Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 640/2015-T
Data da decisão: 2016-04-05  IUC  
Valor do pedido: € 2.852,66
Tema: IUC – Incidência subjetiva
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Decisão Arbitral

 

            I – Relatório

 

            1.1. A…, S.A. (doravante designada por «Requerente»), com sede na Rua…, n.º…, …º, Lisboa, com o número de pessoa colectiva…, tendo sido notificada de 54 (cinquenta e quatro) actos de liquidação de IUC por si identificados no Doc. 1 apenso à p.i. (os quais se consideram aqui reproduzidos, dada a sua extensão), referentes aos exercícios de 2013 e 2014, apresentou, em 19/10/2015, um pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, nos termos do disposto no artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante somente designado por «RJAT»), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista a “anulação dos atos tributários de liquidação de IUC melhor identificados no documento 1 em anexo”.

 

            1.2. Em 4/1/2016 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Singular.

 

            1.3. Nos termos do art. 17.º, n.º 1, do RJAT, foi a AT citada, enquanto parte requerida, para apresentar resposta, nos termos do referido artigo. A AT apresentou a sua resposta em 2/3/2016, tendo argumentado no sentido da total improcedência do pedido da Requerente.

 

            1.4. Por despacho de 30/3/2016, o Tribunal considerou que se mostrava dispensável, ao abrigo do disposto no artigo 16.º, als. c) e e), do RJAT, a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e que o processo estava pronto para decisão. Nestes termos, fixou a data de 5/4/2016 para a prolação da decisão arbitral.

           

            1.5. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é materialmente competente, o processo não enferma de vícios que o invalidem e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas.

 

            II – Alegações das Partes

 

            2.1. Vem a ora Requerente alegar, na sua petição inicial, que: a) “as situações de facto (subjacentes às liquidações de IUC relativamente às quais a ora Requerente entende que não é sujeito passivo do imposto) subsumem-se a uma das duas situações a seguir descritas: - o veículo não é propriedade da ora requerente à data identificada pela AT como data da ocorrência do facto gerador do imposto; - o veículo foi locado através de contrato de locação financeira vigente à data identificada pela AT como data da ocorrência do facto gerador de imposto”; b) “em qualquer uma das situações de facto acima identificadas, a A… entende que não é sujeito passivo de IUC, porque não estão satisfeitos os requisitos de incidência subjectiva do imposto, previstos no artigo 3.º do Código do Imposto Único de Circulação, conjugado com os artigos 4.º e 6.º do referido Código”; c) “os veículos identificados na listagem em anexo – Doc. 3 – objecto das liquidações de IUC que ora se impugnam no presente pedido de pronúncia arbitral, encontram-se todos matriculados em Portugal nos anos de 2013 e/ou 2014, pelo que está verificado o pressuposto da incidência real de IUC”; d) “os veículos identificados na listagem em anexo – Doc. 3 – encontram-se todos matriculados em Portugal nos anos de 2013 e/ou 2014 e nenhum deles integra a categoria F e G, pelo que o período de tributação corresponde ao ano que se inicia na data da matrícula ou em cada um dos seus aniversários”; e) “quer sejam expressas ou implícitas, as presunções em matéria de normas de incidência tributária são sempre ilidíveis e, por esse motivo, o facto de o legislador do IUC ter optado por uma presunção implícita (utilizando a terminologia considerando-se) em vez de uma presunção expressa (utilizando a terminologia presumindo-se) como acontecia nas anteriores normas de incidência (constantes dos Regulamentos do Imposto sobre Veículos e do Imposto de Circulação e de Camionagem), em nada afetou em substância, no que a esta matéria diz respeito, o conteúdo e o âmbito da delimitação do sujeito passivo do imposto. Numa palavra, o sujeito passivo é o proprietário (ou a entidade a ele equiparada), considerando-se como tal a entidade que figura no registo automóvel como proprietário, havendo que admitir prova em contrário, sempre que o proprietário seja uma entidade diferente daquele que figura no registo automóvel”; f) “uma norma de incidência (baseada numa ficção legal) que ignora a conexão entre o sujeito passivo e o uso do veículo é contrária, de forma ostensiva, à ratio legis – o princípio poluidor pagador – subjacente à tributação automóvel”; g) “a presunção legal ora em apreço é ilidível, pelo que o sujeito passivo do IUC é o proprietário (ou locatário financeiro ou o adquirente com reserva de propriedade), ainda que não figurem no registo automóvel, desde que seja feita prova bastante para ilidir a presunção legal proveniente do registo. É precisamente para efetuar esta prova que a ora requerente apresenta, para cada veículo, um documento comprovativo (a factura) da venda do veículo (Doc. 8), de modo a provar que a A… não era a proprietária à data de aniversário de matrícula do veículo”; h) “adicionalmente, [...] a A…, aquando da transmissão do veículo, comunicou formalmente, por escrito, à Conservatória do Registo Automóvel, a alienação do mesmo, nos termos do artigo 9.º-A do Decreto-Lei n.º 112/2009, de 18 de Maio, com redação que lhe foi introduzida pela Lei n.º 46/2010, de 7 de Setembro, tendo essa comunicação sido anotada no registo do referido veículo, conforme certidões que se anexam emitidas pela Conservatória do Registo Predial (Doc. 9) referentes a alguns dos veículos alienados, onde consta o referido averbamento. Junta-se também em anexo o comprovativo do pedido de certidão (Doc. 10) onde deve constar o referido averbamento, junto da Conservatória do Registo Automóvel, relativamente a outros veículos alienados”; i) “em suma, a A… efetuou os procedimentos legais que estavam ao seu alcance para informar as autoridades competentes acerca da alienação dos veículos. [...]. Não sendo sujeito passivo, não se verifica o pressuposto da incidência pessoal do imposto e, consequentemente, não está verificado um dos três pressupostos cumulativos necessários para o surgimento da obrigação de imposto”; j) “todos os 54 atos tributários de liquidação de IUC enfermam de erro sobre os pressupostos de facto (ou seja, em nenhum desses atos se verifica o elemento pessoal da incidência do imposto, previsto no artigo 3.º, n.º 1 e 2, do Código do IUC) que consubstancia um vício de violação de lei, por força do artigo 99.º, alínea a), do CPPT, suscetível de ser arguido para fundamentar a anulação dos atos tributários de liquidação de IUC ora em apreço.”      

 

            2.2. Pelo exposto, pretende a Requerente, em síntese, que se julgue “procedente, por provado, o presente pedido de anulação dos atos tributários de liquidação de IUC melhor identificados no documento 1 em anexo, com fundamento em errónea qualificação dos factos tributários nos termos do artigo 99.º, alínea a), do CPPT e, como efeito da douta decisão arbitral, a Autoridade Tributária deverá efetuar os procedimentos necessários para extinguir os processos executivos e contraordenacionais subjacentes aos atos de liquidação anulados pela douta decisão arbitral.”  

           

            2.3. Por seu lado, a AT vem alegar, na sua contestação: a) que “o entendimento propugnado pela Requerente decorre de uma enviesada leitura da letra da lei, como da adopção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal, mas também de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC”; b) que “é imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas] as pessoas em nome das quais os mesmos [os veículos] se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal.”; c) que “entender que o legislador consagrou aqui uma presunção, como a requerente defende ao longo do seu pedido arbitral, seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem”; d) que “também o elemento sistemático de interpretação da lei demonstra que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando, o entendimento por esta sufragado, qualquer apoio na lei, porquanto tal resulta não apenas do aludido n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, mas também de outras normas consagradas no referido Código”; e) que “da articulação entre o âmbito da incidência subjectiva do IUC e o facto constitutivo da correspondente obrigação de imposto decorre inequivocamente que só as situações jurídicas objecto de registo (sem prejuízo da permanência de um veículo em território Nacional por mais período superior a 183 dias, previsto no n.º 2 do artigo 6.º) geram o nascimento da obrigação de imposto”; f) que, “mesmo admitindo que, do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial, a ausência de registo não afecta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real), nos termos estabelecidos no CIUC (que no caso em apreço constitui lei especial, a qual, nos termos gerais de direito, derroga a norma geral), o legislador tributário quis, intencional e expressamente, que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome das quais [os veículos] se encontrem registados”; g) que, “à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pela Requerente no sentido de que o sujeito passivo do imposto é o proprietário efectivo, independentemente de não figurar no registo automóvel o registo dessa qualidade, é manifestamente errada. E é uma interpretação errada na medida em que é a própria ratio do regime consagrado no CIUC que constitui prova clara de que aquilo que o legislador fiscal pretendeu foi criar um imposto assente na tributação do proprietário do veículo tal como consta do registo automóvel”; h) que “os actos tributários em crise não enfermam de qualquer vício de violação de lei, na medida em que, à luz do disposto no artigo 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC e do artigo 6.º do mesmo Código, era a Requerente, na qualidade de proprietária, o sujeito passivo do IUC”; i) que “a interpretação veiculada pela Requerente se mostra contrária à Constituição, na medida em que viola o princípio da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade”; j) que, “aceitando-se ser admissível a ilisão da presunção à luz da jurisprudência já entretanto firmada neste centro de arbitragem, importará, ainda assim, apreciar os documentos juntos pela Requerente e o seu valor, com vista à ilisão da presunção. Pois bem, tendo em vista tal desiderato, veio a Requerente juntar cópias de facturas de venda de veículos, bem como de contratos de locação financeira. [Entende-se, contudo, que] estes documentos não são, de forma alguma, suficientes para comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois não revelam, por si só, uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte do pretenso adquirente”; l) que “o IUC é liquidado de acordo com a informação registal oportunamente transmitida pelo Instituto dos Registos e Notariado [pelo que] o IUC não é liquidado de acordo com informação gerada pela própria Requerida. [...] a Requerida [limitou-se] a dar cumprimento às obrigações legais a que está adstrita e, paralelamente, a seguir a informação registal que lhe foi fornecida por quem de direito”.

 

2.4. A AT conclui, por fim, que “deve ser julgado improcedente o pedido de pronúncia arbitral, por não provado, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários de liquidação impugnados e absolvendo-se, em conformidade, a entidade requerida do pedido.”

 

            III – Factualidade Provada, Não Provada e Respectiva Fundamentação

 

3.1. Consideram-se provados os seguintes factos:

 

            i) A ora Requerente é uma instituição financeira de crédito que tem por objecto a prática de operações permitidas aos bancos com excepção da recepção de depósitos (vd. Doc. 2 apenso aos autos). No âmbito da sua actividade, a ora Requerente concede aos seus clientes financiamentos destinados à compra de viaturas automóveis.

 

            ii) O financiamento de veículos automóveis é formalizado através da outorga de contratos de mútuo em que o mutuário concede a favor do mutuante, como garantia do integral pagamento da quantia mutuada, uma reserva de propriedade do veículo automóvel até ao integral pagamento da quantia mutuada. Em alternativa à outorga de contratos de mútuo, o financiamento é efectuado através da outorga de contratos de locação financeira.

 

iii) As liquidações ora em causa são 54 (cinquenta e quatro) liquidações de IUC dos exercícios de 2013 e 2014 (vd. Doc. 3 apenso aos autos), relativas a 50 (cinquenta) veículos identificados na listagem que consta do Doc. 1.

 

            iv) A AT notificou a Requerente dos actos de liquidação de IUC e respectivos juros compensatórios (vd. PA5).  

 

            v) A 5/8/2015, a Requerente apresentou reclamação graciosa (n.º …2015…) dos actos tributários de liquidação de IUC acima referidos, relativos aos anos de 2013 e 2014 (vd. PA5).

 

            vi) A 8/9/2015, a ora Requerente foi notificada do projecto de deferimento parcial da reclamação graciosa apresentada - sendo que, dos 60 actos tributários de liquidação objecto da reclamação, a AT procedeu à anulação de 6, mantendo os restantes 54, ora em causa (vd. PA6). A AT notificou a Requerente da decisão de 30/9/2015, na qual convolou em definitivo o projecto acima referido (vd. PA6).

            vii) Das 54 liquidações de IUC ora em causa (no montante total de €2852,66), 44 são relativas ao ano de 2013 e as restantes 10 relativas ao ano de 2014. Pela análise das cópias das facturas de venda, bem como de contratos de locação financeira (vd. PA5), comprova-se que, à data do imposto, a Requerente não era a proprietária dos veículos ora em causa.

 

viii) A cumulação de pedidos subjacente ao presente pedido de pronúncia arbitral tem acolhimento legal, uma vez que, à luz do art. 3.º, n.º 1, do RJAT, e do art. 104.º do CPPT, se verifica, quanto a todos eles, identidade de imposto, circunstâncias e fundamentos de facto e de direito invocados para a sua apreciação e decisão.

 

            3.2. Os factos considerados pertinentes e provados (v. 3.1) fundamentam-se na análise das posições expostas pelas partes e da prova documental junta aos autos.

 

            IV – Do Direito

 

No presente caso, são três as questões de direito controvertidas: 1) saber se o artigo 3.º do CIUC contém uma presunção e se a ilisão da mesma foi feita; 2) saber se, como alega a AT, a interpretação da ora Requerente não atende aos elementos sistemático e teleológico de interpretação da lei; e 3) saber se, como também alega a AT, “a interpretação veiculada pela Requerente se mostra contrária à Constituição”. 

 

            Vejamos, então.

 

            1) e 2) As duas primeiras questões de direito confluem na direcção da interpretação do art. 3.º do CIUC, pelo que se mostra necessário: A) saber se a norma de incidência subjectiva, constante do referido art. 3.º, estabelece ou não uma presunção; B) saber se, ao considerar-se que essa norma estabelece uma presunção, tal viola a “unidade do regime”, ou desconsidera o elemento sistemático e o elemento teleológico; C) saber – admitindo que a presunção existe (e que a mesma é iuris tantum) – se foi feita a ilisão da mesma.  

 

            A) O artigo 3.º, n.os 1 e 2, do Código do Imposto Único de Circulação, tem a seguinte redacção, que aqui se reproduz:

 

            “Artigo 3.º – Incidência Subjectiva

 

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

             

            A interpretação do texto legal citado é, naturalmente, imprescindível para a resolução do caso em análise. Nessa medida, afigura-se necessário recorrer ao art. 11.º, n.º 1, da LGT, e, por remissão deste, ao art. 9.º do Código Civil (CC).

 

            Ora, nos termos do referido art. 9.º do CC, a interpretação parte da letra da lei e visa, através dela, reconstituir o “pensamento legislativo”. O mesmo é dizer (independentemente da querela objectivismo-subjectivismo) que a análise literal é a base da tarefa interpretativa e os elementos sistemático, histórico ou teleológico são guias de orientação da referida tarefa.

            A apreensão literal do texto legal em causa não gera - ainda que seja muito discutível a separação desta relativamente ao apuramento, mesmo que mínimo, do respectivo sentido - a noção de que a expressão “considerando-se como tais” significa algo diverso de “presumindo-se como tais”. De facto, muito dificilmente encontraríamos autores que, numa tarefa de pré-compreensão do referido texto legal, repelissem, “instintivamente”, a identidade entre as duas expressões.

 

            Confirmando a indistinção (tanto literal como de sentido) das palavras “considerando” e “presumindo” (presunção), vejam-se, por ex., os seguintes artigos do Código Civil: 314.º, 369.º, n.º 2, 374.º, n.º 1, 376.º, n.º 2, e 1629.º. E, com especial interesse, o caso da expressão “considera-se”, constante do art. 21.º, n.º 2, do CIRC. Como assinalam Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, a respeito desse artigo do CIRC: “para além de esta norma evidenciar que o que está em causa em sede de tributação de mais valias é apurar o valor real (o de mercado), a limitação ao apuramento do valor real derivada das regras de determinação do valor tributável previstas no CIS não poder deixar de ser considerada como uma presunção em matéria de incidência, cuja ilisão é permitida pelo artigo 73.º da LGT” (Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª ed., 2012, pp. 651-2).

 

            B) Estes são apenas alguns exemplos que permitem concluir que é precisamente por razões relacionadas com a “unidade do sistema jurídico” (o elemento sistemático) que não se poderá afirmar que só quando se usa o verbo “presumir” é que se está perante uma presunção, dado que o uso de outros termos ou expressões (literalmente similares) também podem servir de base a presunções. E, de entre estas, as expressões “considera-se como” ou “considerando-se como” assumem, como se viu, destaque.

 

            Se a análise literal é apenas a base da tarefa, afigura-se, naturalmente, imprescindível a avaliação do texto à luz dos demais elementos (ou subelementos do denominado elemento lógico). Com efeito, a AT alega, também, que a interpretação da Requerente não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal, e que à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pela Requerente é errada.

 

            Justifica-se, portanto, averiguar se a interpretação que considere a existência de uma presunção no art. 3.º do CIUC colide com o elemento teleológico, i.e., com as finalidades (ou com a relevância sociológica) do que se pretendia com a regra em causa. Ora, tais finalidades estão bem identificadas no CIUC: “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária” (vd. art. 1.º).

 

            O que se pode inferir deste artigo 1.º? Pode inferir-se que a estreita ligação do IUC ao princípio da equivalência (ou princípio do benefício) não permite a associação exclusiva dos “contribuintes” aí referidos à figura dos proprietários mas antes à figura dos utilizadores (ou dos proprietários económicos). Como bem se assinalou na DA proferida no proc. n.º 73/2013-T: “na verdade, a ratio legis do imposto [IUC] antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, o «proprietário económico» no dizer de Diogo Leite de Campos, os efectivos proprietários ou os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade.”

 

            Com efeito, se a referida ratio legis fosse outra, como compreender, p. ex., a obrigação (por parte das entidades que procedam à locação de veículos) - e para efeitos do disposto no art. 3.º do CIUC e no art. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 22-A/2007, de 29/6 - de fornecimento à DGI dos dados respeitantes à identificação fiscal dos utilizadores dos referidos veículos (vd. art. 19.º)? Será que onde se lê “utilizadores”, devia antes ler-se, desconsiderando o elemento sistemático, “proprietários com registo em seu nome”...?

 

            C) Do exposto retira-se a conclusão de que limitar os sujeitos passivos deste imposto apenas aos proprietários dos veículos em nome dos quais os mesmos se encontrem registados - ignorando as situações em que estes já não coincidam com os reais proprietários ou os reais utilizadores dos mesmos -, constitui restrição que, à luz dos fins do IUC, não encontra base de sustentação. E, ainda que se alegue a intenção do legislador foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários aqueles que, como tal, constem do registo automóvel, é necessário ter presente que tal registo, em face do que foi dito anteriormente, gera apenas uma presunção ilidível, i.e., uma presunção que pode ser afastada pela apresentação de prova em contrário. Neste sentido, vd., p. ex., o Acórdão do TCAS de 19/3/2015, processo 8300/14: “O [...] art. 3.º, n.º 1, do CIUC, consagra uma presunção legal de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário, sendo que tal presunção é ilidível”.

 

            Seria, aliás, injustificada a imposição de uma espécie de presunção inilidível, uma vez que, sem uma razão aparente, estar-se-ia a impor uma (reconhecidamente discutível) verdade formal em detrimento do que realmente podia e teria ficado provado; e, por outro lado, a afastar o dever da AT de cumprimento do princípio do inquisitório estabelecido no art. 58.º da LGT, i.e., o dever de realização das diligências necessárias para uma correcta determinação da realidade factual sobre a qual deve assentar a sua decisão (o que significa, no presente caso, a determinação do proprietário actual e efectivo do veículo).

 

            Acresce que, se não se permitisse ao vendedor a ilisão da presunção constante do art. 3.º do CIUC, estar-se-ia a beneficiar, sem uma razão plausível, os adquirentes que, na posse de formulários de contratos de aquisição correctamente preenchidos e assinados, e usufruindo das vantagens associadas à sua condição de proprietários, se tentassem eximir, por via de um “formalismo registral”, ao pagamento de portagens ou coimas.

 

            A este propósito, convém notar, também, que o registo de veículos não tem eficácia constitutiva, funcionando, como antes se disse, como uma presunção ilidível de que o detentor do registo é, efectivamente, o proprietário do veículo. Neste sentido, vd., v.g., o Ac. do STJ de 19/2/2004, proc. 03B4639: “O registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao acto registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível, (presunção «juris tantum») da existência do direito (art.s 1.º, n.º 1 e 7.º, do CRP84 e 350.º, n.º 2, do C.Civil) bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constantes.”

 

            No mesmo sentido, referiu, a este respeito, a DA proferida no proc. n.º 14/2013-T, em termos que aqui se acompanham: “a função essencial do registo automóvel é dar publicidade à situação jurídica dos veículos não surtindo o registo eficácia constitutiva, funcionando (apenas) como mera presunção ilidível da existência do direito, bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constante. A presunção de que o direito registado pertence à pessoa em cujo nome está inscrito pode ser ilidida por prova em contrário. Não preenchendo a AT os requisitos da noção de terceiro para efeitos de registo [circunstância que poderia impedir a eficácia plena dos contratos de compra e venda celebrados], não pode prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade para pôr em causa a eficácia plena do contrato de compra e venda e para exigir ao vendedor (anterior proprietário) o pagamento do IUC devido pelo comprador (novo proprietário) desde que a presunção da respectiva titularidade seja ilidida através de prova bastante da venda.”

 

            Ora, no caso aqui em análise, verifica-se que a ilisão da presunção (por via de “prova bastante” das transmissões alegadas) foi realizada através da apresentação, nomeadamente, de cópias das facturas de venda, bem como dos contratos de locação financeira (vd. PA5), pelo que se comprova que, à data do imposto, a Requerente não era a proprietária dos veículos em causa.

 

            O Tribunal não vê razão para questionar tais documentos (nem a Requerida duvidou da veracidade dos mesmos – vd., a este respeito, o ponto 67.º da resposta) e entende, por essa razão e atendendo ao acima exposto, que os mesmos são prova suficiente para demonstrar que a Requerente não era, como se disse, à data do imposto, a proprietária dos veículos em causa.

 

A este respeito, vd., e.g., a DA que foi proferida no proc. n.º 27/2013-T, de 10/9/2013: “os documentos apresentados, particularmente as cópias das facturas que suportam, desde logo, as vendas [dos veículos referenciados], [...] corporizam meios de prova com força bastante e adequados para ilidir a presunção fundada no registo, tal como consagrada no n.º 1 do art. 3.º do CIUC, documentos, esses, que gozam, aliás, da presunção de veracidade prevista no n.º 1 do art. 75.º da LGT”. Ver, igualmente, a DA proferida no proc. n.º 230/2014-T, de 22/7/2014: “os elementos documentais, constituídos por cópias das respectivas facturas de venda [...] gozam da força probatória prevista no artigo 376.º do Código Civil e da  presunção de veracidade que é conferida pelo art. 75.º, n.º 1, da LGT, tendo, assim, idoneidade e força bastante para ilidir a presunção que suportou as liquidações efetuadas. Estas operações de transmissão de propriedade são oponíveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, porquanto, embora os factos sujeitos a registo só produzam efeitos em relação a terceiros quando registados, face ao disposto no art. 5.º, n.º 1, do Código do Registo Predial [aplicável por remissão do Código do Registo Automóvel], a Autoridade Tributária não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que não se encontra na situação prevista no n.º 2 do referido art. 5.º do Código do Registo Predial, aplicável por força do Código do Registo Automóvel, ou seja: não adquiriu de um autor comum direitos incompatíveis entre si.”

 

            3) Conclui-se, em face do supra exposto [vd. 1) e 2), para onde aqui se remete], não ter existido “interpretação [...] contrária à Constituição”, ao contrário do que foi alegado pela Requerida nos pontos 57.º a 63.º da sua resposta.

 

***

 

            V – DECISÃO

 

            Em face do supra exposto, decide-se:

 

            - Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a consequente anulação, com todos os efeitos legais, dos 54 (cinquenta e quatro) actos de liquidação de IUC identificados.

           

 

Fixa-se o valor do processo em €2852,66 (dois mil oitocentos e cinquenta e dois euros e sessenta e seis cêntimos), nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

Custas a cargo da Requerida, no montante de €612,00 (seiscentos e doze euros), nos termos da Tabela I do RCPAT, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do disposto no art. 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Notifique.

 

Lisboa, 5 de Abril de 2016.

 

 

O Árbitro

 

 

   

(Miguel Patrício)

 

 

 

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Texto elaborado em computador, nos termos do disposto no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.