Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 650/2015-T
Data da decisão: 2016-05-11  Selo  
Valor do pedido: € 3.838,22
Tema: IS - Verba n.º 28 da TGIS; propriedade vertical
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Decisão Arbitral

 

 

I.                   Relatório

 

1. A.... (doravante “Requerente”), com o número de identificação fiscal (“NIF”)…, com sede na Rua da…, n.º … –..., freguesia de…, concelho de Lisboa, apresentou, no dia 26 de outubro de 2015, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, i.e., Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), pedido de constituição de tribunal arbitral, de forma a serem declaradas ilegais as 2.ª prestações da liquidação de Imposto do Selo (“IS”), elencadas infra, por referência ao ano de 2014, no valor global € 3,838,22, sendo demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “Requerida” ou “AT”):

A) Constituição do Tribunal Arbitral

2. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitro singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação no dia 23 de dezembro de 2015.

3. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, e mediante a comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído no dia 11 de janeiro de 2016.

 

B) História processual

4. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente peticionou a declaração de ilegalidade das liquidações de IS mencionadas supra (correspondentes à 2.ª prestação), respeitantes ao ano de 2014, por referência a um prédio urbano, constituído em propriedade vertical, sito na Rua…, n.ºs … a…, freguesia de…, concelho de Lisboa.

5. A AT apresentou resposta, peticionando a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, por considerar que i) o tribunal arbitral seria incompetente (em razão da matéria) para o efeito, já que o objeto da presente pronúncia arbitral não era impugnável (em sede arbitral); e que ii) relativamente ao ato tributário em análise existia já uma decisão prévia e transitada em julgado, considerando que se verificava, dessa forma, a inutilidade superveniente da lide.

6. Por despacho de 15 de abril de 2016, o Tribunal Arbitral Singular, ao abrigo do disposto na alínea c) do artigo 16.º do RJAT, decidiu, sem oposição das partes, que não se mostrava necessário promover a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, em resultado da simplicidade das questões em apreço, bem como por considerar que tinha em seu poder todos os elementos necessários para tomar uma decisão clara e imparcial.

7. Decidiu igualmente, em conformidade com o n.º 2 do artigo 18.º do RJAT, não ser necessária a produção de alegações orais, por estarem perfeitamente definidas as posições das partes nos respetivos articulados, e fixou como prazo para a decisão arbitral o dia 15 de maio de 2016.

8. No âmbito do despacho, solicitou igualmente às partes para apresentar as suas alegações finais. A este respeito, importa salientar que tanto a Requerente como a Requerida optaram por não se pronunciar.

9. O Tribunal foi regularmente constituído e é competente para apreciar as questões indicadas (artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT), as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade plena (artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). Não ocorrem quaisquer nulidades, pelo que nada obsta ao julgamento de mérito.

10. Encontra-se, assim, o presente processo em condições de nele ser proferida a decisão final.

 

II. Questão a decidir

 

11. A questão fulcral a apreciar e decidir relativamente ao mérito da causa, tal como se retira das peças processuais das partes (já depois da AT ter tacitamente reconhecido, no âmbito da sua resposta, que as liquidações de IS, nos termos ilustrados supra, eram ilegais), prende-se somente com o seguinte: verificar-se-ão, tal como sugere a AT, as exceções i) da inimpugnabilidade do ato impugnado, e, bem assim, ii) da inutilidade superveniente da lide relativamente às liquidações que a Requerente procura impugnar?

12. Neste sentido, caso o presente tribunal venha a considerar que é incompetente, em razão da matéria, nos termos do artigo 2.º do RJAT, o mesmo terá necessariamente que se abster de apreciar o respetivo pedido de pronúncia arbitral.

13. Em paralelo, e encontrando-se formada a inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.º do Código do Processo Civil (“CPC”), resta apenas decidir, nos termos da legislação pertinente, a quem compete suportar o encargo com as custas judiciais subjacentes ao presente processo.

 

III. Decisão da matéria de facto e sua motivação

 

14. Examinada a prova documental produzida, o tribunal julga provados, com relevo para a decisão da causa, os seguintes factos:

I. A Requerente é proprietária de um prédio urbano, constituído em propriedade vertical, sito na Rua…, n.º … a…, freguesia de…, concelho de Lisboa, inscrito na matriz predial urbana da aludida freguesia, sob o artigo…, cujo Valor Patrimonial Tributário (“VPT”) é € 1.632.740 (do qual € 1.151.480 respeita a frações com afetação habitacional).

II. A Requerente recebeu, por respeito ao exercício de 2014, e em resultado do exposto na Verba n.º 28 da Tabela Geral do Imposto do Selo (“TGIS”), as notas de liquidação da AT, mencionadas supra, no montante total de € 3.838,22, as quais já liquidou.

III. A Requerente havia já submetido pedido de pronúncia arbitral, por referência 1.ª prestação de IS, no âmbito das aludidas liquidações. Neste sentido, o deferimento do seu pedido foi realizado a 18 de janeiro de 2016, já depois da constituição do presente tribunal arbitral.

15. A convicção do Tribunal sobre os factos dados como provados resultou dos documentos anexados aos autos e constantes do pedido e das alegações, não impugnadas, das partes, conforme se especifica nos pontos da matéria de facto acima enunciados.

16. Não existe factualidade relevante para a decisão da causa dada como não provada.

 

IV. Do Direito

 

A) Quadro jurídico

17. Tendo em consideração o tema em discussão no presente processo, importa, em primeiro lugar, elencar as normas que compõem o quadro jurídico relevante, à data da ocorrência dos factos.

18. Antes de mais, note-se que, não obstante a pretensão da Requerente, a Requerida já terá demonstrado, no entendimento do presente tribunal, que aceita a ilegalidade das liquidações contestadas, pelo que resta somente aferir se as exceções evocadas pela Requerida serão eventualmente aplicáveis, sendo, para tal, necessário especificar o quadro legal conexo.

19. Assim, o artigo 2.º do RJAT estabelece o âmbito da competência dos tribunais arbitrais, nos seguintes termos:

“1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a)    a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b)    a declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.

2 - Os tribunais arbitrais decidem de acordo com o direito constituído, sendo vedado o recurso à equidade”.

20. Em paralelo, o artigo que tutela a verba em discussão, no Código do IS, é o artigo 23.º,
n.º 7, respeitante à liquidação do IS, que prevê o seguinte: “tratando-se do imposto devido pelas situações previstas na verba n.º 28 da Tabela Geral, o imposto é liquidado anualmente, em relação a cada prédio urbano, pelos serviços centrais da Autoridade Tributária e Aduaneira, aplicando-se, com as necessárias adaptações, as regras contidas no CIMI”.

21. Atente-se ainda no artigo 89.º, n.º 1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT, que obsta ao conhecimento do mérito das causas, nas seguintes situações:

“1 - Para o efeito do disposto nos artigos anteriores, obstam nomeadamente ao prosseguimento do processo: 

a)        Ineptidão da petição; 

b)        Falta de personalidade ou capacidade judiciária do autor; 

c)        Inimpugnabilidade do ato impugnado; 

d)        Ilegitimidade do autor ou do demandado; 

e)        Ilegalidade da coligação; 

f)          Falta da identificação dos contrainteressados; 

g)        Ilegalidade da cumulação de pretensões; 

h)        Caducidade do direito de ação; 

i)          Litispendência e caso julgado”. 

22. Por outro lado, considerando a segunda exceção levantada pela Requerida, atente-se no CPC, que estabelece, no seu artigo 277.º, as causas de extinção de instância:

“A instância extingue-se com:

a) O julgamento;

b) O compromisso arbitral;

c) A deserção;

d) A desistência, confissão ou transação;

e) A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide”.

23. Ademais e já que a questão central do presente caso poder-se-á resumir, no limite, a decidir a quem compete suportar as custas, uma vez que a AT, nos termos anteriormente expostos, já aceitou a ilegalidade das liquidações previamente elencadas, passamos, de seguida, a expor o artigo 536.º do CPC:

“1 - Quando a demanda do autor ou requerente ou a oposição do réu ou requerido eram fundadas no momento em que foram intentadas ou deduzidas e deixaram de o ser por circunstâncias supervenientes a estes não imputáveis, as custas são repartidas entre aqueles em partes iguais.

2 - Considera-se que ocorreu uma alteração das circunstâncias não imputável às partes quando:

a) A pretensão do autor ou requerido ou oposição do réu ou requerente se houverem fundado em disposição legal entretanto alterada ou revogada;

b) Quando ocorra uma reversão de jurisprudência constante em que se haja fundado a pretensão do autor ou requerente ou oposição do réu ou requerido;

c) Quando ocorra, no decurso do processo, prescrição ou amnistia;

d) Quando, em processo de execução, o património que serviria de garantia aos credores se tiver dissipado por facto não imputável ao executado;

e) Quando se trate de ação tendente à satisfação de obrigações pecuniárias e venha a ocorrer a declaração de insolvência do réu ou executado, desde que, à data da propositura da ação, não fosse previsível para o autor a referida insolvência.

3 - Nos restantes casos de extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, a responsabilidade pelas custas fica a cargo do autor ou requerente, salvo se tal impossibilidade ou inutilidade for imputável ao réu ou requerido, caso em que é este o responsável pela totalidade das custas.

4 - Considera-se, designadamente, que é imputável ao réu ou requerido a inutilidade superveniente da lide quando esta decorra da satisfação voluntária, por parte deste, da pretensão do autor ou requerente, fora dos casos previstos no n.º 2 do artigo anterior e salvo se, em caso de acordo, as partes acordem a repartição das custas”.

 

B) Argumentos das partes

24. A Requerente veio, em síntese, defender que “as liquidações (…) respeitam aos andares de caráter habitacional de um prédio urbano, não submetido ao regime de propriedade horizontal, ou seja, em propriedade vertical (…)”.

25. Ora entende a Requerente que “cada um dos andares é suscetível de utilização económica independente e teve o seu valor patrimonial tributário determinado separadamente, pela Autoridade Tributária e Aduaneira, de acordo com as regras consagradas no Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (“CIMI”)”, sendo que o VPT de cada um destes prédios é inferior a € 1.000.000.

26. Para a Requerente, “… o valor patrimonial relevante para efeitos da tributação em sede de IS é o utilizado para efeitos do IMI – Imposto Municipal sobre Imóveis.

Ora, o C.I.M.I. trata individualmente todos os fogos, considerando cada andar como habitação autónoma e independente.

Por força do conceito de cada andar como unidade económica com suscetibilidade de utilização autónoma todos os andares, mesmo dos prédios em propriedade vertical, passaram a ser objeto de avaliação, descrição e inscrição matricial independente”.

27. Considera assim a Requerente que “em sede de IMI cada andar tem um valor patrimonial autónomo e distinto”, pelo que, no seu entendimento, “só os andares habitacionais suscetíveis de utilização separada de um prédio urbano em regime de propriedade vertical com valor patrimonial superior a um milhão de euros são passíveis de cair na previsão da norma citada”.

28. Antes de finalizar o seu pedido, a Requerente alerta para o facto de poder cumular o seu pedido (i.e., cumular várias liquidações de IS), nos termos do artigo 104.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário (“CPPT”).

29. Solicita então a Requerente que se pronuncie sobre a ilegalidade das aludidas liquidações, procedendo à sua anulação e subsequente restituição do montante já pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (“LGT”) e artigo 61.º do CPPT.

30. Por último, arrolou ainda uma testemunha para o presente processo, B…, com domicílio profissional na Rua…, n.º…, …-… Lisboa.

31. Por seu turno, a Requerida, depois de devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta na qual defendeu que “o tribunal arbitral é materialmente incompetente, face ao disposto no artigo 2.º do RJAT, para apreciar a legalidade de uma prestação do ato de liquidação, que não é em si nenhum ato tributário, não havendo qualquer dúvida, até pelo valor do processo e por todos os documentos a ele juntos, que a Requerente impugna, exclusivamente, as notas de cobrança que constituem as 2.ªs prestações do imposto relativas ao imóvel em apreço”.

32. Para o efeito, a Requerida suporta-se na decisão proferida no âmbito do processo
n.º 726/2014-T, na qual se estatuiu que “não sendo cada uma das prestações das liquidações de IS identificadas nos autos autonomamente impugnáveis, pelos motivos antes expostos, estar-se-á perante um caso de incompetência do tribunal arbitral para apreciação e declaração da sua ilegalidade e consequente anulação”.

33. Adicionalmente, a Requerida suscitou ainda a inutilidade superveniente da lide.

34. Com efeito, a Requerida veio chamar à atenção para o facto de que, através da Decisão Arbitral de 18 de janeiro de 2016, a Requerente ter obtido a procedência do seu pedido arbitral, “determinando-se nessa mesma decisão arbitral, a devolução dos montantes indevidamente cobrados, bem como foi reconhecido o direto a juros indemnizatórios a favor da Requerente”.

35. Nesse sentido, entende a Requerida que se encontra satisfeita a pretensão da Requerente, dado que o fim visado com o presente processo arbitral se encontra plenamente satisfeito, pelo que se verifica a inutilidade superveniente da lide.

36. A Requerida termina então a sua resposta, solicitando que seja procedente a exceção invocada da incompetência material do Tribunal Arbitral, sendo a mesma absolvida da instância.

37. Caso tal não se verifique, “deverá o presente pedido de pronúncia arbitral ser extinto por inutilidade superveniente da lide (…) e condenada a Requerente nas custas do processo”.

 

C) Apreciação do tribunal

38. Em primeiro lugar, cumpre ao presente tribunal fazer uma nota prévia.

39. Isto porque, é importante frisar que a questão que releva para o desfecho deste processo, não se prende com o âmbito de aplicação da Verba n.º 28 da TGIS, isto é, a que imóveis a aludida verba respeita.

40. Com efeito, nesse âmbito o presente tribunal encontra-se plenamente de acordo com os argumentos vertidos pela Requerente.

41. Ademais, esse tem sido o entendimento generalizado dos tribunais arbitrais.

42. Todavia, não pode o presente tribunal deixar de se debruçar sobre a verdadeira questão que se encontra aqui em causa (até porque a questão mencionada supra já foi inclusive validada pela Requerida).

43. Assim, o presente tribunal irá aferir se as prestações referentes a uma liquidação de IS, constantes das notas de cobrança, poderão ser consideradas autonomamente como atos de liquidação de tributos? Ou, alternativamente, estamos, tal como defende a AT, perante uma exceção da inimpugnabilidade do ato impugnado?

44. Adicionalmente, e caso se entenda que o presente tribunal é competente para apreciação do pedido, ir-se-á ainda aferir se poderemos estar, por força da decisão arbitral n.º 448/2015-T, perante a formação da inutilidade superveniente da lide, nos termos referidos pela AT?

45. Para fundamentar a sua decisão, o presente tribunal servir-se-á de algumas decisões arbitrais já transitadas em julgado, nomeadamente a decisão arbitral n.º 726/2014-T, de 10 de março (mencionada pela Requerida), a qual, pela sua pertinência, passa a transcrever.

46. “Outra das exceções invocadas pela AT é a da incompetência do tribunal arbitral para a decisão do litígio, com o fundamento de que «a Requerente não impugna um ato tributário, mas impugna, antes, o pagamento de uma prestação de um ato tributário constante de uma nota de cobrança”, ou seja, que “o objeto do processo é a anulação não de um ato tributário, mas sim de uma nota de cobrança para o pagamento da 2.ª prestação de um imposto, matéria esta que não consta, em absoluto, do conjunto da norma que delimita a competência dos tribunais arbitrais tributários, constante do art.º 2.º do RJAT». A competência dos tribunais arbitrais tributários que funcionam junto do CAAD é fixada pelos artigos 2.º, n.º 1, e 10.º, n.º 1, do RJAT.

Concretamente, refere o artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, que tal competência compreende a apreciação de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, enquanto a alínea a) do n.º 1 do seu artigo 10.º, estabelece o prazo de 90 dias para apresentação do pedido de constituição do tribunal, «contado a partir dos factos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, quanto aos atos suscetíveis de impugnação autónoma e, bem assim, da notificação da decisão ou do termo do prazo legal de decisão do recurso hierárquico».

 

Determinar a competência do tribunal arbitral para decidir a pretensão objeto dos presentes autos, passará, necessariamente, por averiguar se o pedido de declaração de ilegalidade e consequente anulação de uma das prestações de uma liquidação de Imposto do Selo, efetuada ao abrigo da verba 28, da TGIS, equivale a um pedido de anulação total ou parcial da mesma liquidação ou, não equivalendo, se uma daquelas prestações poderá configurar um ato suscetível de impugnação autónoma.

Quanto à primeira questão, poderá afirmar-se que uma prestação não equivale a uma liquidação de imposto, porquanto, nos termos do n.º 7, do artigo 23.º, do Código do Imposto do Selo, na redação que lhe foi dada pelo artigo 3.º, da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, “7 - Tratando-se do imposto devido pelas situações previstas na verba n.º 28 da Tabela Geral, o imposto é liquidado anualmente, em relação a cada prédio urbano, pelos serviços centrais da Autoridade Tributária e Aduaneira, aplicando-se, com as necessárias adaptações, as regras contidas no CIMI”.

Ora, a expressão «o imposto é liquidado anualmente» indicia que é efetuada uma única liquidação anual, embora a mesma possa ser dividida, para efeitos de pagamento, em prestações, e não tantas liquidações quantas as prestações em que o débito deva ser satisfeito – a divisão de uma liquidação em prestações não passará, assim, de uma mera técnica de arrecadação de receitas.

Por outro lado, a questão de saber se uma prestação pode ser havida como parte autonomamente impugnável da liquidação, remete-nos para a da divisibilidade do ato tributário de liquidação e consequente possibilidade da sua anulação parcial.

A este respeito, tem a jurisprudência entendido que a liquidação é um ato divisível, quer por natureza, por respeitar a uma obrigação de natureza pecuniária, quer por definição legal, uma vez que o artigo 100.º, da Lei Geral Tributária (LGT) admite a «procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo», situação em que a administração fiscal, fica obrigada “à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei».

No entanto, para que haja anulação parcial do ato tributário, necessário se torna que a ilegalidade o afete apenas em parte (cfr., neste sentido, o Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA, proferido em 10 de abril de 2013, no (…) em cujo sumário se lê: «Sumário: I - O ato tributário, enquanto ato divisível, tanto por natureza como por definição legal, é suscetível de anulação parcial. II - O critério para determinar se o ato deve ser total ou parcialmente anulado passa por determinar se a ilegalidade afeta o ato tributário no seu todo, caso em que o ato deve ser integralmente anulado ou apenas em parte, caso em que se justifica a anulação parcial».

Assim, nos casos em que o ato tributário é divisível, «se for pedida a anulação parcial de um ato tributário, o tribunal não poderá, em princípio, anulá-lo totalmente[1]»; se for pedida a sua anulação integral e o ato for apenas parcialmente anulável, o pedido será parcialmente improcedente.

Sobre a questão da indivisibilidade de uma liquidação de Imposto do Selo a que se refere a verba 28 da TGIS, já se pronunciou o CAAD, no processo n.º 205/2013-T, conforme o extrato que se transcreve: «11. Vem ainda a Requerida impugnar o valor da causa considerando que o mesmo é de € 8.940,94 e não de € 28.822,80, conforme indicado pela Requerente.

Sustenta a Requerente que «o ato impugnado nestes autos é o ato de liquidação com o n.º...de 22/02/2013, referente à primeira prestação de imposto de selo, do ano de 2012, no montante de € 8.940,94, junta pelo requerente ao pedido de pronúncia arbitral como Doc.1».

Acontece, porém, que o valor da liquidação nº ... de 22/02/2013, como consta do referido documento é, na realidade, de € 26.822,00 e não de € 8.940,94. Note-se que, não existe qualquer liquidação de € 8.940,94. Este valor é apenas a primeira prestação duma liquidação que foi desde logo efetuada e no valor indicado pela Requerente.

Da circunstância do valor da liquidação poder ser pago em várias prestações, não decorre que existam três liquidações. Trata-se, diferentemente, duma liquidação que pode ser paga em várias prestações (sublinhado nosso), não estando o sujeito passivo impedido de impugnar a mesma devido ao facto de ainda só ter decorrido o prazo de pagamento de uma delas.

O sujeito passivo impugnou o ato de liquidação com o n.º... de 22/02/2013, no valor de
€ 26.822,00, que lhe havia sido notificada e é esse o valor correto da causa”.

Também o processo arbitral n.º 120/2012-T (…) e do qual se extraem os fragmentos que seguem, se havia já pronunciado sobre a indivisibilidade de uma liquidação de IMI, matéria de aplicação subsidiária às liquidações de Imposto do Selo da verba 28, da TGIS, por remissão do n.º 2 do artigo 67.º do Código do Imposto do Selo: «De acordo com o disposto no artigo 113.º, n.º 2 do Código do IMI, a liquidação deste imposto é efetuada nos meses de fevereiro e março do ano seguinte àquele a que o imposto diz respeito.

Nos termos do n.º 1 do artigo 120.º do mesmo diploma, o imposto deve ser pago em duas prestações, nos meses de abril e setembro, desde que o seu montante seja superior a Euros 250, devendo o pagamento, no caso de esse montante ser igual ou inferior àquele limite, ser efetuado de uma só vez, durante o mês de abril (…) conforme resulta, assim, do disposto nos referidos artigos, embora o ato autonomamente sindicável seja o ato de liquidação de IMI (sublinhado nosso), o prazo para contestar a sua legalidade apenas deverá ser contado a partir do termo do prazo de pagamento do imposto nele apurado.

Devendo este ser pago, nos termos da lei, em mais do que uma prestação, apenas com o termo da última daquelas (pressupondo, naturalmente, a não verificação de situações de vencimento antecipado) é que se poderá assim iniciar a contagem do prazo referido no artigo 102.º, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável, no âmbito do processo arbitral, ex vi o disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (…)».

(…)Tal conclusão resulta, aliás, clara da natureza indivisível do ato de liquidação, bem como da necessidade – de resto, enfatizada pela própria Requerida – de, relativamente à mesma liquidação de IMI - que, nos termos da lei deva ser paga em duas prestações - não serem proferidas decisões administrativas ou judiciais contraditórias (…) É que – reiteremos –, não sendo qualquer das prestações de pagamento de IMI autonomamente sindicável – mas apenas o ato de liquidação a que aquelas se refiram.

 

As prestações de pagamento de uma liquidação de IMI ou, na situação em análise, de uma liquidação de Imposto do Selo, nos termos da Verba 28, da TGIS, não são autonomamente sindicáveis, por terem origem numa única obrigação anual, de acordo com a lição de Braz Teixeira: «é necessário não confundir as prestações periódicas, que, embora realizando-se por atos sucessivos, em momentos diversos, têm origem numa mesma obrigação e constituem as várias parcelas de uma mesma prestação que se cindiu, com as prestações que devem efetuar-se periodicamente, não devido a uma divisão da prestação global, mas sim ao nascimento, também periódico, de novas obrigações, pela permanência dos pressupostos de facto da tributação».

Concluindo-se que as prestações de uma liquidação de imposto não são autonomamente impugnáveis, por consubstanciarem parcelas de uma prestação global, com origem numa mesma obrigação, cumpre averiguar se uma daquelas prestações pode ser considerada como um «ato de impugnação autónoma», a que se refere o artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, com remissão para os n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º, do CPPT.

Em anotação ao artigo 102.º, do CPPT, e relativamente à alínea e) do seu n.º 1, em que se prevê o termo inicial do prazo de impugnação judicial na data da «notificação dos restantes atos que possam ser objeto de impugnação autónoma nos termos deste Código», escreve Jorge Lopes de Sousa: «(…) aplica-se esta regra não só aos casos de impugnação autónoma previstos neste Código [decisões de recurso hierárquico que comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação (art. 76.º, n.º 2), atos de autoliquidação (art. 131.º), atos de retenção na fonte (art. 132.º) e atos de fixação de valores patrimoniais (art. 134.º), mas também aos outros casos de impugnação de atos de avaliação direta (artigo 86.º, n.º 1, da LGT)».

O facto de a declaração de ilegalidade dos atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, os atos de determinação da matéria coletável e de fixação de valores patrimoniais, integrarem a competência dos tribunais arbitrais, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, devendo o pedido de constituição do tribunal arbitral, quanto a eles, ser apresentado no prazo de 30 dias a contar da data da respetiva notificação, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, leva à conclusão necessária de que os atos de impugnação autónoma a que se refere o artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, são os atos de liquidação, de autoliquidação e de pagamentos por conta, ainda que, relativamente a estes, tenha sido apresentada reclamação graciosa ou recurso hierárquico, expressa ou tacitamente indeferidos.

Tendo-se excluído a possibilidade de uma prestação configurar um ato tributário de liquidação, muito menos se lhe poderá atribuir a natureza de autoliquidação ou de pagamento por conta. Não sendo cada uma das prestações das liquidações de IS identificadas nos autos autonomamente impugnáveis, pelos motivos antes expostos, estar-se-á perante um caso de incompetência do tribunal arbitral para apreciação e declaração da sua ilegalidade e consequente anulação”.

47. Com efeito, não obstante, por diversas vezes, a jurisprudência se ter manifestado no sentido da cindibilidade dos atos de liquidação de tributos, tal como anteriormente se referiu, note-se que a mesma (cindibilidade) só será considerada, para efeito de uma eventual impugnação de atos de liquidação de tributos, nos casos em que a anulabilidade parcial seja possível.

48. Ora, apesar do enquadramento vertido supra, o presente tribunal considera que a situação em crise tem, naturalmente, diversas especificidades que deverão ser igualmente consideradas, no âmbito desta decisão arbitral, com o propósito de garantir a legitimidade da mesma.

49. Em primeiro lugar, note-se que, apesar de afirmar veemente que os atos de liquidação de tributos são indivisíveis, a AT, ao emitir as notas para o pagamento do IS, dá espaço ao contribuinte para, caso pretenda, se opor, de forma separada, ao pagamento das mesmas (i.e., por prestação), reconhecendo a divisibilidade e a impugnabilidade autónoma de cada um dos atos de liquidação de tributos, neste caso de IS.

50. De facto, em cada uma das aludidas notas, é possível ler “poderá reclamar ou impugnar a liquidação nos termos e prazos estabelecidos nos artigos 70.º e 102.º do CPPT”.

51. E, neste sentido, não obstante a posição que defende, a verdade é que a própria Requerida tem, no âmbito da sua atuação no ordenamento jurídico-fiscal português, se comportado como se os atos de liquidação de tributos fossem passíveis de ser cindíveis, nomeadamente quando respeitam a IS.

52. Assim sendo, que dizer das expetativas legitimamente formadas pelo contribuinte (e da sua confiança na AT), quando a AT refere expressamente que este fica legitimado a reagir, contra cada uma das notificações, individualmente?

53. Isto porque, e é especialmente importante salientar, o sujeito passivo, neste caso a Requerente, assume, naturalmente, o caráter autónomo de cada prestação, enquanto ato de liquidação de tributos individual.

54. Atentemos, a este respeito, nas palavras do Professor Rui Duarte Morais.

55. “As notificações têm que conter a indicação dos meios de reação utilizáveis contra o ato notificado. E se tal indicação estiver errada? Começamos por notar que este tipo de situações é algo vulgar”.

56. Questiona então o Professor se nestes casos se justifica “que o Tribunal se abstenha de conhecer da questão e o contribuinte obrigado a apresentar uma tal reclamação?”

57. Ora no seu entendimento, tal comportamento não é necessário.

58. Com efeito, “a reclamação em causa é, no essencial, uma forma de recurso judicial. Ou seja, se o litígio implica uma decisão judicial e o «processo» já subiu ao Tribunal (ainda que por via imprópria, por erro da Administração), não se vislumbra qualquer interesse em recomeçar toda a tramitação a partir do «zero». Haveria, sim, que proceder à correção da forma processual utilizada”[2].

59. Por último, refira-se igualmente que esta perspetiva encontra apoio em diversas decisões arbitrais, nomeadamente na decisão arbitral n.º 618/2014-T, de 7 de fevereiro, tantas vezes mencionada nesta decisão, que, ao reconhecer autonomamente a ilegalidade da 3.ª prestação de IS, considerando como procedente a respetiva impugnação, validou, naturalmente, a possibilidade das liquidações de IS serem cindíveis e, dessa forma, as prestações em que, por regra, se decompõem, individualmente impugnadas.

60. Veja-se ainda, a título de exemplo, a decisão arbitral proferida no Processo n.º 757/2014-T, na qual o contribuinte tinha solicitado a impugnação da 2.ª e 3.ª prestações referentes ao ato de liquidação de IS.

61. Nesse caso concreto, o respetivo tribunal reconheceu e declarou no mesmo processo que, quanto ao ato de liquidação de IS apenas anularia a 3.ª prestação, já que, para efeitos daquela petição inicial, o pedido correspondente à 2.ª prestação já se encontrava intempestivo (confirmando, uma vez mais, que impugnabilidade autónoma de cada uma das prestações, individualmente consideradas, é legítima).

62. Numa outra perspetiva, a AT faz ainda referência à inutilidade superveniente da lide, uma vez que considera que o presente assunto já terá sido sancionado na decisão arbitral referente ao processo n.º 448/2015-T, de 18 de janeiro, solicitando que o presente tribunal arbitral se abstenha de se pronunciar sobre a questão em análise.

63. A este respeito, cumpre relembrar que as decisões só constituem caso julgado nos precisos limites e termos em que julgaram, sendo, por isso, necessário determinar qual o verdadeiro sentido e alcance do julgamento (neste caso, da decisão arbitral mencionada no ponto anterior).

64. Ora segundo Abílio Neto, “os limites do caso julgado são traçados pelos elementos identificadores da relação ou da situação jurídica substancial definida pela sentença: os sujeitos, o objeto e a fonte ou o título constitutivo. Por outro lado, é preciso atender aos termos dessa definição (…) ela tem autoridade – faz lei – para qualquer processo futuro, mas só em exata correspondência com o seu conteúdo. Não pode, portanto, impedir que em novo processo se discuta e dirima aquele que ela mesma não definiu”.

65. Neste sentido, nos termos do artigo 581.º do CPC, “repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.

66. Ora na situação em crise, e apesar do sujeito passivo ser o mesmo, o presente tribunal considera que os outros dois requisitos não se verificam, (i.e, o pedido e a causa de pedir são manifestamente distintos).

67. E mais se refira que, à data da submissão do pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente tribunal, dia 26 de outubro de 2015, a decisão arbitral relativa ao processo n.º 448/2015-T, não havia ainda sido publicada (facto que só se veio a verificar no dia 18 de janeiro de 2015).

68. Dessa forma, entende-se como legítimo que, para salvaguardar a sua posição, a Requerente tenha igualmente procurado obter uma pronúncia arbitral relativamente às prestações mencionadas supra.

69. Não se verificando, assim, na opinião do presente tribunal, a formação da exceção da inutilidade superveniente da lide.

70. Neste contexto, e tendo em consideração aquelas que eram as questões que o presente tribunal se proponha a decidir, somos de dar razão à Requerente e consequentemente, considerar procedente o presente pedido de pronúncia arbitral.

71. Por último, cumpre salientar que não se revela necessário, no entendimento do presente tribunal, ouvir a testemunha arrolada para o processo pela Requerente.

 

V. Decisão

72. Termos em que este Tribunal Arbitral decide:

A) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, declarar ilegal e anular os atos de liquidação de IS mencionados supra, por referência a 2014, dos quais resultou imposto a pagar no montante de € 3.882,22, nos termos do disposto na Verba n.º 28 da TGIS;

B) Condenar a Requerida, nos termos do artigo 43.º, n.º 1 da LGT e 61.º, n.ºs 2 e 5 do CPPT, no pagamento dos juros indemnizatórios, à taxa resultante do n.º 4 do artigo 43.º da LGT, calculados sobre a quantia paga, desde o dia em que foram pagas as liquidações mencionadas supra e até o integral reembolso do montante referido; e

C) Condenar a Requerida nas custas do processo.

VI. Valor do processo

73. Fixa-se o valor do processo em € 3.838,22, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, al. a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

VII. Custas

74. De harmonia com o disposto no artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerida, dada a procedência integral do pedido.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, CAAD, 11 de maio de 2015

 

O Árbitro

 

 

 

 

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(Sérgio Santos Pereira)



[1] SOUSA, Jorge Lopes de, “Código de Procedimento e de Processo Tributário – anotado e comentado” I Volume, Áreas Editora, 2006, pág. 875.

[2] Cfr. Manual de Procedimento e de Processo Tributário, Edições Almedina, 1.ª Edição, Coimbra, setembro de 2012, pág. 24.