Decisão Arbitral
I. RELATÓRIO
1. Objeto do pedido
A…, …, SA, NIPC …, com sede na Quinta …, …, vem, ao abrigo das normas do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e do Código de Procedimento e de Processo Tributário, requerer a constituição de tribunal arbitral singular, com vista à obtenção de pronúncia no sentido da declaração de ilegalidade do ato de indeferimento do recurso hierárquico com o n.º …2014… e da liquidação adicional de IVA, no montante de € 9.977,51, referente ao período 2011/6T, com a consequente anulação e devolução do imposto pago acrescido dos respectivos juros indemnizatórios.
2. Constituição e funcionamento do tribunal arbitral
Face ao disposto no n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, o Exmo Sr. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitro singular o signatário, Joaquim Silvério Dias Mateus, que aceitou o encargo dentro do prazo legalmente previsto sem que qualquer das partes tivesse manifestado recusa pela sua designação.
O tribunal arbitral singular foi constituído em 02-02-16.
Por despacho arbitral de 2016.04.19 foi deliberado não proceder à convocatória da reunião prevista no n.º 1 do artigo 18.º do RJAT por não terem sido articuladas quaisquer matérias que a justificassem, notificando-se as partes para, querendo, apresentarem alegações, direito que não exerceram.
3. Fundamentação do pedido
A fundamentação do pedido apresentada pela requerente é, em resumo, a seguinte:
3.1. A liquidação adicional impugnada foi lançada com base numa acção de inspecção referente ao ano de 2011 cujo relatório considerou como facto tributário sujeito a IVA a cessão da posição contratual, em que a requerente foi cedente (1.º contraente) e B… (2.º contraente) foi cessionário, em dois contratos celebrados entre a dita requerente e o Banco …, tendo um por objeto o aluguer sem condutor do veículo automóvel matricula …-…-…, pelo valor de € 78.850,00, e o outro a promessa de compra e venda do mesmo veículo, pelo montante de € 13.141,57, acrescido de IVA à taxa em vigor.
3.2. Segundo o relatório de inspecção, citado pela p.i., pela cedência da posição contratual nos ditos contratos a cedente não recebeu qualquer contrapartida, ficando o cessionário responsável pelas quantias eventualmente vencidas e não liquidadas pela A… e as vincendas decorrentes do contrato de aluguer do veículo automóvel sem condutor a que a cessão se reporta, podendo no entanto vir a responder solidariamente com o 2.º contraente em caso de incumprimento de qualquer um dos contratos;
3.3. Assim, continua a requerente, a AT considerou que de acordo com o determinado na alínea c) do n.º 4 do artigo 16.º do CIVA o valor normal a considerar como valor tributável da operação não pode ser inferior ao valor das rendas vencidas e pagas pela A… (…), concluindo assim que o valor tributável a considerar pela cedência de posição contratual é de € 43.380.47, originando a liquidação do IVA referente ao 2.º trimestre de 2011 de € 9.977,51 (43.380,47 x 23%), a qual foi notificada à requerente em 23 de Dezembro de 2013;
3.4. A p.i. passa de seguida a dar conta que em discordância com a posição da AT apresentou reclamação graciosa, que foi indeferida, contra o que apresentou recurso hierárquico igualmente indeferido, passando depois a desenvolver o seu próprio entendimento sobre o enquadramento da situação tributária em causa dizendo, desde logo, que o preço estabelecido pela cessão da posição contratual foi de € 1 (um euro) conforme acordo estabelecido entre os dois contraentes;
3.5. A requerente passa depois a aludir às divergências que tem com a AT em relação à qualificação jurídica do contrato, uma vez que a AT considera que a cessão da posição contratual é uma “operação sujeita a IVA e dele não isenta, face ao conceito residual estabelecido no n.º 1 do artigo 4.º do CIVA (…) e que o valor tributável é apurado nos termos do estipulado na alínea c) do n.º 2 do artigo 16.º do CIVA, isto é, considerando o valor normal do serviço, conforme se encontra definido no n.º 4 do mesmo artigo”, discordando igualmente da quantia € 43.380,47 que a AT considerou como valor tributável já que foi livremente acordado entre as partes atribuir o valor de 1 euro como contrapartida da cessão;
3.6. A p.i. explicita as razões subjacentes à fixação do preço de 1 euro como contrapartida da cessão da posição contratual em causa.
Para este efeito a requerente anota que no contrato de aluguer foi acordado que o valor total das 48 rendas a pagar ascenderia a € 71.333,24 e que face ao contrato promessa de compra e venda a viatura seria vendida no final do contrato de aluguer por € 13.141,67, somando o custo total da viatura a quantia de € 84.474,91.
Assim, como a ora requerente tinha pago na data da cessão a quantia de € 43.380,47, o preço em dívida era de € 41.094,44, valor este que passou para encargo do cessionário;
3.7. Ora, continua a requerente, como na data da cessão da posição contratual uma avaliação independente considerou que a viatura em causa tinha o valor comercial de € 40.029,00, valor que era inferior ao valor da dívida, foi essa a razão pela qual foi fixado o dito preço de 1 euro;
3.8. Para sustentar a sua discordância com a AT, a requerente apela também ao princípio da liberdade contratual, largamente versado na doutrina que invoca, lembrando que é prática comercial na cessão de posição contratual nos contratos de leasing o cessionário assumir o pagamento do remanescente em dívida, pagando apenas um valor simbólico ao cedente;
No plano civilista, acrescenta a requerente, a cessão de posição contratual opera uma modificação subjectiva da relação, que permanece a mesma apenas com um novo titular, não havendo assim qualquer contrapartida já que o novo titular apenas assumiu pagar as prestações futuras;
3.9. Por outro lado, segundo a requerente, o contrato em causa não reveste a natureza de prestação de serviços, dado que não preenche o respectivo conceito, acrescendo que se se mantivesse a liquidação impugnada a AT iria cobrar o mesmo valor de IVA, ou seja, o que foi pago com as prestações vencidas acrescido do que agora se pretende cobrar com a liquidação impugnada, o que constitui uma duplicação de coleta e violação do artigo 205.º do CPPT;
3.10. A requerente acrescenta que mesmo que por mera hipótese se considerasse que o contrato em causa se pode qualificar com um contrato de prestação de serviços, face à doutrina da Autoridade Tributária e ao conceito de valor tributável previsto no n.º 1 do artigo 16.º do CIVA, teria de ser acolhido o preço de 1 euro fixado entre as partes como base de incidência do IVA, até pela razão da AT, à qual cabia o ónus da prova, não ter demonstrado que o preço acordado não foi o indicado, citando jurisprudência neste sentido;
3.11. A requerente rebate a seguir outro fundamento da AT relativo ao facto do preço de 1 euro ter sido acordado apenas entre ela própria e o adquirente, sem intervenção da instituição financeira, dizendo que nada na lei obriga a agir de forma diferente isto é a dar conhecimento ao cedido do preço do contrato de cessão, exigindo apenas, sem mais requisitos, que seja dado conhecimento da cessão ao cedido e que este dê o seu consentimento;
3.12. A requerente termina invocando mais uma vez a duplicação de coleta, a violação do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IVA e dos artigos 424.º e 405.º do Código Civil e consequentemente requerendo a anulação da liquidação adicional de IVA n.º …, a devolução do imposto indevidamente pago acrescido dos juros indemnizatórios que se mostrarem devidos.
4. Posição da Autoridade Requerida
4.1. A liquidação impugnada teve por base o relatório de inspecção tributária efectuada à empresa “A… – …, SA” (A), ora requerente;
4.2. O exame de inspecção incidiu, entre outros factos tributários, sobre um contrato de cessão de posição contratual celebrado entre a referida A e B…, que teve por objeto dois contratos anteriormente celebrados entre a mesma A e o Banco … , a saber, um contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor sob o número … para o veículo matrícula …-…-…, marca Audi, modelo … com o valor de € 78.850,00; e um contrato promessa de compra e venda de veículo automóvel n.º … em que o promitente vendedor Banco … ..., SA, se obriga a vender ao promitente comprador A e este a adquirir-lhe o veículo automóvel Audi … matricula …-…-…, pelo preço de € 13.141,57, acrescido de IVA à taxa que vigorar na data, e efectuar no termo do contrato de aluguer sem condutor, conforme cópias juntas ao processo administrativo;
4.3. O contrato de cedência não fixou qualquer contrapartida pela cedência da posição contratual, obrigando-se o cessionário B… a suportar as quantias “eventualmente vencidas e não liquidadas pela cedente A e as vincendas decorrentes do contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor a que a cessão se reporta”;
4.4. O relatório de inspecção considerou que a operação de cessão da posição contratual integra o conceito de prestação de serviços prevista no artigo 4.º do CIVA mesmo que seja efectuada a título gratuito com fins alheios à empresa;
4.5. Assim, estando em causa uma prestação de serviços e não tendo sido fixada contrapartida, o valor tributável deveria ser fixado em função do valor normal do serviço cuja definição legal é dada pelo n.º 4 do artigo 16.º do CIVA como “o preço, aumentado dos elementos referidos no n.º 5, na medida em que nele não estejam incluídos, que um adquirente ou destinatário, no estádio de comercialização em que é efectuada a operação e em condições normais de concorrência, teria de pagar a um fornecedor ou prestador independente, no tempo e lugar em que é efectuada a operação ou no tempo e lugar mais próximos, para obter o bem ou serviço similar”.
A norma descrita é complementada com a invocação da alínea c) do n.º 4 do mesmo artigo 16.º que determina que “na falta de serviço similar, o valor normal não pode ser inferior ao custo suportado pelo sujeito passivo na execução da prestação de serviços” em causa;
4.6. Assim, continua o relatório de inspecção, “como o custo suportado pela A… até à data da cedência da sua posição contratual consiste no montante das rendas vencidas e pagas até à referida data, sendo que foi esse mesmo valor suportado que permitiu efectuar a prestação de serviços (cedência da posição contratual) nas condições em que a mesma foi efectuada (…), o valor normal a considerar como valor tributável da operação não pode ser inferior ao valor das rendas vencidas e pagas pela A… à data da celebração do contrato de cedência da posição contratual”;
4.7. Para efeito de determinar o valor tributável o relatório de inspecção, baseando-se na informação recolhida, apresenta de seguida os pagamentos feitos pela cedente A até à data de 17/07/2011 e que foram os seguintes:
Entrada inicial: € 17.500,00;
29 prestações mensais de € 892,43 no montante de € 25.880,47;
4.8. Concluindo o relatório de inspecção que “o valor integral suportado pela A no âmbito do contrato de locação financeira alvo de cedência de posição contratual foi de € 43.380,47 (17.500,00 + 25.880,47)”, sendo este o valor considerado como valor tributável para efeitos da liquidação adicional impugnada no montante de € 9.977,51 (43.380,47 x 23%);
4.9. No âmbito da audição prévia a ora requerente discordou do valor considerado para base tributável do IVA e juntou ao processo de inspecção um acordo, datado de 20 de Junho de 2011, onde foi convencionado que o preço de cedência da posição contratual foi de € 1,00 (um euro).
O serviço de inspecção não aceitou o referido preço como valor tributável invocando que tal acordo não estava arquivado na contabilidade, que nunca foi mencionado pela empresa nos diversos contactos havidos e que, além disso, se houvesse um valor para a cedência da posição contratual esse valor deveria ter sido mencionado no respectivo contrato, o que não aconteceu;
4.10. A requerente deduziu entretanto reclamação graciosa que foi indeferida e recurso hierárquico que teve o mesmo destino;
4.11. Por sua vez, já no âmbito dos presentes autos, a resposta da Autoridade Requerida acolhe o enquadramento do relatório de inspecção que serviu de base à liquidação impugnada e suporta as decisões de indeferimento da reclamação e do recurso hierárquico.
Em resumo alega-se na dita Resposta que o negócio da cedência de crédito operou apenas uma modificação subjectiva da relação contratual inicial, que permanece a mesma, só que com um novo titular e, continuando a reafirmar esta ideia, acrescenta que o efeito normal da cessão resumiu-se apenas à transmissão da posição do cedente para o cessionário, que, assim, passou a encabeçar os direitos e os deveres inerentes à relação contratual.
Porém, continua a alegar-se, uma vez que a cessão de posição contratual num contrato de locação financeira é uma prestação de serviços sujeita a IVA, o valor tributável desta prestação deve ser determinado em conformidade com o n.º 1 do artigo 16.º do CIVA que estabelece que esse valor é o valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro.
Mas logo de seguida a douta resposta acrescenta que o valor tributável aplicável no caso em apreço será determinado de acordo com o estipulado na alínea c) do n.º 2 do artigo 16.º do Código do IVA, isto é, considerando o valor normal do serviço, conforme se encontra definido no n.º 4 do mesmo artigo, homologando assim o entendimento dos serviços de inspecção e de anteriores informações dos Serviços do IVA segundo os quais, neste tipo de operações, o valor tributável deve ser determinado “de acordo com a alínea c) do n.º 2 do artigo 16.º do CIVA, em função do valor normal do serviço definido no n.º 4 do mesmo artigo”, ou seja, o montante integral suportado pela ora requerente no âmbito do contrato de locação financeira alvo da cedência de posição contratual dado que, conclui-se, face à alínea c) do n.º 4 do artigo 16.º da CIVA, o valor tributável não pode ser inferior ao valor já suportado pelo cessionário até à data da cedência de posição contratual.
A resposta termina defendendo que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente com as demais consequências legais.
5. Saneamento
O tribunal arbitral é materialmente competente e foi regularmente constituído, as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e foram legalmente representadas.
Uma vez que o processo não enferma de nulidades e não foram levantadas quaisquer questões que obstem à apreciação do mérito da causa, considera-se que estão reunidas as condições para ser proferida a decisão arbitral.
II. DECISÃO
II.A. Da matéria de facto
II.A.1 Apresentação dos factos relevantes para a decisão arbitral
a) A liquidação impugnada teve por base uma ação de inspeção tributária geral externa efetuada à empresa “A – …, SA” (A), com início em 23.09.2013 e termo em 08-11-2013, abrangendo o ano de 2011;
b) O facto tributário residiu num contrato de cessão de posição contratual, datado de 17 de Junho de 2011, celebrado entre a A …, SA, como cedente, B…, como cessionário, e Banco … ..., SA, a autorizar a cedência;
c) O contrato de cessão teve por objeto os dois contratos a seguir identificados celebrados entre as mesmas A e Banco … ..., SA., com cópias juntas ao processo administrativo:
Um contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor, com início em 2009.01.02 e termo em 2013.01.01, identificado sob o número …, tendo por objeto o veículo matrícula …-…-…, marca Audi, modelo …, com o valor de € 78.850,00;
Um contrato promessa de compra e venda, datado de 2009-01-02, tendo por objeto o mesmo veículo automóvel, em que o promitente vendedor Banco … ..., SA, se obriga a vender ao promitente comprador A e este a adquirir-lhe o veículo automóvel Audi … matricula …-…-…, pelo preço de € 13.141,57, acrescido de IVA à taxa que vigorar na data, e a efetuar no termo do contrato de aluguer sem condutor;
d) A contrapartida declarada pela ora requerente pela referida cessão consta de um acordo, datado de 20 de Junho de 2011, onde foi convencionado que o preço de cedência da posição contratual foi de € 1,00 (um euro), igualmente junto aos autos;
e) Foi consignado no contrato que o cessionário se obrigou a suportar as quantias eventualmente vencidas e não liquidadas pela cedente A, bem como as prestações vincendas decorrentes do contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor a que a cessão se reporta;
f) Foi junta à p.i. um documento dando conta de uma “Avaliação” efetuada em 17.06.2011 por “D… (Portuguesa) Lda”, Rua … …, … Lisboa, a uma viatura marca AUDI, Modelo … (…), versão …, cilindrada …, com data da 1.ª matrícula no mês 12.2008, com 115.000 Km efectivos, indicando o preço de catálogo de € 75.743,00, indicando a cotação segundo a D… de € 42.850 e o preço de venda de € 40.029,00.
Esta avaliação foi apresentada nos artigos 41.º e seguintes da p.i. como sendo a justificação para que a contrapartida pela cedência da posição contratual fosse fixada em 1 euro dado que o valor da avaliação foi inferior ao montante em dívida para acabar de pagar o veículo que era de € 41.094,44.
Anota-se, porém, que o documento da avaliação, fazendo referência a uma viatura com as características da viatura que foi objeto do contrato de cedência acima identificado, não indica a matrícula da viatura avaliada;
g) Nada consta nos autos que dê informação sobre se o cessionário, na sequência do contrato a que se vinculou, pagou alguma prestação já vencida e que não tivesse sido paga pela cedente;
h) Por seu lado, para efeito de determinar o valor tributável, o relatório de inspeção, baseando-se na informação recolhida na ação de inspeção, apresenta de seguida os pagamentos feitos pela cedente A até à data de 17/07/2011 e que foram os seguintes (valores sem IVA):
Entrada inicial: € 17.500,00;
29 prestações mensais de € 892,43 no montante de € 25.880,47;
Assim, o valor integral suportado pela A no âmbito do contrato de locação financeira alvo de cedência de posição contratual foi de € 43.380,47 (17.500,00 + 25.880,47).
Por sua vez, as 18 prestações vincendas, assumidas pelo cessionário, importavam na quantia de € 16.063,74 (18 x 892,43);
Como o cessionário assumiu pagar o valor residual final de € 17.341,67, constata-se que o seu compromisso contratual, até adquirir a propriedade da viatura, ascendeu a € 33.405,41 (16.063,74 + 17.341,67), a que acresce IVA à taxa em vigor;
i) O valor tributável considerado pela AT como contrapartida da prestação de serviços da cedência da posição contratual foi de € 43.380,47 que, como acima indicado, equivaleu à parte do preço que a cedente tinha pago (com exclusão do IVA) até à data da cedência da sua posição contratual nos referidos contratos;
j) Ao valor tributável indicado foi aplicada a taxa de 23% gerando assim a liquidação adicional impugnada de € 9.977,51, notificada à ora requerente em 23 de Dezembro de 2013 e paga em 27.12.2013.
II. A.2. Factos dados como provados e não provados
Não há, com relevo para a decisão e à luz das várias perspetivas de análise das questões de direito, quaisquer outros factos provados e/ou não provados.
A convicção do Tribunal ao fixar o quadro factual descrito fundou-se nos elementos documentais integrados nos autos pelo requerente e pela requerida.
Não obstante, tem-se presente que o tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos relevantes para a decisão e de discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
II.B. DO DIREITO
Está em causa determinar qual a natureza jurídico fiscal, em sede de IVA, do contrato de cedência de posição contratual num contrato que tinha por objeto o aluguer sem condutor de uma viatura automóvel e num outro contrato que tinha por objeto a promessa de compra e venda dessa mesma viatura no final do contrato de aluguer e, por outro lado, determinar qual o valor tributável que deve ser fixado à referida cedência.
Segundo a requerente não só não se verificam os pressupostos para considerar a cessão contratual em causa como uma prestação de serviços como, mesmo que se aceitasse tal qualificação, o valor tributável deveria ser 1 euro, e não o valor que serviu de base à liquidação impugnada, dado que foi esse o preço que as partes fixaram como contrapartida dessa cessão.
Por seu lado, a requerida considera que a cessão da posição contratual, mesmo sem contrapartida, integra o conceito de prestação de serviços e o valor tributável desta prestação deve ser fixado nos termos conjugados das alíneas a) e c) do n.º 4 do artigo 16.º do CIVA, ou seja, não pode ser inferior ao custo suportado pelo sujeito passivo.
Vejamos,
O conceito de prestação de serviços para efeitos de IVA está enunciado no artigo 4.º do Código sendo consideradas como tal as operações efetuadas a título oneroso que não constituam transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens.
Trata-se de um conceito indeterminado e de natureza residual que abrange todas as operações onerosas que preencham os requisitos da incidência do IVA que não sejam qualificadas como transmissões, como aquisições intracomunitárias ou como importações de bens.
E, para além das prestações típicas com natureza onerosa, no sentido em que envolvem um serviço e a correspondente contrapartida, o conceito em análise alarga-se de modo a abranger o denominado autoconsumo externo quando os bens da empresa são utilizados pelo seu titular ou pelos seus funcionários sem a devida contrapartida ou quando são prestados serviços gratuitos aos mesmos interessados ou para fins alheios à própria empresa (cfr. artigo 4.º, n.º 2, alíneas a) e b) do CIVA).
No caso sub judice não pondo em causa a validade do acordo entre a cedente e o cessionário seu administrador que fixou o preço da cessão em 1 euro, a verdade é que se trata de um preço meramente simbólico que não altera a qualificação da cedência como um ato de autoconsumo externo que se enquadra nas citadas disposições legais.
Não oferecerá, pois, qualquer dúvida sustentada que a cedência por 1 euro da posição contratual que uma empresa detinha num contrato que tinha por objeto o aluguer sem condutor de uma viatura automóvel e num outro contrato que tinha por objeto a promessa de compra e venda dessa mesma viatura no final do contrato de aluguer, em que já estava pago mais de 55% do preço de compra dessa viatura, figurando como cessionário um administrador da cedente, se deve qualificar como prestação de serviços enquadrável no artigo 4.º, n.º 2, alíneas a) e b) do CIVA.
Quanto ao valor tributável haverá que atentar que não está em causa a transmissão da viatura, já que a sua propriedade continua a ser da entidade locadora, verificando-se antes a transferência do direito de adquirir essa mesma viatura uma vez pago o resto do preço acordado.
Esta prestação, face à amplitude do conceito já apontado, só pode ser qualificada como uma prestação de serviços. Porém, o seu valor, o valor dessa prestação de serviços não pode deixar de estar associado ao próprio valor da viatura reportado ao momento em que o direito à sua aquisição mudou de titular, já que o conteúdo económico desse direito se traduzirá na aquisição da viatura em causa.
O n.º 1 do artigo 16.º do CIVA define o conceito geral de valor tributável como sendo o valor da contrapartida obtida a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro, especificando de seguida o seu n.º 2 algumas operações como sejam, no que interessa ao caso sub judice, as mencionadas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 4.º do CIVA que, como já referido, são igualmente consideradas prestações de serviço sujeitas a IVA cujo valor tributável é o valor normal do serviço tal como definido no seu n.º 4.
Ora, a alínea a) do n.º 4 define que deve considerar-se como valor normal de um bem ou serviço “o preço, aumentado dos elementos referidos no n.º 5, na medida em que nele não estejam incluídos, que um adquirente ou destinatário, no estádio de comercialização em que é efetuada a operação e em condições normais de concorrência, teria de pagar a um fornecedor ou prestador independente, no tempo e lugar em que é efetuada a operação ou no tempo e lugar mais próximos, para obter o bem ou o serviço ou um bem ou serviço similar”.
Por sua vez, a alínea c) deste mesmo n.º 4 prevê que “na falta de serviço similar, o valor normal não pode ser inferior ao custo suportado pelo sujeito passivo na execução da prestação de serviços”.
Qualifique-se a cedência de posição contratual como transmissão do bem, que não é, ou como prestação de serviços que também não é mas que se enquadra na figura residual do artigo 4.º do CIVA de considerar como tal o que não for transmissão, a verdade é que, em termos económicos, está sempre em causa a transmissão/aquisição do direito de continuar a utilizar o veículo automóvel como se fosse o seu proprietário, pagando as prestações vincendas, incluindo na cedência o direito à compra, no final do contrato, desde que cumprido o pagamento do que ficou contratualmente clausulado.
O valor normal, que poderemos também designar por valor de mercado, de uma prestação de serviços que se traduz na transferência do referido direito de adquirir uma viatura automóvel, com determinadas caraterísticas e condições, ou seja, a marca, a cilindrada, em que uma parte do preço já foi paga e outra se encontra por pagar, com um determinado número de quilómetros percorridos, com uma determinada idade, acaba por se reconduzir ao valor normal ou valor de mercado dos veículos automóveis com as mesmas caraterísticas e nas mesmas condições.
A requerente, por seu lado, faz uma interpretação diferente e contrapõe que as referidas alíneas não lhe são aplicáveis já que entre as partes foi fixada a contrapartida de 1 euro que, essa sim, deve ser a base tributável sobre a qual deve incidir a taxa de 23%.
E a requerente apresenta mesmo a sua justificação para a fixação do preço de 1 euro acordado, dizendo que a mesma passou por uma avaliação independente que fixou o valor do veículo num valor inferior ao que ainda faltava pagar nas prestações vincendas e no preço residual do contrato.
Não se adere à posição da requerente.
Desde logo porque, como supra se desenvolve na matéria de facto, a dita avaliação informa que avaliou um veículo com as caraterísticas daquele que foi objeto do contrato de cedência, mas nem sequer indica a matrícula do veículo que foi avaliado.
Por outro lado, a dita avaliação nem sequer invoca que está a apresentar o valor normal ou de mercado de uma viatura que, apesar de possuir as características da que foi objeto do contrato de cedência, não informa se a viatura avaliada está nas mesmas condições daquela.
Ao contrário, se a requerente tivesse contraposto, ao valor tributável fixado pela requerida, um valor normal de mercado de uma viatura com aquelas caraterísticas e nas mesmas condições, sem ser o que foi fixado para efeitos de estabelecer o preço acordado entre cedente e cessionário, a própria alínea c) do n.º 4 do artigo 16.º determina que esse valor deveria prevalecer sobre o montante equivalente à parte do preço já pago pela cedente.
Na falta de apresentação do valor de um serviço similar, que mais não é do que o valor de mercado de uma viatura com aquelas caraterísticas e naquelas condições, haverá que aceitar que o valor tributável seja fixado nos termos das duas alíneas transcritas do n.º 4 do artigo 16.º do CIVA, ou seja, o equivalente ao custo suportado pela cedente, integrando o sinal e as 29 prestações pagas até à data da cedência, isto é, o valor de € 43.380,47.
Não pode deixar de se ter em conta que a própria alínea c) acima transcrita determina imperativamente, não estando na disponibilidade do intérprete aplicá-la em termos diferentes, que na falta de serviço similar o valor normal não pode ser inferior ao custo suportado pelo prestador do serviço.
O que significa que, independentemente do valor e das condições que as partes possam atribuir à transacção de uma viatura ou, no caso sub judice, à prestação de serviços conexa com a cedência do direito à sua aquisição, prevalece o critério legal e não a autonomia da vontade das partes.
Daí que não haja fundamento para censurar a atuação da AT nem a liquidação adicional de IVA que foi impugnada.
É certo que as regras do CIVA podem conduzir a um resultado paradoxal de quanto mais tempo o veículo tiver e mais próximo estiver do pagamento integral do seu preço, maior poder ser o valor tributável para efeitos de IVA. Pense-se, por exemplo, no caso do contrato de cedência ter sido celebrado faltando apenas pagar a ultima prestação.
Nesse caso estaríamos perante um veículo automóvel já com quatro anos, com a desvalorização inerente a tal período temporal sendo que, para efeitos de IVA, com aplicação da regra da alínea c) do n.º 4 do artigo 16.º do CIVA, o seu valor tributável aproximar-se-á do valor de aquisição do veículo no estado de novo.
Ora, é do senso comum que a generalidade dos bens se desvaloriza com o uso e com o decurso do tempo, facto que, aliás, é refletido em diversos preceitos do sistema fiscal que têm em vista quantificar o valor tributável desse tipo de bens, remetendo frequentemente para o seu valor normal ou de mercado.
É o caso, por exemplo, do imposto de selo sobre as transmissões gratuitas cujo Código, no seu artigo 14.º, n.º 2, determina que o valor tributável dos veículos automóveis – e de outros meios de transporte – “é o valor de mercado ou o determinado nos termos do n.º 7 do artigo 24.º do CIRS, consoante o que for maior”.
Por sua vez, o n.º 6 do artigo 24.º do CIRS tem por objeto a quantificação do rendimento em espécie que deve ser considerado nos casos em que haja a aquisição à entidade patronal de viaturas por parte dos trabalhadores ou membros dos órgãos sociais, prevendo-se no n.º 7 do referido artigo 24.º em conjugação com a portaria 383/2003, de 14.5, como se deve determinar o valor de mercado desses bens que, muito simplesmente, entra em conta com o preço de aquisição a que é abatida uma percentagem anual de desvalorização, a qual varia em função do número de anos do veículo.
Porém, esta não é a solução actualmente consagrada no CIVA e só de lege ferenda e com as necessárias adaptações será possível aplicar igual critério para efeitos do valor tributável em sede de IVA.
Até que a lei seja modificada restará aos interessados lançar mãos dos meios processuais adequados a aferir da sua compatibilidade com o direito constitucional ou até com o direito comunitário.
C. DECISÃO
Nestes termos, julga-se totalmente improcedente o pedido arbitral, quer quanto ao pedido de anulação da liquidação adicional de IVA, no montante de € 9.977,51, quer quanto à liquidação de juros indemnizatórios.
D. Valor do processo
Fixa-se ao processo o valor de € 9.977,51, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a suportar totalmente pela Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Lisboa, 31 de Maio de 2016
Notifique-se.
O árbitro,
Joaquim Silvério Mateus