Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 611/2015-T
Data da decisão: 2016-05-09  IUC  
Valor do pedido: € 792,53
Tema: IUC – Incidência subjectiva; Locação financeira; Presunções legais
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Decisão Arbitral

 

 

 

 

            I – Relatório

 

            1.1. A…(doravante designado por «Requerente»), residente na Av…, n.º … –…-… …, Braga, com o NIF…, tendo sido notificado do indeferimento de recurso hierárquico, relativo a liquidação de IUC dos anos de 2013 e 2014, da viatura com a matrícula …-…-…, apresentou, em 21/9/2015, um pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, nos termos do disposto no artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante designado por «RJAT»), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista a anulação do mencionado acto de indeferimento, considerando-se “sem efeito a referida liquidação de IUC”.

 

            1.2. Em 30/11/2015 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Singular.

 

            1.3. Nos termos do art. 17.º, n.º 1, do RJAT, foi a AT citada, enquanto parte requerida, para apresentar resposta, nos termos do referido artigo. A AT apresentou a sua resposta em 27/1/2016, tendo argumentado no sentido da total improcedência do pedido do Requerente, tendo ainda invocado excepção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa, por alegada intempestividade do pedido formulado.

 

            1.4. O ora Requerente, em requerimento datado de 31/3/2016, pronunciou-se sobre a excepção alegada pela AT, tendo, em síntese, considerado a mesma “improcedente”, uma vez que, em seu entender, “o pedido formulado é tempestivo”.

 

            1.5. Por despacho de 2/5/2016, o Tribunal considerou que, como o ora Requerente já se tinha pronunciado sobre a excepção invocada pela Requerida – estando, assim, cumprido o disposto no artigo 18.º, n.º 1, al. b), do RJAT –, se mostrava dispensável, ao abrigo do artigo 16.º, al. c), do RJAT, a reunião prevista no referido artigo 18.º e que o processo estava pronto para decisão. Ao abrigo do disposto nos artigos 16.º, als. c) e e), e 19.º do RJAT, o Tribunal considerou, também, ser dispensável a produção de prova testemunhal (pretendida pelo ora Requerente), dado ter-se verificado existirem nos autos elementos probatórios suficientes para proferir a decisão. Nestes termos, foi, por último, fixada a data de 9/5/2016 para a prolação da decisão arbitral.

            1.6. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é materialmente competente, o processo não enferma de vícios que o invalidem (vd. infra, “questão prévia”) e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas.

 

            II – Alegações das Partes

 

            2.1. Vem o ora Requerente alegar, na sua petição inicial, que: a) “contrariamente à posição da Autoridade Tributária e pela Sr.ª Directora, o registo definitivo mais não constitui do que a presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos exactos termos do registo, mas presunção ilidível, admitindo, por isso, contraprova, como decorre da lei e a jurisprudência vem assinalando, podendo, a este propósito, ver-se, entre outros, os Acórdãos do STJ nºs 03B4369 e 07B4528, respectivamente, de 19/02/2004 e 29/01/2008”; b) “a referida viatura já não é propriedade do A. desde pelo menos setembro de 1997, pois que em 18.09.1997 o A. pediu a anulação da apólice da referida viatura à companhia de seguros por ter vendido a mesma – cfr. doc. 1”; c) “naquele ano, em meados de Setembro, o A. vendeu a viatura em causa, matricula …-…-…, a B…, que tinha um estabelecimento denominado «C… »”; d) “não é pois o A. responsável pelo pagamento do IUC, pois que não é o legitimo possuidor da referida viatura desde pelo menos 1997”; e) “O n.º 1 do art. 3.º do CIUC, que estatui que são sujeitos passivos de imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados, pode ser dividida em duas partes: a primeira, constituída por previsão e estatuição, e a segunda, que configura uma presunção”; f) “na primeira, a norma determina que os sujeitos passivos do IUC (previsão) são os proprietários dos veículos (estatuição), na segunda, considera como proprietários aqueles em nome dos quais os veículos se encontrem registados, estabelecendo, assim, uma presunção legal, que é, por natureza, uma presunção relativa, juris tantum”; g) “o registo definitivo é tão-só uma presunção da existência do direito, que admite prova em contrário, constituindo, portanto, presunção ilidível, conforme, aliás, tem sido reconhecido na jurisprudência”; h) “a ratio legis do imposto aponta no sentido de serem tributados os efectivos proprietários/utilizadores dos veículos pelo que a expressão «considerando-se» está usada no normativo em apreço num sentido semelhante a «presumindo-se», razão pela qual dúvidas não há que está consagrada uma presunção legal”; i) “consagrando o art. 3.º, n.º 1, do CIUC uma presunção juris tantum, portanto, ilidível, a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veículo e que, por essa razão foi considerada pela Autoridade Tributária como sujeito passivo do imposto, pode apresentar elementos de prova visando demonstrar que o titular da propriedade é outra pessoa, para quem a propriedade foi transferida”; j) “dos elementos carreados para o processo pelo A. extrai-se a conclusão que este não era proprietário do veículo a que respeitam as liquidações em apreço, por, entretanto, já ter transferido a propriedade dos mesmos, nos termos da lei civil”; l) “transmissão de propriedade que é oponível à ATA, porquanto, embora os factos sujeitos a registo só produzam efeitos contra terceiros quando registados, face ao disposto no art. 5.º, n.º 1, do Código do Registo Predial, a Autoridade Tributária não é terceiro para efeitos de registo”.     

 

            2.2. Pelo acima exposto, pretende o Requerente, em síntese, que seja “dado sem efeito a referida liquidação de IUC ao A., por manifestamente o mesmo já não ser proprietário do veículo em causa nos autos, sendo ilegal a liquidação de tal imposto ao A.”.  

           

            2.3. Por seu lado, a AT vem alegar, na sua contestação: a) que “o Requerente peticiona que o Tribunal se digne apreciar a legalidade dos actos de liquidação de IUC, identificados no processo”; b) que “o objecto imediato do processo deveria ser o indeferimento do recurso hierárquico, indeferido por despacho notificado a 23 de Junho de 2015”; c) que “das notas de liquidação (conforme processo administrativo) constam como datas limite de pagamento do IUC o dia 17 de Junho de 2014”; d) que, “tendo o Requerente apresentado o pedido de constituição de Tribunal Arbitral em 21 de Setembro de 2015 e considerando o exposto nos pontos anteriores, verifica-se que nesta data havia já sido ultrapassado o prazo legalmente definido para a impugnação em sede arbitral, dos actos de liquidação em apreço nos presentes autos, pelo que aquele pedido é intempestivo, não podendo o Tribunal conhecer o mesmo”; e) que “o pedido formulado (conducente à anulação dos actos de liquidação) [deve] ser declarado improcedente, por intempestivo, porquanto a caducidade do direito de acção consubstancia uma excepção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa”; f) que “o entendimento propugnado pelo Requerente incorre não só de uma enviesada leitura da letra da lei, como da adopção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e decorre ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC”; g) que “é imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas] as pessoas em nome das quais os mesmos [os veículos] se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal”; h) que “entender que o legislador consagrou aqui uma presunção, seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem”; i) que “o artigo 3.º do CIUC não comporta qualquer presunção legal, sendo certo que a tese propugnada pelo Requerente direcciona o seu objectivo para o alvo errado”; j) que “também o elemento sistemático de interpretação da lei demonstra que a solução propugnada pelo Requerente é intolerável, não encontrando, o entendimento por esta sufragado, qualquer apoio na lei, porquanto tal resulta não apenas do aludido n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, mas também de outras normas consagradas no referido Código”; l) que, “mesmo admitindo que, do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial, a ausência de registo não afecta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real), nos termos estabelecidos no CIUC (que no caso em apreço constitui lei especial, a qual, nos termos gerais de direito derroga a norma geral), o legislador tributário quis intencional e expressamente, que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome das quais [os veículos] se encontrem registados”; m) que, “à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o Código do IUC, a interpretação propugnada pelo Requerente no sentido de que o sujeito passivo do IUC é o proprietário efectivo, independentemente de não figurar no registo automóvel, o registo dessa qualidade, é manifestamente errada, na medida em que é a própria ratio do regime consagrado no Código do IUC que constitui prova clara de que o que o legislador fiscal pretendeu foi criar um Imposto Único de Circulação assente na tributação do proprietário do veículo tal como constante do registo automóvel”; n) que “os actos tributários em crise não enfermam de qualquer vício de violação de lei, na medida em que à luz do disposto no artigo 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC e do artigo 6.º do mesmo Código, era o Requerente, na qualidade de proprietário, o sujeito passivo do IUC”; o) que “o ora requerente não instruiu o seu pedido de pronúncia arbitral com qualquer documento com valor probatório com vista a tal ilisão”; p) que o “documento [n.º 1] para além de não lograr provar a anulação de qualquer apólice de seguro, referente ao veículo em causa nos autos, não logra provar qualquer transmissão de propriedade, pelo que aqui vai expressamente impugnado, por dele não se poder retirar os efeitos jurídicos almejados pela Requerente. O mesmo se dirá do documento n.º 2, consubstanciado numa alegada declaração do alegado comprador da viatura [dado que] não se trata de um contrato de compra e venda e que se encontra desprovido de qualquer autenticidade, sem qualquer força probatória. Consequentemente, não se retira qualquer força probatória dos documentos juntos como doc. 4, 5 e 6”; q) que “tais documentos jamais podem beneficiar da presunção de verdade a que alude o artigo 75.º da LGT”; r) que “o Requerente não juntou prova documental do contrato de compra e venda, quando podia e devia tê-lo feito, ou seja, no requerimento do pedido de pronúncia arbitral, encontrando-se agora precludida a possibilidade de o fazerem em momento ulterior, conforme supra transcrita decisão interlocutória proferida no âmbito do processo arbitral n.º 75/2012-T [...]. [...] a verdade é que o Requerente não juntou meios de prova, para ilidir a presunção resultante do registo, pelo que terá de improceder o pedido formulado pelo Requerente”; s) “a interpretação veiculada pelo Requerente [...] mostra-se contrária à Constituição, na medida em que tal interpretação traduz-se na violação do princípio da confiança, do princípio da segurança jurídica, do princípio da eficiência do sistema tributário e do princípio da proporcionalidade”.

 

2.4. A Requerida conclui, em síntese, que “deverá ser julgada procedente a excepção da caducidade do direito de acção arbitral, com a absolvição da entidade Requerida da instância; ou, caso assim não se entenda, deverá ser julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários de liquidação impugnados e absolvendo-se, em conformidade, a Requerida do pedido.”

 

            III – Factualidade Provada, Não Provada e Respectiva Fundamentação

 

3.1. Consideram-se provados os seguintes factos:

 

            i) De acordo com os dados fornecidos pelo IRN e IMT, consta da base de dados da AT a informação de que o ora Requerente era proprietário do veículo com a matrícula …-…-…, com início a 29/4/1998, informação esta que serviu de base às liquidações de IUC dos anos de 2013 e 2014 ora em causa (vd. rec. hierárquico apenso aos autos).

 

            ii) Não tendo ocorrido a liquidação e pagamento dos IUC dos anos de 2013 e 2014, acima referidos, a AT procedeu à sua liquidação oficiosa em 21/5/2014, no valor total ora em causa de €792,53: IUC de 2013 (liquidação 2013…, no valor de €401,88: €382,00 de IUC + €19,88 de juros compensatórios) + IUC de 2014 (liquidação 2014…, no valor de €390,65: €386,00 de IUC + €4,65 de juros compensatórios).

 

iii) Não concordando com as mencionadas liquidações, o ora Requerente apresentou reclamação graciosa, a qual foi totalmente indeferida, por Despacho notificado ao Requerente em 7/10/2014. Inconformado com esta decisão, o ora Requerente apresentou, em 4/11/2014, recurso hierárquico, o qual foi também indeferido, através de Despacho de 29/5/2015 (vd. rec. hierárquico apenso aos autos).

 

            iv) Inconformado com o referido indeferimento do recurso hierárquico, o Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral a 21/9/2015.  

 

            3.2. Quanto aos documentos trazidos aos presentes autos pelo Requerente (v. Docs. 1 a 6) – visando a demonstração de que a viatura ora em causa tinha sido vendida, “em meados de Setembro [de 1999], [...] a B…” – considera-se que os mesmos (entre os quais não se encontra, sequer, contrato de compra e venda ou factura/recibo de venda) não permitem ilidir a presunção estabelecida no artigo 3.º, n.º 1, do CIUC. A referida presunção apenas poderia ser ilidida através da apresentação de prova documental que atestasse, de uma forma inequívoca, que o ora Requerente não era, à data dos factos, o proprietário do veículo em causa – prova essa que, como se disse, não foi feita.

 

            3.3. Os factos considerados pertinentes e provados (v. 3.1) fundamentam-se na análise das posições expostas pelas partes e da prova documental junta aos autos. O facto considerado não provado fundamenta-se na ausência de prova documental demonstrativa da alegação que foi feita.

 

            IV – Questão Prévia

 

Como se referiu no relatório da presente decisão, a Requerida invocou, na sua resposta de 27/1/2016, excepção por alegada intempestividade do pedido de pronúncia arbitral.

 

Cabe, assim, averiguar se a mesma deve ser considerada procedente, atendendo, ainda, ao que consta do requerimento do Requerente de 31/3/2016, no qual este se pronunciou sobre a referida excepção.

 

Alega a Requerida, em síntese, que: “o objecto do pedido são [...] as liquidações de IUC acima referidas e identificadas no presente processo”; “o objecto imediato do processo deveria ser o indeferimento do recurso hierárquico, indeferido por despacho notificado a 23 de Junho de 2015”; “não obstante, do teor do pedido formulado e acima transcrito, verifica-se que os actos tributários sindicados e que são de facto objecto do pedido de pronúncia arbitral não são o de indeferimento do recurso hierárquico (referido no ponto anterior) mas sim, como refere o Requerente, os actos de liquidação de IUC relativos aos anos de 2013 e 2014, respeitante ao veículo …-…-…”. Conclui a Requerida que, “tendo o Requerente apresentado o pedido de constituição de Tribunal Arbitral em 21 de Setembro de 2015 e considerando o exposto nos pontos anteriores, verifica-se que nesta data havia já sido ultrapassado o prazo legalmente definido para a impugnação em sede arbitral, dos actos de liquidação em apreço nos presentes autos, pelo que aquele pedido é intempestivo, não podendo o Tribunal conhecer o mesmo.”

 

Não assiste, contudo, razão à Requerida, uma vez que, apesar da formulação não ser a mais clara no início da p.i. do Requerente, não deixa de ser expressa e inteligível a indicação da pretensão objecto do presente pedido de pronúncia arbitral, quando o Requerente refere, de uma forma inequívoca – logo no ponto 1.º da referida p.i. – que discorda da posição da Sra. Directora de Serviços do IMT, IS, IUC e Contribuições Especiais, responsável pelo acto de indeferimento do recurso hierárquico sindicado: “[o Requerente] vem requerer o julgamento por este tribunal de questão [...] que foi objecto de indeferimento de recurso hierárquico pela Sra. Directora de Serviços do IMT, IS, IUC e Contribuições Especiais, com os fundamentos seguintes: 1 – Contrariamente à posição da Autoridade Tributária e [da] Sra. Directora, ...”. E também é certo que, como acrescenta o ora Requerente, no seu requerimento de 31/3/2016, tal pedido não inviabiliza eventuais referências a actos de liquidação, apesar de estes não terem sido directa ou autonomamente sindicados: “O que se pede ao Tribunal é que se pronuncie sobre o indeferimento do recurso hierárquico [...] pois que o fundamento do indeferimento do recurso hierárquico é precisamente a legalidade da liquidação do IUC em causa.”

 

Pelo acima exposto – e considerando: a natural necessidade de fazer referência, no pedido de pronúncia arbitral, aos actos de liquidação resultantes de actos de indeferimento; a referência (expressa e inteligível) constante do ponto 1.º da p.i. do Requerente, supra citado; e, ainda, a indicação, também aí feita, à decisão de indeferimento e às razões da discordância com a mesma –, julga-se improcedente a referida excepção por alegada intempestividade do pedido de pronúncia arbitral.    

 

V – Do Direito

 

No presente caso, são três as questões de direito controvertidas: 1) saber se o artigo 3.º do CIUC contém uma presunção e se a ilisão da mesma foi feita; 2) saber se, como alega a AT, a interpretação do ora requerente não atende aos elementos sistemático e teleológico de interpretação da lei; 3) saber se, como também alega a AT, “a interpretação veiculada pelo Requerente [...] mostra-se contrária à Constituição”.

 

            Vejamos, então.

 

            1) e 2) As duas primeiras questões de direito confluem na direcção da interpretação do art. 3.º do CIUC, pelo que se mostra necessário: A) saber se a norma de incidência subjectiva, constante do referido art. 3.º, estabelece ou não uma presunção; B) saber se, ao considerar-se que essa norma estabelece uma presunção, tal viola a “unidade do regime”, ou desconsidera o elemento sistemático e o elemento teleológico; C) saber – admitindo que a presunção existe (e que a mesma é iuris tantum) – se foi feita a ilisão da mesma.  

 

            A) O artigo 3.º, n.os 1 e 2, do Código do Imposto Único de Circulação, tem a seguinte redacção, que aqui se reproduz:

 

            “Artigo 3.º – Incidência Subjectiva

 

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

             

            A interpretação do texto legal citado é, naturalmente, imprescindível para a resolução do caso em análise. Nessa medida, afigura-se necessário recorrer ao art. 11.º, n.º 1, da LGT, e, por remissão deste, ao art. 9.º do Código Civil (CC).

 

            Ora, nos termos do referido art. 9.º do CC, a interpretação parte da letra da lei e visa, através dela, reconstituir o “pensamento legislativo”. O mesmo é dizer (independentemente da querela objectivismo-subjectivismo) que a análise literal é a base da tarefa interpretativa e os elementos sistemático, histórico ou teleológico são guias de orientação da referida tarefa.

 

            A apreensão literal do texto legal em causa não gera - ainda que seja muito discutível a separação desta relativamente ao apuramento, mesmo que mínimo, do respectivo sentido - a noção de que a expressão “considerando-se como tais” significa algo diverso de “presumindo-se como tais”. De facto, muito dificilmente encontraríamos autores que, numa tarefa de pré-compreensão do referido texto legal, repelissem, “instintivamente”, a identidade entre as duas expressões.

 

            Confirmando a indistinção (tanto literal como de sentido) das palavras “considerando” e “presumindo” (presunção), vejam-se, por ex., os seguintes artigos do Código Civil: 314.º, 369.º, n.º 2, 374.º, n.º 1, 376.º, n.º 2, e 1629.º. E, com especial interesse, o caso da expressão “considera-se”, constante do art. 21.º, n.º 2, do CIRC. Como assinalam Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, a respeito desse artigo do CIRC: “para além de esta norma evidenciar que o que está em causa em sede de tributação de mais valias é apurar o valor real (o de mercado), a limitação ao apuramento do valor real derivada das regras de determinação do valor tributável previstas no CIS não poder deixar de ser considerada como uma presunção em matéria de incidência, cuja ilisão é permitida pelo artigo 73.º da LGT” (Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª ed., 2012, pp. 651-2).

 

            B) Estes são apenas alguns exemplos que permitem concluir que é precisamente por razões relacionadas com a “unidade do sistema jurídico” (o elemento sistemático) que não se poderá afirmar que só quando se usa o verbo “presumir” é que se está perante uma presunção, dado que o uso de outros termos ou expressões (literalmente similares) também podem servir de base a presunções. E, de entre estas, as expressões “considera-se como” ou “considerando-se como” assumem, como se viu, destaque.

 

            Se a análise literal é apenas a base da tarefa, afigura-se, naturalmente, imprescindível a avaliação do texto à luz dos demais elementos (ou subelementos do denominado elemento lógico). Com efeito, a AT alega, também, que a interpretação do Requerente não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal, e que à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pelo ora Requerente é errada.

 

            Justifica-se, portanto, averiguar se a interpretação que considere a existência de uma presunção no art. 3.º do CIUC colide com o elemento teleológico, i.e., com as finalidades (ou com a relevância sociológica) do que se pretendia com a regra em causa. Ora, tais finalidades estão claramente identificadas no início do CIUC: “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária” (vd. art. 1.º do CIUC).

 

            O que se pode inferir deste artigo 1.º? Pode inferir-se que a estreita ligação do IUC ao princípio da equivalência (ou princípio do benefício) não permite a associação exclusiva dos “contribuintes” aí referidos à figura dos proprietários mas antes à figura dos utilizadores (ou dos proprietários económicos). Como bem se assinalou na DA proferida no proc. n.º 73/2013-T: “na verdade, a ratio legis do imposto [IUC] antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, o «proprietário económico» no dizer de Diogo Leite de Campos, os efectivos proprietários ou os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade.”

 

            Com efeito, se a referida ratio legis fosse outra, como compreender, p. ex., a obrigação (por parte das entidades que procedam à locação de veículos) - e para efeitos do disposto no art. 3.º do CIUC e no art. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 22-A/2007, de 29/6 - de fornecimento à DGI dos dados respeitantes à identificação fiscal dos utilizadores dos referidos veículos (vd. art. 19.º)? Será que onde se lê “utilizadores”, devia antes ler-se, desconsiderando o elemento sistemático, “proprietários com registo em seu nome”...?

 

            C) Do exposto retira-se a conclusão de que limitar os sujeitos passivos deste imposto apenas aos proprietários dos veículos em nome dos quais os mesmos se encontrem registados - ignorando as situações em que estes já não coincidam com os reais proprietários ou os reais utilizadores dos mesmos -, constitui restrição que, à luz dos fins do IUC, não encontra base de sustentação. E, ainda que se alegue a intenção do legislador foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários aqueles que, como tal, constem do registo automóvel, é necessário ter presente que tal registo, em face do que foi dito anteriormente, gera apenas uma presunção ilidível, i.e., uma presunção que pode ser afastada pela apresentação de prova em contrário. Neste sentido, vd., p. ex., o Acórdão do TCAS de 19/3/2015, processo 8300/14: “O [...] art. 3.º, n.º 1, do CIUC, consagra uma presunção legal de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário, sendo que tal presunção é ilidível”.

 

            Seria, aliás, injustificada a imposição de uma espécie de presunção inilidível, uma vez que, sem uma razão aparente, estar-se-ia a impor uma (reconhecidamente discutível) verdade formal em detrimento do que realmente podia e teria ficado provado; e, por outro lado, a afastar o dever da AT de cumprimento do princípio do inquisitório estabelecido no art. 58.º da LGT, i.e., o dever de realização das diligências necessárias para uma correcta determinação da realidade factual sobre a qual deve assentar a sua decisão (o que significa, no presente caso, a determinação do proprietário actual e efectivo do veículo).

 

            Acresce que, se não se permitisse ao vendedor a ilisão da presunção constante do art. 3.º do CIUC, estar-se-ia a beneficiar, sem uma razão plausível, os adquirentes que, na posse de formulários de contratos de aquisição correctamente preenchidos e assinados, e usufruindo das vantagens associadas à sua condição de proprietários, se tentassem eximir, por via de um “formalismo registral”, ao pagamento de portagens ou coimas.

 

            A este propósito, convém notar, também, que o registo de veículos não tem eficácia constitutiva, funcionando, como antes se disse, como uma presunção ilidível de que o detentor do registo é, efectivamente, o proprietário do veículo. Neste sentido, vd., v.g., o Ac. do STJ de 19/2/2004, proc. 03B4639: “O registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao acto registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível, (presunção «juris tantum») da existência do direito (art.s 1.º, n.º 1 e 7.º, do CRP84 e 350.º, n.º 2, do C.Civil) bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constantes.”

 

            No mesmo sentido, referiu, a este respeito, a DA proferida no proc. n.º 14/2013-T, em termos que aqui se acompanham: “a função essencial do registo automóvel é dar publicidade à situação jurídica dos veículos não surtindo o registo eficácia constitutiva, funcionando (apenas) como mera presunção ilidível da existência do direito, bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constante. A presunção de que o direito registado pertence à pessoa em cujo nome está inscrito pode ser ilidida por prova em contrário. Não preenchendo a AT os requisitos da noção de terceiro para efeitos de registo [circunstância que poderia impedir a eficácia plena dos contratos de compra e venda celebrados], não pode prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade para pôr em causa a eficácia plena do contrato de compra e venda e para exigir ao vendedor (anterior proprietário) o pagamento do IUC devido pelo comprador (novo proprietário) desde que a presunção da respectiva titularidade seja ilidida através de prova bastante da venda.”

 

            Sucede, no entanto, que, no caso aqui em análise, verifica-se que a ilisão da presunção não foi feita, visto que não foi apresentada prova bastante da venda supostamente realizada. Com efeito, não foi apresentada factura/recibo ou contrato de compra e venda da viatura em causa, sendo estas as provas documentais decisivas para, segundo larga jurisprudência deste CAAD, se poder ilidir a presunção fundada no registo. Tal significa, consequentemente, que os Docs. 1 a 6, apresentados pelo ora Requerente, não permitem ilidir a presunção referida (e qualquer prova de natureza testemunhal também não o permitiria).

           

A respeito da força probatória de documentos como contratos de compra e venda ou facturas/recibos, note-se, por ex., a DA proferida no proc. n.º 27/2013-T, de 10/9/2013, onde se salienta que “os documentos apresentados, particularmente as cópias das facturas que suportam, desde logo, as vendas [dos] veículos [...] referenciados, [...] corporizam meios de prova com força bastante e adequados para ilidir a presunção fundada no registo, tal como consagrada no n.º 1 do art. 3.º do CIUC, documentos, esses, que gozam, aliás, da presunção de veracidade prevista no n.º 1 do art. 75.º da LGT.”

 

            Neste mesmo sentido, veja-se, por último, a DA proferida no proc. n.º 230/2014-T, de 22/7/2014: “os elementos documentais, constituídos por cópias das respectivas facturas de venda [...] gozam da força probatória prevista no artigo 376.º do Código Civil e da  presunção de veracidade que é conferida pelo art. 75.º, n.º 1, da LGT, tendo, assim, idoneidade e força bastante para ilidir a presunção que suportou as liquidações efetuadas.”

 

            Veja-se, por último, o Acórdão do TCAS de 19/3/2015 (proc. 8300/14): “O I.U.C. está legalmente configurado para funcionar em integração com o registo automóvel, o que se infere, desde logo, do art. 3.º, n.º 1, do C.I.U.C., norma onde se estabelece que são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, mais acrescentando que se consideram como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados. O citado art. 3.º, n.º 1, do C.I.U.C., consagra uma presunção legal de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário, sendo que tal presunção é ilidível, por força do art. 73.º da L.G.T. A ilisão da presunção legal obedece à regra constante do art. 347.º do C.Civil, nos termos do qual a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto. O que significa que não basta à parte contrária opor a mera contraprova – a qual se destina a lançar dúvida sobre os factos (cfr. art. 346.º do C.Civil) que torne os factos presumidos duvidosos. Pelo contrário, ela tem de mostrar que não é verdadeiro o facto presumido, de forma que não reste qualquer incerteza de que os factos resultantes da presunção não são reais. [...] a emissão de factura/recibo ou de recibo faz prova do pagamento e quitação [«e, por consequência, prova de que se concluiu a compra e venda»] - cfr. art. 787.º, do C.Civil”.

 

            Neste sentido, reafirma-se que, na falta da apresentação de contrato de compra e venda do automóvel (note-se, a este respeito, que a lei não estabelece qualquer forma específica para a celebração de um contrato de compra e venda de um bem móvel), mostrava-se necessária a apresentação de documentos que permitissem fazer a prova da conclusão da referida compra e venda. Assim, e na ausência do mencionado contrato, uma factura/recibo ou um requerimento para apresentação a registo e termo de responsabilidade, contendo a obrigação do adquirente promover o registo a breve trecho, poderia bastar (ver, a este respeito, a DA proferida no proc. n.º 841/2015, de 20/7/2015). Ora, nenhum destes elementos foi trazido aos autos. Apenas dele constam: o pedido de anulação da apólice da viatura em 18/9/1997 (Doc. 1); a declaração de responsabilidade do alegado adquirente (B…), sem que dela conste qualquer obrigação de promoção do registo (Doc. 2); a penhora sobre o veículo, registada pela D…, Lda., em 2004, e outra relativa a execução movida pela E…, S.A., em 2005 (Docs. 3 a 5); e, por último, o seguro da viatura em nome de F…, Lda., no período de 19/11/1998 a 26/2/1999 (Doc. 6). Como se pode verificar pelo elenco descrito, nenhum dos documentos mencionados logra provar a alegada transmissão da propriedade do veículo em causa.

3) Conclui-se, em face do supra exposto, não ter existido “interpretação [...] contrária à Constituição”, ao contrário do que foi alegado pela Requerida nos pontos 103.º a 111.º da sua resposta.

 

***

 

            VI – DECISÃO

 

            Em face do supra exposto, decide-se:

 

            - Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se integralmente na ordem jurídica o acto impugnado (e as liquidações de IUC), e absolvendo-se, em conformidade, a entidade requerida do pedido.

           

 

Fixa-se o valor do processo em €792,53 (setecentos e noventa e dois euros e cinquenta e três cêntimos), nos termos do art. 32.º do CPTA e do art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

Custas a cargo do Requerente, no montante de €306,00 (trezentos e seis euros), nos termos da Tabela I do RCPAT, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do disposto no art. 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Notifique.

 

Lisboa, 9 de Maio de 2016.

 

 

O Árbitro

 

 

   

(Miguel Patrício)

 

 

 

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Texto elaborado em computador, nos termos do disposto

no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.