Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 476/2015-T
Data da decisão: 2016-06-30  IRS  
Valor do pedido: € 1.226.909,34
Tema: IRS - Cláusula geral anti abuso; sujeito passivo da liquidação resultante da aplicação da cláusula
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DECISÃO ARBITRAL[1]

 

Acordam os árbitros José Baeta de Queiroz (Árbitro Presidente), Alexandra Gonçalves Marques e Nuno Maldonado Sousa, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o presente Tribunal Arbitral, na seguinte

 

 

I – RELATÓRIO

 

1.      Em 24 de Julho de 2015, A… SGPS S.A., pessoa coletiva n.º…, com sede na … n.º…, …, …, …-… … (doravante “Requerente”), requereu a constituição de Tribunal Arbitral e apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações posteriores (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, doravante RJAT), para apreciação da legalidade dos catos tributários de Retenção na Fonte de IR, relativos a 2009 e 2010, dos quais resultou imposto de € 400.000,00, acrescidos de juros compensatórios de € 67.879,44 e € 665.393,36, acrescidos de juros compensatórios de € 82.855,27.

2.      A referida liquidação adicional de IRS (retenção na fonte) resultou da aplicação pela Administração Tributária da cláusula geral anti abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária (“LGT”) à Requerente na sequência dos pagamentos efetuados pela Requerente aos seus acionistas para amortização da dívida gerada aquando da aquisição por aquela, no ano de 2008, das ações que os mesmos acionistas detinham na sociedade B…– … S.A., entendendo a Administração Tributária que os pagamentos efetuados pela A… SGPS aos acionistas assumem a natureza de dividendos e que, como tal, a Requerente incumpriu o dever de retenção na fonte de IRS sobre os lucros colocados à disposição, havendo lugar à sua responsabilização enquanto substituto tributário, por força do disposto no artigo 103.º do Código do IRS. 

3.      Não se conformando com as referidas liquidações de imposto e juros compensatórios – por considerar que não estão reunidos os requisitos necessários à aplicação da norma anti abuso e que a operação realizada traduz uma reorganização empresarial – a Requerente requereu a constituição do Tribunal Arbitral ao abrigo do disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), e artigo 2.º do RJAT, formulando os seguintes pedidos:

i.                    Declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRS (retenção na fonte) n.º 2015…, de 8 de Abril de 2015;

ii.                  Declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRS (retenção na fonte) n.º 2015…, de 8 de Abril de 2015, ambas com fundamento:

a)      Aplicação indevida da cláusula anti abuso, por entender que não estão reunidos os quatro requisitos para aplicação da norma anti abuso prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT (elementos meio, resultado, intelectual e normativo) e, subsidiariamente,

b)      Erro na notificação das liquidações impugnadas na pessoa da requerente por:

i.                    Aplicação da sanção de ineficácia prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT; ou, subsidiariamente,

ii.                  Inoponibilidade ao substituto tributário da aplicação da cláusula geral anti abuso.

iii.                Violação do princípio da capacidade contributiva previsto no artigo 104.º, n.º 2 da CRP.

iii.                Condenação da Administração Tributária em indemnização por prestação indevida de garantia, pela totalidade dos custos suportados até ao levantamento da garantia, ou subsidiariamente, pelo menos pelo montante de 10.781,27 Euros já comprovadamente suportados, ao abrigo dos artigos 53.º da LGT e 171.º do CPPT.

Com a petição juntou sete documentos, não tendo sido arroladas testemunhas.

4.      No pedido de pronúncia arbitral a Requerente optou por não designar árbitro.

5.      Nos termos da alínea a) do n.º 2, do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros o Conselheiro José Baeta de Queiroz, a Dra. Alexandra Gonçalves Marques e o Dr. Nuno Maldonado Sousa, que aceitaram o cargo no prazo legalmente estipulado.

6.      O Tribunal Arbitral ficou constituído em 6 de Outubro de 2015.

7.      A Requerida apresentou a sua resposta no dia 11 de Novembro de 2015.

8.      Com a concordância das partes, foi decidido não realizar a reunião prevista no artigo 18.º, n.º 1 do RJAT.

9.      As partes apresentaram alegações.

10.  O Tribunal Arbitral designou o dia 7 de Abril de 2016 para a prolação da decisão arbitral, prorrogando depois o prazo até 30 de Junho de 2016.

 

II. SANEAMENTO

 

11.  O Tribunal foi regularmente constituído e é materialmente competente.

 

O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas quaisquer questões que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

 

As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas e mostram-se devidamente representadas.

 

III. QUESTÕES A DECIDIR

 

12. Em face das posições assumidas pelas partes nos seus articulados e atentos os fundamentos invocados, as questões a decidir no âmbito do presente processo arbitral – referentes à apreciação da legalidade dos atos de liquidação de IRS (retenção na fonte) n.º 2015…, de 8 de Abril de 2015, no montante de € 400.000,00 e juros compensatórios no valor de € 67.879,44 e liquidação de IRS (retenção na fonte) n.º 2015…, de 8 de Abril de 2015, no montante de € 665.393,36 e juros compensatórios no valor de € 82.855,27, atentos os vícios invocados pela Requerente, são as seguintes:

1. Aplicação indevida da cláusula anti abuso, por entender que não estão reunidos os quatro requisitos para aplicação da norma anti abuso prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT (elementos meio, resultado, intelectual e normativo) e, subsidiariamente,

  1. Erro na notificação das liquidações impugnadas na pessoa da Requerente por:

i.                    Aplicação da sanção de ineficácia prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT; ou, subsidiariamente,

ii.                  Por inoponibilidade ao substituto tributário da aplicação da cláusula geral anti abuso.

iii.                Violação do princípio da capacidade contributiva previsto no artigo 104.º, n.º 1 da CRP.

 

Para além da apreciação da legalidade dos atos tributários impugnados, cabe ainda decidir sobre a condenação da Administração Tributária no pagamento de uma indemnização por garantia bancária, pela totalidade dos custos suportados até ao levantamento da garantia, ou subsidiariamente, pelo montante de € 10.781,27, já suportados, nos termos dos artigos 53.º da LGT e 171.º do CPPT.

 

 

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

Atendendo às posições assumidas pelas partes nos respetivos articulados (petição, resposta e alegações), à prova documental carreada para os autos e ao Processo Administrativo junto, consideram-se provados os seguintes factos:

 

1.      A Requerente foi constituída no ano de 2008 como sociedade comercial anónima na modalidade de sociedade gestora de participações sociais, com o objeto social de “gestão de participações sociais noutras sociedades, como forma indireta do exercício de atividades económicas”, com o capital social de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), distribuído da seguinte forma:

 

Acionistas

% do capital

Nome

NIF

C…

20%

D…

20%

E…

20%

F…

20%

G…

20%

 

2.      Cada um dos acionistas é detentor de 2000 ações no valor nominal de € 5,00 cada uma.

3.      No quadriénio 2008 a 2011, o conselho de administração da Requerente foi composto pela Administradora Única e acionista – C… .

4.      A Requerente assenta numa estrutura de cariz familiar, estando a totalidade do capital social distribuído por pais e filhos.

5.      No seu primeiro ano de actividade, a Requerente adquiriu 100% do capital social da sociedade B…– … S.A. (de ora em diante apenas B…, S.A.), pessoa coletiva n.º… .

6.      Em Julho de 2010, a Requerente subscreveu a totalidade do capital social da sociedade H…– …, Lda., pessoa coletiva n.º… .

7.      A Requerente não tem instalações próprias, nem trabalhadores dependentes.

8.      A Requerente não dispõe de meios humanos e estruturais próprios.

9.      A sede da Requerente situa-se na … n.º…, …, em …, também sede da sociedade B… S.A..

10.  Nos anos de 2009, 2010 e 2011, a Requerente não teve quaisquer pessoas ao seu serviço, não tendo apresentado qualquer anexo J/modelo 10, com referência àqueles anos, não tendo, por isso, incorrido em gastos com pessoal.

11.  Desde que iniciou a sua actividade, em 20 de Novembro de 2008, não incorreu em despesas com pessoal, consultoria e prestação de serviços.

12.  À data dos factos, a Requerente não prestava qualquer serviço às sociedades em que participava.

13.  A B…– …, S.A. é uma sociedade comercial constituída em 2004, com sede na … n.º …  –…, …, …-… …, sob a forma de sociedade comercial por quotas, com o capital social de € 50.000,00.

14.  Em Novembro de 2008, a sociedade foi transformada em sociedade anónima, com o capital de € 50.000,00, distribuído por 10.000 ações no valor nominal de € 5,00, tendo como acionistas C…, D… e E…, F… e G…, distribuído da seguinte forma:

Acionistas

% do capital

Nome

NIF

C…

20%

D…

20%

E…

20%

F…

20%

G…

20%

 

15.  Da comparação entre as estruturas acionistas da Requerente e da B…, S.A. resulta que os acionistas são os mesmos e as detenções percentuais no capital social nas sociedades são idênticas.

16.  A B… S.A. assenta numa estrutura de cariz familiar, estando a totalidade do capital social distribuído por pais e filhos.

17.  A gerência da sociedade foi atribuída aos sócios C… e E….

18.  A B…, S.A. teve de lucros, desde 2004 até 2011, os seguintes valores:

 

19.  Entre 2005 e 2008, não foram distribuídos lucros aos sócios.

20.  No ano de 2009 – após a venda de 100% do capital social da sociedade B…, S.A. à Requerente, aquela sociedade procedeu à distribuição de dividendos à ora Requerente, conforme quadro abaixo:

 

21.  Até 31 de Dezembro de 2010, com referência aos exercícios de 2008 e 2009, a B…, S.A. aprovou a distribuição de dividendos à ora Requerente no montante de € 4.600.000,00, transferidos nos anos imediatamente subsequentes, ou seja, 2009 e 2010.

22.  Em 15 de Dezembro de 2009, a Requerente comprou aos seus acionistas C…, D… e E…, F… e G…, as ações que estes detinham no capital social da sociedade B…, S.A., ao preço unitário de € 3.500,00, por ação, ou seja, pelo valor global de € 35.000.000,00.

23.  Em 14 de Novembro de 2008, antes da compra pela Requerente das ações representativas do capital social da B…, S.A., a consultora I… apresenta Relatório no qual avalia a totalidade das ações da B…, S.A., por referência a Agosto de 2008, em € 35.000.000,00.

24.  Em resultado da venda das ações, a Requerente passou a deter 100% do capital social da B…, S.A.

25.  A Requerente não dispunha de recursos financeiros para proceder ao pronto pagamento das ações da B…, S.A..

26.  A 31 de Dezembro de 2008, a Requerente apresentava uma situação líquida de € 50.000,00, correspondente aos valores em caixa e seus equivalentes.

27.  A Requerente ficou devedora aos seus acionistas da quantia de € 35.000.000,00, correspondente ao preço de aquisição.

28.  A Requerente e os acionistas ajustaram entre si que o pagamento do preço acordado seria diferido por um período não inferior a 12 meses.

29.  No contrato de compra e venda de ações celebrado entre a Requerente e os então acionistas da B…, S.A. não foi estipulado o vencimento de juros, nem foi fixado prazo para o reembolso dos valores em dívida.

30.  Em 2009, a B… S.A. distribuiu dividendos à Requerente no montante de € 2.000.000,00.

31.  Em 2009, contemporaneamente à distribuição de dividendos, a Requerente transferiu para os seus acionistas, a título de pagamento da dívida da aquisição das ações, o valor de € 2.000.000,00.

32.  Em 2010, a B… S.A. distribuiu dividendos à Requerente no montante de € 3.100.000,00.

33.  Em 2010, contemporaneamente à distribuição de dividendos, a Requerente transferiu para os seus acionistas, a título de pagamento da dívida da aquisição das ações, o valor de € 3.094.852,82.

34.  Os registos contabilísticos das transferências efetuadas pela Requerente aos seus acionistas, nos anos de 2009 e 2010, foram os seguintes:

 

 

35.  A Requerente mantém-se devedora aos acionistas de parte do preço devido pela aquisição das ações.

36.  A Autoridade Tributária e Aduaneira procedeu a uma inspeção de âmbito parcial à Requerente, ao abrigo das Ordens de Serviço n.ºs OI2011…, OI2012… e OI2012…, de âmbito parcial, visando apurar IRC e retenções na fonte de IRS, com incidência nos anos de 2009, 2010 e 2011 e controle de esquemas de planeamento fiscal abusivo.

37.  Por ofício n.º…, de 11 de Novembro de 2013, a Requerente foi notificada para o exercício do direito de audição prévia relativamente ao Projeto de Relatório de Inspeção.

38.  A Requerente não exerceu o seu direito de audição no prazo legalmente concedido, de 30 dias.

39.  A Requerente não solicitou a realização de quaisquer diligências instrutórias complementares.

40.  A Requerente foi notificada pela Direção de Finanças de Lisboa, do Relatório Final de Inspeção, nos termos do qual foi convertido em definitivo o Projeto de Relatório de Inspeção anteriormente notificado à Requerente, constante do documento n.º 3 junto com o Pedido Inicial, que aqui se dá por reproduzido.

41.  Em concretização das conclusões do relatório de Inspeção, a Requerente foi notificada das liquidações de IRS (retenção na fonte) e juros compensatórios n.ºs 2015…, no montante total de € 467.879,44, relativas ao ano de 2009.

42.  Em concretização das conclusões do relatório de Inspeção, a Requerente foi notificada das liquidações de IRS (retenção na fonte) e juros compensatórios n.º 2015…, no montante total de € 748.248,63, relativas ao ano de 2010.

43.  Em 23 de Julho de 2015, a pedido da Requerente, o J…, S.A. emitiu documento designado por “Garantia Bancária N…”, até ao montante máximo de Euro 1.550.919,66, a favor da AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA – SERVIÇO DE FINANÇAS DE OEIRAS –…, que se destina a “prestar caução com vista à suspensão dos Processos de execução Fiscal n.ºs …2015… e …2015… .”.

44.  Em 24 de Julho de 2015, o J… S.A. procedeu, ao débito na conta bancária de que a Requerente é titular, dos custos inerentes à emissão daquela Garantia Bancária, no montante de Euro 10.781,27.

45.  Em 24 de Julho de 2015, a Requerente requereu a constituição do Tribunal Arbitral ao abrigo do disposto no artigo 10.º, n.º 2 do RJAT, visando a anulação das liquidações de IRS (retenção na fonte) n.º 2015… e juros compensatórios, referentes a 2009, a anulação das liquidações de IRS (retenção na fonte) n.º 2015… e juros compensatórios, referentes a 2010, bem como, o pagamento de indemnização por prestação indevida de garantia bancária.

 

A convicção do Tribunal sobre a factualidade dada como provada fundou-se nos documentos que constam dos autos, do Processo Administrativo, incluindo o RIT relativamente aos elementos fácticos que não se mostram contrariados ou impugnados pela Requerente (cf. artigo 76.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária e 115.º, n.º 2 do Código do Procedimento e Processo Tributário).

 

Com relevo para a decisão da causa não se provaram outros factos.

 

V. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

V/a. A questão de fundo

As principais questões a resolver neste acórdão são:

I – A legalidade da aplicação da cláusula geral anti abuso contante da norma do artigo 38º da LGT;

II – Avaliar se em resultado da aplicação da cláusula, estão em conformidade com a lei os efeitos pretendidos pela AT, designadamente se as liquidações referentes a retenções na fonte de IRS devem incidir sobre a Requerente.

 

O escopo maior do sistema fiscal português tem assento na norma do artigo 103º-1 da CRP e consiste afinal na satisfação das necessidades financeiras do Estado e na repartição justa dos rendimentos e da riqueza. É com esse objectivo que todo o edifício fiscal é construído, procurando arrecadar as contribuições dos cidadãos para atender às necessidades colectivas de modo equilibrado, sem prescindir de repartir esse encargo de acordo com o critério traçado: os efectivos rendimentos e a real riqueza de cada um.

 

A crescente complexidade das relações económicas e a evolução e tecnicidade dos instrumentos jurídicos que têm sido criados, fizeram aparecer métodos, normalmente ligados à gestão empresarial, de busca de soluções fiscais menos onerosas, que constituem afinal modos de configuração bem estruturados para o objectivo em vista. Esse desenho da configuração jurídica é habitualmente designado por planeamento fiscal que pode seguir fundamentalmente dois caminhos: (i) o recurso a meios optimizados de realização dos negócios com vocação para o fim económico em causa; (ii) a utilização de meios que só aparentemente têm vocação económica para o fim em vista, tendo como objectivo evitar o pagamento de impostos. É justamente a esta conjugação da utilização de figuras lícitas que são meios inadequados para o negócio pretendido, visando evitar a tributação, que constitui o planeamento fiscal abusivo e que corresponde ao conceito de elisão fiscal. É precisamente a elisão fiscal que a CGAA visa combater.

 

Com esse objectivo – combater a elisão fiscal – foi adoptada no ordenamento português o regime que consta do artigo 38º da LGT, que tem a seguinte redacção:

 

Artigo 38.º Ineficácia de actos e negócios jurídicos

1 - A ineficácia dos negócios jurídicos não obsta à tributação, no momento em que esta deva legalmente ocorrer, caso já se tenham produzido os efeitos económicos pretendidos pelas partes.

2 - São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referida.

 

A CGAA tem sido estudada pela doutrina e os seus conceitos têm vindo a ser fixados paulatinamente pela jurisprudência. Esses estudos têm privilegiado como técnica para análise do enquadramento de determinada situação de facto na previsão da CGAA, a dissecação dos seus tradicionais elementos ou requisitos de aplicação: meio, resultado, intelectual, normativo e sancionatório. Seguir-se-á essa metodologia.

 

Veja-se o requisito meio ou forma utilizada. A previsão da norma exige que a estrutura jurídica utilizada para concretizar o negócio ou negócios causadores da situação de elisão fiscal tenha utilizado meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas.

 

Para análise do caso sub judice importa determinar qual é o parâmetro que deve ser usado para qualificar como artificioso o meio utilizado ou para aferir se o formato jurídico da operação é abusivo. Como já se disse, a aplicação da CGAA dá-se normalmente quando a estrutura jurídica subjacente ao negócio é, numa perspectiva isenta da sua causa, legalmente admissível e lícita; não há de ser pois a lei a bitola pela qual se afere se o modelo utilizado constitui artifício ou se faz um uso censurável das figuras jurídicas em que assenta.

 

Crê-se que o teste da regularidade fiscal da estrutura jurídica far-se-á indagando da adequação da estrutura adoptada à finalidade económica visada. Neste sentido Lopes Courinha afirma que “É, em conclusão, do nível de incoerência entre a forma ou estrutura escolhida e o propósito económico-prático final do contribuinte, entre o fim para que é empregue concretamente essa forma adoptada e a causa que lhe é própria, que se aferirá o elemento supra estudado”[2]. Por seu turno Leite de Campos et al.[3] colocam também a tónica na existência de coerência económica em qualquer caso mas distinguem claramente (i) os meios artificiosos ou fraudulentos, constituídos por negócios inúteis ou desnecessários ao projecto empresarial, destituídos de um “motivo económico válido, ou uma justificação razoável” para realização da operação; (ii) o abuso das formas jurídicas quando se utilizem fórmulas negociais insólitas para atingir a finalidade económica típica do negócio.

 

Enquadre-se agora a situação de facto à luz destas orientações.

 

A Requerente afirma que os seus acionistas constituíram a A…, SGPS com o propósito da “reorganização do grupo empresarial mediante a constituição de uma SGPS que passasse a deter as empresas do grupo” e que “pretendia-se com esta reorganização, criar sinergias, potenciar o financiamento numa única entidade, que a [A…, SGPS] centralizasse os serviços administrativos e prestasse serviços às participadas, etc.”[4]. A finalidade declarada pela Requerente está, aliás, em linha com a finalidade económica com que são constituídas as SGPS, figura que historicamente foi instituída com o objectivo de criar condições favoráveis que facilitem e incentivem a criação de grupos económicos, proporcionando aos empresários um quadro jurídico que lhes permita reunir numa sociedade as suas participações sociais, em ordem à sua gestão centralizada e especializada[5].

 

Nos autos assentou-se, em síntese[6], que a A…, SGPS não tem instalações próprias, nem trabalhadores dependentes, não dispõe de meios humanos e estruturais próprios, a sua sede é também sede da sociedade B… S.A., nos anos de 2009, 2010 e 2011, não teve quaisquer pessoas ao seu serviço e nesses anos, não incorreu em gastos com pessoal e desde que iniciou a sua actividade, em 20 de Novembro de 2008, não incorreu em despesas com pessoal, consultoria e prestação de serviços e à data dos factos não prestava qualquer serviço às sociedades em que participava. Ficou também assente que a B…– …, S.A. foi constituída em 2004 e o seu capital social era detido pelas mesmas pessoas e com idênticas participações às que detêm na A…, SGPS; desde 2005 que teve lucros que não distribuiu até 2008.

 

Importa agora tirar conclusões e para isso há que aferir se a constituição da A…, SGPS tem motivo económico válido e se a aquisição da B…, S.A.  tem uma justificação razoável à luz dos objectivos que afirmou. Crê-se que a resposta só pode ser negativa por razões que se prendem (i) com os objectivos gerais que são esperados atingir com a criação de uma SGPS; (ii) com os objectivos específicos que a Requerente afirma terem presidido ao plano empresarial desenvolvido.

 

Ao nível dos objectivos gerais há que reconhecer que não foi constituído um efectivo grupo económico; as operações comerciais que eram feitas pela B… continuaram a sê-lo, sem que se conheça qualquer intervenção da A…, SGPS no âmbito da sua gestão centralizada e especializada. Quanto aos objectivos específicos, não se vislumbram quaisquer intenções de reorganização, de criação de sinergias, pois nenhuma outra empresa com movimento foi constituída, nem de centralização de serviços administrativos ou que prestasse serviços às participadas.

 

À luz de critérios de racionalidade económica não se alcança qualquer razão que justificasse a interposição da SGPS entre os titulares reais do negócio e a unidade que gera rendimento, bem antes pelo contrário. A nova estrutura só foi fonte de custos.

 

É pois de concluir que a conjugação dos negócios jurídicos (i) constituição da A…, SGPS; (ii) venda à A…, SGPS das participações sociais na B…, S.A.  a crédito; (iii) distribuição de lucros pela B…, S.A. à A…, SGPS; (iv) pagamento de parte do preço das participações aos titulares originários do capital da B…, S.A., é meio adequado para eliminar os impostos que seriam devidos se a estrutura jurídica da empresa se mantivesse na sua forma originária. Se a B…, S.A. tivesse distribuído lucros aos seus accionistas, estes haveriam de ser tributados em IRS (artigo 5º-2-h do CIRS), o que não aconteceu com a estrutura adoptada.

 

Refira-se ainda que não tem razão a Requerente quando afirma que a subscrição do capital da A…, SGPS através de entradas em espécie, consubstanciadas pelas participações na B…, S.A., permitiria aos accionistas receber indirectamente os lucros, sem tributação, através de operação de redução do capital. É que a realização das entradas em espécie era sem dúvida o modelo que melhor serviria a constituição do grupo económico, que iniciaria a sua actividade sem passivo e com fortíssimos capitais próprios. Não poderia, contudo, conseguir a retirada indirecta de dividendos por via da redução do capital, sem que sobre esse ato incidisse tributação pois a isso obstaria o regime das mais-valias regulado no artigo 10º-1-b do CIRS.

 

Em conclusão, há que afirmar que o modelo de negócio utilizado configura um meio artificioso pois não assenta em critérios de racionalidade económica.

 

Analise-se agora se o elemento resultado também se verifica. A facti species correspondente a este elemento é configurada no artigo 38º-2 da LGT como a obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas sem a utilização dos meios em causa e que se podem traduzir na redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos.

 

Seguindo Lopes Courinha[7] julga-se que a vantagem fiscal prevista na lei é um “conceito relativo, suscetível de delimitação por comparação com o nível e termos da tributação ou carga tributária apurados numa operação normal”, considerando-se como tal o formato ou sistema de organização empresarial que se adotaria se não se procurasse a vantagem fiscal. Em sentido concordante, Leite de Campos et al.[8] parecem atribuir a este termo natureza meramente quantitativa; as vantagens têm que existir e ser alcançadas pela utilização dos meios, mas não são por si indícios de utilização de planeamento abusivo.

 

Na situação dos autos a indagação da existência de nexo entre os meios utilizados e as vantagens fiscais parece resultar evidente. Aliás, ainda que colocando o benefício sob forma hipotética, reconheça-se, até a Requerente admite que podem ter advindo vantagens para os seus accionistas.

 

Em concreto, se a B…, S.A. tivesse distribuído os dividendos que entregou a A…, SGPS, no valor de € 2.000.000,00 em 2009 e de € 3.100.000,00, em 2010, aos seus accionistas, estes seriam tributados em IRS, nos termos do artigo 5º-2-h do CIRS à taxa liberatória de 20% em 2009 e de 21,5% em 2010 (artigo 71º-1-c do CIRS), o que resultaria no valor de imposto de, respectivamente, € 400.000,00 e de € 666.500,00. Através da estrutura criada, nenhuma tributação foi gerada pelo que se confirma aqui que houve efectiva vantagem fiscal que se cifrou em € 1.066.500,00.

 

Veja-se agora o requisito volitivo ou intelectual o que passa por determinar se é possível imputar ao agente a orientação do meio utilizado, de forma predominante para a obtenção das vantagens fiscais.

 

Segundo Leite de Campos et al., no que concerne ao que denominam de “propósito fiscal”, a CGAA refere-se a “negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos ao fim fiscal”, cabendo à AT “provar o intuito fraudulento, em termos de dolo, ou apontar circunstâncias objectivas equivalentes a essa prova, cuja verificação permite concluir sem dúvida a intenção de um aforro fiscal, por não se possível encontrar qualquer explicação alternativa em termos de racionalidade económico-financeira”[9]. Lopes Courinha[10] entende que há tão só que apurar se existiu motivação fiscal o que poderá ser verificado indagando se as formas escolhidas (meios) são dirigidas ao efeito fiscal, dito de outro modo “atingidos os ditos fins, como decorrência dos atos praticados a tal dirigidos, em nada relevará mais a motivação do contribuinte.”

 

Afirmou-se já a propósito do elemento meio que à luz de critérios de racionalidade económica não se alcança qualquer razão que justifique o funcionamento do grupo que se afirma ter-se querido criar, com a interposição da sociedade gestora de participações sociais entre os titulares reais do negócio e a B…, S.A., que é a unidade geradora do rendimento. É pois de concluir que a conjugação dos negócios jurídicos identificados foi concebida, pelo menos de forma predominante, tendo como motivo a obtenção de vantagem fiscal. Considera-se assim verificada a presença do elemento volitivo.

 

Tenha-se presente que nem é necessário que a concepção do sistema negocial tenha por exclusiva finalidade a obtenção de vantagem fiscal; como faz notar Lopes de Sousa[11] “não será necessário, para se determinar a ineficácia do ato ou negócio, que se demonstre que ele foi celebrado com o único objectivo de reduzir eliminar ou diferir os impostos que seriam devidos, bastando que esse objectivo seja essencial ou o principal”.

 

Verificados que foram os três primeiros requisitos, é comum analisar a presença do quarto, que alguma doutrina, não unânime[12], considera necessário e que é o chamado elemento normativo, que decorre sobretudo da construção doutrinária. Lopes Courinha[13] atribui-lhe o sentido de censurabilidade dos efeitos obtidos, “que não são desejados, previstos ou promovidos pelo Direito, mas antes rejeitados” pois só se tal acontecer é que deverá considerar-se ineficaz o negócio em causa.

 

Embora se considere ausente da norma este elemento, ele é referenciado pela Requerente (43º e 44º RI) e pela AT (327º 356º R-AT) pelo que os argumentos devem ser pesados.

 

A Requerente contrapõe que a estrutura empresarial é um objectivo legal e legítimo pois a constituição da A…, SGPS não tem carácter instrumental e que é precisamente o elemento principal na reorganização do grupo que pretendia levar a cabo.

 

Já se disse a propósito do elemento meio o que se nos oferece sobre a questão; nenhum mas mesmo nenhum vestígio de reorganização se vislumbrou. Não parece ao tribunal que face aos elementos objectivos disponíveis – não foi produzida prova testemunhal, pericial ou por declarações de parte nem foi junto um só documento, fosse um projecto ou um plano, estudo, apresentação, prospecto ou simples anúncio que ilustrasse qualquer intuito de reorganização empresarial – só pode concluir-se que ao menos predominantemente tudo indicia que a constituição da  A…, SGPS visou obter vantagem fiscal e essa finalidade não é querida pelo Direito, di-lo a norma do artigo 38º-2 da LGT.

 

Por último, insurge-se a requerente por a AT não ter analisado o elemento sancionatório, i.e. a aplicação da estatuição da norma que se concretiza com a definição concreta dos efeitos da ineficácia sobre os actos analisados, o que conduz a apreciar o vício que a título subsidiário a Requerente aponta ao acto impugnado e que designa por “erro na notificação das liquidações impugnadas” que lhe foram dirigidas.

 

A propósito dos efeitos que devam ser produzidos pela CGAA, Lopes Courinha[14] observa que “os efeitos tributários tidos como ineficazes pela CGAA devem ser unicamente aqueles que concretizam diretamente a vantagem fiscal” e conclui afirmando que “desconsiderar os efeitos globais dos negócios elisivos é, para além de contraproducente, insustentável e dificilmente admissível em consideração do propósito expresso da CGAA – evitar o contorno da lei”. Como solução propõe o recurso à reconstrução do negócio que é uma metodologia da dogmática jurídica, que segue as seguintes linhas de orientação: (i) evitar que os efeitos dessa operação se repercutam para além do que seja absolutamente necessário; (ii) adotar nessa operação uma perspetiva substancial, numa ótica económica, como é próprio do tratamento dos negócios pelo direito fiscal (artigo 11º-3 da LGT) e (iii) procurar o resultado equivalente àquele que se produziria sem a utilização do artifício utilizado. Em sentido que não é divergente Leite de Campos et al.[15] frisam que os negócios subjacentes à aplicação da cláusula anti abuso “não são nulos ou anuláveis, são simplesmente ineficazes no plano fiscal” mas isso não afeta a validade jurídica do negócio, que produz todos os seus efeitos civis, pois o direito fiscal “aceita e reconhece a realidade jurídica preexistente”, limitando-se a negar que os efeitos do negócio se produzam na sua esfera de ação.

 

Note-se que a CGAA não se confunde com a simulação, em que as partes declaram celebrar determinado negócio, quando sob ele existe outro que se pretende efetivamente realizar (artigo 39º da LGT)[16], nem se confunde também com a deficiente qualificação jurídica dos factos tributários pois nestas situações haverá apenas que fazer a sua qualificação de acordo com a caracterização fiscal (artigo 36º-4 da LGT); a CGAA aplica-se justamente nos casos em que nem a requalificação tributária nem o regime da simulação têm aplicação, pois estas disciplinas, quando possam ser aplicadas, prevalecem[17].

 

Se bem se entende a posição da doutrina, crê-se que ela se pronuncia no sentido de considerar que o Direito fiscal apenas atua para assegurar a realização dos interesses tributários, devendo reduzir a ação dos seus atos ao que for indispensável. Crê-se que isso se proporciona se a AT fizer incidir diretamente o IRS sobre o titular do rendimento, evitando que a relação jurídica privada venha a ser abalada com o exercício do direito de regresso, com base em ato que face ao direito privado permanece lícito.

 

Já a jurisprudência mais recente tem-se mostrado dividida, com decisões em sentidos divergentes. No acórdão do Tribunal Arbitral no CAAD de 24-11-2014, no processo n.º 379/2014, deliberou-se constituir ilegalidade a liquidação de IRS ao substituto tributário, entendendo-se que “sendo esta eliminação das vantagens fiscais o objetivo expresso da cláusula geral anti abuso, o destinatário da aplicação desta cláusula, aquele em cujo património se irão produzir os efeitos da aplicação, não pode deixar de ser quem usufruiu dessas vantagens fiscais.”. Em sentido coincidente, no acórdão do Tribunal Arbitral no CAAD de 07-01-2016, no processo 335/2015, entendeu-se que “na verdade, conclui-se da parte final do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, na redação da Lei n.º 30-G/2000, que a cláusula geral anti abuso não tem em vista meramente atribuir à Administração Tributária compensação por atos que lhe tenham provocado perda de receita fiscal, antes visa, concomitantemente, eliminar as vantagens fiscais ilegítimas que alguém obteve, o que revela que lhe estão subjacentes preocupações de igualdade e justiça tributária, que só podem satisfazer-se com a imposição da tributação omitida a quem obteve essas vantagens.”, acrescentando ainda que “O que se reconduz a que, pela própria natureza do dever de retenção na fonte, a aplicação da cláusula geral anti abuso, dependente de uma verificação a posteriori dos requisitos da sua aplicação, não pode originar deveres de retenção na fonte que não existiam no momento em que foram praticados os atos ou negócios considerados abusivos de que emergiu uma vantagem fiscal indevida, à face do circunstancialismo factual e jurídico existente nesse momento.”

 

Em sentido divergente, no acórdão do Tribunal Arbitral no CAAD de 22-05-2015, no processo n.º 377/2014 (em sentido concordante com este veja-se também o acórdão do Tribunal Arbitral no CAAD no processo n.º 173/2015, de 04-11-2015), faz-se notar que o “art. 38.º, n.º 2 da LGT autonomiza duas fenomenologias, quer a nível de hipótese quer a nível de estatuição”; na primeira previsão da norma coloca-se a hipótese dos atos se destinarem a obter a elisão consubstanciada na redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos e para estas situações, haverá que efetuar a tributação de acordo com as normas aplicáveis na ausência dos atos artificiosos fraudulentos ou abusivos. Por sua vez, a segunda previsão normativa é preenchida pelas situações em que os atos elisivos visam a obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, sem utilização desses meios, relativamente aos quais a consequência é não se produzirem as vantagens fiscais referidas. Em resumo, quando os atos visem a otimização do valor do imposto, haverá que efetuar a tributação abstraindo desses atos; quando os atos visem vantagens fiscais, são essas vantagens que já não se produzirão.

 

Nessa linha de orientação e considerando que no caso o contribuinte usara de meios fraudulentos ou artificiosos, o tribunal arbitral entendeu que a efetivação da tributação de acordo com as normas aplicáveis nos termos estatuídos pelo n.º 2 do artigo 38.º da LGT tinha como consequência passar a caber à Requerente a assunção do papel de substituto tributário nos termos das disposições fiscais relativas à tributação em IRS dos dividendos, constantes das normas dos artigos 71.º, n.º 1, al. c) e 101.º, n.º 2, al. a) do CIRS, passando a sociedade pagadora dos dividendos a ser a destinatária da liquidação decorrente da desconsideração, para efeitos fiscais, dos atos e negócios jurídicos abusivos, porquanto foi ela que surgiu como entidade devedora e que colocou à disposição, com intuitos elisivos, o pagamento de dívidas ou de entradas em aumentos de capital, os acréscimos patrimoniais que na verdade cabiam diretamente aos próprios acionistas. Concluindo, o pressuposto da obrigação de proceder à retenção na fonte, nos termos das normas invocadas, formou-se em relação ao substituto.

 

E considera que deverá ser assim – incidindo a tributação sobre o substituto – porque a tributação dos rendimentos de dividendos opera por retenção na fonte a título definitivo, por aplicação de taxa liberatória, como se prevê na norma do artigo 71.º n.º 1, alínea c) do CIRS, com a natureza de pagamento liberatório (embora com possibilidade de opção pelo englobamento, nos termos do artigo 71.º, n.º 6 e do artigo 22.º, n.º 3, al. b) do CIRS). Entende ainda que resulta da própria estatuição da CGAA que ao prescrever a aplicação da tributação correspondente ao negócio ou ato elidido (como se refere in fine no n.º 2 do artigo 38.º da LGT), que o imposto deve ser exigido do substituto tributário que não pode deixar de ser abrangido pela estatuição da norma, que lhe é inteiramente oponível.

 

O acórdão proferido no processo n.º 377/2014T que se tem vindo a citar, responde ainda às críticas que são habitualmente feitas à tese que incorpora, designadamente a “afetação da posição patrimonial” do substituto e a tributação de acordo com a capacidade contributiva do substituto tributário. Com esse intuito afirma que a solução resulta do funcionamento próprio da substituição tributária, designadamente do regime aplicável às relações entre substituto e substituído, que pressupõem a existência do “direito de regresso” e que é através deste que se obtém a conexão entre o imposto aplicado ao substituto e a capacidade contributiva a ter em consideração, que é a do substituído. Considera ainda que o exercício do direito de regresso é de exercício obrigatório pelo substituto quando este for sujeito passivo de IRC como era o caso do substituto tributário nos autos em causa (45.º-1-c do CIRC então vigente).

 

Há agora que tomar posição.

 

Não obstante o peso dos argumentos em que se ancoram as duas orientações que constam da jurisprudência referida, crê-se que a solução mais acertada passa pela interpretação da norma do artigo 38º-2 da LGT no sentido de que esta deve privilegiar a solução que melhor atinja a razão fundamental da norma e que é a remoção das vantagens fiscais proporcionadas pelo uso abusivo da construção jurídica em causa.

 

Embora seja verdade que a decomposição do artigo 38º-2 da LGT pode revelar a coexistência de duas situações hipotéticas admissíveis com fitos diferentes (a redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos por um lado ou por outro a obtenção de vantagens fiscais) não é menos verdade que o elemento visado é, em qualquer dos casos, a obtenção de vantagens fiscais, que se podem consubstanciar por qualquer uma das manifestações expressas ou por outras que se compreendam neste conceito. Para todas as vantagens fiscais referidas, típicas ou atípicas, a consequência é a mesma: a ineficácia dos negócios e a não produção das vantagens.

 

Embora na interpretação do preceito não se deva atribuir demasiada relevância ao elemento literal, note-se que as duas situações típicas que são apresentadas na facti species da norma encontram-se ligadas pela conjunção disjuntiva ou, enquanto a estatuição da norma contém dois segmentos conectados pela conjunção copulativa e, o que é consentâneo com a ideia de que não se previram duas consequências para duas hipóteses mas um só resultado para todas as hipóteses.

 

Como a eliminação das vantagens fiscais é o objetivo imediato que a CGAA pretende atingir, o destinatário da sua aplicação, aquele em cujo património se irão produzir os efeitos da ineficácia, há de ser quem efetivamente beneficiou daquelas vantagens. Nas situações em que o imposto em causa devesse ter sido retido e não o tendo sido, o efetivo beneficiário é o substituído tributário, que é o verdadeiro destinatário da obrigação de pagar o imposto e não o substituto tributário, a quem incumbia sem dúvida, a operação de retenção e entrega ao Estado, sem que isso constituísse qualquer encargo para si. Ora da mesma forma que a operação de retenção e entrega ao Estado do imposto não traz para o substituto nenhum encargo, a falta da sua obrigação de reter o imposto também não acarreta para si qualquer benefício, pois este apenas tem efeitos sobre o titular do rendimento, que ficou com a vantagem fiscal de não ser tributado.

 

Note-se também que o substituto tributário não só não beneficiou com a operação como se lhe for atribuída em primeira linha a responsabilidade pelo pagamento da retenção do imposto, isso fará com que acabe por suportar duas vezes o mesmo encargo, enquanto o titular do rendimento acaba por não suportar imposto. De todo o modo não se diga que o substituto fica de todo isentado de qualquer responsabilidade; não é assim. O substituto tributário é subsidiariamente responsável pelo pagamento do imposto que devia ter sido retido (artigo 28º-2 da LGT), operando-se contra ele a reversão no processo de execução fiscal (artigo 23º-1 da LGT). Note-se que o substituto não gozaria sequer das garantias que estão normalmente associadas aos créditos fiscais, pois estar-lhe-ia vedado o recurso à sub-rogação, que pressupõe que o substituído seja o devedor do tributo (artigo 91º do CPPT), bem como a prerrogativa de fazer correr a própria execução fiscal contra o titular dos rendimentos.

 

Claro que se poderia pensar que o Direito fiscal é alheio a essa questão, que diz apenas respeito ao titular dos rendimentos e ao substituto tributário que deveria ter operado a retenção. Não é assim. A atividade tributária do Estado destina-se a prover meios para satisfação das suas necessidades mas visa também a justiça na distribuição dos rendimentos e da riqueza (artigo 103º-1 da CRP). É evidente que há que garantir a receita pública mas haverá melhor garantia do que ter as duas entidades comprometidas com o pagamento, o titular do rendimento por via da execução e o substituto tributário por via da reversão?

 

Não se crê que esta interpretação obedeça a um modelo meramente utilitarista como pode parecer à primeira vista; antes pelo contrário, ela inspira-se na mais tradicional doutrina portuguesa e radica nas disposições gerais sobre a interpretação jurídica, designadamente as normas do artigo 9º do CC, em consonância com o artigo 11º-1 da LGT que impõem a busca do pensamento legislativo ou a razão de ser da norma e quando o intérprete se confrontar com vários sentidos igualmente possíveis, diz Manuel de Andrade[18], há de preferir aquele, que se revele mais salutar e produza o efeito mais benéfico”. Parece ser consensual que a ratio da CGAA é a reposição da normalidade que o uso abusivo de determinados instrumentos jurídicos perverteu. Ora essa normalidade não pode deixar de consistir em que: (i) o Estado cobre o imposto que o uso adequado, na perspetiva económica, dos ditos instrumentos proporciona; (ii) que a tributação recaia sobre quem a deve suportar. A retenção, a substituição tributária, o direito de regresso, a sub-rogação, a execução e todas as figuras técnico-jurídicas não são em si o Direito mas apenas as vias que este cria para conseguir os seus objetivos. E em última análise é em face dos objetivos a atingir que a interpretação deve ser norteada.

 

Jorge Lopes de Sousa (em voto de vencido no acórdão do processo n.º 377/2014T, citado) considera ainda, sobre a interpretação que defende, que o imposto deve recair sobre o substituído tributário: “é esta a única interpretação que se compatibiliza com o (…) princípio da tributação com respeito pela justiça material (artigo 5.º, n.º 2, da LGT).” E adianta outros argumentos, que em geral se consideram válidos e aos quais este Tribunal adere, para suportar a orientação que defende, entre eles a impossibilidade de exercer o alegado direito de regresso e a necessidade de procedimento tributário especial para que haja lugar á ineficácia dos negócios abusivos (artigo 63º-7 do CPPT).

 

Do exposto resulta que a AT não podia dirigir à Requerente as liquidações impugnadas, que haveriam que recair sobre os titulares do rendimento ficcionado pela aplicação da CGAA constante da norma do artigo 38º-2 da LGT.

 

Concluindo, embora se verifique a presença de todos os requisitos de que depende a aplicação da CGAA, a AT não retirou deles as consequências devidas pelo que a sua atuação foi ilegal e deve ser anulada, como pretende a Requerente.

 

V/b. Custos com garantia

A Requerente peticiona também que a AT seja condenada a pagar-lhe indemnização por prestação indevida de garantia, pela totalidade dos custos suportados até ao respetivo levantamento, ou subsidiariamente, pelo menos pelo montante de € 10.781,27, já comprovadamente suportados.

 

No julgamento da matéria de facto assentou-se que em 23 de Julho de 2015, a pedido da Requerente, o J…, S.A. emitiu documento designado por “Garantia Bancária N…”, até ao montante máximo de € 1.550.919,66, a favor da Autoridade Tributária e Aduaneira, destinada a “prestar caução com vista à suspensão dos Processos de execução Fiscal n.ºs …2015… e …2015...” e que em 24 de Julho de 2015, o J…, S.A. procedeu ao débito na conta bancária de que a Requerente é titular, dos custos inerentes à emissão daquela garantia bancária, no montante de € 10.781,27.

 

Nos termos da norma do artigo 100º da LGT “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade”. Por seu turno as normas do artigo 53º- 1 e 2 da LGT preveem o ressarcimento pela AT, pelos custos da garantia suportados pelo sujeito passivo, podendo ver-se a tramitação a que o exercício desse direito se encontra subordinado no artigo 171º do CPPT.

 

Importa contudo avaliar se este Tribunal Arbitral goza de competência para reconhecer esse direito à Requerente ou para condenar a AT nesse sentido. Para isso importa ter presente que (i) com o RJAT se pretendeu reforçar a tutela eficaz dos direitos e interesses legalmente protegidos dos sujeitos passivos (preâmbulo do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de Janeiro); (ii) o caráter imperativo das decisões arbitrais, que para a AT tem a extensão que constar dos exatos termos dessas mesmas decisões (artigo 24º-1 do RJAT); (iii) a obrigação de reconstituição pela AT está subordinada ao próprio âmbito da procedência do pedido, que pode ser total ou parcial (artigo 100º da LGT).

 

O primeiro elemento interpretativo citado impede que se conceba qualquer sistema que obstaculize ou dificulte que a decisão arbitral atinja o seu objetivo, que é a definição do direito no caso concreto. A tutela dos direitos dos sujeitos passivos não se basta com menos, i.e., da decisão devem resultar todas as consequências necessárias para que se obtenha a legalidade. Não se pode conceber que declarada a ilegalidade do ato tributário pelo tribunal arbitral, o sujeito passivo tenha ainda que recorrer a outra instância para ver declarado o seu direito à reconstituição da situação.

 

Por outro lado, o segundo elemento - a imperatividade das decisões arbitrais - leva a considerar que sendo as decisões arbitrais imperativas nos seus exatos termos (artigo 24º-1 do RJAT), isso significa que estas decisões devem conter todos os elementos necessários para que a AT possa, com toda a exatidão, repor a legalidade e para isso é indispensável que decisão contenha os precisos limites e termos em que julga.

 

O terceiro elemento – o âmbito da reconstituição - ilustra afinal esta necessidade de exatidão ou precisão da decisão. Ao afirmar que a obrigação de reconstituição pela AT está subordinada ao próprio âmbito da procedência, a lei (artigo 100º da LGT) cria um nexo de dependência entre a decisão anulatória e a obrigação de reconstituição. A reconstituição é feita na medida em que a pretensão seja julgada procedente. Não há reconstituição sem procedência e a medida da procedência define a medida da reconstituição. A necessidade desta precisão é claríssima nos casos de procedência parcial. Quando ocorra a procedência parcelar como deve comportar-se a AT? A resposta só pode ser uma – nos exatos termos e limites em que foi proferida a decisão, quer seja judicial ou arbitral.

 

Do exposto resulta que a decisão sobre a reconstituição deve ser tomada pelo tribunal arbitral quando lhe for pedida a apreciação da questão, nos termos da lei e que no caso da indemnização por garantia bancária indevida são os que constam do artigo 171º do CPPT, devendo interpretar-se a norma do seu número 2 no sentido de se considerar o pedido de pronúncia arbitral entre os meios de impugnação do ato previstos naquele comando.

 

Como nestes autos ficou assente que a Requerente suportou custos com a garantia bancária, prestada para caucionar dívida fiscal que afinal não existia, no montante de € 10.781,27, tem direito à reconstituição plena da situação que existiria se não tivessem sido feitas as liquidações, pelo que deve ser indemnizada dessa quantia.

 

VI. DECISÃO

 

Considerando os elementos de facto e de direito coligidos e expostos, o tribunal arbitral decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e em consequência:

a)      Declarar a ilegalidade das duas liquidações de IRS identificadas nos autos, anulando-as em consequência;

b)      Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento à Requerente do valor de € 10.781,27, a título de indemnização pelos custos suportados com a garantia bancária indevida.

 

Condena-se a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas, que se apuram em capítulo autónomo.

 

VII. VALOR DO PROCESSO

 

De harmonia com o disposto no artigo 306º- 2, do CPC, ex-vi artigo 29º-1-e) do RJAT e no artigo 97º-A, n.º 1-a) do CPPT ex-vi artigo 3º-2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 1.226.909,34 (467.879,44 + 748.248,63 + 10.781,27).

 

VIII. CUSTAS

 

As custas ficam a cargo da parte que a elas tiver dado causa, entendendo-se que lhes dá causa a parte vencida (artigo 527º-1 e 2 do CPC). Nestes autos e considerando a citada regra, a responsabilidade pelas custas é da AT, enquanto parte vencida.

 

Nos termos do artigo 22º-4 do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 16.830,00, que ficam a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

 

Lisboa, 30 de junho de 2016

 

Os árbitros,

 

 

 

(José Baeta de Queiroz, árbitro presidente)

 

 

 

(Alexandra Gonçalves Marques)

 

 

 

 

 

 

(Nuno Maldonado Sousa)

 

Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 



[1]                      Nesta peça são utilizados os seguintes acrónimos, siglas e abreviaturas, com o significado indicado:

                - AT: Autoridade Tributária e Aduaneira

                - CGAA: Cláusula geral anti abuso prevista no artigo 38º-2 da LGT

                - CIRS: Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares

                - CPC: Código de Processo Civil

                - CPPT: Código do Procedimento e do Processo Tributário

                - CRP: Constituição da República Portuguesa

                - DL: Decreto-Lei

                - IRS: Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares

                - LGT: Lei Geral Tributária

                - NIF: Número de identificação fiscal

                - R-AT: Resposta da AT

                - RI: Requerimento inicial da Requerente

                - RJAT: Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária instituído pelo DL n.º 10/2011 de 20 de janeiro

                - SGPS: Sociedade gestora de participações sociais.

[2]                      Gustavo Lopes Courinha – A cláusula geral anti-abuso no direito tributário: contributos para a sua compreensão. Coimbra: Almedina, 2009, pp. 167-168.

[3]                      Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa - Lei Geral Tributária: anotada e comentada. 4ª ed., Lisboa: Encontro de Escrita, 2012, pp. 309-310.

[4]                      Veja-se 36º do RI.

[5]                      Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 495/88 de 30 de dezembro que define o regime jurídico das sociedades gestoras de participações sociais.

[6]                      Ut. 7-12.

[7]                      Gustavo Lopes Courinha, op. cit., pp. 171-172.

[8]                      Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, op. cit., p. 311.

[9]                      Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, op. cit., pp. 308-309.

[10]                    Gustavo Lopes Courinha, op. cit., pp. 176-183.

[11]                    Jorge Lopes de Sousa - Código de Procedimento e de Processo Tributário:Anotado e comentado. Vol. I. 6ª ed., Lisboa: Áreas Editora, 2011, pp. 581.

[12]                    No sentido da omissão deste requisito na ordem jurídica portuguesa pode ver-se Gonçalo Avelãs Nunes – “A cláusula geral anti-abuso de direito em sede fiscal – artigo 38º, n.º 2 da Lei Geral Tributária – à luz dos princípios constitucionais do direito fiscal” in Fiscalidade, n.º 3, ISG, julho de 2000, pp. 56-58.

[13]                    Gustavo Lopes Courinha, op. cit., pp. 185-197, em especial p. 187 e p. 189.

[14]                    Gustavo Lopes Courinha op. cit., pp. 201-202.

[15]                    Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, op. cit., pp. 305-306.

[16]                    Celebra-se a compra e venda de imóvel (sujeita a IMT à taxa máxima de 6,5%) quando se pretende contratar doação (tributada em IS à taxa de 10% pela verba 1.2 da TGIS).

[17]                    Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, op. cit., pp. 302-304.

[18] Manuel a. Domingues de Andrade - Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis. 4ª ed., Coimbra: Arménio Amado Editor, 1963, pp. 26-27.