada em vigor da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2014), integrava o FUNDO B... o prédio U-...-DN sito na …, 4.º Dto., inscrito na matriz predial urbana da Freguesia de ... e ....
1.8. Com base nas disposições aditadas ao art.º 8.º (Regime Tributário) do regime jurídico aplicável aos Fundos de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional (de ora em diante “FIIAH”), e da norma transitória constante do art.º 236.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, a ora Requerente solicitou à Autoridade Tributária e Aduaneira as liquidações de IMT e de IS (de ora em diante “Liquidações”), que foram pagas pela Requerente no dia 28.10.2015.
1.9. Entende a Requerente que as Liquidações enfermam de ilegalidade por violação do disposto no n.º 3 do art.º 103.º da Constituição da República Portuguesa (de ora em diante “CRP”).
1.10. O IMT e o IS, no que se refere à factualidade dos autos, são impostos de obrigação única, o que significa que no momento em que o prédio sobre que incidiram as Liquidações ingressou no património do FUNDO B... ficaram definitivamente cristalizadas na ordem jurídico-tributária as isenções à data previstas no Regime Tributário dos FIIAH, dado que não se achavam condicionadas à verificação ulterior de quaisquer factos ou circunstâncias nem sujeitas a qualquer regime de caducidade.
1.11. O art.º 236.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, ao estender a aplicação do actual Regime Tributário dos FIIAH «aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH antes de 1 de janeiro de 2014, contando-se, nesses casos, o prazo de três anos previsto no n.º 14 a partir de 1 de janeiro de 2014» - está a violar de forma directa e inequívoca o princípio constitucionalmente consagrado da não retroactividade da lei fiscal.
1.12. Revestindo o princípio da irretroactividade da lei fiscal o carácter de um direito fundamental, a violação desse direito operada pelas Liquidações importa a respectiva nulidade, se não mesmo a sua inexistência.
C – Posição da Requerida
1.13. A Requerida, na sua resposta, começa por sustentar a impossibilidade de desaplicar norma legal com fundamento na sua inconstitucionalidade, já que aos órgãos da administração pública, ao contrário do que sucede com os tribunais, não está cometida a tarefa de procederem à fiscalização concreta da constitucionalidade das leis.
1.14. Não aceita a Requerida a sugestão de que as Liquidações são nulas, porquanto a sanção que recai sobre um acto administrativo inválido é a sua anulabilidade (artigo 135.º do [antigo] CPA), só ocorrendo nulidade quando lhe faltar um dos seus elementos essenciais ou quando a lei expressamente o sancione com essa forma de invalidade (artigo 133º do [antigo] CPA), consequência que mais se harmoniza com os princípios da certeza e da estabilidade, fundamentais na actividade e nas relações administrativas, de molde a não pôr em causa a eficácia e segurança desta actividade da administração com os seus administrados.
1.15. Contudo, nem sequer as Liquidações assentam em normas jurídicas inconstitucionais.
1.16. O regime especial aplicável aos FIIAH, aprovado pelos artigos 102.º a 104.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2009), aplicava-se aos fundos constituídos durante os cinco anos subsequentes à entrada em vigor da referida lei e aos imóveis por estes adquiridos no mesmo período.
1.17. O regime tributário então em vigor previa a isenção de IMT para “as aquisições de prédios urbanos ou de fracções autónomas de prédios urbanos destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente, pelos fundos de investimento referidos no n.º 1”, prevendo-se igualmente a isenção de IS relativamente a “todos os actos praticados, desde que conexos com a transmissão dos prédios urbanos destinados a habitação permanente que ocorra por força da conversão do direito de propriedade desses imóveis num direito de arrendamento sobre os mesmos”.
1.18. Ora, exigia-se, como se vê, que a aquisição dos imóveis tivesse como destino exclusivo o “arrendamento para habitação permanente”, pelo que não é exacta a afirmação da Requerente de que as isenções em causa não estavam condicionadas à verificação ulterior de quaisquer factos ou circunstâncias.
1.19. O n.º 14 do art.º 8.º do Regime Tributário dos FIIAH, como reconhece a Requerente, veio concretizar o significado da expressão “prédios urbanos destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente”, considerando que “os prédios urbanos são destinados ao arrendamento para habitação permanente sempre que sejam objeto de contrato de arrendamento para habitação permanente no prazo de três anos contados do momento em que passaram a integrar o património do fundo”, passando a estar previsto um regime de cessação do benefício no caso de não ser observado o requisito legal constante do n.º 14.
1.20. O citado n.º 14 do art.º 8.º do Regime Tributário dos FIIAH não alterou a ratio das isenções consagradas. Limitou-se a densificar o conceito, em termos não inovadores e estabelecendo um prazo adequadamente largo para que não ficassem feridos os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança.
1.21. Na verdade, as isenções em questão não deixaram simplesmente de vigorar: o que sucedeu foi que foram estabelecidos critérios para concretizar um requisito legal previsto de forma indeterminada. Acresce que, no caso concreto, a cessação do benefício poderia sempre ocorrer caso, na sequência de uma acção fiscalizadora, se verificasse que não estavam reunidos os pressupostos de que a lei faz depender a sua concessão.
1.22. Não faz sentido, portanto, falar em retroactividade autêntica ou própria, pois que a lei nova não veio simplesmente determinar, sem mais, que os imóveis anteriormente adquiridos fossem objecto de tributação em sede de IMT e de IS.
1.23. Por tudo quanto antecede, não deve igualmente a Requerida ser condenada a pagar à Requerente juros indemnizatórios, porquanto não pode ser imputado aos serviços da AT erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
D – Conclusão do Relatório e Saneamento
1.24. Por despacho de 13.06.2016, o tribunal arbitral dispensou a reunião prevista no art.º 18.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), uma vez que era seu entendimento terem as partes carreado para o processo todos os elementos de facto necessários e suficientes para a prolação da decisão, não tendo porém a Requerente prescindido do direito de apresentar por escrito as suas alegações.
1.25. Assim, o tribunal arbitral concedeu a ambas as Partes o direito de, querendo, apresentarem as suas alegações, o que ambas fizeram no prazo que havia sido estipulado.
1.26. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade nos termos do art.º 4.º e do n.º 2 do art.º 10.º do RJAT, e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
1.27. A cumulação de pedidos efectuada no presente pedido de pronúncia arbitral, em homenagem ao princípio da economia processual, justifica-se porquanto o art.º 3.º do RJAT, ao admitir expressamente a possibilidade de “cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos”, acomoda, sem abuso hermenêutico, a apreciação de um pedido que decorre, em termos necessários, do juízo que o tribunal arbitral sufrague quanto à validade da liquidação posta em crise.
1.28. O processo não padece de qualquer nulidade. Foi suscitada pela Requerida, porém, as excepções de incompetência material do tribunal arbitral para apreciar a ilegalidade abstracta das Liquidações, por pretensa inconstitucionalidade da norma legal que as autoriza e, consequentemente, a ilegitimidade passiva da Requerida, pelo que cumpre apreciá-las.
2. As excepções de incompetência material do tribunal arbitral e de ilegitimidade passiva da Requerida
Como se disse, a Requerida expressa o entendimento de que a Requerente peticiona a apreciação da ilegalidade abstracta das Liquidações, por pretensa inconstitucionalidade da norma legal que as autoriza, sustentando ser o Tribunal Constitucional o foro competente para conhecer quer da ilegalidade quer da inconstitucionalidade de normas legais [arts. 280.º, n.º 2, als. a) e d) e 281.º, n.º 1, als. a) e b) e n.º 3 da Constituição da República Portuguesa e arts. 6.º e 66.º da Lei do Tribunal Constitucional].
Salvo melhor entendimento, a Requerida não tem razão. O que é solicitado a este tribunal arbitral não é que declare a inconstitucionalidade das normas que autorizam os actos de liquidação impugnados. Do que se trata é de saber se as Liquidações são, ou não, válidas, dependendo esse juízo de um outro que apure, em concreto, a harmonia dessas liquidações com a ordem jurídica. A leitura que do pedido faz a Requerida é tão redutora que se diria ser impossível a qualquer órgão de natureza jurisdicional, como é este tribunal arbitral, julgar inconstitucional uma norma jurídica à margem do processo de fiscalização abstracta de inconstitucionalidade. Como é bom de ver essa leitura não pode vingar.
Assim, entende este tribunal arbitral ser materialmente competente para apreciar o pedido, não se colocando consequentemente a questão da ilegitimidade passiva da Requerida, por não se estar materialmente no âmbito da apreciação abstracta da inconstitucionalidade.
3. Matéria de facto
3.1. Factos provados
Têm-se por provados os seguintes factos:
3.1.1. À data da entrada em vigor da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2014), integrava o FUNDO B... o prédio U-...-DN sito na …, 4.º Dto., inscrito na matriz predial urbana da Freguesia de ... e ... sob o artigo ...[1] (o “Prédio”) (consenso das Partes).
3.1.2. A aquisição do Prédio beneficiou de isenção de IMT e de IS ao abrigo da alínea a) do n.º 7 do artigo 8º (regime tributário) do regime jurídico dos FIIAH – liquidação de IMT n.º 2013/…, de 26.07.2013 (doc. n.º 1, junto com o pedido de pronúncia arbitral).
3.1.3. A Requerente solicitou à Requerida a liquidação de IMT e de IS, as quais lhe foram notificados pelos documentos n.º ... e n.º ..., ambos de 27.10.2015, no montante de € 20.164,75 e € 3.120,00, respectivamente (doc. n.º 1, junto com o pedido de pronúncia arbitral).
3.1.4. A Requerente procedeu ao pagamento integral de ambas as liquidações de IMT e de IS melhor identificadas em 3.1.3. no dia 28.10.2015 (doc. n.º 2, junto com o pedido de pronúncia arbitral).
3.2. Factos não provados
Não se provou que entre a aquisição do Prédio pela Requerente até à sua alienação o mesmo tenha sido objecto de qualquer contrato de arrendamento para habitação permanente.
4. Matéria de direito
4.1. Questões a decidir
Resulta do que acima se deixou dito que as questões a apreciar são, no fundo:
a) A de saber se a aquisição do Prédio, ocorrida antes de 01.01.2014, pode ser tributada por ter sido o Prédio vendido antes de decorrido o prazo de três anos contados a partir de 01.01.2014, sem que o mesmo tenha alguma vez sido objecto de um contrato de arrendamento para habitação permanente;
b) A de esclarecer se, caso se julgue procedente o pedido de declaração de ilegalidade e consequente anulação das Liquidações, a Requerente, no âmbito do presente processo arbitral, poderá obter a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.
4.2. O direito aplicável
Integrado no capítulo X, dedicado aos benefícios fiscais, a Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, pelos seus art.ºs 102.º a 104.º, aprovou o regime especial aplicável aos FIIAH. O art.º 8.º desse regime especial estabeleceu o respectivo regime tributário, sendo o n.º 7 e o n.º 8 dessa disposição dedicados ao IMT e ao IS, respectivamente:
7 - Ficam isentos do IMT:
a) As aquisições de prédios urbanos ou de fracções autónomas de prédios urbanos destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente, pelos fundos de investimento referidos no n.º 1;
b) As aquisições de prédios urbanos ou de fracções autónomas de prédios urbanos destinados a habitação própria e permanente, em resultado do exercício da opção de compra a que se refere o n.º 3 do artigo 5.º pelos arrendatários dos imóveis que integram o património dos fundos de investimento referidos no n.º 1.
8 - Ficam isentos de imposto do selo todos os actos praticados, desde que conexos com a transmissão dos prédios urbanos destinados a habitação permanente que ocorra por força da conversão do direito de propriedade desses imóveis num direito de arrendamento sobre os mesmos, bem como com o exercício da opção de compra previsto no n.º 3 do artigo 5.º.
O art.º 235.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro aditou ao Regime Tributário dos FIIAH (art.º 8.º) os números 14 a 16:
14 - Para efeitos do disposto nos n.ºs 6 a 8, considera-se que os prédios urbanos são destinados ao arrendamento para habitação permanente sempre que sejam objeto de contrato de arrendamento para habitação permanente no prazo de três anos contados do momento em que passaram a integrar o património do fundo, devendo o sujeito passivo comunicar e fazer prova junto da AT do respetivo arrendamento efetivo, nos 30 dias subsequentes ao termo do referido prazo.
15 - Quando os prédios não tenham sido objeto de contrato de arrendamento no prazo de três anos previsto no número anterior, as isenções previstas nos n.os 6 a 8 ficam sem efeito, devendo nesse caso o sujeito passivo solicitar à AT, nos 30 dias subsequentes ao termo do referido prazo, a liquidação do respetivo imposto.
16 - Caso os prédios sejam alienados, com exceção dos casos previstos no artigo 5.º, ou caso o FIIAH seja objeto de liquidação, antes de decorrido o prazo previsto no n.º 14, deve o sujeito passivo solicitar igualmente à AT, antes da alienação do prédio ou da liquidação do FIIAH, a liquidação do imposto devido nos termos do número anterior.
Por sua vez, o 236.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro estabeleceu o seguinte regime transitório no âmbito do regime especial aplicável aos FIIAH:
1 - O disposto nos n.ºs 14 a 16 do artigo 8.º do regime especial aplicável aos FIIAH e SIIAH, aprovado pelos artigos 102.º a 104.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, é aplicável aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH a partir de 1 de janeiro de 2014.
2 - Sem prejuízo do previsto no número anterior, o disposto nos n.os 14 a 16 do artigo 8.º do regime especial aplicável aos FIIAH e SIIAH, aprovado pelos artigos 102.º a 104.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, é igualmente aplicável aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH antes de 1 de janeiro de 2014, contando-se, nesses casos, o prazo de três anos previsto no n.º 14 a partir de 1 de janeiro de 2014.
4.3. As isenções de IMT e de IS previstas na Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro
A Lei do Orçamento do Estado para 2009 consagrou um regime especial aplicável aos FIIAH. Esta iniciativa legislativa visava confessadamente a dinamização do mercado de arrendamento para habitação, impondo que pelo menos 75% do activo do fundo fosse constituído por imóveis situados em Portugal e destinados a arrendamento para habitação permanente, favorecendo estes veículos de investimento colectivo com os benefícios fiscais constantes do art.º 8.º do respectivo regime jurídico, sendo os referentes ao IMT e ao IS os constantes dos números 7 e 8 desse artigo.
Insista-se na ideia de que o regime especial dos FIIAH e os benefícios fiscais ao seu dispor colocados assumem a natureza ou a vocação de verdadeiros instrumentos de política económica, colocados ao serviço de um propósito claro: o favorecimento do mercado de arrendamento para habitação permanente. É à luz deste desiderato que tem de ser lido e compreendido o regime tributário dos FIIAH.
O n.º 7 do regime tributário dos FIIAH estabelece que ficam isentos do IMT as aquisições de prédios urbanos ou de fracções autónomas de prédios urbanos destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente.
Lê-se no Parecer junto aos autos com as alegações da Requerente (o “Parecer”) que “nada se previa sobre a necessidade de manutenção dos prédios no património dos FIIAH durante um certo prazo, ou sobre a necessidade de celebração efetiva do contrato de arrendamento também em determinado prazo”[2].
Se bem lermos aquela disposição normativa teremos de concluir que a isenção do IMT não dependia apenas da identidade do adquirente dos imóveis em causa. A lei não se limita a isentar (nem isentava à data) a mera aquisição de imóveis pelos FIIAH. Concedia essa isenção aos FIAIAH, sim, mas desde que a aquisição se reportasse a prédios urbanos ou a fracções autónomas de prédios urbanos “destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente”.
Ora, como bem referem os ilustres autores do Parecer, o escopo da lei não é (não é hoje como não era então) o favorecimento da especulação imobiliária. Contudo, também não era, como nele se pode ler, a protecção dos fundos para arrendamento[3], passe o aparente paradoxo. A lei pretendia, isso sim, estimular o próprio mercado de arrendamento. Esse desiderato foi prosseguido por via de diversas iniciativas, incluindo a da consagração de um regime especial, e vantajoso, dedicado aos FIIAH, sendo porém precipitada a conclusão de que o legislador pretendia, sem mais, apoiar os ditos FIIAH. Dizer o que acaba de ser dito não pretende significar mais do que isto: é redutor, e nessa medida inexacto, pretender que a isenção a que se refere o n.º 7 do art.º 8.º (regime tributário) do regime especial aplicável aos FIIAH se basta com dois pressupostos, a saber, o da identidade do adquirente e o da sua declaração aquando da aquisição do imóvel de que este se destina ao arrendamento para habitação permanente.
O destino, de resto exclusivo, a dar aos imóveis adquiridos pelos FIIAH não há-de ser, pela leitura que das normas fazemos, puramente intencional ou volitivo. Não basta que o FIIAH, aquando da aquisição de um imóvel, para beneficiar da isenção do IMT e do IS, declare que pretende dar ao dito imóvel como destino o arrendamento para habitação permanente. Para que esse benefício cumpra o seu propósito, para que a despesa fiscal a ele associada seja económica e socialmente justificada, esse destino deve ser efectivo.
O postulado que acaba de ser expresso tem porém um alcance menos abrangente, menos impressivo, do que pode à primeira vista sugerir. É que, na verdade, a efectividade de um determinado destino de um bem imóvel só pode ser infirmada, prejudicada, pela verificação, também ela efectiva, da atribuição a esse bem concreto de um destino diverso.
4.4. A aplicabilidade ao caso concreto das alterações às isenções de IMT e de IS introduzidas pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro
A Lei do Orçamento do Estado para 2014 alterou o regime tributário dos FIIAH, aditando, para o que aqui nos interessa, os números 14 a 16 ao art.º 8.º.
O n.º 14 veio concretizar o que deve entender-se por imóvel destinado ao arrendamento para habitação permanente, impondo um prazo de três anos, contados do momento em que o imóvel passa a integrar o património do FIIAH, para que esse imóvel seja objecto de um contrato de arrendamento para habitação permanente, sob pena de ficarem sem efeito as isenções concedidas no momento da sua aquisição.
Já o novo n.º 16 estabelece a mesma cominação (ficarem sem efeito as isenções concedidas no momento da aquisição) caso o imóvel em causa seja alienado[4] (salvo no caso de alienação ao anterior proprietário e arrendatário, no exercício de opção de compra) no prazo de três anos a contar do momento em que aquele passou a integrar o património do FIIAH.
Estas regras não sugerem especiais cautelas se aplicadas às aquisições de imóveis feitas por FIIAH depois da sua entrada em vigor. O problema existe, porém, quando se pretende aplicá-las, como no caso dos autos, a situações em que a aquisição do imóvel teve lugar antes da vigência destas novas disposições.
Ora, como se viu, o n.º 2 do 236.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro manda aplicar estas regras “aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH antes de 1 de janeiro de 2014, contando-se, nesses casos, o prazo de três anos previsto no n.º 14 a partir de 1 de janeiro de 2014”.
A questão é, pois, a de saber se são válidos os actos de liquidação ora impugnados, praticados pela Requerida à luz do que estabelece, sem tibiezas, o dito regime transitório.
Este exercício não pode ser realizado à margem da apreciação concreta da situação de facto, que é esta: o FUNDO B... adquiriu em 2013 o Prédio, tendo beneficiado das respectivas isenções de IMT e de IS, uma vez que a Requerente declarou que o imóvel adquirido, o Prédio, se destinava ao arrendamento para habitação permanente. Sucede que em 2015 o FUNDO B... alienou o Prédio, tendo a Requerida considerado, nos termos das normas acabadas de visitar, que ficaram sem efeito as ditas isenções, pelo que procedeu, na base de requerimento oral da Requerente, à liquidação do IMT e do IS, ou seja, às Liquidações.
É certo que, no regime anterior, o aplicável à data da aquisição do Prédio, nada era expressamente dito sobre a necessidade de manutenção dos prédios no património dos FIIAH durante um certo prazo. Contudo, também nos parece evidente que o destino a dar aos imóveis adquiridos era uma exigência e que esse destino não pode ser meramente “psicológico” ou intencional.
Como vimos, é a lei que expressamente exige, e em termos exclusivos, um determinado destino a dar aos imóveis adquiridos com os benefícios fiscais de que vimos tratando. Outra teria sido a redacção da norma que consagra as isenções de IMT e de IS se a sua atribuição tivesse ficado na exclusiva dependência da identidade do respectivo adquirente: ser um FIIAH. A aquisição dos imóveis ser feita por FIIAH é uma condição necessária, mas não pode ser vista, à luz das normas vigentes em 2013, como condição suficiente[5].
Contudo, é forçoso reconhecer que não seria razoável impor a imediata a necessidade de destinar, em termos efectivos, os bens imóveis ao arrendamento para habitação permanente. Num primeiro momento, o da aquisição, relevará a intenção declarada pelo adquirente que seja FIIAH. Aquando da aquisição, o FIIAH terá de manifestar a intenção de afectar o imóvel adquirido a essa modalidade de arrendamento, pressupondo-se que o adquirente não poderá, sem perda dos benefícios, atribuir aos imóveis adquiridos com estas isenções um destino diverso daquele que declarou.
Convenhamos que dar destino diverso aos bens imobiliários com as isenções de IMT e de IS não pode ser entendido como sinónimo da atribuição a esses imóveis de um efectivo arrendamento para habitação permanente. O mesmo é dizer que o período que decorre entre a aquisição por parte do FIIAH de um imóvel para arrendamento para habitação permanente e a efectiva celebração de um contrato de arrendamento para habitação permanente que o tenho por objecto, independentemente da da duração desse período, é um lapso temporal que não autoriza a conclusão de que ao imóvel em causa haja sido dado destino diverso do arrendamento para habitação permanente. Na verdade, ter um imóvel no mercado de arrendamento, disponível para ser arrendado, é ainda uma manifestação desse declarado destino. Basta, segundo cremos, a susceptibilidade desse imóvel vir a ser objecto de um contrato de arrendamento em que o FIIAH surja como locador para que fique satisfeito o requisito do destino a dar ao bem que, recorde-se, foi adquirido com os benefícios fiscais assinalados.
Como tivemos já ocasião de dizer, as regras em vigor em 2013, ano em que o Prédio foi adquirido pelo FUNDO B... com a isenção de IMT e de IS, não se estabelecia, em termos temporalmente rígidos, a necessidade de ser efectivamente celebrado um contrato de arrendamento para habitação permanente. Contudo, segundo cremos, o benefício da isenção de IMT e de IS – no quadro da política económica de que é instrumento – assenta na necessidade de lhe ser dado esse efectivo destino (independentemente de saber – essa é outra questão – o prazo de que dispõe o FIIAH para lhe ser dado esse efectivo destino).
Ora, não é dado ao bem o efectivo destino do arrendamento para habitação permanente quando o proprietário o afecta a finalidade destinta – por exemplo, um arrendamento comercial – ou quando deixa de poder dar-lhe o almejado destino de arrendamento habitacional (porque aliena o bem, por exemplo).
Não cremos que o problema possa ser analisado do ponto de vista do risco, em termos de poder ser sustentado que as isenções previstas não pretendiam colocar sobre os FIIAH o risco de não conseguirem arrendar os imóveis, ou de não os poderem alienar. Sucede que os FIIAH, como organismos de investimento colectivo, são verdadeiros agentes económicos devendo ponderar os riscos decorrentes da sua própria actividade, o que inclui o dever de ponderação das decorrências da não afectação de determinado bem a certo destino.
Lê-se no Parecer que “a destinação é compatível, designadamente em períodos de crise do mercado de arrendamento, com dificuldades e atrasos na concretização do arrendamento”, afirmação que não merece contestação. O que já não suscitará unanimidade, porém, é a conclusão de que essas dificuldades e esses atrasos não constituem parte integrante dos riscos associados a esta específica actividade económica. Se a lei consagrou incentivos à aquisição de imóveis com o objectivo de eles serem destinados ao arrendamento para habitação permanente, cabe ao adquirente desses imóveis e beneficiário desses incentivos gerir os riscos do seu negócio, que hão-de incluir a ponderação da possibilidade desses imóveis não suscitarem no mercado o interesse que o proprietário deles, o FIIAH, anteviu[6].
4.5. Conclusão
Parece a este tribunal arbitral que a necessidade de um FIIAH destinar ao arrendamento para habitação permanente o imóvel adquirido com o benefício da isenção de IMT e de IS não é uma inovação da Lei do Orçamento do Estado para 2014, sendo já uma exigência do normativo anterior, aplicável em 2013.
Note-se que no caso sub judice, as liquidações de IMT e de IS contestadas não se fundam na circunstância de o imóvel adquirido pelo FUNDO B... com benefícios fiscais, o Prédio, ter permanecido no património do fundo por período igual ou superior a 3 anos, sem que lhe tivesse sido dada a necessária afectação de arrendamento para habitação permanente. No caso vertente, o Prédio foi alienado sem que tivesse sido afecto ao arrendamento habitacional permanente. Portanto, no caso dos autos, o problema não se prende com o prazo.
Concluindo, não parece estar em causa verdadeiramente um problema de retroactividade da lei, porquanto a solução que ao caso cabe, em nosso entender, é a mesma, aplicando-se a lei nova ou fazendo uso da lei antiga, já que uma e outra não dispensam que a aquisição de prédios urbanos ou de fracções autónomas de prédios urbanos por FIIAH sejam efectivamente destinados, e em termos exclusivos, ao arrendamento para habitação permanente.
5. Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, o tribunal arbitral decide manter na ordem jurídica os actos de liquidação de IMT e de IS objecto do pedido apresentado pela Requerente, julgando-o improcedente.
6. Valor do processo
De harmonia com o disposto no n.º 2 do art.º 306.º do CPC, na alínea a) do n.º1 do art.º 97.º-A do CPPT e ainda do n.º 2 do art.º 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 23.284,75 (vinte e três mil duzentos e oitenta e quatro euros e setenta e cinco cêntimos).
7. Custas
Para os efeitos do disposto no n.º 2 do art.º 12 e no n.º 4 do art.º 22.º do RJAT e do n.º 4 do art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 1.224,00 (mil duzentos e vinte e quatro euros), nos termos da Tabela I anexa ao dito Regulamento, a suportar integralmente pela Requerente.
Lisboa, 9 de Julho de 2016
O Árbitro
(Nuno Pombo)
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do art.º 131.º do CPC, aplicável por remissão da al. e) do n.º 1 do art.º 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro e com a grafia anterior ao dito Acordo Ortográfico de 1990.
[1] Foi adquirido no dia 05.08.2013 (v. § 20 das Alegações da Requerente).
[4] Ou no caso do fundo ser liquidado no mesmo prazo.
[5] O Estatuto dos Benefícios Fiscais, na redacção do art.º 7.º à data dos factos, estabelecia a sujeição a fiscalização de todas as pessoas, singulares ou colectivas, de direito público ou de direito privado, a quem fossem concedidos benefícios fiscais, automáticos ou dependentes de reconhecimento, para controlo da verificação dos pressupostos dos benefícios fiscais respectivos. Por seu turno, o art.º 9.º do mesmo diploma dispunha (como dispõe também hoje) que os titulares do direito aos benefícios fiscais são obrigados a declarar, no prazo de 30 dias, a cessação da situação de facto ou de direito em que se baseava o benefício.
[6] Aliás, o aludido interesse não se há-de reportar apenas aos imóveis objectivamente considerados, às suas características físicas, já que à reacção do mercado não serão indiferentes as condições pelas quais o proprietário se propõe arrendá-los.