Decisão Arbitral
A Árbitro Raquel Franco, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o tribunal arbitral singular constituído em 18 de janeiro de 2016, decide nos termos que se seguem:
I. RELATÓRIO
1. No dia 10.11.2015, a sociedade “A…, LDA.”, NIPC … apresentou um pedido de constituição de tribunal arbitral singular, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, doravante, “RJAT”), sendo requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 13.11.2015.
3. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a ora signatária, que comunicou a aceitação do correspondente encargo no prazo aplicável.
4. Em 31.12.2015 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação da árbitro nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.ºe 7.º do Código Deontológico.
5. Assim, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação introduzida pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral foi constituído em 18.01.2016.
6. No presente processo, pretende a Requerente que o Tribunal Arbitral declare a ilegalidade do ato de liquidação adicional de IRC relativo ao exercício de 2012, no valor de € 1.519,06 (liquidação n.º 2015…, de 20.07.2015).
7. Em concreto, a Requerente questiona a correção efetuada pela AT relativamente a alegadas vendas omitidas, no montante de € 33.256,56, aceitando, pelo contrário, a correção relativa a amortizações não aceites, no montante de € 2.016,58.
8. A questão controvertida prende-se com a legitimidade, ou não, do método utilizado pela AT para determinar a matéria tributável em sede de IRC, efetuada no âmbito do procedimento de inspeção que precedeu a liquidação adicional.
8.A. A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, nos seguintes termos:
· A inspeção não fez qualquer quantificação das omissões ou inexatidões dos elementos contabilísticos que permitiriam a necessária comprovação e quantificação direta e exata da matéria tributável, e, sendo assim, não estão reunidos os requisitos para efetuar uma avaliação direta, como forma, nos termos do artigo 83.º da LGT, de determinação do valor real dos rendimentos ou bens sujeitos a tributação.
· Esta omissão é exclusivamente imputável à AT, uma vez que lhe foram disponibilizados todos os ficheiros e elementos contabilísticos para, no âmbito do procedimento, determinar, por avaliação direta, o lucro tributável.
· Nos termos do artigo 6.º do Regime Complementar do Procedimento da Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA), o procedimento de inspeção visa a descoberta da verdade material, devendo a administração tributária adotar oficiosamente as iniciativas adequadas a esse objetivo, sobretudo tendo em conta que, nos termos do disposto no artigo 74.º da LGT, o ónus da prova recai sobre a AT.
· No caso, ao abster-se de quantificar as alegadas omissões de vendas a partir dos ficheiros informáticos, a inspeção tributária inviabilizou a quantificação direta e exata da matéria tributável, ferindo de ilegalidade a liquidação efetuada em sede de IRC.
· Nos termos do disposto no artigo 81.º da LGT, a matéria tributável é avaliada ou calculada diretamente segundo os critérios próprios de cada tributo, só podendo a administração tributária proceder a avaliação indireta nos casos e condições expressamente previstos na lei.
· A avaliação indireta é, portanto, subsidiária da avaliação direta, e pressupõe que é impossível quantificar de forma direta e exata a matéria tributável.
· Da fundamentação constante do Relatório de Inspeção decorre que a inspeção tributária pôs em causa a credibilidade da contabilidade da Requerente, tendo sido apontados indícios de que a mesma não reflete os reais valores das vendas e, consequentemente, dos rendimentos obtidos pelo sujeito passivo, sendo imputada à Requerente uma alegada omissão de vendas, por não converter em faturas as consultas de mesa emitidas e que corresponderão a prestações de serviços em montante que a inspeção tributária não determinou a partir da análise dos ficheiros.
· De acordo com a Requerente, a AT deveria ter identificado e quantificado de forma exata as consultas de mesa que não deram origem a qualquer fatura, e, dessa forma, sem recurso a indícios ou presunções, determinado o lucro tributável de acordo com as regras consagradas no Código do IRC para a avaliação direta.
· Ao contrário, o que a AT fez foi presumir as vendas com base em indícios. Em concreto, socorreu-se do registo contabilístico de suprimentos feitos em dinheiro, demonstrado através dos registos contabilísticos e, com esse facto indiciante, procurou a elaboração de outro facto – a omissão de vendas.
· No entanto, entende a Requerente que considerar que o valor dos alegados suprimentos é igual ao valor das vendas omitidas não é correto porquanto, sendo verdade que, em certos casos, o fluxo financeiro correspondente a vendas não declaradas retorna às empresas como suprimentos, a relação entre ambos não é absolutamente segura.
· Ainda de acordo com a análise da Requerente, a inspeção inferiu que os suprimentos contabilizados não correspondem a entradas efetivas dos sócios, partindo da sua periodicidade e do facto de, na sua ausência, a conta caixa ficar com um saldo negativo, mas essa inferência não está necessariamente correta porquanto uma das finalidades possíveis dos empréstimos efetuados pelos sócios às sociedades é precisamente a de suprir carências de tesouraria, pelo que, na sua ausência, a conta de caixa sempre teria um saldo negativo.
· Acrescenta ainda a Requerente que, mesmo admitindo que não tinham sido feitos suprimentos efetivos, o montante correspondente aos mesmos assim evidenciado na contabilidade poderia constituir um indício de vendas não realizadas, mas não mais do que isso.
· Em suma, alega a Requerente que a AT, sob a capa de correções técnicos, corrigiu e alterou valores declarados, utilizando indevidamente métodos indiretos, sem que tenha observado a tramitação do correspondente procedimento, que está sujeito a especiais deveres, designadamente de fundamentação, e que atribui específicos direitos e garantias aos contribuintes, desde logo, o pedido de revisão, previsto no artigo 91.º da LGT, que constitui o meio de defesa, por excelência, para discutir, do ponto de vista quantitativo, a errónea fixação do lucro tributável. Não tendo observado a tramitação correspondente a um procedimento de avaliação indireta, efetivamente utilizado, considera que a liquidação de IRC impugnada está ferida de ilegalidade.
8.B. Na sua Resposta, a AT invocou, resumidamente, o seguinte:
· A Requerente foi alvo de uma ação de inspeção, dirigida a sujeitos passivos identificados como utilizadores do programa de faturação IECR, certificado n.º…, de onde resultou a apreensão da “dongle pen” com o n.º de série T… nas instalações da Requerente.
· Durante a ação inspetiva que teve lugar, foram analisados os lançamentos efetuados na contabilidade da Requerente, os quais têm como suporte os documentos arquivados nas pastas, tendo os serviços de inspeção verificado que (i) nas vendas e prestações de serviços, realizadas pela Requerente, o recebimento é feito através de numerário ou de cartão de débito (terminal ATM); (ii) os recebimentos dos clientes, efetuados em numerário, são depositados no banco, sendo os recebimentos através de cartão de débito transferidos automaticamente para a conta bancária da Requerente; (iii) o registo na contabilidade destes recebimentos é feito por débito da conta de banco (conta 12) e por crédito de caixa (conta 11); (iv) no final do mês é retirado do sistema de faturação o fecho do mês, ou seja o apuramento mensal das vendas registadas nesse mês; (v) estes valores são registados na contabilidade, sendo debitada a conta de caixa (conta 11) por crédito das contas de vendas ou prestação de serviços (71 / 72) e IVA liquidado (conta 2433).
· Porque a Requerente não procedeu ao registo de todos os produtos vendidos, os valores depositados no banco são superiores aos valores das vendas declaradas, pelo que a conta de caixa fica com saldo credor. Posteriormente é feito um lançamento, que tem como suporte um documento interno, em que é transferido desta conta de caixa para a conta de sócios, conta 268 (cf. anexo 2 do RIT), o valor correspondente ao valor das vendas omitidas.
· No ano de 2012, os SIT constataram duas situações distintas que têm a mesma origem, ou seja duas contas nas quais se encontram registados movimentos que têm como finalidade, ocultar as vendas não registadas. Uma primeira situação é referente à conta de caixa (conta 11) conforme já explicado, outra situação é a conta de remunerações a pagar (conta 2311). Concretizando, as remunerações dos órgãos sociais são processadas e pagas mensalmente, mas não se encontra registado na contabilidade o fluxo financeiro correspondente a esses pagamentos (anexo 2), sendo apenas feito no final do ano. Os SIT constataram que à semelhança do que é feito para os trabalhadores, cuja remuneração é processada mensalmente e que são pagos em numerário, como comprovam, por exemplo, os lançamentos n.ºs…, … e…, de 31/01/2012, 29/02/2012 e 30/06/2012, respectivamente, todos do diário 5, também os órgãos sociais são pagos desse modo, o que é assumido no final do ano, conforme lançamento interno do total do valor. Assim, concluíram os SIT que estes pagamentos correspondiam a valores recebidos, da única fonte de rendimentos conhecida, ou seja das vendas realizadas, os quais não são depositados, sendo utilizados no ressarcimento das remunerações a pagar aos órgãos sociais.
· Deste modo, apuraram a existência de omissões de proveitos, facto espelhado nos documentos internos de lançamento de “transferência de conta”, débito da conta 11 - caixa por contrapartida da conta 26 – acionistas (anexo 3), e reforçado pelos resultados da auditoria aos dados armazenados na “dongle/pen” com nº série T… .
· Face ao exposto, e tendo em consideração que os recebimentos ocorreram ao longo do tempo, os SIT apuraram os seguintes valores, divididos por período, relativamente ao exercício de 2012 (cf. anexo 2, página 1 e anexo 4 do RIT):
Valor da conta de caixa e remunerações a pagar (saldo credor)
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1º Trimestre 2012
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2º Trimestre 2012
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3º Trimestre 2012
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4º Trimestre 2012
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TOTAL
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Saldo credor de caixa
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3.967,85
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4.633,81
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3.949,50
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13.133,10
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25.684,26
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Saldo credor de remunerações a pagar
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3.459,34
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3.448,32
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3.448,32
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4.366,34
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14.722,32
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Total
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7.427,19
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8.082,13
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7.397,82
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17.499,44
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40.406,58
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· Nestes termos e de acordo com o descrito no ponto III.1 do RIT, os SIT apuraram, relativamente ao ano em apreço (2012) a seguinte omissão de registo de vendas/prestações de serviços: € 33.256,56, valor a acrescer ao lucro tributável, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art. 20.º do CIRC.
· Quanto ao fundamento invocado pela Requerente para a ilegalidade da liquidação impugnada, a AT responde nos seguintes termos:
- Os registos encontrados na ação inspetiva evidenciavam que houve uma tentativa de ocultar todo e qualquer rasto da presença na base de dados da Requerente dos documentos de conferência que não davam origem à emissão de fatura através da sua frequente eliminação no momento do “fecho de caixa”.
- Entende a Requerente que os serviços de inspeção deveriam ter reconstituído o volume de negócios do sujeito passivo, identificando as consultas de mesa que não deram origem a faturação.
- No início do procedimento inspectivo, i.e., 08-04-2015, os SIT solicitaram à Requerente, de forma a comprovar as irregularidades detectadas, os seguintes elementos:
- Ficheiro SAF-T de contabilidade (2013 e 2014);
- Ficheiro SAF-T de faturação (2013 e 2014).
- Posteriormente foi solicitado o ficheiro SAF-T de contabilidade do exercício de 2012 (ficheiro de faturação, obrigatório desde Janeiro de 2013, nos termos do D.L. 198/2012).
· Sendo que a ação de inspeção decorreu na sede da Requerente, onde foram disponibilizados os documentos de suporte à contabilidade dos anos de 2012 a 2014.
· Com base no ficheiro SAF-T de contabilidade, do qual foram retirados os balancetes (cf. anexo 1 do RIT) e extratos de contas, os SIT analisaram os documentos de suporte à contabilidade.
· A análise documental incidiu sobre os registos das seguintes contas:
- Compras;
- Ativos fixos tangíveis;
- Fornecimentos e serviços externos;
- Gastos com pessoal;
- Rendimentos.
· Das contas acima referidas, os SIT procederam à análise dos extratos e das subcontas mais relevantes, tendo verificado os documentos de suporte, nomeadamente custo associado, requisitos das faturas e os emitentes das mesmas.
· Analisada a globalidade dos ficheiros e da auditoria aos dados armazenados, a AT concluiu que a Requerente realizou prestações de serviços/vendas sem que as mesmas tenham sido acompanhadas da emissão de fatura, ou seja, ficou pois comprovado que eram emitidos, através do software de faturação IECR, determinados documentos de conferência que não davam origem à emissão de fatura, e que os mesmos traduziam transações efetivas.
· Concluiu ainda a AT que, da análise da contabilidade, que constitui um critério objetivo, foi possível depreender o valor real dos rendimentos, constando do RIT os critérios utilizados e a ponderação dos fatores que influenciaram a determinação do seu resultado.
· A contabilidade permitiu pois descortinar a quantificação direta e exata da matéria tributável, resultando a mesma da análise das contas e dos lançamentos efetuados, não existindo por parte da inspeção tributária qualquer presunção na quantificação dos rendimentos
· Face ao exposto, ao contrário do que é propugnado no item 41.º da p.i., não existiu no caso vertente, nenhum inferência por parte da inspeção tributária, dado que da contabilidade resultou que os alegados suprimentos, à exceção de alguns que não foram desconsiderados, resultaram de omissão de vendas, facto este espelhado nos documentos internos de lançamento de “transferência de conta”, débito da conta 11- caixa, por contrapartida da conta 26 – acionistas.
· Cumpre ainda mencionar que de acordo com o disposto no artigo 63.º C, n.º 2, da LGT “devem ser efetuados através da conta referida no n.º 1, todos os movimentos relativos a suprimentos, outras formas de empréstimo e adiantamentos de sócios, bem como quaisquer outros movimentos de ou a favor dos sujeitos passivos.”, o que não se verificou, tendo em consideração que todos os movimentos considerados têm documento interno de suporte e não passaram pela conta 12 – conta de banco.
· Assim, não existiu na ação inspetiva em apreço qualquer avaliação indireta, todas as correções efetuadas decorreram sim da contabilidade apresentada pela Requerente, contabilidade demonstrativa e representativa dos factos, dos quais resultou a correção sub judice.
· Deste modo, a AT considera ter comprovado a existência de omissões de proveitos, facto espelhado nos documentos internos de lançamento de “transferência de conta”, débito da conta 11 - caixa por contrapartida da conta 26 – acionistas (anexo 3), e reforçado pelos resultados da auditoria aos dados armazenados na “dongle/pen” com nº série T…, pelo que não vê razão para censura às correções técnicas propostas pelos Serviços de Inspeção, e concludentemente o ato de liquidação impugnado, que traduz a correção fiscal aos proveitos no valor de € 33.256,56, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 20º do CIRC.
III. SANEAMENTO
1. O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.
2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
3. O processo não padece de vícios que o invalidem.
IV. MATÉRIA DE FACTO
Antes de entrar na apreciação das questões de direito, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental e o processo administrativo (PA) junto aos autos e tendo ainda em conta os factos alegados, se fixa como segue:
IV.1. Factos provados
A. A Requerente foi alvo de uma ação de inspeção, dirigida a sujeitos passivos identificados como utilizadores do programa de faturação IECR, certificado n.º…, de onde resultou a apreensão da “dongle pen” com o n.º de série T…, nas instalações da Requerente.
B. A ação inspetiva teve âmbito geral, tendo incidido sobre os anos de 2012, 2013 e 2014.
C. Durante a ação inspetiva que teve lugar, foram analisados os lançamentos efetuados na contabilidade da Requerente, os quais têm como suporte os documentos arquivados nas respetivas pastas.
D. Analisados os ficheiros e realizada uma auditoria aos dados armazenados, a AT concluiu que a Requerente realizou prestações de serviços/vendas sem que as mesmas tenham sido acompanhadas de emissão de fatura.
E. A ação inspetiva comprovou que foram emitidos, através do sistema de faturação IECR, documentos de conferência que não davam origem à emissão de fatura, e que os mesmos traduziam transações efetivas.
F. Através dos registos, a AT concluiu que houve uma tentativa de ocultar registos desse tipo de documentos da base de dados, através da sua eliminação no momento do fecho de caixa.
G. Nas vendas e prestações de serviços realizadas pelo sujeito passivo, o recebimento é feito através de numerário ou de cartão de débito (terminal ATM).
H. Os recebimentos através de cartão de débito são transferidos automaticamente para a conta bancária;
I. Quanto aos recebimentos em numerário, a AT considerou, no relatório de inspeção, que são depositados no banco.
J. No final de cada mês, é retirado do sistema de faturação o fecho do mês, ou seja, o apuramento mensal das vendas registadas nesse mês.
K. Estes valores são registados na contabilidade, sendo debitada a conta de caixa (conta 11) por crédito das contas de vendas ou prestação de serviços (71/72) e IVA liquidado (conta 2433).
L. No ano de 2012, as remunerações dos órgãos sociais foram processadas e pagas mensalmente, mas não se encontra registado na contabilidade o fluxo financeiro correspondente a esses pagamentos (anexo 2), sendo apenas feito no final do ano.
M. Os SIT constataram que, à semelhança do que é feito para os trabalhadores, cuja remuneração é processada mensalmente e que são pagos em numerário, também os órgãos sociais são pagos desse modo, o que é assumido no final do ano, conforme lançamento interno do total do valor.
N. Os SIT concluíram que estes pagamentos correspondiam a valores recebidos, da única fonte de rendimentos conhecida, ou seja das vendas realizadas, os quais não são depositados, sendo utilizados no ressarcimento das remunerações a pagar aos órgãos sociais.
O. As correções efetuadas pelos SIT para o ano de 2012 em termos de omissões de proveitos foram de € 33.256,56.
P. A AT emitiu uma liquidação adicional de IRC, com referência ao exercício de 2012, no montante de € 1.519,06.
Q. Nos termos da demonstração de acerto de contas, o valor a pagar pelo sujeito passivo com referência ao exercício de 2012 foi de € 180,89.
R. A Requerente foi notificada, nos termos do disposto no artigo 60.º do RCPITA, para exercer o direito de audiência prévia relativamente ao Projeto de Correções do Relatório de Inspeção.
S. A notificação foi recebida no dia 16.06.2015.
T. A Requerente não apresentou qualquer resposta nesse âmbito.
IV.2. Factos não provados
Não existem factos relevantes para a decisão que tenham sido dados como não provados.
V. THEMA DECIDENDUM
A questão a decidir no presente caso prende-se com a forma como a AT quantificou os rendimentos tributáveis da Requerente na sequência da ação inspetiva que realizou, in casu, em relação ao exercício de 2012. Em concreto, importa apurar se, como diz a Requerente, a AT procedeu a uma avaliação indireta da matéria tributável sob a capa de correções técnicas ou se, como defende a Requerida, a AT apenas quantificou, com recurso a elementos disponíveis na contabilidade da Requerente, a matéria tributável efetiva.
VI. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A inspeção realizada aos registos contabilísticos da Requerente revelou que esta realizou, durante o exercício de 2012, vendas não faturadas. Ao invés de emitir uma fatura por cada operação realizada, a Requerente emitiu, por vezes, outro tipo de documento que permite ao respetivo cliente saber quanto está a pagar pelos consumos que realiza e que lhe permite a ela – Requerente – não contabilizar o valor da venda como proveito para efeitos de tributação.
A AT concluiu que as fórmulas utilizadas pela Requerente, em 2012, para alcançar esse efeito explicando, contabilisticamente, os recebimentos não registados como vendas foram duas: (i) através do registo falseado de suprimentos e (ii) através do pagamento de remunerações com o saldo credor da conta de caixa. Assim, assumiu que os valores registados nos documentos internos de lançamento de “transferência de conta”, débito da conta 11 – caixa por contrapartida da conta 26 – acionistas, correspondem a vendas realizadas sem emissão de fatura (salvo algumas exceções, em que não alterou o registo contabilístico efetuado pela Requerente) e que os pagamentos das remunerações a órgãos sociais são efetuados com dinheiro proveniente do saldo credor da conta de caixa.
Através dos documentos internos constantes dos anexos 2, 3 e 4 ao relatório de inspeção, a AT concluiu que os valores de proveitos omitidos resultantes do saldo credor de caixa e do saldo credor de remunerações a pagar somavam € 33.256,56[1], tendo, portanto, acrescido esse valor ao lucro tributável nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º do Código do IRC.
Assim, a AT propôs as correções, nomeadamente em sede de IRC do exercício de 2012, tendo em conta documentos e valores constantes da contabilidade da Requerente, aos quais deu uma interpretação diferente daquela que tinha sido dada pela Requerente no apuramento do lucro contabilístico e tributável. Ora, os registos contabilísticos são apenas isso: registos de factos relevantes para o apuramento do lucro da atividade da entidade em causa, os quais servem também, nos termos previstos no Código do IRC, para apurar o imposto devido. Não são, no entanto, imunes a manipulações na medida em que resultam da atividade humana. Assim, é possível criar documentos contabilísticos para titular factos que não ocorreram da forma como o registo faz crer, nomeadamente, documentos que titulam suprimentos que não foram efetivamente realizados. Por outro lado, é possível criar documentos contabilísticos que dão cobertura a factos que, de outra forma, não teriam suporte contabilístico, como, por exemplo, pagamentos de remunerações com base em dinheiro que “sobra” no fecho da caixa porque não lhe corresponde nenhuma fatura emitida.
A criação dos documentos contabilísticos A, B e C para registar contabilisticamente os supostos factos X, Y e X, não significa que esses factos passem a ser realidade; eles apenas o são no âmbito daquela contabilidade. O que significa, por sua vez, que podem ser postos em causa enquanto factos reais e não meramente contabilísticos.
A Requerente entende que o que a AT fez foi recorrer a indícios e presunções para estabelecer o valor da matéria tributável e que, por conseguinte, os procedimentos de determinação da matéria tributável foram indiretos e não diretos. Não nos parece que lhe assista razão.
Nos termos do disposto no artigo 83.º da LGT, a “avaliação direta visa a determinação do valor real dos rendimentos ou bens sujeitos a tributação”, enquanto “a avaliação indireta visa a determinação do valor dos rendimentos ou bens tributáveis a partir de indícios, presunções ou outros elementos de que a administração tributária disponha”.
No presente caso, não obstante a AT qualificar de forma diferente da Requerente os valores registados na sua contabilidade, são efetivamente os valores registados na contabilidade que foram tidos em conta na determinação da matéria tributável. Isto é, a AT não se serviu de indícios ou presunções para determinar o valor real dos rendimentos sujeitos a tributação, antes se serviu dos valores constantes da contabilidade da Requerente, embora qualificando-os de forma diferente e, como tal, gerando a liquidação de imposto onde a Requerente o não tinha liquidado.
Esta diferente qualificação dos valores registados na contabilidade não se traduz numa avaliação indireta dos rendimentos sujeitos a tributação, pelo contrário: foram os valores registados pelo próprio sujeito passivo na sua contabilidade que serviram de base ao apuramento da matéria tributável e, consequentemente, do imposto devido. Recorrendo às palavras de Diogo Leite de Campos/Benjamim Silva Rodrigues/Jorge Lopes de Sousa, “a avaliação foi feita com base em elementos de prova do valor real dos bens ou rendimentos tributáveis e, por isso, visa-se determinar com exatidão esse valor” (cf. Lei Geral Tributária – Anotada e Comentada, 4.ª edição, 2012, p. 739).
O facto de a AT ter alterado a qualificação que o sujeito passivo deu aos factos descritos em determinados movimentos contabilísticos não torna a avaliação indireta, pois a determinação dos rendimentos tributáveis continua a ser efetuada com base em elementos de prova do valor real dos mesmos rendimentos. No caso em análise, não se verificou a impossibilidade de comprovar e quantificar de forma direta e exata a matéria tributável através dos elementos constantes da contabilidade do sujeito passivo, razão pela qual a AT recorreu efetivamente a esses mesmos elementos.
Assim, não assiste razão à Requerente quando diz que a inspeção tributária não determinou o valor real dos rendimentos sujeitos a tributação e quando argumenta que a AT recorreu a indícios e presunções ao proceder à correção dos valores qualificados contabilisticamente como saldo credor de remunerações a pagar e como suprimentos passando-os a vendas declaradas. Aliás, importa não esquecer que a Requerente teve oportunidade, em sede de audiência prévia e nesta sede, para contestar a qualificação operada pela AT, bem como para explicar porque é que as operações desconsideradas o não deveriam ser e não o fez, optando apenas por pôr em causa a legalidade do método de avaliação da matéria tributável levado a cabo pela inspeção tributária.
VII. DECISÃO
Em conformidade com que fica exposto supra, decide-se:
(i) Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente, manter na ordem jurídica o ato de liquidação impugnado;
(ii) Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.
Valor: em conformidade com o disposto no n.º 2 do art. 315.º do CPC, conjugado com a alínea a) do n.º 1 do art. 97.º-A do CPPT e com o n.º 2 do art. 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 1.519,06 (corresponde ao valor da liquidação n.º 2015…, de 20.07.2015).
Custas: nos termos do disposto no artigo 22.º, n.º 4, do RJAT e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 306,00, a suportar integralmente pela Requerente nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Registe-se e notifique-se.
Lisboa, 15 de maio de 2016
A Árbitro,
Raquel Franco
[1] A AT apurou os valores constantes do saldo credor de caixa e do saldo credor de remunerações a pagar, tendo chegado à base tributável tendo em conta a proporção de vendas à taxa de IVA de 6% e à taxa de IVA de 23%.