Decisão Arbitral
Requerente: A..., S.A.
Requerida: AT - Autoridade Tributária e Aduaneira
I – RELATÓRIO
1. Pedido
A..., S.A. (anteriormente designada por B..., S.A.) sociedade com sede na Rua..., n.º..., ...- ...Lisboa, com o número único de matrícula e pessoa coletiva..., doravante designada por Requerente, apresentou, em 2015-09-21, ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 1 do art.º 2º e no art.º 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), um pedido de pronúncia arbitral, em que é Requerida a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista a:
- Anulação de acto de indeferimento de reclamação graciosa sobre os actos de liquidação de Imposto Único de Circulação:
- 2010 ...
- 2009 ...
- 2009 ...
- 2011 ...
- 2010 ...
- 2010 ...
- 2010 ...
- 2010 ...
- 2011 ...
- 2009 ...
- 2012 ...
- 2010 ...
- Anulação dos mesmos actos de liquidação de Imposto Único de Circulação;
- Reembolso dos montantes indevidamente pagos relativos às liquidações impugnadas, acrescidos de juros indemnizatórios.
Para sustentar o seu pedido, a Requerente alega, em síntese:
- A Requerente foi notificada das liquidações de Imposto Único de Circulação indicadas, tendo procedido ao seu pagamento.
- Considera, porém, que as liquidações são ilegais, pois não era ela, Requerente, a proprietária dos veículos à data da verificação do facto tributário.
- Das liquidações impugnadas, quatro (números 2011..., 2009..., 2012... e 2010...) foram alienadas e registadas em nome dos adquirentes até ao termos do prazo de 60 dias após a data da atribuição da matrícula;
- As restantes liquidações impugnadas dizem respeito a viaturas alienadas no prazo de 60 dias após a data da atribuição da matrícula mas registadas em nome do adquirente após esse prazo ou não registadas em nome do adquirente;
- Que a Requerente já não era proprietária destes veículos na data dos factos tributários prova-se pelas facturas de venda e pelos extractos contabilísticos da conta “clientes” da contabilidade da Requerente;
- Os artigos 2º, 3º, 4º e 6º do Código do Imposto Único de Circulação (doravante CIUC), impõem a conclusão de que o sujeito passivo do imposto é o proprietário do veículo no termos do prazo de 60 dias após a data da atribuição da matrícula;
- De acordo com o n.º 1 do artigo 17.º do Código do IUC que “No ano da matrícula ou registo do veículo em território nacional, o imposto é liquidado pelo sujeito passivo do imposto nos 30 dias posteriores ao termo do prazo legalmente exigido para o respetivo registo;”
- De acordo com o disposto nos n.os1 e 2 do artigo 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 55/75, de 12 de fevereiro, o registo deve ser requerido no prazo de 60 dias contados da data da atribuição da matrícula;
- Por fim, estipula o n.º 1 do artigo 18.º do Código do IUC que “Na ausência de registo de propriedade do veículo efetuado dentro do prazo legal, o imposto devido no ano da matrícula é liquidado e exigido: a) Ao sujeito passivo do imposto sobre veículos com base na declaração aduaneira do veículo, ou com base na declaração complementar de veículos em que assenta a liquidação desse imposto, ainda que não seja devido; b) Ao declarante da declaração aduaneira de veículo quando se trate de veículos pesados”.
- Das disposições citadas resulta que o legislador pretendeu vincular a sujeição a imposto à propriedade e não à matrícula ou registo pelo que estes não são factos tributários;
- Sendo o sujeito passivo o proprietário do veículo, nos termos do artigo3º do CIUC, este preceito estabelece uma presunção de que proprietário é o sujeito que como tal figura no registo automóvel;
- No ano da matrícula, o sujeito passivo do imposto é determinado no 61.º dia seguinte ao da atribuição da matrícula, e não no 1.º dia correspondente à sua atribuição;
- Assim, e demonstrado que no caso em apreço as viaturas supra identificadas foram alienadas aos clientes da Requerente até ao termo daquele prazo de 60 dias, conclui-se que esta não é o sujeito passivo do IUC devido no ano da matrícula e, como tal, padece de erro a decisão que recaiu sobre a reclamação graciosa, e bem assim as autoliquidações relativas aos veículos em crise, as quais devem ser anuladas porque ilegais;
- Estabelecendo o artigo 3º do CIUC uma presunção de que é proprietário o sujeito que como tal figura no registo automóvel, tal presunção é necessariamente ilidível por força do artigo 73º da Lei Geral Tributária (doravante LGT);
- Caso se entendesse que o artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC consagra uma presunção inilidível, devendo em qualquer caso ser considerados proprietários dos veículos e, por conseguinte, sujeitos passivos do IUC aqueles em nome de quem os veículos se encontram registados, independentemente de qualquer prova em sentido contrário, esta norma padeceria de inconstitucionalidade material por violação do princípio da igualdade e da capacidade contributiva, decorrentes do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP);
2. Resposta
Na sua Resposta, a Requerida AT – Autoridade Tributária e Aduaneira, alega, em síntese:
- Da conjugação do artigo 6º com o artigo 17º do CIUC decorre que as situações jurídicas que geram o nascimento da obrigação de imposto são a matrícula ou o registo em território nacional;
- A tese da Requerente de que, ao terem as vendas das viaturas sido efectuadas antes do termo do prazo legal de 60 dias após a data da atribuição da matrícula, faz com que ela, Requerente, não seja sujeito passivo no ano da matrícula, não cabe na letra da lei;
- O artigo 3º estabelece inequivocamente que a propriedade determina a sujeição a imposto;
- O art.º 3.º, n.º 1 do CIUC não contém uma presunção. O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoa s aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registado;
- Por outro lado, do registo automóvel decorre uma presunção de propriedade, pelo que a ilisão da presunção de propriedade terá que ser dirigida ao próprio registo automóvel;
- A consideração do elemento sistemático da interpretação, no caso do IUC a sua articulação com o registo automóvel – que se vê em particular no art.º 6.º do CIUC: “o facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional” - impõe também que se considere que a incidência subjectiva do imposto não possa ser determinada sem ligação com o registo automóvel;
- A configuração do IUC revela que o legislador pretendeu criar um imposto assente na tributação do proprietário do veículo tal como consta do registo automóvel;
- A interpretação que a Requerente faz do art.º 3º, no sentido de que este contém uma presunção ilidível, é violadora do princípio da confiança e da segurança jurídicas, do princípio da eficiência do sistema tributário e do princípio da proporcionalidade;
- O entendimento propugnado pela Requerente com vista a afastar a incidência subjetiva e tributação do IUC não tem acolhimento legal e viola os princípios constitucionais da legalidade e justiça tributária, da capacidade contributiva, da igualdade, da certeza e da segurança jurídicas.
Quanto a matéria de facto, a Requerida alega:
- As datas que a Requerente indica como sendo as datas de registo em nome dos adquirentes não coincidem com as datas comunicadas à Requerida entidade competente em matéria de registo automóvel;
- De acordo com os dados da Requerida, entre a data da matrícula e os registos decorreram os seguintes lapsos de tempo:
Veículo
|
Lapso de tempo em dias
|
...-...-...
|
188
|
...-...-...
|
197
|
...-...-...
|
260
|
...-...-...
|
301
|
...-...-...
|
168
|
...-...-...
|
168
|
...-...-...
|
238
|
...-...-...
|
415
|
...-...-...
|
51
|
...-...-...
|
49
|
...-...-...
|
52
|
...-...-...
|
38
|
- As facturas que a Requerente junta como meio de prova do contrato de compra e venda não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois tais documentos não revelam por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte dos pretensos adquirentes;
- A Requerente não juntou prova documental do recebimento do preço quando podia e devia tê-lo feito, ou seja, no requerimento do pedido de pronúncia arbitral, encontrando-se agora precludida a possibilidade de o fazerem em momento ulterior;
- E assim sendo, a Requerente não logrou provar a pretensa transmissão dos veículos em causa.
3. Reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações
Com a concordância das partes, o Tribunal determinou a dispensa da realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.
Em alegações escritas, as Partes reafirmaram as suas posições sem nada acrescentar quer em termos de argumentação jurídica quer em termos de argumentação de facto.
II. Saneamento
O Tribunal Arbitral singular foi regularmente constituído em 30-11-2015, tendo sido o Árbitro designado pelo Conselho Deontológico do CAAD, cumpridas as respectivas formalidades legais e regulamentares (artigos 11º, n-º 1, als. a) e b) do RJAT e 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD), e é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.º do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias e encontram-se regularmente representadas.
Não foram identificadas nulidades no processo.
III. Questões a decidir
São as seguintes as questões a decidir no presente processo arbitral:
1. Quem é sujeito passivo do imposto único de circulação no ano da matrícula quando o veículo é registado no prazo de 60 dias após a matrícula;
2. A consagração, no artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, de uma presunção e a sua ilidibilidade;
3. A ilisão, no caso concreto, por parte da Requerente, da presunção de propriedade dos veículos objecto de imposto.
IV – Factos provados
São os seguintes os factos provados considerados relevantes para a decisão:
1º: A Requerente foi notificada das liquidações de IUC:
- 2010..., referente ao veículo com a matrícula ...-...-..., ano de 2010;
- 2009..., referente ao veículo com a matrícula ...-...-..., ano de 2009;
- 2009..., referente ao veículo com a matrícula, ...-...-... ano de 2009;
- 2011..., referente ao veículo com a matrícula ...-...-..., ano de 2011;
- 2010..., referente ao veículo com a matrícula, ...-...-... ano de 2010;
- 2010..., referente ao veículo com a matrícula ...-...-..., ano de 2010;
- 2010..., referente ao veículo com a matrícula, ...-...-...ano de 2010;
- 2010..., referente ao veículo com a matrícula ...-...-..., ano de 2010;
- 2011..., referente ao veículo com a matrícula, ...-...-...ano de 2011;
- 2009..., referente ao veículo com a matrícula, ...-...-... ano de 2009;
- 2012..., referente ao veículo com a matrícula, ...-...-...ano de 2012;
- 2010..., referente ao veículo com a matrícula, ...-...-...ano de 2010;
2º: O veículo com a matrícula ...-...-... foi matriculado em 30-8-2011 e registado em nome de C...– … SA em 19.10.2011;
3º O veículo com a matrícula ...-...-... foi matriculado em 4-8-2009 e registado em nome de D... em 21.09.2009;
4º O veículo com a matrícula ...-...-... foi matriculado em 18-04-2012 e registado em nome de E... em 08.06.2012;
5º O veículo com a matrícula ...-...-... foi matriculado em 23-02-2010 e registado em nome de C...– … SA em 01.04.2010;
6º: A Requerente procedeu ao pagamento integral dos montantes constantes das liquidações impugnadas;
7º: A Requerente deduziu reclamação graciosa contra tais liquidações, tendo esta reclamação sido indeferida em 16 de Junho de 2015;
Não existem factos não provados com relevância para a decisão da causa.
Os factos considerados provados foram-no com base na prova documental junta pelas Partes ao processo.
V - FUNDAMENTAÇÃO
1. Quem é sujeito passivo do imposto único de circulação no ano da matrícula quando o veículo é registado no prazo de 60 dias após a matrícula
A qualidade de sujeito passivo de IUC é estabelecida no artigo 3º do respectivo código, que diz:
Artigo 3.º
Incidência subjectiva
1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.
3 - É ainda equiparada a sujeito passivo a herança indivisa, representada pelo cabeça de casal.
Para o que ao caso interessa, pode assentar-se desde já que, não ocorrendo as situações previstas nos números 2 e 3, o sujeito passivo do imposto é o proprietário do veículo sujeito.
No que diz respeito à incidência temporal, estatui o artigo 4º do CIUC:
Artigo 4.º
Incidência temporal
1 - O imposto único de circulação é de periodicidade anual, sendo devido por inteiro em cada ano a que respeita.
2 - O período de tributação corresponde ao ano que se inicia na data da matrícula ou em cada um dos seus aniversários, relativamente aos veículos das categorias A, B, C, D e E, e ao ano civil, relativamente aos veículos das categorias F e G.
(…)
No que diz respeito à liquidação do imposto no ano da matrícula do veículo, o artigo 17º dispõe:
Artigo 17.º
Prazo para liquidação e pagamento
1 - No ano da matrícula ou registo do veículo em território nacional, o imposto é liquidado pelo sujeito passivo do imposto nos 30 dias posteriores ao termo do prazo legalmente exigido para o respectivo registo.
2 - Nos anos subsequentes o imposto deve ser liquidado até ao termo do mês em que se torna exigível, nos termos do n.º 2 do artigo 4.º.
(…)
De acordo com o disposto nos números 1 e 2 do artigo 42º do Regulamento do Registo de Automóveis (D-L 55/75 de 12.2), o registo deve ser requerido no prazo de 60 dias contados da data da atribuição da matrícula.
A questão reside em saber, relativamente ao ano da matrícula do veículo, qual é o momento em que se considera verificado o facto tributário:
- Se o momento da matrícula, sendo apenas a obrigação de liquidação diferida para os 30 dias posteriores ao termo do prazo legalmente exigido para registo (tese defendida pela Requerida);
- Se no momento em que se cumpre o prazo de 30 dias posteriores ao termo do prazo legalmente exigido para registo.
A lei não é clara a este respeito, pois não diz, em nenhum local, qual é o momento em que se considera verificado o facto tributário. Diz apenas, no artigo 4º, que o período de tributação, anual, se inicia no momento da matrícula e qual o momento em nasce para o sujeito passivo a obrigação de liquidar, no artigo 17º.
Certo é que a dilação do prazo quer para efectuar o registo após a matrícula (números 1 e 2 do artigo 42º do Regulamento do Registo de Automóveis) quer para liquidar o imposto no ano da matrícula tem que ter uma razão (uma ratio legis).
E parece claro que essa razão está relacionada com o prazo considerado normal para a alienação do veículo por parte do revendedor. De onde se pode concluir que o legislador terá querido que seja o adquirente do veículo, quando o registo se efectue nos prazos referidos, a suportar, na qualidade de sujeito passivo, o imposto.
Acompanhamos, pois, neste ponto, a decisão no processo arbitral 43/2014-T, e concluímos que, em relação aos veículos com as matrícula:
- ...-...-..., matriculado em 30-8-2011 e registado em nome de C...– … SA em 19.10.2011;
- ...-...-..., matriculado em 4-8-2009 e registado em nome de D... em 21.09.2009;
- ...-...-..., matriculado em 18-04-2012 e registado em nome de E... em 08.06.2012; e
- ...-...-..., matriculado em 23-02-2010 e registado em nome de C...– … SA em 01.04.2010,
O momento da verificação do facto tributário é o termo do prazo para realização do registo, pelo que a Requerente não era sujeito passivo do imposto nos anos em que ocorreram esses registos, faltando assim um pressuposto da tributação.
2. Sobre a questão da consagração, no artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, de uma presunção e a sua ilidibilidade
Esta questão foi objecto já de inúmeras decisões arbitrais. No sentido de que o artigo 3.º, n.º 1 do CIUC consagra uma presunção, pronunciaram-se as decisões arbitrais proferidas nos processos n.º 230/2014- T, nº 414/2014-T, nº 350/2014-T, 336/2014-T, nº 333/2014-T, n.º 220/2014-T, n.º 150/2014-T e 63/2014-T, entre outros. No mesmo sentido se pronunciou o Tribunal Central Administrativo do Sul, em acórdão de 19-3-2015 (Processo n.º 08300/14).
Na última decisão arbitral citada, cuja fundamentação perfilhamos, diz-se a propósito desta questão:
“O art. 11º, n.º 2 da Lei Geral Tributária constitui o ponto de partida quanto a esta questão, dizendo que “sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei”.
Há pois que averiguar se resulta inequivocamente do disposto no art.º 3º do CIUC que o legislador pretendeu aí estabelecer um conceito de “proprietário de veículo” próprio do direito fiscal, que englobe pessoas que não sejam titulares de tal direito segundo as regras do direito civil.
Ora, será que a “liberdade de conformação legislativa” de que goza o legislador, que a Requerida refere no parágrafo 17º da sua Resposta, pode ir tão longe, ao ponto de determinar taxativamente quem é proprietário de um veículo, ainda que para efeitos meramente fiscais, dissociando radicalmente essa qualificação fiscal da qualificação do direito civil?
E, na sequência da questão anterior, outra pergunta se impõe: por que razão o legislador não teria então estipulado simplesmente - pois obteria exactamente o mesmo efeito útil mas eliminando toda e qualquer margem de insegurança ou incerteza jurídicas - que “são sujeitos passivos do imposto as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados, seja como proprietários, seja como locatários financeiros, como adquirentes com reserva de propriedade, ou como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”? Questão tanto mais pertinente, e hipótese tanto mais atractiva, quanto o legislador conhecia a experiência, negativa, e que volta repetir-se, do anterior Imposto de Circulação?
A resposta parece evidente: porque, nesta última hipótese, que o legislador não seguiu, a incidência subjectiva do imposto poderia ficar totalmente desligada de qualquer substância económica e ficaria dependente exclusivamente de uma aparência jurídica.
Ora, se o legislador tivesse, como pretende a Requerida, estabelecido na lei uma qualificação não presuntiva sobre quem é proprietário dos veículos (uma ficção legal), estaria com isso a estabelecer, através de uma diferente formulação, uma regra em tudo idêntica à regra hipotética referida. Estaria a fazer assentar a incidência subjectiva do imposto numa ficção legal, em total desconexão com uma qualquer substância económica como base da incidência subjectiva.
É certo que a eficiência da tributação determina a necessidade de o IUC assentar no registo automóvel e, por conseguinte, exige que a administração fiscal possa confiar no mesmo registo automóvel.
Mas o princípio da eficiência da tributação não pode sobrepor-se em absoluto ao princípio da capacidade contributiva, ao ponto de o eliminar como critério de incidência subjectiva. E também é certo que o legislador fiscal teria ao seu dispor outros meios de responsabilizar o vendedor do veículo, faltoso quanto ao seu dever de comunicar a venda do veículo, pelo pagamento do imposto, sem ser como contribuinte directo (configurando, v.g., um caso de responsabilidade tributária por dívida de terceiro).
E, se assim é, forçoso será também concluir que o artigo 3º, n.º 1 só pode estabelecer uma presunção de propriedade do veículo, mesmo com todas as consequências negativas que essa conclusão acarretará, decerto, em termos de eficiência da administração do imposto.”
Acompanha-se assim a decisão citada, concluindo no sentido de que o artigo 3.º, n.º 1 do CIUC contem uma presunção “juris tantum”, ilidível, nos termos do artigo 73º da LGT.
3. A ilisão, no caso concreto, por parte da Requerente, da presunção de propriedade dos veículos objecto de imposto
Sobre a questão da prova necessária à ilisão da presunção de propriedade, há que começar por trazer à equação a questão do valor da presunção resultante do registo automóvel.
A propriedade de veículos automóveis está sujeita a registo obrigatório. E de acordo com o artigo 7.º do Código do Registo Predial, aplicável ao Registo Automóvel por força do art.º 29º do Código do Registo Automóvel, o registo da propriedade de um veículo origina presunção de que o titular do direito de propriedade é a entidade a favor de quem o mesmo direito se encontra registado.
Se é certo que a presunção do art.º 3º, n.º 1 do CIUC é estabelecida tendo em vista os fins da tributação, já a presunção estabelecida pela lei registal tem em vista a segurança jurídica em geral, não existindo nenhum fundamento para julgar que essa presunção não se aplica no âmbito de relações jurídicas tributárias.
Como se afirma no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-3-2011 (processo n.º 195/09.8TBPTS.L1-2), “o registo predial prossegue, a um tempo, fins de natureza privada e fins de natureza caracteristicamente pública. Prossegue fins de natureza privada, dado que garante a segurança no domínio dos direitos privados, especificamente no plano dos direitos com eficácia real – segurança do comércio jurídico (…), globalmente considerado – facilita o tráfico e o intercâmbio de bens, e assegura o cumprimento da função social dos direitos reais; prossegue finalidades de interesse público, enquanto instrumento da certeza do direito, da tutela de terceiros e da segurança do comércio jurídico, e de garante da actualização do registo face ao facto publicitado”.
Portanto, existindo uma presunção registal de propriedade a favor da Requerente, esta, a fim de afastar a sua qualificação como proprietária, tem de afastar a presunção que resulta do registo automóvel.
No caso concreto, a fim de ilidir a presunção registal de que é sua a titularidade do direito de propriedade do veículo, a Requerente junta facturas relativas a vendas dos veículos sujeitos a imposto.
Quanto às facturas, questão idêntica a esta foi decida pelo Tribunal Central Administrativo no recente acórdão já citado. Diz-se aí:
“Nestes termos, refira-se que nos encontramos perante meros documentos particulares e unilaterais, cuja emissão não supõe a intervenção da contraparte no alegado acordo, assim tendo um reduzido valor para provar a existência de um contrato sinalagmático, como é a compra e venda”.
E mais adiante:
“E recorde-se que qualquer dos documentos contabilísticos em causa não prova, sequer, o pagamento do preço pelo comprador. Tanto a factura como a nota de débito constituem documentos contabilísticos elaborados no seio da empresa e que se destinam ao exterior. A factura deve visualizar-se como o documento contabilístico através do qual o vendedor envia ao comprador as condições gerais da transacção realizada. Por sua vez, a nota de débito consiste no documento em que o emitente comunica ao destinatário que este lhe deve determinado montante pecuniário. Ambos os documentos surgem na fase de liquidação da importância a pagar pelo comprador, assim não fazendo prova do pagamento do preço pelo mesmo comprador e, por consequência, prova de que se concluiu a compra e venda”.
Concluindo o Tribunal:
“Assim sendo, deve concluir-se que a sociedade recorrida nem sequer produziu prova relativa à alegada venda dos veículos, sendo que teria que provar que não era proprietária das viaturas à data a que dizem respeito as liquidações, o que implicaria, no caso concreto, provar quem era o actual proprietário.”
Sublinha-se da doutrina exposta o seguinte aspecto: o Tribunal considera, a fim de ilidir a presunção registal, que aquele que figura como proprietário no registo tem que provar quem é o actual proprietário.
Consideramos a posição do Tribunal justificada por a ilisão da presunção da verdade registral ser particularmente exigente.
Sobre o assunto, diz Mouteira Guerreiro (Mouteira Guerreiro, J. A., Noções de Direito Registral, 2ª ed. Coimbra, 1994, p. 70): “A protecção conferida pelo registo traduz-se no nosso sistema, numa presunção elidível. Mas, não o podemos esquecer, trata-se de uma presunção legal. (…) O que o registo revela não pode ser impugnado, mesmo em juízo, sem que simultaneamente se peça o cancelamento”.
O mesmo autor (Ibidem, p. 71) acrescenta: “Decorre do princípio da presunção de verdade ou da exactidão a regra prevista no art.º 8º do CRP. Se o registo definitivo faz presumir que o direito existe e pertence ao titular inscrito “nos precisos termos em que o registo o define”, não faria sentido atacar judicialmente essa verdade publicitada, sem simultaneamente atacar o próprio registo. Por isso, quem pretender contestar a veracidade dos factos tabularmente consignados terá igualmente de pedir o cancelamento do registo. Se o não fizer, a acção não prosseguirá após os articulados, porque haveria o risco de chegar a uma efectiva contradição: por um lado, ter uma sentença declarando juridicamente irrelevantes ou inverídicos certos factos e, pelo outro, existir um registo a fazer presumir erga omnes a veracidade e validade desses mesmos factos”.
O entendimento exposto encontra-se sancionado pela jurisprudência dos tribunais superiores. Vejam-se os acórdãos anteriormente citados, nos quais se afirma que, para afastar a presunção de propriedade que decorre do Registo Automóvel, é necessário provar que a titularidade do direito inscrito pertence a outrem, mas tal não bastando, sendo ainda necessário pedir-se, simultaneamente o respectivo cancelamento (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-01-2013, proc. n.º 3654/03.2TBLRA.C1; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3-06-2008, proc. n.º 245-B/2002.C1).
Ora, a argumentação exposta aplica-se a toda a prova oferecida pela Requerente.
Tudo o que foi dito para a factura vale os extractos contabilísticos. Um extracto contabilístico é, também ele, um documento particular (não autêntico) e unilateral, cuja emissão não supõe a intervenção da contraparte no alegado contrato.
Com a prova apresentada, a Requerente limita-se a mostrar como prováveis factos que, a terem-se verificado, tornariam por sua vez provável que a propriedade não pertencesse à Requerente. No entanto, a ilisão de uma presunção legal não se basta com elementos que lancem dúvida, que mostrem probabilidade de factos contrários. A ilisão de uma presunção legal só pode fazer-se com prova cabal, e esta teria que incidir sobre a situação jurídica do veículo no momento do facto tributário.
Considera este tribunal que essa prova não foi feita.
Com efeito, a presunção do registo visa, como já foi referido, dar segurança às relações jurídicas, tanto de direito privado como de direito público. A ilisão dessa presunção só deve considerar-se efectuada quando a prova que serve de base à ilisão da presunção seja suficiente para alterar o registo. De contrário, se um tribunal considerasse ilidida a presunção que resulta do registo sem que estejam reunidos os elementos de prova necessários à alteração do registo, estaria com isso a aniquilar a função de segurança jurídica que é a função primordial do registo.
Por essa razão a Relação de Coimbra, nos dois acórdãos citados, considerou que, para afastar a presunção de propriedade que decorre do registo, é necessário provar que a titularidade do direito inscrito pertence a outrem, mas tal não bastando, sendo ainda necessário pedir-se, simultaneamente o respectivo cancelamento.
Como se diz no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-3-2011 antes citado (processo n.º 195/09.8TBPTS.L1-2), a garantia de actualização do registo face ao facto publicitado faz parte da função de segurança jurídica que o mesmo registo desempenha.
Além disso, existe uma não coincidência lógica entre o facto que a Requerente pretende provar – alienação do veículo – e o facto que é preciso provar – o veículo não pertence à Requerente, num momento posterior à venda. Pelo que provar que se efectuou uma venda – o que não se provou – nunca pode afastar a presunção de propriedade, a não ser com base num juízo de probabilidade que, contudo, não pode ser suficiente para afastar a presunção registral.
VI. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, este Tribunal decide:
I. Julgar procedentes os pedidos de anulação, e consequentemente anular, os acto de liquidação nº 2011..., referente ao veículo com a matrícula ...-...-..., e ao ano de 2011; nº 2009..., referente ao veículo com a matrícula ...-...-..., e ao ano de 2009; nº 2012..., referente ao veículo com a matrícula...-...-... , e ao ano de 2012; nº 2010..., referente ao veículo com a matrícula...-...-..., e ao ano de 2010;
II. Condenar a Requerida AT- Administração Tributária e Aduaneira a reembolsar as quantias referentes às liquidações anuladas, acrescidas dos respectivos juros indemnizatórios;
III. Julgar improcedentes os restantes pedidos.
Valor da utilidade económica do processo: Fixa-se o valor da utilidade económica do processo em 1.685,08 euros.
Custas: Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 306,00 euros, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo:
- Da Requerida, em 137, 58 euros
- Da Requerente, em 168,42 euros
Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às partes.
Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 31 de Maio de 2016
O Árbitro
(Nina Aguiar)