Decisão Arbitral
Os árbitros Dr. Jorge Manuel Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. A. Sérgio de Matos e Dr.ª Filipa Barros, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 09-12-2015, acordam no seguinte:
1. Relatório
A…, S.A. (doravante "A…" ou "Requerente"), com sede na Rua…, n.º…, …-… Linda-a-Velha, titular do número de identificação fiscal…, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto no artigo 2.º e na parte final da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”).
A Requerente formula os seguintes pedidos:
– Declarar a ilegalidade parcial dos actos de autoliquidação de IVA consubstanciados nas vinte e duas declarações periódicas submetidas pela Requerente com referência aos períodos de imposto compreendidos entre Agosto de 2009 e Maio de 2011, com a sua consequente anulação parcial, permitindo a regularização de IVA a favor da Requerente no valor de € 317.477,51, com todas as consequências legais; designadamente a,
– Declaração de ilegalidade e anulação dos actos de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e do recurso hierárquico (em virtude de tais decisões se fundarem em erróneos pressupostos de direito, concretamente quanto à natureza do n.º 2 do artigo 78.ºdo CIVA);
– A título subsidiário, atenta a natureza institucional e a base legal em que assenta a arbitragem tributária, se e na medida em que não seja claro para o tribunal arbitral, não obstante a jurisprudência comunitária já produzida sobre a matéria, o alcance do artigo 79.º da Directiva IVA, ou de qualquer outra norma que possa em seu juízo interferir com a boa solução deste caso concreto, deverá então esse Tribunal Arbitral promover o reenvio prejudicial das questões que entenda suscitar para o Tribunal de Justiça da União Europeia, conforme previsto no artigo 19.º, n.º 3, alínea b), e no artigo 267.º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 09-10-2015.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 23-11-2015 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 09-12-2015.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, suscitando as excepções incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar decisões de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa e por no pedido de revisão oficiosa e subsequente recurso hierárquico não ter sido apreciada a legalidade de actos de liquidação, e da incompetência material e da intempestividade para a impugnação directa dos actos de liquidação de IVA.
Para além disso, a Autoridade Tributária e Aduaneira defende que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente ou, caso assim não se entenda, deve ser ordenado o reenvio do processo ao TJUE, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do TFUE, para efeitos de definir a conformidade com as normas (mormente o artigo 11.º, parte C, n.º 1) e princípios da Sexta Directiva, da regularização prevista no artigo 78.º, n.º 2 do Código do IVA.
Por despacho de 26-01-2016, foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e determinado que processo prosseguisse com alegações escritas facultativas.
As Partes apresentaram alegações.
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.
O processo não enferma de nulidades.
São suscitadas excepções de incompetência e intempestividade.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
a) A Requerente encontra-se registada como sujeito passivo de IVA, desde 01-01-1986, com enquadramento no regime normal de periodicidade mensal, para o exercício da actividade principal de "Indústria do café e do chá'', CAE 10830, e as actividades secundárias de "Comércio por grosso de outros produtos alimentares, n.e.", CAE 46382, de "Fabricação de outros produtos alimentares, n.e.", CAE 10893, e de "Comércio por grosso de alimentos para animais", CAE 46211;
b) A Requerente efectuou uma revisão de procedimentos que tinha adoptado em sede de autoliquidação de IVA, tendo entendido que algumas operações não tiveram o tratamento adequado, relativamente a vales de desconto atribuídos aos seus clientes, de que resultou pagamento de IVA em excesso;
c) Em 10-10-2013, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa "da (auto)liquidação e pagamento do Imposto sobre o Valor Acrescentado efectuada em excesso nas declarações periódicas referentes aos períodos compreendidos entre Agosto de 2009 e Maio de 2011, no valor total de € 317.477,51”, pedindo, a final, «o deferimento do presente pedido de revisão oficiosa (ou da forma para a qual este vier a ser convolado), ao abrigo do artigo 78º da LGT, conjugado com o n.º 1 do artigo 98.º do Código do IVA, no sentido de ser autorizada a regularização de IVA a favor da Requerente no montante total de € 317.477,51, com as legais consequências». (documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
d) O pedido de revisão oficiosa foi indeferido por despacho de 25-09-2014 (documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
e) O despacho do indeferimento do pedido de revisão oficiosa manifestou concordância com uma informação dos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira, que consta do documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, em que se refere, além do mais, o seguinte:
A A…, S.A. (doravante Requerente, Sujeito Passivo ou A…), com o NIPC…, com sede na Rua … n.º…, Linda-a-Velha (…-…), vem, nos termos previstos no artigo 78.º da LGT, conjugado com o artigo 98.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado1 (CIVA), apresentar Revisão Oficiosa na qual solicita a anulação parcial do ato de autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), na parte que, segundo a Requerente, resultou na entrega de prestação tributária de IVA em excesso, apurada nas declarações periódicas, que abaixo se discriminam, referentes aos períodos compreendidos entre Agosto de 2009 (09/08) a Maio de 2011 (11/05), por considerar ter direito a proceder à regularização de IVA, contido nos vales de desconto utilizados nos referidos períodos, ao abrigo do quadro legal em vigor (artigos 16.º n.º 6 al. b) e 78.º, ambos do CIVA).
2. A A…é uma sociedade anónima com sede em território nacional, inserida no grupo multinacional A…, que exerce a título principal, atividade no âmbito da "INDÚSTRIA DO CAFÉ E DO CHÁ" (CAE 010830), que consiste "(...) na produção e comercialização de uma extensa variedade de produtos alimentares, nos quais se incluem produtos lácteos infantis, cereais, bebidas, chocolates, alimentação animal e refeições pré-cozinhadas (...)" (cfr. ponto 1.º da petição).
3. Para efeitos de IVA, configura-se como um sujeito passivo nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA, encontrando-se enquadrado no regime normal de periodicidade mensal, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do mesmo diploma.
II. PEDIDO E CAUSA DE PEDIR
4. Constitui objeto da presente informação, nos termos explanados nos pontos 6.º a 26.º da petição de Revisão Oficiosa, a autoliquidação de IVA dos períodos de agosto de 2009 a maio de 2011, em face de a Requerente ter constatado, que procedeu à entrega de IVA em excesso em determinadas operações, por não ter efetuado a regularização a seu favor, do imposto incluído nos vales de desconto que, no âmbito das suas políticas comerciais e de fidelização de clientes atribuiu aos consumidores finais dos produtos da sua gama alimentar.
5. A emissão de tais vales, que titulam a atribuição de desconto ao preço de comercialização do produto a que respeita o vale, consubstancia uma redução do preço de compra, no momento da sua aquisição pelos clientes finais.
6. O valor do desconto é posteriormente imputado à Requerente, na qualidade de fabricante, para reembolso do respetivo montante pelo estabelecimento comercial/retalhista que vendeu os produtos aos clientes finais.
7. Consequentemente, a Requerente, ao não ter ajustado a liquidação do IVA ao efetivo valor tributável destas operações, por via do mecanismo da regularização, previsto no artigo 78.º do CIVA, incorreu alegadamente, na entrega de prestação tributária (IVA) em excesso no montante de € 317.477,51.
8. Em sede do presente procedimento administrativo de revisão oficiosa, a Requerente solicita que os atos tributários de autoliquidação daí decorrentes sejam anulados na parte referente ao IVA que alegadamente, foi entregue em excesso, e concomitantemente, pugna para que lhe seja autorizado proceder à regularização de IVA a seu favor, nos termos do artigo 78.º do CIVA, no montante de € 317.477,51, com todas as legais consequências ao caso aplicáveis.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
9. A Requerente dispõe de personalidade e capacidade tributárias, nos termos do preceituado nos artigos 15º e 16º, ambos da Lei Geral Tributária (L.GT), e artigo 3º do CPPT.
10. O procedimento de Revisão Oficiosa é o meio próprio para reagir contra os atos tributários de liquidação acima identificados, nos termos do n.º 1 do artigo 78º da LGT, conjugado com o n.º 1 do artigo 98º do CIVA.
11. A Requerente é parte interessada no procedimento, tendo legitimidade para a respetiva interposição ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 18º da LGT e no n.º 1 do artigo 9º do CPPT.
12. No que se refere à tempestividade, importa salientar que, o presente requerimento de Revisão Oficiosa foi apresentado em 10.10.2013, remetendo-se para o ponto IV.1.3.b) da presente informação a análise mais exaustiva deste pressuposto.
13. A Requerente integra o grupo dos contribuintes que na aceção do artigo 68º-B da LGT são considerados "contribuintes de elevada relevância económica e fiscal", cujo acompanhamento permanente e gestão tributária se encontram atribuídos à Unidade dos Grandes Contribuintes. Nesses termos, conforme preceituado no artigo 9º do Decreto-Lei n.º 6/2013, de 17 de janeiro, e face ao disposto no n.º 1 do artigo 75.º do CPPT, conjugados com o artigo 6º do Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de outubro, e da alínea n) do n.º 2 do artigo 34º da Portaria n.º 320-A72011, de 30 de dezembro e o artigo 1º da Portaria n.º 107/2013, de 15 de março, é competente para a decisão acerca do pedido gracioso o Diretor da Unidade dos Grande Contribuintes.
IV. ANÁLISE DA REVISÃO OFICIOSA
14. Analisado o teor da petição inicial apresentada pelo sujeito passivo e considerando que está em causa dirimir se os atos tributários em causa comportam ou não liquidação de IVA em excesso, compete-nos analisar os elementos e argumentos apresentados.
IV.1 Quesito 1: Falta de regularização do IVA, relativo ao reembolso de vales de desconto, emitidos pela Requerente, utilizados pelos consumidores finais com redução do preço de compra dos produtos, por ela fabricados e comercializados: € 317.477,51
IV.1.1. Factos e Enquadramento Jurídico-Tributário
15. A Requerente é uma sociedade anónima enquadrando-se para efeitos de IVA, no regime normal mensal.
16. Decorre do que antecede, que a Requerente, no âmbito da sua atividade, emitiu vales de desconto para serem utilizados na compra dos produtos da gama A…, comercializados em Portugal, numa lógica promocional de angariar e fidelizar clientes.
17. A questão em análise nos presentes autos consubstancia-se em saber se a dedução do vale de desconto subsume-se na noção de desconto prevista no artigo 16.º n.º 6 al. b) do CIVA e, consequentemente, se o respetivo montante deve ser expurgado do valor tributável das vendas efetuadas pela sociedade Requerente, nos períodos em análise.
18. Assim, o cliente final que tivesse na posse dos referidos vales beneficiava de desconto no momento de aquisição do produto a que o vale respeitar, traduzindo-se numa redução no preço de compra.
19. Posteriormente, o retalhista/estabelecimento comercial, aderente a estas campanhas promocionais, envolvido na compra e venda do produto, com redução do preço, por débito do valor do vale de desconto, iria junto da Requerente ou de uma entidade externa (B…), subcontratada pela Requerente, para organizar e gerir as campanhas promocionais referentes à distribuição destes vales de desconto, solicitar o reembolso do desconto concedido, sempre mediante a emissão de notas de débito sem menção a IVA, por aplicação do artigo 78.º do CIVA.
20. Por sua vez a B…repercutirá o valor dos vales à Requerente, por via da emissão de uma nota de débito, também sem menção a IVA, a fim de ser ressarcida dos valores que reembolsou aos retalhistas/estabelecimentos comerciais que os receberam e descontaram nas transações com os clientes finais.
Todavia,
21. Não se conformando, por entender ter direito a proceder à retificação do IVA autoliquidado e pago em excesso, com referência aos períodos de imposto de agosto de 2009 a maio de 2011, veio a Requerente interpor Revisão Oficiosa, consubstanciada no requerimento aqui em análise.
E em consequência, pugna pela
22. Anulação parcial das autoliquidações de IVA, para os períodos em análise, com base no entendimento de que o valor tributável que lhe é aplicável, enquanto fabricante dos produtos, deve ser constituída pelo montante correspondente ao preço a que vendeu as mercadorias aos retalhistas, diminuído do valor dos vales de desconto, de acordo com a interpretação que faz do artigo 11.º, parte C, n.º 1, da Sexta Diretiva e do Acórdão do TJUE, proferido no âmbito do processo C-317/94, de 24 de Outubro de 1996 ("Elida Gibbs") e, como tal, considera ser devida a restituição do valor do IVA (alegadamente) pago em excesso, no montante de € 317.477,51.
IV.1.2. Síntese das Alegações da Requerente
23. Tratando-se o IVA de um imposto harmonizado pelo sistema comunitário, a Requerente começa por enquadrar as situações de descontos e reduções do valor tributável que pratica, no âmbito da legislação nacional e da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), designadamente no artigo 16.º do CIVA, que determina o que considerar para efeitos de apuramento do valor tributável da operação, bem como no artigo 78.º do mesmo diploma, que confere a possibilidade de proceder à regularização do IVA em caso de redução do valor tributável, nomeadamente pela atribuição de descontos, e ainda, pela alusão ao Acórdão do TJUE, proferido no caso C-317/94, de 24 de Outubro de 1996 ("Elida Gibbs"), o qual preconiza o direito do fabricante considerar como matéria coletável, para efeitos de IVA, o montante correspondente ao preço a que vendeu os produtos ao retalhista deduzido do valor facial dos vales de desconto, redimidos pelos clientes finais, e que lhes são apresentados pelos retalhistas para reembolso (cfr. pontos 18.º a 26.º da petição de Revisão Oficiosa).
24. No caso concreto, a Requerente alega não ter procedido ao ajustamento, a seu favor, de parte do IVA liquidado nas transmissões aos retalhistas, dos produtos alvo dos descontos atribuídos pela própria aos clientes finais, consubstanciando no entender da Requerente, uma autoliquidação excessiva de IVA, sobre o preço de venda inicial dos produtos por si produzidos e comercializados no retalho, ainda que o preço final pago pelos respetivos consumidores finais tenha sido reduzido por via da redenção dos vales de desconto (cfr. ponto 27.º da petição).
25. Deste modo, uma vez que suportou o custo subjacente à utilização dos vales de desconto, arroga-se o direito de regularizar, a seu favor, o imposto decorrente da diminuição do valor tributável, mediante o reembolso do respetivo valor do vale de desconto, ao retalhista ou via B…, de acordo com o disposto no artigo 78.º do CIVA (cfr. ponto 28.º da petição).
26. Ora não tendo ainda procedido a tal retificação, conclui a Requerente ter autoliquidado imposto em excesso, no que concerne aos vales de desconto utilizados entre agosto de 2009 e maio de 2011, no montante de € 317.477,51 (cfr. pontos 29.º a 33.º da petição).
27. A Requerente considera também aplicável, à situação em análise, o disposto no n.º 2 do artigo 98.º do CIVA, o qual estabelece o prazo de quatro anos, para o exercício do direito à dedução ou ao reembolso do imposto entregue em excesso, a contar do nascimento do direito à dedução ou do pagamento em excesso do imposto, respetivamente (cfr. pontos 34.º e 35.º da petição).
28. E justifica a invocação do prazo geral de 4 anos, com o fundamento de à situação em análise não ser aplicável qualquer disposição especial que afaste a aplicação do citado n.º 2 do artigo 98.º do CIVA, na medida em que considera não se estar perante erro material ou de cálculo, ou ainda, de correção de faturas inexatas, situações essas que recairiam no âmbito do artigo 78.º do CIVA, que dispõe prazos especiais para o exercício de retificações do valor tributável das operações, em sede de IVA.
29. Nestes termos, entende o sujeito passivo estar em tempo para exercício do direito à recuperação do IVA entregue em excesso (cfr. ponto 36.º da petição).
30. Realça ainda, que o meio impugnatório administrativo de revisão oficiosa, previsto no artigo 78.º da LGT, é o meio próprio para prosseguir os seus intentos nesta sede, invocando para tal doutrina assente do Supremo Tribunal Administrativo (cfr. pontos 37.º a 40.º da petição).
31. Desta forma, a Requerente pugna pelo deferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado, ao abrigo do artigo 78.º da LGT, conjugado com o n.º 1 do artigo 98.º do CIVA, no sentido de ser autorizada a regularização de IVA, a seu favor, no montante total de € 317.477,51, com todas as legais consequências.
IV.1.3. Apreciação do Mérito
32. Após análise do requerimento de Revisão Oficiosa cumpre tecer as seguintes considerações quanto aos fundamentos invocados pela Requerente para sustentar a sua posição.
33. De facto, tomando em consideração o invocado pela Requerente, conclui-se que as questões aqui em análise se reconduzem, conforme já se deixou dito, a aferir se a dedução do vale de desconto subsume-se na noção de desconto prevista no artigo 16.º n.º 6 al. b) do CIVA, bem como averiguar a possibilidade de anulação dos atos tributários de autoliquidação acima referidos, na parte referente ao IVA que alegadamente, foi entregue em excesso, e consequentemente solicita que lhe seja autorizado proceder à regularização de IVA a seu favor, nos termos do artigo 78.º n.º 2 do CIVA, no montante de € 317.477,51, através do mecanismo da Revisão Oficiosa.
IV.1.3. a) A dedução do vale de desconto subsume-se na noção de desconto prevista no artigo 16.º n.º 6 al. b) e do artigo 79.º al. b) da «Diretiva IVA»?
34. O n.º 1 do artigo 16.º do CIVA dispõe como regra geral, que "o valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a imposto é o valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro", o qual não inclui "os descontos, abatimentos e bónus concedidos", conforme a exceção prevista na al. b) do n.º 6 do citado artigo.
35. Tal dispositivo legal encontra adesão na legislação comunitária, na qual o conceito de "valor tributável" referido corresponde basicamente à noção de contraprestação, prevista no artigo 73.º da Diretiva 2006/112/CE, de 28 de Novembro «Diretiva IVA», tendo em conta o valor real da operação.
36. O conceito legal de "desconto" não se encontra definido na Diretiva IVA, porém vem sendo interpretado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, no sentido de que a concessão de um desconto pressupõe a entrega de um bem ou prestação de um serviço, a título oneroso, por via de uma redução do preço total acordado. Em contrapartida, se essa redução representar 100% do preço, já não se trata de um desconto, mas de uma entrega a título gratuito (Acórdão do TJUE, referente ao processo n.º C-48/97, de 27 de Abril de 1999 -"Kwait Petroleum, Lda.").
37. Donde se conclui que a produção de efeitos, ocorre no momento em que o desconto se efetiva, o qual no caso concreto, é o momento da compra do produto pelo cliente final, aquando na posse do vale de desconto respetivo, sendo a esse momento que se reporta a determinação do valor tributável no caso sub iudice, conforme preceitua a al. b) do n.º 6 do artigo 16.º do CIVA.
38. A este propósito pronunciou-se o TJUE no Acórdão "Elida Gibbs" no sentido de que "a matéria coletável uniforme, deve ser interpretado no sentido de que, quando: a) um fabricante emite um cupão de desconto, reembolsável pelo montante indicado no cupão pelo fabricante ou por conta deste, em benefício do retalhista; b) esse cupão, distribuído a um cliente potencial no âmbito de uma campanha de promoção de vendas, pode ser aceite pelo retalhista como pagamento de determinado artigo; c) o fabricante vendeu esse artigo directamente ao retalhista ao «preço do fornecedor original», e d) o retalhista aceita o cupão do cliente aquando da venda do artigo e o apresenta ao fabricante, deste recebendo o montante indicado, a matéria coletável é igual ao preço de venda praticado pelo fabricante, diminuído do montante indicado no cupão e reembolsado. O mesmo se passa se o fabricante fornecer inicialmente os artigos a um grossista, em vez de os fornecer diretamente a um retalhista".
39. Neste sentido, é de excluir o montante nominal dos vales de desconto, utilizados entre agosto de 2009 e maio de 2011, do apuramento do valor tributável, em sede de IVA, das operações em que sejam utilizados.
IV.1.3. b) É possível a anulação das autoliquidações pretendidas, e consequentemente o exercício ao direito à regularização do IVA entregue em excesso, quanto às operações que envolvem vales de desconto, através do mecanismo da revisão oficiosa?
40. A Revisão Oficiosa constitui uma garantia dos administrados/contribuintes, consubstanciando-se num meio administrativo de correção de atos de liquidação ou autoliquidação de tributos, visando a anulação total ou parcial de um ato que já produziu efeitos na ordem jurídica, com fundamento em erro imputável aos serviços, injustiça grave ou notória, ou duplicação de coleta, de acordo com o previsto no artigo 78.º da LGT.
41. Tal mecanismo é igualmente aplicável quando estejam em causa atos tributários de liquidação de IVA, conforme decorre do disposto no artigo 98º do CIVA, onde se estatui que "Quando por motivos imputáveis aos serviços, tenha sido liquidado imposto superior ao devido, procede-se à revisão oficiosa nos termos do artigo 78.º da lei geral tributária."
42. Não obstante essa remissão, a verdade é que, a Revisão Oficiosa não pode efetuar-se em prejuízo dos pressupostos legais do direito à dedução (objetivos, temporais e formais), sob pena das normas reguladoras desse direito ficarem desprovidas de qualquer efetividade.
43. De facto, se assim não se entendesse, poderia suceder que, ainda que não estivessem preenchidos todos os pressupostos legais do direito à dedução, nomeadamente, a tempestividade, o sujeito passivo poderia alcançar o mesmo resultado da dedução de imposto, através do mecanismo de Revisão Oficiosa, o que não se concede, nem se vislumbra que tenha sido essa a intenção do legislador.
44. Razão pela qual as normas da LGT, dotadas de caráter geral, devem ceder perante os preceitos especiais e imperativos constantes do CIVA, que consignam regras específicas para o exercício do direito à dedução.
45. Com efeito, não sendo a LGT uma lei reforçada na acepção do n.º 3 do artigo 112º da Constituição da República Portuguesa (CRP), não pode sobrepor-se hierarquicamente aos códigos e demais leis tributárias em vigor no nosso ordenamento jurídico.
46. No caso concreto, a pretensão da Requerente traduz-se na anulação parcial da autoliquidação de IVA, subjacente às declarações periódicas discriminadas no quadro apresentado no ponto 1. desta informação, referente aos períodos compreendidos entre agosto de 2009 (0908) e maio de 2011 (1105), decorrente da alegada entrega em excesso da importância de € 317.477,51, decorrente do facto da Requerente, considerar ter direito a regularizar, a seu favor, o montante de IVA contido no valor facial dos vales de desconto que emitiu, na qualidade de fabricante dos produtos, e que após terem sido redimidos pelos consumidores finais, lhes foram apresentados pelos retalhistas para reembolso.
47. Para além dos retalhistas, também a entidade externa, B…, a qual foi subcontratada pela Requerente, para efetuar o serviço de gestão e estruturação da campanha promocional referente a estes vales de desconto, vem junto da A… solicitar o ressarcimento dos valores dos vales de desconto que reembolsou aos retalhistas, que por sua vez, lhes foram entregues pelos consumidores finais, mediante a emissão de notas de débito, também sem IVA.
48. Assim sendo, coloca-se a questão de saber se, no caso concreto, estamos perante uma situação enquadrável no n.º 2 do artigo 78.º do CIVA, ou seja, um caso de retificação do IVA decorrente da redução do valor tributável da operação pela concessão de descontos, após ser efetuado o respetivo registo contabilístico, referido no artigo 45.º do CIVA.
49. Esta situação encontra-se reguladas no Ofício-circulado n.º 30032/2005, de 17 de novembro, proferido pela Direção de Serviços do IVA, como " (...) situações em que a redução ou anulação da base tributável origina correcções no imposto, cuja regularização não é obrigatória (...) (sublinhado nosso).
50. De acordo com o preceito administrativo referido, a regularização das deduções de IVA decorrente dessas situações é meramente facultativa por dela resultar imposto a favor do sujeito passivo, sendo que, apenas pode ser efetuada até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificarem as circunstâncias que determinaram a redução do valor tributável, nos termos do n.º 1 do artigo 22.º e do disposto nos nºs 2 e 5 do artigo 78º, ambos do CIVA.
51. Face ao disposto no n.º 2 do artigo 22º do CIVA, que constitui a regra geral, de exercício do direito à dedução e sem prejuízo do estatuído no artigo 78º do mesmo diploma legal na redação à data dos factos," (...) a dedução deve ser efetuada na declaração do período ou de período posterior àquele em que se tiver verificado a receção das faturas, documentos equivalentes ou recibo de pagamento do IVA que fizer parte das declarações de importação", acrescentando o n.º 3 que, "Se a receção dos documentos referidos no número anterior tiver lugar em período de declaração diferente do da respetiva emissão, pode a dedução efetuar-se, se ainda for possível, no período de declaração em que aquela emissão teve lugar."
52. Daqui decorre que, a dedução do imposto não pode ser efetuada em qualquer momento à escolha do sujeito passivo, sendo o alcance útil das normas referidas que indicam os momentos adequados para a dedução precisamente o de excluir que esta se possa fazer em momentos diferentes, quando tal não esteja especialmente previsto.
53. Pelo que, não obstante o n.º 2 do artigo 98º do CIVA determinar que o direito à dedução pode ser exercido até ao limite de quatro anos após o nascimento do direito à dedução, o mesmo não tem o alcance de atribuir ao sujeito passivo a liberdade de escolher qualquer momento, dentro desse período, para efetuar a dedução, mas sim de fixar um limite máximo que não pode ser excedido, mesmo nos casos em que a dedução se possa efetuar em momentos diferentes dos indicados naquele art. 22.º.
54. De acordo com o entendimento firmado, esse prazo limite apenas será aplicável, dado o seu caráter geral, quando não exista norma de caráter especial que fixe um prazo limite inferior ou superior, sob pena destas normas ficarem despojadas de conteúdo prático, pois se assim não fosse, sempre se aplicaria o prazo de quatro anos previsto no artigo 98º do CIVA.
55. Acresce ainda salientar que, de acordo com o estabelecido no ponto 9.1. do ofício-circulado n.º 30082/2005, de 17 de novembro, as "(...) Regularizações previstas nos nºs 2 e 4 do artº 71º - abrange situações em que a redução ou anulação da base tributável origina correcções no imposto, cuja regularização não é obrigatória. Se, porém, o sujeito passivo fornecedor optar pela regularização a seu favor, nos termos do n.º 2, deverá fazê-lo até ao final do período seguinte àquele em que se verificaram as circunstâncias que deram origem à regularizarão, desde que, conforme exige o n.º 5 do mesmo art.º 71.º, tenha na sua posse prova de que o adquirente tomou conhecimento dessa rectificação ou de que foi reembolsado do imposto. (...) Os valores a corrigir, nestas condições, devem constar nos campos 40 e 41, consoante os casos, da declaração periódica do período de imposto em que a regularização é efectuada" (sublinhado nosso).
56. Nessa medida, estando em causa, no presente caso, as declarações periódicas de IVA relativas ao períodos compreendidos entre agosto 2009 e maio de 2011, através da qual o sujeito passivo procedeu à respetiva autoliquidação de IVA, e tendo o pedido de Revisão Oficiosa sido apresentado a 10.10.2013, impõe-se concluir que, o mencionado prazo previsto no n.º 2 do artigo 78.º do CIVA, concedido para efetuar a retificação do IVA deduzido a favor do sujeito passivo, já se encontra esgotado.
57. Assim sendo, não pode proceder a pretensão da Requerente.
58. Não obstante, ainda que o prazo previsto no n.º 3 do artigo 78º do CIVA não estivesse esgotado, para cada um dos períodos em análise, uma vez que estamos perante uma situação de intempestividade das regularizações pretendidas, ficava, igualmente, afastada a possibilidade de enquadramento da situação em causa no mencionado preceito legal, na medida em que não existe qualquer erro material ou de cálculo nas liquidações revistas.
59. Ora, a dedução ou regularização do IVA a favor do sujeito passivo de imposto e respetivos métodos e critérios estão na disponibilidade dos sujeitos passivos, dependendo, aliás, de escolhas discricionárias e conhecimentos inerentes à gestão da atividade tributada que só estão ao alcance do próprio sujeito passivo, ressalvado, que seja o cumprimento da normas legais em vigor.
60. Pelo que, na medida em que não se verificou qualquer irregularidade no cálculo do imposto, quer ao nível dos registos contabilísticos, ou do preenchimento das declarações periódicas, deve concluir-se que inexiste qualquer erro na autoliquidação, pelo que, por maioria de razão, o mesmo jamais poderia ser imputável aos serviços.
61. Assim sendo, não se encontrando preenchidos os pressupostos para a aplicação do artigo 78º da LGT, não pode proceder a pretensão da Requerente.
V. CONCLUSÃO E PROPOSTA DE DECISÃO
Face ao exposto, analisados que foram os fundamentos invocados na petição e demais documentos constantes dos presentes autos de Revisão Oficiosa, propõe-se o Indeferimento de pedido formulado pela Requerente, nos seguintes termos:
1. Indeferir o pedido de anulação dos atos tributários de autoliquidação de IVA, relativos aos meses de agosto de 2009 a maio de 2011, tal como consta e com a fundamentação exposta, mantendo-se as autoliquidações de IVA, no montante de € 317.477,51, com todas as consequências legais;
2. Indeferir o pedido de regularização do imposto liquidado, ao abrigo dos artigos 78.º e 98.º do CIVA, por ser proposto o indeferimento total do pedido principal;
No âmbito do princípio da participação previsto no artigo 60º da LGT, bem como das instruções sobre o direito de audição prévia constantes da Circular n.º 13, de 07 de agosto de 1999, proferida pela Direção de Serviços de Justiça Tributária, propõe-se que seja dispensada a audição prévia, uma vez que a Autoridade Tributária, na sua decisão, apenas se limitou a efetuar uma interpretação das normas legais aplicáveis aos factos invocados pela Requerente.
f) A Autoridade Tributária e Aduaneira notificou a Requerente da decisão de indeferimento da reclamação graciosa nos termos que constam do documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais o seguinte:
Mais fica notificado(a) que, do referido Despacho, poderá, querendo, no prazo de 30 (trinta) dias, recorrer hierarquicamente, ao abrigo do disposto no art.º 80.º da Lei Geral Tributária,2 conjugado com o art.º 66.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, ou, no prazo de 3 (três) meses, a contar da presente notificação, interpor Ação Administrativa Especial, nos termos previstos nos artºs 46.º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, ex vi n.º 2 do art.º 97.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
g) Em 30-10-2014, a Requerente interpôs recurso hierárquico da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, em que formulou o seguinte pedido:
«Nestes termos, e nos demais de Direito, requer-se a V. Exa. que se digne revogar a decisão de indeferimento do Pedido de Revisão Oficiosa em conformidade com o presente Recurso Hierárquico e, em consequência, autorizar a regularização de IVA a favor da Recorrente, no valor de €317.477,51;
(documentos n.ºs 3 a 8 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
h) O recurso hierárquico foi indeferido por despacho de 18-06-2015, do Senhor Subdirector-Geral dos Impostos que manifestou concordância com uma informação dos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira que consta do documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais, o seguinte:
II - REVISÃO OFICIOSA
2. Ao abrigo do art.º 78.º da LGT, a aqui Recorrente apresentou pedido de revisão oficiosa "da (auto)liquidação e pagamento do Imposto sobre o Valor Acrescentado efectuado em excesso nas declarações periódicas referentes aos períodos compreendidos entre Agosto de 2009 e Maio de 2011, no valor total de € 317.477,51", com fundamento na constatação de não ter efetuado a regularização, a seu favor, do imposto incluído nos vales de desconto que, no âmbito das suas políticas comerciais e de fidelização de clientes, atribuiu aos consumidores finais dos produtos da sua gama alimentar.
3. Em termos muito sumários, a Recorrente afirmou que a emissão de tais vales, que titulam a atribuição de desconto ao preço de comercialização do produto a que respeita o vale, consubstancia uma redução do preço de compra no momento da sua aquisição pelos clientes finais. O valor do desconto é posteriormente imputado à Recorrente, na qualidade de fabricante, para reembolso do respetivo montante pelo estabelecimento comercial/retalhista que vendeu os produtos aos clientes finais.
4. Considerou ser aplicável a esta situação o disposto no n.º 2 do art.º 98.º do Código do IVA (CIVA), uma vez que não existe uma disposição especial que afaste a aplicação dessa norma, mediante a utilização do meio impugnatório administrativo previsto no art.º 78.º da LGT.
5. O pedido de revisão foi indeferido pelo despacho recorrido, mediante concordância com a informação n.º …-…/2014, de 2014-07-28, da DGAT da UGC.
6. Esta informação começou por proceder ao enquadramento da situação exposta no requerimento inicial, tendo concluído, com base no acórdão Elida Gibbs do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), que a dedução do vale de desconto subsume-se na noção de desconto prevista na al. b) do n.º 6 do art.º 16.º do CIVA e na al. b) do art.º 79.º da Diretiva (VA (2006/112/CE do Conselho, de 2006-11-28), sendo, portanto, de excluir o montante nominal dos vales de desconto, utilizados entre agosto de 2009 e maio de 2011, do apuramento do valor tributável das operações em que sejam utilizados.
7. No entanto, considerou que a regularização pretendida se enquadra no n.º 2 do art.º 78.º do CIVA, "ou seja, um caso de retificação do IVA decorrente da redução do valor tributável da operação pela concessão de descontos, após ser efetuado o respetivo registo contabilístico, referido no artigo 45.º do CIVA", conforme resulta do ofício-circulado n.º 30082/2005, de 17 de novembro.
8. "De acordo com o preceito administrativo referido, a regularização das deduções de IVA decorrente dessas situações é meramente facultativa por dela resultar imposto a favor do sujeito passivo, sendo que, apenas pode ser efetuada até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificarem as circunstâncias que determinaram a redução do valor tributável, nos termos do n.º 1 do artigo 22.º e do disposto nos nºs 2 e 5 do artigo 78º, ambos do CIVA"3.
9. Foi decidido que esse prazo já decorreu, pelo que a pretensão tem de improceder. Ainda que assim não fosse, "uma vez que estamos perante uma situação de intempestividade das regularizações pretendidas, ficava, igualmente, afastada a possibilidade de enquadramento da situação em causa no mencionado preceito legal, na medida em que não existe qualquer erro material ou de cálculo das liquidações revistas"4.
III - RECURSO HIERÁRQUICO
1 - Argumentos da Recorrente
10. Não se conformando com o indeferimento do requerimento de revisão oficiosa, a Recorrente interpôs o presente recurso hierárquico, no qual reitera e desenvolve a fundamentação do pedido impugnatório, analisando criticamente a informação fundamentadora do despacho recorrido.
11. No essencial, entende a Recorrente que o n.º 2 do art.º 78.º do CIVA não constitui um prazo de caducidade ou um limite temporal ao exercício do direito de dedução, não restringindo a possibilidade de regularização do IVA titulado nos vales de desconto, a qual pode ser efetuada durante o prazo de quatro anos previsto no n.º 2 do art.º 98.º do CIVA, uma vez que esta situação não está prevista em qualquer disposição especial, designadamente no n.º 6 do art.º 78.º do CIVA. O meio procedimental adequado é o pedido de revisão das autoliquidações realizadas.
2 - Apreciação do Recurso Hierárquico
12. Como a Recorrente admite no ponto 30.º do requerimento inicial, à regularização pretendida é aplicável o disposto no n.º 2 do art.º 78.º do CIVA, nos termos do qual se, depois de efetuado o registo referido no art.º 45.º, for reduzido o valor tributável da operação em consequência da concessão de descontos, pode ser realizada a dedução do imposto até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificarem as circunstâncias que determinaram a redução do valor tributário.
13. No entanto, entende a Recorrente que a expressão "pode" impõe interpretação segundo a qual a prerrogativa de regularização não está limitada ao final do período de imposto seguinte, sendo possível até ao final do prazo de quatro anos previsto no n.º 2 do art.º 98.º do CIVA.
14. Entende-se, porém, que o n.º 2 do art.º 78.º do CIVA impõe um prazo de caducidade do direito de regularização de imposto, designadamente em caso de redução do valor tributável por virtude da concessão de descontos, o que impossibilita que tal regularização seja realizada para além desse prazo.
15. Aliás, ainda que o n.º 2 do art.º 98.º do CIVA fosse aplicável a situações de regularização de imposto, o que não se aceita, o prazo de regularização previsto no n.º 2 do art.º 78.º sempre constituiria uma disposição especial que se sobreporia ao prazo geral daquela norma.
16. No n.º 2 do art.º 78.º do CIVA, o termo "pode" pretende expressar que a regularização a favor do sujeito passivo não é obrigatória, mas meramente facultativa, o que resulta claro da redação do preceito.
17. O que foi, aliás, denotado e está em consonância com o disposto no ofício-circulado n.º 30082/2005, de 17 de novembro, designadamente na parte citada no ponto 115.º iii) da petição de recurso, quando refere "se, porém, o sujeito passivo fornecedor optar pela regularização a seu favor, nos termos do nº 2, deverá fazê-lo até ao final do período seguinte àquele em que se verificaram as circunstâncias que deram origem à regularização".
18. Contrariamente ao afirmado no ponto 98.º e seguintes da petição de recurso, também não se reconhece qualquer incompatibilidade do prazo de caducidade previsto no n.º 2 do art.º 78.º com o disposto na Diretiva IVA.
19. Na realidade, nas situações previstas no n.º 2 do artº 78.º do CIVA não existe propriamente um erro do sujeito passivo, mas sim uma alteração superveniente da operação tributável que origina o direito a retificar a tributação em sintonia com o negócio alterado.
20. Nestes casos, não se concebe que o sujeito passivo não tenha conhecimento do seu direito à regularização de imposto, uma vez que esta resulta necessária e imediatamente da redução do valor tributável. Desta forma, o prazo de regularização fixado na lei afigura-se adequado para ser ajustada a tributação ao negócio alterado.
21. Pelo contrário, nas verdadeiras situações de erro o sujeito passivo carece de um prazo mais amplo para detetar o erro por si verificado, geralmente fixado em dois anos, precisamente porque este erro resulta de uma falsa perceção da realidade e não numa alteração da operação tributável.
22. Não tendo a Recorrente procedido à regularização de imposto nos termos impostos pelo n.º 2 do art.º 78.º do CIVA, os registos contabilísticos e as autoliquidações de imposto realizadas não poderiam deixar de refletir os elementos contabilísticos e tributários tais como foram realizados. É neste sentido que tais autoliquidações não padecem de qualquer erro, porquanto, efetivamente, espelham adequadamente o valor tributário do negócio não retificado.
23. Diferente seria se a regularização de imposto, por virtude da concessão de descontos, tivesse sido realizada nos termos do n.º 2 do art.º 78.º do CIVA. Nestas circunstâncias, poderia a Recorrente reclamar graciosamente da autoliquidação realizada, nos termos do n.º 1 do art.º 131.º do CPPT, e poderia ainda analisar-se a viabilidade de revisão nos termos do art.º 78.º da LGT.
24. Na situação em análise, nem a reclamação graciosa da autoliquidação poderia tutelar a pretensão da Recorrente, porquanto a autoliquidação realizada não poderia deixar de repercutir o valor tributável da operação inicialmente faturada e registada. Apenas se, no devido prazo, tivesse procedido à regularização prevista no n.º 2 do artº 78.º e podendo ainda reclamar graciosamente nos termos do n.º 1 do art.º 131.º, poderia a Recorrente fazer valer os seus intentos.
25. Quanto à restante argumentação aduzida, o n.º 2 do art.º 22.º do CIVA é irrelevante para efeitos da revisão apresentada. Esta norma aborda o momento e condições temporais do direito à dedução, quando o que a Recorrente suscita é uma pretensão de regularização de imposto liquidado em excesso, encontrando-se o termo "dedução", no n.º 2 do art.º 78.º, utilizado no sentido de regularização. Aliás, o art.º 78.º só regula situações de regularização de imposto, não de dedução.
26. Especificamente quanto ao meio impugnatório utilizado, é manifesto que os sujeitos passivos não podem corrigir imposto autoliquidado, com recurso ao pedido de revisão previsto no art.º 78.º da LGT, em situações em que a regularização de imposto não é admissível nos termos instituídos pelo CIVA.
27. Na realidade, fixando o CIVA um prazo de caducidade para a regularização do imposto liquidado em excesso por virtude da posterior concessão de descontos ao preço (art.º 78.º, n.º 2), não pode esse prazo ser estendido pela mera circunstância de existir um mecanismo impugnatório da autoliquidação que pode ser acionado por um prazo superior.
28. Nas situações como aquela em apreço, a ser considerado admissível o pedido de revisão (porque acionado no prazo de quatro anos previsto no n.º 1 do art.º 78.º da LGT), a pretensão material tem de improceder, por caducidade do direito reivindicado.
29. De facto, a ter acolhimento a pretensão da Recorrente, a revisão do ato tributário de autoliquidação passaria a substituir os mecanismos regularização de imposto deduzido ou liquidado tão laboriosamente plasmados no CIVA.
30. Assim, o pedido de revisão do ato tributário de autoliquidação não pode sobrepor-se às normas reguladoras do direito à regularização deste imposto. Por outras palavras, um sujeito passivo que, nos termos do CIVA, já não pode regularizar o IVA liquidado numa operação tributável, não pode atingir o mesmo resultado através da revisão oficiosa prevista no n.º 1 do art.º 78.º da LGT e no n.º 1 do art.º 98.º do CIVA.
31. Na realidade, a revisão oficiosa do imposto não pode prejudicar a imperatividade das normas que estabelecem regras especiais para o exercício do direito de regularização. Sob pena destas normas ficarem desprovidas de qualquer efeito prático, perderem a sua razão de ser e daquele direito, na prática, poder ser exercido, em muitas situações, pelo mecanismo da revisão oficiosa no prazo de quatro anos fixado no n.º 1 do art.º 78.º da LGT.
32. Acresce que, como exposto, nestas situações a autoliquidação não padece de erro, na medida em que todo o IVA liquidado em fatura tem de ser refletido na declaração periódica. Uma vez que o erro a montante da autoliquidação não foi retificado nos termos do CIVA, a liquidação de imposto realizada pela Recorrente permanece válida.
33. A correção da autoliquidação pressuporia a prévia regularização nos termos do n.º 2 do art.º 78.º, na medida em que só então se poderia reconhecer a existência de um erro na declaração periódica, isto é, dela constaria um montante de IVA liquidado que foi reduzido, nos termos do CIVA, por virtude da concessão dos descontos comerciais.
34. Aliás, se a revisão da autoliquidação se processasse à margem das regras do art.º 78.º do CIVA, não poderia ser salvaguardada a reflexa regularização do IVA deduzido (em excesso) pelo adquirente, a qual é obrigatória nos termos do n.º 4 do mesmo preceito.
i) Na notificação da decisão de indeferimento do recurso hierárquico, que consta do documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, refere-se, além do mais, o seguinte:
Mais fica notificado que, do referido Despacho, poderá, querendo, no prazo de 3 (três) meses, deduzir Impugnação Judicial, nos termos da alínea f) do n.º 1 do art. 102.º deste último diploma legal, ou ainda, e sendo caso disso, fazer uso da faculdade prevista no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
j) Em 28-09-2015, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
2.2. Factos não provados
Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.
2.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto
A matéria de facto fixada baseia-se nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e os que fazem parte do processo administrativo, não havendo controvérsia sobre eles.
3. Questões de incompetência do Tribunal Arbitral
Uma vez que as questões de incompetência são logicamente de conhecimento prioritário, como está reconhecido no artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, começar-se-á pela apreciação das questões de incompetência colocadas.
3.1. Questão da incompetência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD para apreciar a legalidade de actos de liquidação não precedidos de reclamação graciosa mas de pedido de revisão oficiosa
A Autoridade Tributária e Aduaneira defende, em suma, que o artigo 2.º, alínea a) da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, através da qual a Autoridade Tributária e Aduaneira ficou vinculada à jurisdição arbitral exclui as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no art. 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT).
Numa segunda linha, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é também limitada pelos termos em que Administração Tributária foi vinculada àquela jurisdição pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pois o art. 4.º do RJAT estabelece que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos».
Em face desta segunda limitação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos desta vinculação, pois, mesmo que se esteja perante uma situação enquadrável naquele art. 2.º do RJAT, se ela não estiver abrangida pela vinculação estará afastada a possibilidade de o litígio ser jurisdicionalmente decidido por este Tribunal Arbitral.
Na alínea a) do art. 2.º desta Portaria n.º 112-A/2011, excluem-se expressamente do âmbito da vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário».
A referência expressa ao precedente «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário» deve ser interpretada como reportando-se aos casos em que tal recurso é obrigatório, através da reclamação graciosa, que é o meio administrativo indicado naqueles artigos 131.º a 133.º do CPPT, para cujos termos se remete. Na verdade, desde logo, não se compreenderia que, não sendo necessária a impugnação administrativa prévia «quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária» (art. 131.º, n.º 3, do CPPT, aplicável aos casos de retenção na fonte, por força do disposto no n.º 6 do art. 132.º do mesmo Código), se fosse afastar a jurisdição arbitral por essa impugnação administrativa, que se entende ser desnecessária, não ter sido efectuada.
No caso em apreço, é pedida a declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação de IVA respeitante aos meses de Agosto de 2009 a Maio de 2011, bem como a declaração de ilegalidade e anulação dos actos de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e do recurso hierárquico.
Assim, importa, antes de mais, esclarecer se a declaração de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão do acto tributário, previstos no art. 78.º da LGT, se inclui nas competências atribuídas aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD pelo art. 2.º do RJAT.
Na verdade, neste art. 2.º não se faz qualquer referência expressa a estes actos, ao contrário do que sucede com a autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, que refere os «pedidos de revisão de actos tributários» e «os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação».
No entanto, a fórmula «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não restringe, numa mera interpretação declarativa, o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado directamente um acto de um daqueles tipos. Na verdade, a ilegalidade de actos de liquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um acto de segundo grau, que confirme um acto de liquidação, incorporando a sua ilegalidade.
A inclusão nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD dos casos em que a declaração de ilegalidade dos actos aí indicados é efectuada através da declaração de ilegalidade de actos de segundo grau, que são o objecto imediato da pretensão impugnatória, resulta com segurança da referência que naquela norma é feita aos actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, que expressamente se referem como incluídos entre as competências dos tribunais arbitrais. Com efeito, relativamente a estes actos é imposta, como regra, a reclamação graciosa necessária, nos artigos 131.º a 133.º do CPPT, pelo que, nestes casos, o objecto imediato do processo impugnatório é, em regra, o acto de segundo grau que aprecia a legalidade do acto de liquidação, acto aquele que, se o confirma, tem de ser anulado para se obter a declaração de ilegalidade do acto de liquidação. A referência que na alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do RJAT se faz ao n.º 2 do art. 102.º do CPPT, em que se prevê a impugnação de actos de indeferimento de reclamações graciosas, desfaz quaisquer dúvidas de que se abrangem nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD os casos em que a declaração de ilegalidade dos actos referidos na alínea a) daquele art. 2.º do RJAT tem de ser obtida na sequência da declaração da ilegalidade de actos de segundo grau.
Aliás, foi precisamente neste sentido que o Governo, na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, interpretou estas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, ao afastar do âmbito dessas competências as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», o que tem como alcance restringir a sua vinculação os casos em que esse recurso à via administrativa foi utilizado.
Obtida a conclusão de que a fórmula utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não exclui os casos em que a declaração de ilegalidade resulta da ilegalidade de um acto de segundo grau, ela abrangerá também os casos em que o acto de segundo grau é o de indeferimento de pedido de revisão do acto tributário, pois não se vê qualquer razão para restringir, tanto mais que, nos casos em que o pedido de revisão é efectuado no prazo da reclamação graciosa, ele deve ser equiparado a uma reclamação graciosa. ( [1] )
O mesmo sucede com a decisão do recurso hierárquico, expressamente indicada na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT como termo inicial do prazo de apresentação de pedido de constituição do tribunal arbitral.
A referência expressa ao artigo 131.º do CPPT que se faz no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não pode ter o alcance decisivo de afastar a possibilidade de apreciação de pedidos de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de actos de autoliquidação.
Na verdade, a interpretação exclusivamente baseada no teor literal que defende a Autoridade Tributária e Aduaneira no presente processo não pode ser aceite, pois na interpretação das normas fiscais são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis (artigo 11.º, n.º 1, da LGT) e o artigo 9.º n.º 1, proíbe expressamente as interpretações exclusivamente baseadas no teor literal das normas ao estatuir que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei», devendo, antes, «reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada».
Quanto a correspondência entre a interpretação e a letra da lei, basta «um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil) o que só impedirá que se adoptem interpretações que não possam em absoluto compaginar-se com a letra da lei, mesmo reconhecendo nela imperfeição na expressão da intenção legislativa.
Por isso, a letra da lei não é obstáculo a que se faça interpretação declarativa, que explicite o alcance do teor literal, nem mesmo interpretação extensiva, quando se possa concluir que o legislador disse menos do que o que, em coerência, pretenderia dizer, isto é, quando disse imperfeitamente o que pretendia dizer. Na interpretação extensiva «é a própria valoração da norma (o seu “espírito”) que leva a descobrir a necessidade de estender o texto desta à hipótese que ela não abrange», «a força expansiva da própria valoração legal é capaz de levar o dispositivo da norma a cobrir hipóteses do mesmo tipo não cobertas pelo texto». ( [2] )
A interpretação extensiva, assim, é imposta pela coerência valorativa e axiológica do sistema jurídico, erigida pelo artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil em critério interpretativo primordial pela via da imposição da observância do princípio da unidade do sistema jurídico.
É manifesto que o alcance da exigência de reclamação graciosa prévia, necessária para abrir a via contenciosa de impugnação de actos de autoliquidação, prevista no n.º 1 do artigo 131.º do CPPT, tem como única justificação o facto de relativamente a esse tipo de actos não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o acto, posição essa que até poderá vir a ser favorável ao contribuinte, evitando a necessidade de recurso à via contenciosa.
Na verdade, além de não se vislumbrar qualquer outra justificação para a essa exigência, o facto de estar prevista idêntica reclamação graciosa necessária para impugnação contenciosa de actos de retenção na fonte e de pagamento por conta (nos artigos 132.º, n.º 3, e 133.º, n.º 2, do CPPT), que têm de comum com os actos de autoliquidação a circunstância de também não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade dos actos, confirma que é essa a razão de ser daquela reclamação graciosa necessária.
Uma outra confirmação inequívoca de que é essa a razão de ser da exigência de reclamação graciosa necessária encontra-se no n.º 3, do artigo 131.º do CPPT, ao estabelecer que «sem prejuízo do disposto nos números anteriores, quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, o prazo para a impugnação não depende de reclamação prévia, devendo a impugnação ser apresentada no prazo do n.º 1 do artigo 102.º». Na verdade, em situações deste tipo, houve uma pronúncia prévia genérica da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o acto de autoliquidação e é esse facto que explica que deixe de exigir-se a reclamação graciosa necessária.
Ora, nos casos em que é formulado um pedido de revisão oficiosa de acto de liquidação é proporcionada à Administração Tributária, com este pedido, uma oportunidade de se pronunciar sobre o mérito da pretensão do sujeito passivo antes de este recorrer à via jurisdicional, pelo que, em coerência com as soluções adoptadas nos n.ºs 1 e 3 do artigo 131.º do CPPT, não pode ser exigível que, cumulativamente com a possibilidade de apreciação administrativa no âmbito desse procedimento de revisão oficiosa, se exija uma nova apreciação administrativa através de reclamação graciosa. ( [3] )
Por outro lado, é inequívoco que o legislador não pretendeu impedir aos contribuintes a formulação de pedidos de revisão oficiosa nos casos de actos de autoliquidação, pois estes são expressamente referidos no n.º 2 do artigo 78.º da LGT.
Neste contexto, permitindo a lei expressamente que os contribuintes optem pela reclamação graciosa ou pela revisão oficiosa de actos de autoliquidação e sendo o pedido de revisão oficiosa formulado no prazo da reclamação graciosa perfeitamente equiparável a uma reclamação graciosa, como se referiu, não pode haver qualquer razão que possa explicar que não possa aceder à via arbitral um contribuinte que tenha optado pela revisão do acto tributário em vez da reclamação graciosa.
Por isso, é de concluir que os membros do Governo que emitiram a Portaria n.º 112-A/2011, ao fazerem referência ao artigo 131.º do CPPT relativamente a pedidos de declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, disseram imperfeitamente o que pretendiam, pois, pretendendo impor a apreciação administrativa prévia à impugnação contenciosa de actos de autoliquidação, acabaram por incluir referência ao artigo 131.º que não esgota as possibilidades de apreciação administrativa desses actos.
Aliás, é de notar que esta interpretação não se cingindo ao teor literal até se justifica especialmente no caso da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, por serem evidentes as suas imperfeições: uma, é associar a fórmula abrangente «recurso à via administrativa» (que referencia, além da reclamação graciosa, o recurso hierárquico e a revisão do acto tributário) à «expressão nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», que tem potencial alcance restritivo à reclamação graciosa; outra é utilizar a fórmula «precedidos» de recurso à via administrativa, reportando-se às «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos», que, obviamente, se coadunariam muito melhor com a feminina palavra «precedidas».
Por isso, para além da proibição geral de interpretações limitadas à letra da lei que consta do artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil, no específico caso da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A72011 há uma especial razão para não se justificar grande entusiasmo por uma interpretação literal, que é o facto e a redacção daquela norma ser manifestamente defeituosa.
Para além disso, assegurando a revisão do acto tributário a possibilidade de apreciação da pretensão do contribuinte antes do acesso à via contenciosa que se pretende alcançar com a impugnação administrativa necessária, a solução mais acertada, porque é a mais coerente com o desígnio legislativo de «reforçar a tutela eficaz e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes» manifestado no n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, é a admissibilidade da via arbitral para apreciar a legalidade de actos de liquidação previamente apreciada em procedimento de revisão.
E, por ser a solução mais acertada, tem de se presumir ter sido normativamente adoptada (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).
Por outro lado, contendo aquela alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 uma fórmula imperfeita, mas que contém uma expressão abrangente «recurso à via administrativa», que potencialmente referencia também a revisão do acto tributário, encontra-se no texto o mínimo de correspondência verbal, embora imperfeitamente expresso, exigido por aquele n.º 3 do artigo 9.º para a viabilidade da adopção da interpretação que consagre a solução mais acertada.
É de concluir, assim, que o artigo 2.º alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, devidamente interpretado com base nos critérios de interpretação da lei previstos no artigo 9.º do Código Civil e aplicáveis às normas tributárias substantivas a adjectivas, por força do disposto no artigo 11.º, n.º 1, da LGT, viabiliza a apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a actos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa.
A Autoridade Tributária e Aduaneira alega, no entanto, que «o entendimento (...) de que os litígios que tenham por objecto a declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, como sucede na situação sub judice, estão excluídos da competência material dos tribunais arbitrais, se não forem precedidos de reclamação graciosa nos termos do artigo 131.º do CPPT, impõe-se por força dos princípios constitucionais do Estado de direito e da separação dos poderes (cf. artigos 2.º e 111.º, ambos da CRP), bem como do direito de acesso à justiça (artigo 20.º da CRP) e da legalidade [cf. artigos 3.º, n.º 2, 202.º e 203.º da CRP e ainda o artigo e 266.º, n.º 2, da CRP, no seu corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT, que vinculam o legislador e toda a actividade da AT».
Na verdade, a Constituição não impõe que a interpretação dos diplomas normativos tenha de cingir-se ao teor literal e, no caso em apreço, como se explicou, devidamente interpretadas as normas do artigo 2.º, n.º 1, do RJAT e do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, conclui-se que a vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD abrange os casos em que actos de autoliquidação foram precedidos de pedidos de revisão oficiosa. Por isso, a interpretação que se fez não aumentou a vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira em relação ao que está regulamentado, antes definiu exactamente os seus termos que resultam do diploma regulamentar.
Por outro lado, ao interpretar e aplicar as normas jurídicas, este Tribunal Arbitral está a desempenhar a função que lhe está constitucionalmente atribuída (artigos 202.º, n.º 1, 203.º e 209.º, n.º 2, da CRP), pelo que nem se vislumbra como possa existir violação dos princípios da separação de poderes, do Estado de Direito e da legalidade, pois o decidido por este tribunal evidencia, precisamente, a sua perfeita concretização: a Assembleia da República autorizou o Governo a legislar (artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril); o Governo, no uso de poderes legislativos, emitiu o RJAT; a Administração, através de dois membros do Governo, emitiu a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março; o Tribunal Arbitral interpretou e aplicou os diplomas normativos referidos.
No que respeita ao princípio do direito de acesso à justiça, causa perplexidade a alegação da sua violação feita perante um Tribunal Arbitral, que é um órgão absolutamente independente de ambas as Partes, que lhes deu oportunidade de alegarem o que entenderam conveniente para defesa das suas posições sobre a questão da incompetência, que ponderou as suas razões e aplicou a sua interpretação do regime legal aplicável numa decisão profusamente fundamentada: é precisamente nisto que consiste a essência do direito de acesso à justiça, a possibilidade de obter uma decisão de um órgão independente que, através de um processo equitativo, pondere os argumentos das Partes e aplique às questões suscitadas sua interpretação do regime jurídico aplicável.
Quanto à invocação do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, definido no artigo 30.º, n.º 2, da LGT, em que se refere que «o crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributário», tratar-se-á, decerto, de lapso, já que ao decidir sobre a sua competência o Tribunal Arbitral não está a praticar qualquer acto de disposição de que crédito. Por outro lado, nem se vê a que crédito se referirá a Autoridade Tributária e Aduaneira, já que no presente processo, em que estão em causa actos de autoliquidação de IVA que foi pago, não está em causa a cobrança de qualquer crédito tributário, estando já extintos, pelo pagamento, os que existiam antes das autoliquidações e nem sequer é alegado que exista qualquer outro crédito da Autoridade Tributária e Aduaneira em relação à Requerente relacionado com as autoliquidações em causa.
Improcede, assim, esta excepção de incompetência, derivada de não ter sido apresentada reclamação graciosa dos actos de autoliquidação.
3.2. Questão da incompetência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD para apreciar a legalidade de actos de autoliquidação precedidos de pedido de revisão oficiosa e de recurso hierárquico que não tenham apreciado a legalidade daqueles actos de autoliquidação
No art. 2.º do RJAT, em que se define a «Competência dos tribunais arbitrais», não se inclui expressamente a apreciação de pretensões de declaração de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de actos tributários, pois, na redacção introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, apenas se indica a competência dos tribunais arbitrais para «a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta» e «a declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais».
Porém, o facto de a alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do RJAT fazer referência aos n.ºs 1 e 2 do art. 102.º do CPPT, em que se indicam os vários tipos de actos que dão origem ao prazo de impugnação judicial, inclusivamente a reclamação graciosa, deixa perceber que serão abrangidos no âmbito da jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD todos os tipos de actos passíveis de serem impugnados através processo de impugnação judicial, abrangidos por aqueles n.ºs 1 e 2, desde que tenham por objecto um acto de um dos tipos indicados naquele art. 2.º do RJAT.
Aliás, esta interpretação no sentido da identidade dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e do processo arbitral é a que está em sintonia com a referida autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo art. 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, em que se revela a intenção de que o processo arbitral tributário constitua «um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária» (n.º 2).
Mas, este mesmo argumento que se extrai da autorização legislativa conduz à conclusão de que estará afastada a possibilidade de utilização do processo arbitral quando, no processo judicial tributário, não for utilizável a impugnação judicial ou a acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo.
Na verdade, sendo este o sentido da referida lei de autorização legislativa e inserindo-se na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República legislar sobre o «sistema fiscal», inclusivamente as «garantias dos contribuintes» [arts. 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP] ( [4] ), e sobre a «organização e competência dos tribunais» [art. 165.º, n.º 1, alínea p), da CRP], não pode o referido art. 2.º do RJAT, sob pena de inconstitucionalidade, por falta de cobertura na lei de autorização legislativa que limita o poder do Governo (art. 112.º, n.º 2, da CRP), ser interpretado como atribuindo aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD competência para a apreciação da legalidade de outros tipos de actos, para cuja impugnação não são adequados o processo de impugnação judicial e a acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo.
Assim, para resolver a questão da competência deste Tribunal Arbitral torna-se necessário apurar se a legalidade do acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa podia ou não ser apreciada, num tribunal tributário, através de processo de impugnação judicial ou acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo.
Os actos de indeferimento de um pedido de revisão oficiosa do acto tributário e de indeferimento de recurso hierárquico constituem actos administrativos, à face das definições fornecidas pelos artigos 120.º do Código do Procedimento Administrativo de 1991 e 148.º do Código do Procedimento Administrativo de 2015, [subsidiariamente aplicáveis em matéria tributária, por força do disposto no art. 2.º, alínea c), da LGT, 2.º, alínea d), do CPPT, e 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT], pois constituem decisão de órgãos da Administração que ao abrigo de poderes públicos visaram produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta.
Por outro lado, é também inquestionável que se trata de actos em matéria tributária pois é neles feita aplicação de normas de direito tributário.
Assim, os actos de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e de indeferimento do recurso hierárquico constituem actos administrativos em matéria tributária.
Das alíneas d) e p) do n.º 1 e do n.º 2 do art. 97.º do CPPT infere-se a regra de a impugnação de actos administrativos em matéria tributária ser feita, no processo judicial tributário, através de impugnação judicial ou acção administrativa especial (que sucedeu ao recurso contencioso, nos termos do art. 191.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos) conforme esses actos comportem ou não comportem a apreciação da legalidade de actos administrativos de liquidação. ( [5] )
Eventualmente, como excepção a esta regra poderão considerar-se os casos de impugnação de actos de indeferimento de reclamações graciosas, pelo facto de haver uma norma especial, que é o n.º 2 do art. 102.º do CPPT, de que se pode depreender que a impugnação judicial é sempre utilizável. ( [6] ) Outras excepções àquela regra poderão encontrar-se em normas especiais, posteriores ao CPPT, que expressamente prevejam o processo de impugnação judicial como meio para impugnar determinado tipo de actos. ( [7] )
Mas, nos casos em que não há normas especiais, é de aplicar aquele critério de repartição dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e da acção administrativa especial.
À face deste critério de repartição dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e da acção administrativa especial, os actos proferidos em procedimentos de revisão oficiosa de actos de autoliquidação apenas poderão ser impugnados através de processo de impugnação judicial quando comportem a apreciação da legalidade destes actos de autoliquidação. Se o acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa de acto de autoliquidação não comporta a apreciação da legalidade deste será aplicável a acção administrativa especial. Trata-se de um critério de distinção dos campos de aplicação dos referidos meios processuais de duvidosa justificação, mas o certo é que é o que resulta do teor das alíneas d) e p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT e tem vindo a ser uniformemente adoptado pelo Supremo Tribunal Administrativo. ( [8] )
Esta constatação de que há sempre um meio impugnatório processual adequado para impugnar contenciosamente o acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa de acto de autoliquidação e o acto de indeferimento de recurso hierárquico, conduz, desde logo, à conclusão de que não se está perante situações em que no processo judicial tributário pudesse ser utilizada a acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo, pois a sua aplicação no contencioso tributário tem natureza residual, uma vez que essas acções «apenas podem ser propostas sempre que esse meio processual for o mais adequado para assegurar uma tutela plena, eficaz e efectiva do direito ou interesse legalmente protegido» (art. 145.º, n.º 3, do CPPT).
Uma outra conclusão que permite a referida delimitação dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e da acção administrativa especial é a de que, restringindo-se a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD ao campo de aplicação do processo de impugnação judicial, apenas se inserem nesta competência os pedidos de declaração de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de actos autoliquidação e de indeferimento de recursos hierárquicos que comportem a apreciação da legalidade destes actos.
A preocupação legislativa em afastar das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a apreciação da legalidade de actos administrativos que não comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, para além de resultar, desde logo, da directriz genérica de criação de um meio alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo, resulta com clareza da alínea a) do n.º 4 do art. 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, em que se indicam entre os objectos possíveis do processo arbitral tributário «os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação», pois esta especificação apenas se pode justificar por uma intenção legislativa no sentido de excluir dos objectos possíveis do processo arbitral a apreciação da legalidade dos actos que não comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação.
Por isso, a solução da questão da competência deste Tribunal Arbitral conexionada com o conteúdo dos actos de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e do recurso hierárquico depende da análise destes actos.
No caso em apreço, os motivos invocados para o indeferimento da revisão oficiosa e do recurso hierárquico foi a intempestividade da pretendida regularização dos actos de autoliquidação, o que, obviamente, não implica apreciação da legalidade ou não de qualquer acto de liquidação.
Porém, à face do critério de repartição dos campos do processo de impugnação judicial e da acção administrativa especial delineado pelas alíneas d) e p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT, não é necessário que a apreciação da legalidade de um acto de liquidação seja o fundamento da decisão procedimental ou que no pedido formulado se peça a apreciação da legalidade de um acto de liquidação, bastando que esse acto a comporte, o que, neste contexto, significa que no acto impugnado se inclua um juízo sobre a legalidade de um acto de liquidação, mesmo que não seja a sua legalidade ou ilegalidade o fundamento da decisão. Diferente seria se a lei empregasse outras expressões, como «aprecie» o «decida».
No caso em apreço, não se pode entender que a decisão do pedido de revisão oficiosa e a decisão do recurso hierárquico incluam a apreciação da legalidade de qualquer acto de autoliquidação, pois, como se vê pelo texto das informações em que se basearam as decisões de indeferimento, em nenhum ponto se refere se tinham ou não suporte legal as correcções que o Requerente pretendeu efectuar, baseando-se os indeferimentos apenas na falta de norma legal que preveja a possibilidade de exercício do direito a dedução no momento em que o Requerente o pretendeu exercer.
Sendo assim, pelo que atrás se disse sobre a limitação das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD à apreciação da legalidade de actos de decisão de pedidos de revisão oficiosa que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, tem de se concluir pela incompetência deste Tribunal Arbitral para apreciar a legalidade do acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e do acto de indeferimento do recurso hierárquico.
A incompetência para apreciar a legalidade do acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e do acto de indeferimento do recurso hierárquico tem como corolário a incompetência deste Tribunal Arbitral para apreciar a legalidade dos actos de autoliquidação que a Requerente refere.
Na verdade, o objecto imediato do pedido de pronúncia arbitral é a ilegalidade dos actos de indeferimentos dos pedidos de revisão oficiosa e de recurso hierárquico sendo a ilegalidade dos actos de autoliquidação meramente objecto mediato do pedido de pronúncia arbitral, o que tem como consequência que a ilegalidade destes actos apenas pode ser apreciada através da apreciação da ilegalidade do acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e do acto de indeferimento do recurso hierárquico (que enfermariam de ilegalidade se, apreciando a legalidade de actos de autoliquidação ilegais, indeferissem a sua revisão por os considerar legais).
De resto, no caso em apreço, a Requerente nem sequer pediu a anulação dos actos de liquidação, pedindo apenas, tanto no pedido de revisão oficiosa como no recurso hierárquico, «ser autorizada a regularização de IVA» a seu favor.
Conclui-se, assim, que este Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para apreciar o pedido de pronúncia arbitral, por se estar perante impugnação de actos que não apreciaram a legalidade de actos de autoliquidação.
Pelo exposto, verifica-se a excepção da incompetência material, que é obstáculo a apreciação do mérito da causa e justifica a absolvição da Autoridade Tributária e Aduaneira da instância [artigos 16.º, n.º 1, do CPPT e 278.º, n.º 1, alínea a), do CPC, subsidiariamente aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas c) e e), do RJAT].
Consequentemente, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas.
3.3. Imputabilidade do erro na apresentação de pedido de pronúncia arbitral
Para efeitos de responsabilidade por custas e para os efeitos de determinar o início dos prazos para uso dos meios processuais indicados nos artigos 13.º, n.º 4, parte final, e 24.º, n.º 3, do RJAT, deverá o Tribunal Arbitral apreciar se é ou não imputável ao Requerente a utilização do pedido de pronúncia arbitral fora dos casos em que a lei a admite.
Esta apreciação justifica-se em casos, como o presente, em que a Autoridade Tributária e Aduaneira, ao notificar o Sujeito Passivo, referiu o processo arbitral como meio de possível utilização para impugnação da decisão notificada.
Na verdade, como se vê pelas alíneas f) e i) da matéria de facto fixada, constata-se que, relativamente à impugnação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa foi indicado, correctamente, que o meio processual adequado de impugnação era a acção administrativa especial.
Porém, no que concerne a decisão de indeferimento do recurso hierárquico, foi indicado, incorrectamente, que os meios que poderiam ser utilizados eram a impugnação judicial e «sendo caso disso, fazer uso da faculdade prevista no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro».
Esta referência à possibilidade de utilização da faculdade prevista no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro era absolutamente injustificada, pelo que se referiu, e tinha potencialidade para induzir em erro a Requerente, destinatária da notificação.
Não afasta a incorrecção a inclusão da expressão «sendo caso disso», que aparentemente pretendeu incumbir a Requerente da tarefa de apurar qual o meio de impugnação adequado da decisão do recurso hierárquico, pois, nas notificações que efectua, a Autoridade Tributária e Aduaneira está legalmente obrigada a indicar os meios que entende poderem ser utilizados e não deixar ao critério do destinatário apurar os que pode ou não utilizar (artigo 36.º, n.º 2, do CPPT).
Por outro lado, constata-se que não se referiu na notificação da decisão de indeferimento do recurso hierárquico a possibilidade de impugnação através da acção administrativa especial, que era o meio processual adequado.
Isto é, na referida notificação, não só se indicou expressamente a possibilidade de utilização pela Requerente de um meio impróprio para impugnar a decisão (impugnação judicial), como se aventou a possibilidade utilização de outro meio inadequado (pedido de pronúncia arbitral), como se omitiu a indicação do único meio adequado (acção administrativa especial).
Para além disso, é de presumir, à face das regras da vida e a experiência, que se fosse indicada apenas a acção administrativa especial (actualmente acção administrativa comum) como meio de impugnação, provavelmente a Requerente tê-la-ia utilizado em vez do pedido de pronúncia arbitral que a Autoridade Tributária e Aduaneira sugeriu.
Neste contexto, em que se reuniu uma pluralidade de irregularidades na notificação, é de entender, em termos de razoabilidade, que o erro da Requerente ao formular o pedido de pronúncia arbitral em vez de usar a acção administrativa especial é primacialmente imputável às deficiências de informação que constam da notificação referida, pelo que não pode entender-se que o uso do processo arbitral seja imputável à Requerente, para efeitos do artigo 24.º, n.º 3, do RJAT.
Na verdade, tendo os contribuintes direito a correcta informação sobre os meios de impugnação (artigo 36.º, n.º 2, do CPPT), deve entender-se que o errado uso de um meio processual impróprio em situações em que não foi cumprido adequadamente o dever de informação justifica que não se considere imputável ao destinatário do acto notificado o hipotético uso de um meio impróprio. Trata-se, aliás, de uma conclusão alicerçada no princípio constitucional da justiça, que aponta decisivamente no sentido de serem imputáveis as consequências negativas dos actos a quem comete ilegalidade e não a quem vê os seus direitos violados.
Sendo assim, permanece assegurado o direito de impugnação contenciosa previsto no artigo 24.º, n.º 3, do RJAT, posterior à prolação de decisões arbitrais que não apreciem o mérito das pretensões por facto não imputável ao sujeito passivo.
No entanto, para efeito de responsabilidade de custas a abordagem tem de ser diferente, pois há que atender aos comportamentos processuais das Partes.
E, no caso presente, a Requerente ficou vencida quanto a uma das excepções tendo sustentado no processo, erradamente, a possibilidade de utilização do processo arbitral, pelo que não pode deixar de considerar-se responsável pelas custas do processo, em face das regras do artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
4. Decisão
Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em:
– julgar procedente a excepção da incompetência material deste Tribunal Arbitral;
– absolver da instância a Autoridade Tributária e Aduaneira;
– declarar que a procedência da excepção não resulta de facto imputável à Requerente.
5. Valor do processo
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 317.477,51.
6. Custas
Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 5.508,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.
Lisboa, 22 de Fevereiro de 2016
Os Árbitros
(Jorge Manuel Lopes de Sousa)
(A. Sérgio de Matos)
(Filipa Barros)
[1] Como se entendeu no citado acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12-6-2006, proferido no processo n.º 402/06.
[2] BAPTISTA MACHADO, Lições de Direito Internacional Privado, 4.ª edição, página 100.
[3] Essencialmente neste sentido, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 12-7-2006, proferido no processo n.º 402/06, e de 14-11-2007, processo n.º 565/07.
[4] Embora no art. 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP, em que se define a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, se faça referência à criação de impostos e sistema fiscal, esta norma deve ser integrada com o conteúdo do n.º 2 do art. 103.º da mesma, em que se refere que a lei determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes, que constitui uma explicitação do âmbito das matérias incluídas naquela reserva, como vem sendo uniformemente entendido pelo Tribunal Constitucional.
A título de exemplo, indicam-se neste sentido, os seguintes acórdãos do Tribunal Constitucional:
– n.º 29/83, de 21-12-1983, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 338, página 201 (especialmente, páginas 204-205);
– n.º 290/86, de 29-10-1986, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8.º volume, página 421 (especialmente, páginas 423-424);
– n.º 205/87, de 17-6-1987, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9.º volume, página 209 (especialmente páginas 221-222);
– n.º 461/87, de 16-12-1987, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 372, página 180 (especialmente página 197);
– n.º 321/89, de 29-3-1989, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 385, página 265 (especialmente página 281).
O Tribunal Constitucional tem entendido também que a reserva de competência legislativa da Assembleia da República compreende tudo o que seja matéria legislativa e não apenas as restrições de direitos (neste sentido, pode ver-se o acórdão n.º 161/99, de 10-3-99. processo n.º 813/98, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 485, página 81).
[5] No conceito de «liquidação», em sentido lato, englobam-se todos os actos que se reconduzem a aplicação de uma taxa a uma determinada matéria colectável e, por isso, também os actos de retenção na fonte (para além dos de autoliquidação e pagamento por conta, que não interessam para a decisão do presente processo).
[6] Neste sentido, pode ver-se o acórdão do STA de 2-4-2009, processo n.º 0125/09.
[7] Exemplo de uma situação deste tipo é a do art. 22.º, n.º 13, do CIVA, em que se prevê a utilização do processo de impugnação judicial para impugnar actos de indeferimento de pedidos de reembolso.
[8] No sentido de o meio processual adequado para conhecer da legalidade de acto de decisão de procedimento de revisão oficiosa de acto de liquidação ser a acção administrativa especial (que sucedeu ao recurso contencioso, nos termos do art. 191.º do CPTA) se nessa decisão não foi apreciada a legalidade do acto de liquidação, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 20-5-2003, processo n.º 638/03; de 8-10-2003, processo n.º 870/03; de 15-10-2003, processo n.º 1021/03; de 24-3-2004, processo n.º 1588/03, de 6-11-2008, processo n.º 357/08.
Adoptando o entendimento de que o processo de impugnação judicial é o meio processual adequado para impugnar actos de indeferimento de reclamações graciosas que tenham apreciado a legalidade de actos de liquidação, podem ver-se os acórdãos do STA de 15-1-2003, processo n.º 1460/02; de 19-2-2003, processo n.º 1461/02; e de 29-2-2012, processo n.º 441/11.