Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 38/2012-T
Data da decisão: 2012-06-29  IRC  
Valor do pedido: € 26.264,02
Tema: Derrama
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Decisão Arbitral

 

 

 

PROCESSO Nº38/2012

DECISÃO ARBITRAL

 

DOS FACTOS:

 

  1. Do pedido e da causa de pedir:

…, S.A., doravante designada por «Requerente», pessoa coletiva nº. …, com sede na Avenida … Lisboa, enquanto sociedade dominante do grupo ao qual, no exercício de 2009, foi aplicável o Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades («RETGS»), requereu a constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto no Artigo 10º do Decreto Lei nº10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária - «RJAT») e dos artigos 1º e 2º da Portaria nº112-A/2011, de 22 de março, tendo em vista a anulação parcial do ato tributário de liquidação nº. …, referente ao exercício de 2009, na parte que diz respeito ao montante de derrama municipal do grupo.

Em consequência da anulação parcial do ato, solicitou o reembolso da quantia de €26.264,02, indevidamente paga em excesso, acrescida de juros compensatórios à taxa legal.

Alega, em síntese, que o sistema eletrónico da Autoridade Tributária e Aduaneira («AT»), através do qual são entregues as declarações Modelo 22 de IRC, apenas permite a entrega destas declarações de rendimentos, se a derrama municipal for apurada com base no entendimento preconizado no Ofício Circulado nº 20132, emitido em 14 de Abril de 2008, pela Direção de Serviços do IRC, entendimento que considera contrário à Lei.

Embora considere tal entendimento ilegal, afirma que «a requerente viu-se compelida a aceitar o cálculo da derrama municipal com base nas orientações genéricas emitidas pela Administração Fiscal … como condição da submissão da declaração Modelo 22 do IRC e sem que isso refletisse, fosse de que forma fosse, a sua concordância com tal forma de cálculo, com a qual nunca se conformou».

O Ofício Circulado nº20132 visa esclarecer dúvidas sobre a nova lei das Finanças Locais, a qual alterou a forma do cálculo da derrama municipal, que passou a incidir sobre o lucro tributável e não sobre a coleta (artigo 14º da Lei 2/2007 de 15 de janeiro). Mais concretamente, no que concerne às sociedades sujeitas ao RETGS, o Ofício Circulado esclarece que «a derrama municipal deverá ser calculada e indicada individualmente por cada uma das sociedades na sua declaração, sendo preenchido, também individualmente, o anexo A, se for caso disso. O somatório das derramas municipais assim calculadas será indicado no campo 364 do Quadro 10 da correspondente declaração do grupo, competindo o respetivo pagamento à sociedade dominante (…)»

Alega ser ilegal o entendimento que a derrama das sociedades sujeitas ao RETGS deve ser calculada individualmente por cada uma das sociedades, desde logo, porque tal entendimento não tem qualquer correspondência na letra da lei – o artigo 14º da nova Lei das Finanças Locais – além de que este entendimento constitui uma novidade face ao anterior regime, uma vez que anteriormente não existiam dúvidas que a derrama incidia sobre a coleta do grupo (e não sobre a coleta individual de cada uma das sociedades), sem que nada na nova lei indicie esta diferença de regime. A única alteração efetuada pela nova lei consiste no facto de a derrama passar a incidir sobre o lucro tributável, deixando de incidir sobre a coleta.

Adicionalmente refere que, nos termos do artigo 70º do Código do IRC, «o lucro tributável do Grupo é calculado pela sociedade dominante, através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais de cada uma das sociedades pertencentes ao grupo». Em face desta norma, entende que «o Ofício Circulado nº20132 contraria a ratio sobre a qual assenta o apuramento da base tributável do IRC e, bem assim, da derrama municipal, ao nível dos grupos sujeitos ao RETGS.»

Afirma que, além de ilegal, o entendimento que a derrama das sociedades sujeitas ao RETGS deve ser calculado individualmente por cada uma das sociedades, viola o princípio, constitucionalmente consagrado, da tributação das empresas pelo seu rendimento real, porque nas sociedades sujeitas ao RETGS, haverá necessariamente de considerar, para base de cálculo da derrama, o somatório dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados em cada uma das sociedades que integram o Grupo Fiscal, sob pena de se tal não acontecer «conduziria, de um ponto de vista objetivo, a tributar um rendimento inexistente», em todas aquelas situações em que é apurado um prejuízo fiscal ao nível do Grupo.

Advoga que a derrama se qualifica como um imposto sobre o rendimento, acessório do IRC, suportando as suas conclusões, em diversa jurisprudência do STA, que identifica. E por ser acessória – acessorium sequitur pricipale – tem o mesmo regime que o imposto principal «pelo que, consequentemente, observando as mesmas regras estabelecidas para o imposto principal, a derrama municipal deverá igualmente ser apurada tendo em conta o lucro tributável do grupo, e não o lucro tributável individual das sociedades que o compõem».

Por último, remete para jurisprudência diversa, que identifica, a qual suporta as conclusões formuladas pela Requerente, no teor do articulado.

Nos termos do artigo 24º nº5 do RJAT e dos artigos 43º e 100º da Lei Geral Tributária (LGT) solicitou os respetivos juros indemnizatórios, por pagamento em excesso da prestação tributária.

 

ii ) Da resposta da AT

 

Em resposta ao pedido, o Diretor Geral da AT, invocou a exceção da incompetência do tribunal arbitral e a exceção da ilegitimidade passiva da AT e, caso assim não se entenda, requereu a improcedência do pedido, impugnando os seus fundamentos.

Alega que a derrama municipal é um imposto em que o sujeito ativo da relação jurídica tributária são os municípios, os quais são titulares de competências para lançar o imposto, fixar a taxa e decidir das eventuais isenções.

Afirma que «à AT… apenas ficam conferidas funções de arrecadação de receita (dada a forma de apuramento da derrama – que à semelhança do IRC é autoliquidada na declaração de rendimentos – Modelo 22), e subsequente entrega ao município.»

Entende que a competência para administrar a derrama municipal cabe em larga medida aos municípios e, consequentemente, conclui pela ilegitimidade da AT para estar em juízo como única demandada em matéria respeitante a derrama municipal.

Em face do exposto afirma não só estar plenamente justificado o interesse em agir na presente demanda de todos os municípios em cuja área geográfica o rendimento foi gerado, como também entende que esta intervenção é essencial no presente processo arbitral, suscitando o incidente processual da intervenção principal provocada.

Alega, ainda por exceção, que os municípios não estão vinculados à jurisdição do CAAD e, consequentemente, alega a incompetência do tribunal arbitral para proferir decisão de mérito sobre a questão em litígio, porquanto esta não será apta a fazer caso julgado em relação aos municípios».

Acautelando a possibilidade de o tribunal arbitral não considerar procedentes nenhuma das exceções invocadas, a AT alega em síntese, por impugnação, que o lucro tributável fiscalmente relevante em sede de derrama municipal é o lucro tributável individual de cada uma das sociedades que integram o grupo fiscal, porque no seu entender «a derrama é um imposto autónomo, destinado à prossecução de fins próprios, e não um imposto acessório, que esteja dependente das vicissitudes do IRC.»

Fundamenta a autonomia da derrama no facto de ser um imposto da maior relevância para atingir o imperativo constitucional da autonomia dos municípios, «ou seja, a derrama, enquanto emanação da autonomia financeira dos municípios, com vista ao imperativo constitucional da autonomia local, muito embora surja delineada por referência ao IRC, é um imposto verdadeiramente autónomo deste».

Cita doutrina que conclui no sentido da autonomia deste imposto e afirma que a autonomia da derrama municipal saiu especialmente reforçada com a nova Lei das Finanças Locais, ao deixar de prever como base tributável da derrama a coleta de IRC para passar a prever o lucro tributável sujeito e não isento, afastando-se assim das vicissitudes do IRC ao nível do apuramento da coleta.

Entende que não está subjacente ao pensamento legislativo colocar a distribuição da receita municipal, obtida pela derrama, na dependência do sujeito passivo, através da possibilidade que lhe é conferida de optar pelo RETGS em sede de IRC. Em face do exposto conclui pela inconstitucionalidade, por violação do poder tributário conferido às autarquias na Constituição da República, do entendimento que considera que a derrama incide sobre o lucro tributável do grupo, nos casos de tributação pelo RETGS.

 

  1. Da resposta da Requerente

 

A Requerente respondeu às exceções invocadas pela Requerida considerando-as improcedentes. A Requerente conclui que a AT possui legitimidade passiva para ser demanda no presente processo arbitral e que a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais abrange as matérias relativas ao apuramento e liquidação da derrama.

Alega finalmente que a «intervenção provocada» dos municípios é, além de um ato inútil, ilegal.

Em síntese, justifica a legitimidade passiva da AT, desde logo, porque o apuramento e liquidação da derrama é efetuado pela AT pelo que, ainda que o imposto seja uma receita própria do município, não é possível restringir ao município a qualidade de único sujeito ativo da relação jurídico-tributária.

Assim conclui que não é possível limitar a relação jurídica tributária em causa a um único sujeito ativo (o município), porquanto todo o processo de liquidação, controlo e acompanhamento é realizado pela AT. Reforça a conclusão citando o Professor Alberto Xavier, ao afirmar que no caso de receitas próprias das autarquias, cujo cálculo depende de impostos estaduais «há que distinguir a relação jurídica obrigacional, de natureza material, de que as autarquias são sujeito activo e as relações jurídicas instrumentais, em que a situação jurídica activa é ocupada pelo Estado» (Xavier, Alberto, in Manual de Direito Fiscal, Tomo I, 1981, páginas 306 e 307).

Acompanhando a mesma doutrina, afirma que os municípios apenas possuem a titularidade do crédito tributário (capacidade de gozo de direitos tributários) mas é a AT a entidade que tem a competência tributária nesta matéria, uma vez que é titular dos poderes instrumentais relativos à aplicação da lei de imposto e à cobrança do tributo.

A respeito da incompetência do tribunal arbitral, afirma que a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais é consequência da AT ser a entidade responsável pela administração do imposto, não sendo relevante, para efeitos de aferir a competência do tribunal, o facto de a entidade credora desse imposto não ser a AT.

Por último, a respeito da intervenção provocada dos municípios, afirma que a questão apenas será útil discutir na hipótese de o tribunal considerar procedente a exceção da ilegitimidade passiva e a exceção da incompetência.

Sem nada conceder, por mera hipótese de raciocínio, considera que, mesmo no caso de serem consideradas procedentes as exceções invocadas pela AT, não há interesse dos municípios em agir na presente demanda, porque o que está a ser discutido neste processo é a legalidade da dívida. Mais concretamente, afirma que «o facto de, aqui e agora, se estar somente a discutir a legalidade da dívida, sem mais, é quanto basta para que a decisão que for proferida se imponha aos Municípios. Simplesmente porque estes estão obrigados à actuação legal dos órgãos do Estado.»

 

  1. Dos factos provados:

Consideram-se provados, com relevo para a decisão, os seguintes factos:

A Requerente é a sociedade dominante de um grupo de sociedades sujeito ao RETGS.

Em 31 de Maio de 2010, a Requerente entregou a declaração de autoliquidação de IRC (Modelo 22) referente ao exercício de 2009, do grupo de sociedades sujeito ao RETGS, de que é dominante.

Em Agosto de 2010 a Requerente foi notificada da liquidação nº … .

O montante de derrama municipal apurado no ato tributário de liquidação nº … ascende a €160.386,15.

A Requerente apresentou reclamação graciosa contra o ato de liquidação nº…, solicitando o reembolso do montante de €26.264,02 de derrama municipal.

Em Outubro de 2011 a Requerente foi notificada para exercer o direito de audição prévia, relativamente ao projeto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa. A Requerente não exerceu o direito de audição.

Em 22 de novembro de 2011 a Requerente foi notificada do indeferimento da reclamação graciosa.

Os factos referidos foram provados por documentos juntos pelas partes e constantes do processo administrativo. Não se provaram quaisquer outros factos relevantes para a decisão da causa.

 

  1. Questões a decidir

As exceções da incompetência do tribunal arbitral e da ilegitimidade processual da AT e o incidente da intervenção provocada.

A ilegalidade do ato de liquidação de derrama municipal referente ao exercício de 2009.

A atribuição de juros indemnizatórios, a acrescer ao montante a restituir do imposto pago indevidamente.

 

DO DIREITO:

 

  1. Das exceções

 

Em primeiro lugar haverá que conhecer a exceção da incompetência do tribunal arbitral, na medida em que caso o tribunal seja incompetente está impedido de apreciar, não só o mérito da causa como também os outros vícios processuais invocados pela AT.

Nos termos do artigo 2º nº1 alínea a) do RJAT, a competência dos tribunais arbitrais compreende «a declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de tributos».

Através de uma interpretação atualista dos artigos 1º e 2º da Portaria 112-A/2011, de 22 de março, conjugada com o artigo 2º nº1 do RJAT, conclui-se de modo claro e inequívoco que a AT está vinculada à jurisdição dos tribunais arbitrais, relativamente à apreciação da legalidade dos atos de liquidação de tributos que sejam administrados pela AT.

No caso ora em análise, é notório que estamos perante um pedido de declaração de ilegalidade de um ato de liquidação de tributo, pelo que importa apenas aferir se a derrama municipal é um tributo administrado pela AT, de modo a resolver a questão da competência do tribunal arbitral.

A este respeito, o Decreto Lei 118/2011, de 15 de dezembro, que procedeu à aprovação da estrutura orgânica da AT, refere expressamente que a AT é um serviço da administração direta do Estado, dotado de autonomia administrativa que tem por missão administrar os impostos (artigo 1º nº1 e o artigo 2º nº1 do referido Decreto Lei).

O nº2 do artigo 2º do Decreto Lei 118/2011, enumera as atribuições da AT, entre as quais estão incluídas, entre outras, as de assegurar a liquidação e cobrança dos impostos, de exercer a ação de inspeção tributária, de exercer a ação de justiça tributária, de promover a correta aplicação das leis e das decisões administrativas relacionadas com as suas atribuições.

Em suma, como regra geral, é à AT que cabe a administração de todos os impostos, entre eles administração da derrama municipal.

Assim sendo, para concluir pela incompetência do tribunal arbitral, haverá que encontrar uma norma de exceção, que afaste a aplicação desta regra geral, isto é, uma norma que, no caso da derrama municipal, confira os poderes de administração deste imposto a outra entidade que não seja a AT.

O facto de os municípios serem os titulares das receitas provenientes da derrama municipal não significa que sejam os municípios a administrar esse imposto. A AT administra os impostos, mas é não ela própria credora das receitas dos impostos que administra, limitando-se a agir no interesse e por conta desses credores.

Do mesmo modo, o facto de o artigo 7º do Decreto Lei nº433/99, de 26/10, atribuir poderes às autarquias locais no caso da existência de tributos administrados pelas autarquias locais, não significa por si só que a derrama municipal seja um tributo administrado pelas autarquias locais. No caso da derrama municipal, os momentos decisivos da relação jurídica de imposto, designadamente as fases de liquidação e cobrança do imposto, são da competência da AT, pelo que é manifesto que a AT tem o poder de administrar este imposto.

Os municípios apenas têm capacidade de intervenção ao nível da definição da base de incidência e definição de isenções do imposto, ou seja, ao nível da estática fiscal: «a definição estável e abstracta da configuração do sacrifício fiscal» (cfr. Sousa Franco, A. L., Finanças Públicas e Direito Financeiro, Vol.II, 4ª Edição, Almedina, Coimbra, 1992)

A dinâmica fiscal - «o conjunto de operações que permitem determinar em concreto quem deve sofrer o sacrifício fiscal e como este será efectivado, até ao momento do ingresso da receita nos cofres do tesouro» (cfr. Sousa Franco, A. L., Finanças Públicas e Direito Financeiro, Vol.II, 4ª Edição, Almedina, Coimbra, 1992))- é da exclusiva competência da AT.

Em suma, é à AT que compete administrar a derrama municipal, poder e atribuições que lhe são conferidas pela regra prevista no artigo 2º do Decreto Lei 118/2011, não se vislumbrando nenhuma regra específica que, no caso concreto em análise, contrarie esta norma legal, no sentido de atribuir aos municípios competência específica para liquidar e cobrar a derrama municipal.

Por último, também não procede o argumento, invocado pela Requerida, de que os municípios não se encontram vinculados à jurisdição do tribunal arbitral e, consequentemente, a decisão do tribunal não vincula os municípios.

Não procede este argumento porque a vinculação da AT ao tribunal arbitral é por si só suficiente para vincular também os municípios à decisão do tribunal arbitral, na medida em que a AT ao vincular-se, enquanto entidade a quem foram conferidas por lei (ex vi artigos 1º e 2º do Decreto Lei 118/2011) as atribuições de administrar a derrama municipal, vincula também os municípios à arbitragem tributária, através desta vinculação deste seu agente, a AT.

Em face do exposto o Tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º n.º 2.ºalínea a), 6.º n.º 1, 10.º n.º 1.ºalínea a) e n.º 2.ºdo RJAT.

Improcede, por isso, a exceção dilatória de incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria para a apreciação do litígio.

Também é improcedente a exceção da ilegitimidade passiva da AT, desde logo, porque a interpretação sufragada pela Requerida, no sentido de ser aos municípios que compete a administração da derrama municipal, conduziria à ilegitimidade da AT não apenas no tribunal arbitral, como também a AT seria parte ilegítima em qualquer outra intervenção em juízo, nomeadamente junto dos tribunais tributários, e conduziria ainda à ilegitimidade da AT no âmbito do procedimento tributário de liquidação e de cobrança da derrama municipal.

Por outras palavras, nos termos do nº1 do artigo 7º do Decreto Lei 433/99 «as competências atribuídas … a órgãos periféricos locais serão exercidas … em caso de tributos administrados por autarquias locais, pela respectiva autarquia». E o nº2 do mesmo normativo refere que «as competências atribuídas ao dirigente máximo do serviço ou aos órgãos executivos da administração tributária serão exercidas … pelo presidente da autarquia». A Requerida entende que a derrama municipal é um tributo administrado pelos municípios, logo, se assim for, e em consequência deste entendimento, a AT não tem competência para liquidar a derrama municipal nem tem competência para praticar qualquer ato no âmbito do procedimento de cobrança (voluntária ou coerciva) deste imposto, na medida em que tais competências foram transferidas para o município e para o seu presidente, nos termos dos nº 1 e 2 da norma supra referida. Consequentemente, haverá que concluir-se que no entender da Requerida, a AT é parte ilegítima em todo e qualquer procedimento e processo tributário referente a derrama municipal.

Em suma, o corolário lógico a que conduz a interpretação sufragada pela Requerida, para além de não encontrar correspondência na letra da lei (a qual atribui à AT poderes de administrar os impostos) está em desconformidade com a prática vigente no âmbito do processo e procedimento tributário, no que concerne ao imposto ora em análise (a derrama municipal). Veja-se para demonstrar esta desconformidade, o próprio caso ora em análise, em que o ato tributário de liquidação de derrama municipal foi praticado pelo diretor geral dos impostos, a ora Requerente apresentou reclamação graciosa dirigida ao diretor distrital de finanças de Lisboa, que a indeferiu e, posteriormente, foi apresentado recurso hierárquico dirigido ao mais elevado superior hierárquico da entidade que praticou o ato de indeferimento. Em resumo, a AT foi parte em todos estes atos supra descritos, praticados no âmbito do procedimento tributário, sem que em qualquer destes procedimentos fosse alegada a ilegitimidade passiva da AT.

Não foi alegada a ilegitimidade passiva da AT porque, repete-se, nos termos do nº2 do artigo 2º do Decreto Lei 118/2011, compete à AT assegurar a liquidação e cobrança dos impostos, de exercer a ação de inspeção tributária, de exercer a ação de justiça tributária, de promover a correta aplicação das leis e das decisões administrativas relacionadas com as suas atribuições.

Decide-se julgar totalmente improcedente a deduzida exceção de ilegitimidade passiva, considerando que a AT tem legitimidade para estar em juízo.

A AT tem legitimidade, em exclusivo, para ser demandada, porque a AT é titular de competência exclusiva para administrar a liquidação e cobrança da derrama municipal.

A AT é a única titular dos poderes instrumentais relativos à aplicação da lei de imposto e, por ser assim, no caso concreto em análise, a AT praticou, de modo exclusivo, o ato tributário de liquidação de imposto que ora se impugna. A AT indeferiu, de modo exclusivo, a reclamação graciosa e o recurso hierárquico, com vista à declaração de ilegalidade parcial do ato tributário que ora se impugna.

Assim sendo, fica prejudicada a apreciação do incidente da intervenção principal provocada.

 

  1. Saneamento

Este Tribunal arbitral, constituído no âmbito do CAAD, é competente para apreciar e decidir o litígio.

As partes são legítimas, estão devidamente representadas e têm capacidade jurídica e judiciária.

 

  1. Da ilegalidade parcial do ato de liquidação de derrama municipal:

 

A questão a apreciar resume-se a esclarecer qual a base de incidência da derrama municipal nas situações em que as sociedades envolvidas estão sujeitas ao RETGS. A AT entende que a base de incidência corresponde ao somatório dos lucros tributáveis de cada uma das sociedades, individualmente consideradas (consequentemente, os eventuais prejuízos fiscais apurados numa das sociedades do grupo fiscal não podem ser deduzidos ao lucro tributável apurado nas outras sociedades, para efeitos de apuramento da base de incidência da derrama municipal). A Requerente entende que não é assim, entende que a base de incidência da derrama municipal é apurada através do somatório dos lucros e dos prejuízos fiscais de cada uma das sociedades que integram o grupo fiscal.

A lei – o artigo 14º nº1 da Lei das Finanças Locais – prevê que «os municípios podem deliberar lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5% sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC)…».

 

Da leitura da norma concluímos facilmente que no caso de sociedades sujeitas a IRC, não incluídas no RETGS, a base de incidência a derrama corresponde ao lucro tributável dessa sociedade. Mas a referida norma não prevê expressamente qual a base de incidência nas situações sujeitas ao RETGS, ou seja, não existe uma norma específica de determinação da matéria colectável que fixe a base de incidência da derrama municipal, nas situações de sociedades sujeitas ao RETGS. Haverá que integrar a lacuna.

Acompanhamos a doutrina que entende ser a derrama municipal um imposto acessório, na medida em que a sua existência depende de uma relação jurídico – tributária anterior (neste caso a relação tributária de IRC). A doutrina distingue entre os impostos acessórios que são calculados sobre a coleta do imposto principal (designados por adicionais) e os impostos acessórios que são calculados sobre a matéria coletável do imposto principal (designados por adicionamentos) (cfr. neste sentido Manuel Henrique de Freitas Pereira; Fiscalidade, 3ª edição, pág. 55). Neste mesmo sentido a Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, nomeadamente os Acórdãos de 23-09-1992, recurso nº014380/92, de 17-10-2011, recurso nº025203/11 e, recentemente, de 02-05-2012, recurso nº0234/12.

De acordo com a doutrina supra, aplicada ao caso concreto em análise, a derrama municipal após a entrada em vigor do artigo 14º da Lei das Finanças Locais, deixou de ser um adicional (porque deixou de incidir sobre a coleta) e passou a ser designada por adicionamento (uma vez que passou a ser calculada sobre a matéria coletável) sendo sempre (antes e depois da entrada em vigor da Lei das Finanças Locais) um imposto acessório relativamente ao IRC, na medida em que a existência da derrama depende da existência da relação tributária de IRC.

Assim sendo, isto é, sendo a derrama um imposto acessório do IRC e não existindo na Lei das Finanças Locais (na redação em vigor à data da ocorrência dos factos tributários) regras específicas de apuramento da base incidência de derrama municipal nos casos sujeitos ao RETGS, haverá que seguir as regras do IRC para efeitos de apuramento da base de incidência da derrama municipal.

Neste sentido veja-se a jurisprudência do STA, nomeadamente os Acórdãos de 02-02-2011, recurso nº909/10, de 22-06-2011, recurso nº309/11e de 02-05-2011, recurso nº0234/12.

Em consequência do exposto, uma vez que a base de incidência do imposto acessório -a derrama municipal- corresponde ao lucro tributável da sociedade, então nas situações sujeitas ao RETGS, a base de incidência da derrama municipal será o lucro tributável do grupo fiscal, apurado conforme previsto no artigo 70º do CIRC, a saber: «o lucro tributável do grupo é calculado pela sociedade dominante, através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais de cada uma das sociedades pertencentes ao grupo».

Adicionalmente refira-se que em virtude da alteração legislativa verificada com a entrada em vigor do artigo 14º da Lei das Finanças Locais não pode inferir-se, como alega que a Requerida, que o legislador tenha pretendido autonomizar a derrama relativamente ao IRC, isto porque, embora a derrama deixe de estar dependente das vicissitudes de apuramento da coleta, como acontecia no regime anterior, passou agora depender apenas das vicissitudes de apuramento do lucro tributável.

Também não sufragamos o argumento que fundamenta a autonomia da derrama no facto de ser um imposto da maior relevância para atingir o imperativo constitucional da autonomia financeira dos municípios, ou seja, no entender da AT «a derrama, enquanto emanação da autonomia financeira dos municípios, com vista ao imperativo constitucional da autonomia local, muito embora surja delineada por referência ao IRC, é um imposto verdadeiramente autónomo deste».

O facto de a receita proveniente da derrama municipal ser importante para conseguir obter a autonomia financeira dos municípios, nada releva para aferir se a derrama é imposto autónomo ou acessório do IRC, na medida em que a autonomia deste imposto face ao IRC não se pode aferir pela maior ou menor dependência que um determinado município tem das receitas provenientes da derrama para conseguir equilibrar orçamento municipal. O caráter assessório resulta, repetimos, do facto de a existência da derrama municipal depender da existência de uma relação jurídico – tributária anterior (neste caso a relação tributária de IRC).

Por último, saliente-se que não é de aplicar ao caso concreto em análise a nova redação do nº8 do artigo 14º da Lei das Finanças Locais, por ser uma lei nova, que entrou em vigor posteriormente à ocorrência do facto tributário, e não uma mera norma interpretativa do regime até então vigente. Nesta matéria acompanhamos o entendimento e sufragamos as conclusões do já citado Acórdão nº0234/12 de 02-05-2012, que se transcrevem: «trata-se claramente de uma opção legislativa diversa, quiçá motivada pela necessidade de arrecadar receitas imposta pela conjuntura económica, dado que a interpretação possível da norma na sua redação anterior, acolhida pela jurisprudência unanime deste Supremo Tribunal Administrativo, tinha como consequência uma poupança fiscal significativa para os grupos de sociedades em que coexistissem sociedades com lucro tributável e sociedades com prejuízo fiscal».

Concluindo, o ato de liquidação que ora se impugna é ilegal, por errónea quantificação do valor do tributo, na parte respeitante à derrama municipal liquidada em excesso.

 

 

ix) Dos juros indemnizatórios:

 

Nos termos do nº1 do artigo 43º da LGT, os juros indemnizatórios são devidos quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido. De acordo com nº2 do artigo 43º da LGT, «considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da declaração ser efetuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas».

A Requerente peticiona juros indemnizatórios porque, apesar da liquidação ser efetuada com base na declaração apresentada pela ora Requerente, entende que o erro é imputável à AT, na medida em que no preenchimento da referida declaração limitou-se a seguir as orientações genéricas da AT, que haviam sido publicadas em ofício circulado.

A Requerente viu-se compelida, ao submeter a declaração de autoliquidação, a efetuar o cálculo da derrama municipal com base nas orientações genéricas emitidas pela AT, uma vez que o sistema informático da AT apenas permite a entrega da referida declaração, se a derrama municipal for apurada com base no entendimento preconizado pela AT, do qual a Requerente discorda.

A Requerente tem razão ao discordar do entendimento da AT, no que concerne ao modo de cálculo da base de incidência da derrama municipal.

Assim sendo, no caso concreto em análise, são devidos juros indemnizatórios, com fundamento no artigo 43º nº1 e nº2 da LGT conjugado com o artigo 61º do CPPT, que incidem sobre o valor do imposto pago indevidamente em excesso, contados desde a data do pagamento do imposto até à data da emissão da nota de crédito do imposto ora anulado, conforme previsto no artigo 61º nº5 do CPPT, à taxa apurada de acordo com o estipulado no nº4 do artigo 43º da LGT.

 

x) Decisão

Em face do exposto, decide-se:

- julgar procedente e provada a impugnação;

- anular o ato de liquidação de derrama municipal, na parte correspondente ao montante de €26.264,02, com base no vício de violação da lei;

- condenar a Requerida a devolver à Requerente a quantia de €26.264,02, acrescida do pagamento de juros indemnizatórios (já vencidos e vincendos) que incidem sobre o valor do imposto pago indevidamente em excesso, contados desde a data do pagamento do imposto até à data da emissão da nota de crédito do imposto ora anulado, conforme previsto no artigo 61º nº5 do CPPT, à taxa apurada de acordo com o estipulado no nº4 do artigo 43º da LGT.

 

 

 

 

Fixa-se o valor do processo em €28.042,78 (€26.264,02 do valor da liquidação anulada e €1.778,76 de juros indemnizatórios já vencidos, calculados desde a data do pagamento do imposto – 31 de Maio de 2010 – até à data da entrada do requerimento inicial no tribunal arbitral – 9 de Fevereiro de 2012 -, em conformidade com o previsto nos artigos 43º nº4 e 35º nº10 da LGT, 5º nº1 al. a) do RCPT, 97º-A nº1 al. a) do CPPT e 306º nº2 do CPC.

Custas pela Requerida, nos termos dos artigos 12º nº2 e 22º nº4 do RJAT e 4º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixando-se o respetivo montante em €1.530,00.

 

Notifique.

 

Lisboa, 29 de Junho de 2012

 

O Árbitro

 

António Jacinto Valadas Simões