Decisão Arbitral
I. Relatório
1. A…, LD.ª, pessoa colectiva n.º…, com sede na Avenida…, n.º…, em Lisboa, requereu a constituição do tribunal arbitral em matéria tributária suscitando pedido de pronúncia arbitral contra os atos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) relativos ao período de 2013 e aos veículos automóveis que identifica pelo respectivo número de matrícula. Como consequência da referida anulação, requer a condenação da Administração Tributária ao reembolso da importância que considera indevidamente paga, no montante global de € 2 174,11, acrescida dos correspondentes juros indemnizatórios.
2. Como fundamento do pedido, apresentado em 11-06-2015, a Requerente alega, em síntese, que, embora os veículos em causa se encontrassem registados em seu nome à data a que se reportam os fatos tributários relativos às questionadas liquidações, não assume, quanto aos mesmos, a qualidade de sujeito passivo da obrigação tributária, porquanto os veículos a que as mesmas respeitam:
- Haviam sido já transmitidos a terceiros, por contratos de compra e venda;
ou,
- Tendo sido objecto de sinistros na vigência dos respectivos contratos de locação, haviam sido considerados pelas seguradoras como "perda total" e a estas alienados os correspondentes "salvados".
3. Em resposta ao solicitado, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) pronunciou-se no sentido da improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários impugnados e, em conformidade, pela absolvição da entidade Requerida.
4. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Sr. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) em 25-06-2015.
5. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação em 13-08-2015.
6. Devidamente notificadas dessa designação, as partes não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
7. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 28-08-2015.
8. Regularmente constituído o tribunal arbitral é materialmente competente, face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
9. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22/03).
10. Considerando estar em causa tão-somente matéria de direito, e atento o conhecimento que decorre das peças processuais, o Tribunal considerou dispensável a reunião prevista no artigo 18.º da RJAT.
11. Não foram suscitadas questões prévias nem invocadas excepções que obstem à apreciação do mérito da causa.
II. Matéria de facto
12. Com relevância para a apreciação do mérito do pedido, destacam-se os seguintes elementos fatuais, que, com base na prova documental junta aos autos, se consideram provados:
12.1. A Requerente é uma sociedade comercial que exerce a actividade de aluguer de veículos automóveis e a prestação de serviços conexos;
12.2. No âmbito da sua atividade, a Requerente celebra contratos de aluguer de veículos e, no termo do contrato, procede, por vezes, à sua venda aos clientes;
12.3. É esta circunstância a que se verifica com os veículos identificados no Quadro I da petição, cuja venda aos clientes teve lugar, em todos os casos, em anos anteriores ao da ocorrência do fato gerador e da exigibilidade do tributo em causa, conforme consta das respetivas faturas comerciais (Doc.2).
12.4. Além dos veículos referidos, outros há que, também em anos anteriores ao da ocorrência do facto gerador e da exigibilidade do imposto, foram objecto de sinistros na vigência dos respectivos contratos de aluguer, de que resultaram a perda total dos veículos sendo os respectivos "salvados" alienados às seguradoras, conforme consta das correspondentes faturas e demais correspondência (Doc. 3).
12.5. Em 2014, foi a Requerente notificada para exercer o direito de audição prévia relativamente a liquidações oficiosas de IUC, respeitantes aos veículos identificados nos quadros I e II da petição, efectuadas pela AT com o fundamento de que, segundo os elementos de que dispunha era ela Requerente "o proprietário/locatário" dos veículos à data da exigibilidade do imposto (Doc.4).
12.6. A Requerente, dentro dos prazos legais constantes das correspondentes notas de cobrança – 13-3-2015, 10-4-2015 e 4-6-2015 - procedeu ao pagamento voluntário do imposto e juros compensatórios liquidados, conforme documentos comprovativos que junta (Doc. 1).
13. Não existem factos relevantes para a decisão de mérito que não se tenham provado.
III. Cumulação de pedidos
14. O presente pedido de pronúncia arbitral reporta-se a diversas liquidações de IUC. Todavia, atendendo à identidade dos fatos tributários, do tribunal competente para a decisão e dos fundamentos de fato e de direito invocados, o tribunal considera que nada obsta, face ao disposto nos artigos. 3.º do RJAT e 104.º do CPPT, à cumulação de pedidos.
IV. Matéria de direito
15. No pedido de pronúncia arbitral a Requerente submete à apreciação deste tribunal a legalidade dos actos de liquidação de IUC, relativos ao período de 2013 e aos veículos que identifica no pedido, invocando a circunstância de, à data a que se reportam os fatos tributários que as originaram, não ser a proprietária dos veículo e, consequentemente, não assumir a qualidade do sujeito passivo do imposto que lhe foi liquidado.
16. Sobre o âmbito de incidência subjectiva do IUC, evidenciam-se posições diametralmente opostas entre a Requerida (AT) e a Requerente: para aquela, o sujeito passivo deste imposto é a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado na Conservatória do Registo Automóvel; enquanto que para esta, a norma de incidência estabelece uma presunção, derivada daquele registo, ilidível nos termos gerais e, em especial, por força do disposto no artigo 73.º da LGT.
17. Assim, sobre a qualidade de sujeito passivo da obrigação de imposto que lhe é imputada, alega a Requerente que, à data da ocorrência dos fatos tributários, não era proprietária dos veículos a que a que se reportam as questionadas liquidações, pois que os mesmos haviam já sido vendidos aos clientes (Quadro I) ou, em caso de sinistro com perda total, alienados os respetivos "salvados" às seguradoras (Quadro II).
18. Todavia, não sendo actualizado o registo dos identificados veículos, nele continuou a constar, com proprietária, a Requerente, situação que se mantinha à data em que foram efectuadas as liquidações tributarias que constituem objecto do presente pedido de pronúncia arbitral.
19. Segundo entendimento da Requerida, expresso na respectiva resposta, basta que se verifique a inscrição registral do veículo em nome de uma determinada pessoa para que esta se qualifique como sujeito passivo da obrigação tributária do IUC.
20. Com efeito, decorre do artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, que são sujeitos passivos os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas em nome das quais aqueles se encontrem registados.
21. Com relevância para a decisão a proferir no presente processo, a questão a analisar centra-se, primeiramente, na interpretação da norma do n.º 1 daquele artigo 3.º do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC), no sentido de se determinar se a norma de incidência subjetiva nela inscrita admite, ou não, que a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado na Conservatória do Registo Automóvel possa demonstrar, através dos meios de prova admitidos em Direito, que não obstante tal facto, não é proprietário do veículo no período a que o tributo respeita e afastar assim a obrigação de imposto que sobre ela recai.
22. Em suma, trata-se de saber se tal norma consagra uma presunção legal de incidência tributária, susceptível de elisão, nos termos gerais, como pretende a Requerente ou se, diversamente, como entende a Requerida "o legislador tributário ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1 (do CIUC), quem são os sujeitos passivos do IUC, estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou. nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados."
Sendo esta a questão central a decidir no presente pedido de pronúncia arbitral, importa analisar mais detalhadamente as posições em confronto.
Posição da Requerente
23. Sobre esta matéria e como fundamento do pedido de pronúncia arbitral, alega o Requerente, em síntese, que:
a) Às datas a que se reportam os fatos tributários do IUC que originaram as questionadas liquidações, não era proprietário do veículo e, consequentemente, não assume a qualidade de sujeito passivo do imposto que lhe foi liquidado;
b) Face ao disposto no artigo 73.º da LGT, que prevê que as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, a incidência subjetiva do tributo em causa, fundada na presunção de propriedade derivada do registo, pode ser afastada mediante prova em contrário;
c) Não basta, assim, que se verifique a inscrição no registo do veículo, em nome de uma determinada pessoa para que esta se qualifique como sujeito passivo da obrigação tributária;
d) A norma do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC admite que a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado na Conservatória possa demonstrar através dos meios de prova admitidos em Direito, que não é proprietária do veículo no período a que o imposto respeita e afaste assim a obrigação de imposto que sobre ela recai;
e) Invocando a jurisprudência arbitral proferida sobre esta matéria de que destaca entre outras, as decisões nos processos arbitrais n.ºs 141/2014, 170013 e 265/2013 e, mais recentemente, nos processos arbitrais n.ºs 50/2014 e 446/2014, considera a Requerente mostrar-se suficientemente evidenciada a natureza presuntiva do artigo 3.º do CIUC.
f) Por forma a ilidir a presunção decorrente da inscrição no registo automóvel, a Requerente apresenta cópia das faturas de venda dos veículos bem como das faturas de venda dos "salvados" e/ou declarações como "Perda Total" emitidas pelas respectivas seguradoras, umas e outras datadas de data anterior ao facto gerador do imposto (Docs. 2 e 3).
Posição da Requerida
24. Ao alegado pela Requerente, respondeu a Requerida no sentido de que " o entendimento propugnado pela Requerente decorre de uma enviesada leitura da letra da lei, como da adopção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do sistema consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal, mas também de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC."
25. Com efeito, estabelece o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC que "São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados."
26. Desenvolvendo a sua posição, diz a Requerida, em resumo, que "O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3.º, nº1 quem são os sujeitos passivos do IUC, estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (...) considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados."
27. Em defesa deste ponto de vista, acentua a Requerida que "o legislador não usou a expressão "presumem-se" como poderia ter feito". Assinala, ainda, a circunstância de " o normativo fiscal estar repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do n.º 1 do art. 3.º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, de residência e de localização, entre muitos outros."
28. Como exemplo, entre outros, refere a norma do n.º 1 do artigo 2.º do CIMT, em que o legislador tributário não presume que "há lugar a transmissão onerosa para efeitos do n.º 1 do artigo 2.º do CIMT, na outorga de contrato-promessa de aquisição e alienação de bens imóveis em que seja clausulado no contrato ou posteriormente que o promitente adquirente pode ceder a sua posição contratual a terceiro." Neste caso, " o legislador expressa e intencionalmente assimila este contrato a uma transmissão onerosa de bens para efeitos de IMT". Do mesmo modo, no caso do art. 17.º do CIRC, o legislador também não estabelece que os excedentes líquidos das cooperativas se presumem como resultado líquido do período mas que estes se consideram como tal. Depois de referir que grande parte das normas de incidência do IRC têm como ratio subjacente determinar o que deve ser considerado rendimento para efeitos deste imposto ter-se-ia de concluir que ao usar a expressão "considera-se" o legislador fiscal teria consagrado uma presunção em praticamente todas as normas de incidência do IRC que seria afastada precisamente porque a contabilidade prescreve soluções diferentes das do CIRC, sendo exactamente o fim do legislador afastar as regras contabilísticas.
29. Na sequência deste raciocínio, conclui a Requerida que "é imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais (como proprietários...) as pessoas em nome das quais os os veículos se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal. Pelo que, "entender que o legislador consagrou aqui uma presunção seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem.”
30. Por outro lado, apelando ao elemento sistemático, entende a Requerida que "a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando, o entendimento por esta sufragado qualquer apoio na lei." Isto porque, no mesmo sentido do que dispõe o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, " estabelece o artigo 6.º do CIUC, sob a epígrafe "Facto Gerador e Exgibilidade", no seu n.º 1, que "O facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional. Ou seja, "o momento a partir do qual se constitui a obrigação de imposto apresenta uma relação directa com a emissão do certificado de matrícula, no qual devem constar os factos sujeitos a registo.... No mesmo sentido, milita a solução legislativa adoptada pelo legislador fiscal no n.º 2 do artigo 3.° do CIUC, ao fazer coincidir as equiparações ai consagradas com as situações em que o registo automóvel obriga ao respectivo registo".
31. Sustenta, ainda, a Requerida que " Tal posição está ainda patente na circunstância de o Registo Automóvel a que a Administração Tributária tem ou pode ter acesso, e o certificado no qual devem constar os actos sujeitos a registo, cuja exibição poderá ser exigida pela mesma Administração ao interessado, conterem todos os elementos destinados à determinação do Sujeito Passivo, sem necessidade de acesso aos contratos de natureza particular que conferem tais direitos, enunciados pelo CIUC como constitutivos da Situação Jurídica de sujeito passivo deste imposto.
Na falta de tal registo, naturalmente, será o proprietário notificado para cumprir a correspondente obrigação fiscal, pois, a Administração Tributária, tendo em conta a actual configuração do sistema jurídico, não terá que proceder à liquidação do Imposto com base em elementos que não constem de registos e documentos públicos e, como tal, autênticos.
Nestes termos, a não actualização do registo, nos termos do disposto no artigo 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis, será imputável na esfera jurídica do sujeito passivo do IUC e não na do Estado, enquanto sujeito activo deste Imposto."
32. Para além da fundamentação exposta, considera a Requerida ser ainda de referir que "a interpretação veiculada pela Requerente se mostra contrária à Constituição, na medida em que viola o princípio da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade.", concluindo que "a interpretação proposta pela Requerente, que desvaloriza a realidade registral em detrimento de uma "realidade informal" e insusceptível de um controlo mínimo por parte da Requerida, e ofensiva do basilar princípio da confiança e segurança jurídica que deve enformar qualquer relação jurídica, aqui se incluindo a relação tributária."
33. Expostas, em síntese e com parcial transcrição, as posições da Requerente e da Requerida, estarão claramente definidas:
- Para a Requerente, a incidência subjetiva do IUC assenta numa presunção de propriedade, derivada do registo automóvel, susceptível de elisão nos termos legais; e
- Para a Requerida, a norma do CIUC não estabelece qualquer presunção, expressando entendimento no sentido de que o legislador definiu como sujeito passivo deste tributo, expressa e intencionalmente, o proprietário do veículo identificado no respectivo registo.
Da Incidência subjectiva do IUC
34. Com ressalva do disposto no n.º 2, relativamente a situações de venda com reserva de propriedade e locações que assumam natureza de financiamento, estabelece o artigo 3.º do CIUC, que são sujeitos passivos deste imposto os proprietários dos veículos, sendo como tal consideradas as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.
35. O recurso ao registo automóvel como elemento estruturante do sistema de liquidação deste tributo evidencia-se ao longo de todo o respectivo Código. Refira-se, designadamente, o seu artigo 6.º relativo à definição do fato gerador da obrigação de imposto, cujo n.º 1 prevê ser constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional. Deste preceito decorre que os veículos automóveis que não estejam, nem devam estar, registados em território português, apenas ficam abrangidos pela incidência objetiva deste tributo se no mesmo permanecerem por período superior a 183 dias, conforme dispõe o n.º 2 do mesmo artigo. É, pois, uma norma que, recorrendo ao elemento registral, estabelece, simultaneamente, o fato gerador do imposto e a respectiva conexão fiscal. É, também, dos elementos do registo automóvel que se extrai o momento do início do período de tributação e constituição da obrigação tributária e, de uma maneira geral, todos os elementos necessários à liquidação do imposto em causa, como, de resto, bem acentuado vem na resposta elaborada pela AT.
36. Todavia, da dependência do regime de tributação do IUC em relação ao registo automóvel não se pode extrair, como imediata conclusão, que a norma de incidência subjetiva, no segmento em que considera como proprietário a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado, não constitua uma presunção de incidência. Haverá, pois, que recorrer a outros elementos interpretativos, com a especial relevância da noção legal de presunção.
Da noção de presunção
37. Segundo noção vertida no artigo 349.º do C. Civil, presunções são as ilações que a lei, ou o julgador, tira de um fato conhecido para firmar um fato desconhecido. As presunções constituem meios de prova, tendo esta por função a demonstração da realidade dos fatos (art. 341.º do C. Civil). Assim, quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o fato a que ela conduz (art. 350.º, n.º1, do C. Civil). Todavia, as presunções, salvo nos casos em que a lei o proibir, podem ser ilididas, mediante prova em contrário (art. 350.º, n.º 2, do C. Civil). Tratando-se de presunções de incidência tributária, estas são sempre ilidíveis, conforme expressamente dispõe, o artigo 73.º da LGT.
Presunção e ficção
38. A par de presunções, utilizadas no direito tributário principalmente como meio de afastar a possibilidade de fraude e evasão ou por razões de simplificação e de praticabilidade das leis fiscais, o legislador recorre, também com alguma frequência, a ficções. Diversamente da presunção, que parte de um fato conhecido para firmar um fato desconhecido, a ficção, por seu lado, "traduz-se num processo jurídico que considera uma situação ou um facto como distinto da realidade para lhe atribuir consequências jurídicas" [1] Há, pois, uma assinalável diferença entre uma e outra desta figuras, utilizadas, com alguma frequência, nas normas dos códigos e leis tributárias. Essa diferença, que não se encontra assinalada na fundamentação da posição da Requerida, será particularmente relevante na apreciação do presente caso.
39. Tomando como referência a exemplificação apresentada pela Requerida em abono da sua tese, poderemos considerar o caso do n.º 2 artigo 17.º do CIRC, que para efeitos deste imposto, determina que "os excedentes líquidos das cooperativas consideram-se como resultado líquido do exercício.". Não ignorando o legislador do CIRC que as cooperativas, por força dos respectivos princípios e regime legal que lhes é aplicável, não podem ter como escopo a realização do lucro, imputa àqueles excedentes uma natureza distinta da realidade, para lhes atribuir uma consequência jurídica, qual seja a de resultado líquido do exercício para efeitos de aplicação das regras de determinação do lucro tributável das empresas.
40. Por outro lado, a existência, em paralelo, de presunções e ficções nas normas legais de incidência tributária é, ainda, mais notória, por exemplo, no artigo 2.º do CIMT, referido na resposta da Requerida. Segundo o corpo do n.º 3 deste artigo "Considera-se que há também lugar a transmissão onerosa para efeitos do n.º 1 (norma que define a regra geral de incidência deste tributo, consistente na transmissão onerosa do direito de propriedade sobre imóveis) na outorga dos seguintes actos ou contractos:
a) Celebração de contrato-promessa de aquisição e alienação de bens imóveis em que seja clausulado no contrato ou posteriormente que o promitente-adquirente pode ceder a sua posição contratual a terceiro."
e
e) Cedência de posição contratual ou ajuste de revenda, por parte do promitente adquirente num contrato-promessa de aquisição e alienação, vindo o contrato definitivo a ser celebrado entre o primitivo promitente alienante e o terceiro."
41. No primeiro dos referidos casos, está-se perante uma ficção, pois que o legislador não ignora que a possibilidade de cedência de posição contratual num contrato de promessa não implica a transmissão do direito de propriedade, objecto da incidência geral do referido imposto municipal. Mas, para efeitos tributários, atribui-lhe as correspondentes consequências. Já no segundo caso - ajuste de revenda, a que se refere a alínea e) do mesmo número - tem-se uma situação algo mais complexa, mas que, segundo a jurisprudência constante dos tribunais superiores, traduz uma presunção.
42. Como se chega a esta conclusão, se ambas as normas têm por finalidade e efeitos tributar como transmissões de propriedade de imóveis realidades que o não são ? A resposta está, precisamente, no recurso ao conceito legal de presunção. A norma da al. e) do n.º 3 do artigo 2.º do CIMT, no que respeita ao "ajuste de revenda" encontrava-se já prevista, em idênticos termos, no parágrafo 2.º do artigo 2.º do anterior Código da Sisa: o promitente comprador que ajustasse, com um terceiro, a venda do imóvel que havia prometido adquirir ficaria sujeito ao imposto, com base na presunção de que lhe havia sido entregue o bem objecto do contrato de promessa e que sobre ele havia agido como um proprietário, por via da cedência da sua posição contratual naquele contrato, mas apenas se o contrato translativo se viesse a realizar entre o primitivo promitente vendedor e aquele terceiro. Neste caso, o legislador criou a presunção de transmissão económica (tradição), abrangida pela incidência do imposto, sempre que o promitente adquirente agisse, perante terceiro e com anuência do primitivo promitente vendedor, como um verdadeiro proprietário, ajustando a revenda do bem em causa. É a existência da "tradição jurídica" - entrega do bem objecto do contrato de promessa - que a norma presume, para a tributar. E aqui também, o legislador parte de fatos conhecidos - a posição contratual e a transmissão jurídica do bem para um terceiro - para firmar um fato desconhecido, o ajuste de revenda. Presunção esta ilidível, por força do disposto no artigo 73.º da LGT. [2]
Presunções explícitas e implícitas.
43. Sustenta a Requerida que o legislador fiscal, "dentro da sua liberdade de conformação legislativa" expressa e intencionalmente determina que se considerem como proprietários as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, não utilizando a expressão "presumem-se" como tal, como poderia ter feito.
44. Com efeito, na definição da incidência subjectiva do ICI, do ICA e do IMV, impostos que o actual IUC veio substituir, foi essa a expressão utilizada pelo legislador. No âmbito dos impostos abolidos, estabelece-se que "o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontrem matriculados ou registados" [3]
45. No mesmo sentido, estabelece o artigo 3.º, n.º 1, do Regulamento dos Impostos de Circulação e Camionagem, aprovado pelo DL n.º 116/94, de 03/05, que são sujeitos passivos destes tributos "os proprietários dos veículos presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas singulares ou colectivas em nome das quais os mesmos se encontrem registados."
46. No que ao IUC diz respeito, o legislador optou por utilizar uma formulação diversa da norma de incidência subjectiva. Tal como nos impostos abolidos, continua a atribuir aos proprietários dos veículos a qualidade de sujeitos passivos. Porém, abandona a expressão "presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome quem os mesmos se encontrem registados" em favor de "considerando-se como tais as pessoas (...) em nome das quais os mesmos se encontrem registados".
47. Diversamente da posição expressa pela Requerida, entendemos que se está perante uma mera questão semântica, que não altera minimamente o conteúdo da norma em questão e por duas ordens de razões: Para que se esteja perante uma presunção legal, é necessário que a norma que a estabelece se amolde ao respectivo conceito legal, vertido no artigo 349.º do C. Civil, sendo para tal irrelevante que a mesma seja explícita, revelada pela utilização da expressão "presumem-se" ou apenas implícita [4]. Por outro lado, a liberdade de conformação do legislador está limitada por princípios fundamentais consagrados na Constituição da República, de que, com relevância para o presente caso, avulta o princípio da igualdade. No plano tributário, este princípio traduz-se na generalidade e abstracção da norma que cria os elementos essenciais do tributo, de acordo com a capacidade contributiva de cada um. Segundo se extrai do acórdão do TC n.º 343/97, de 29-04-97 " A tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará a existência e a manutenção de uma efectiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico seleccionado para objecto do imposto, exigindo-se, por isso, um mínimo de coerência lógica das diversas hipóteses concretas de imposto previstas na lei com o correspondente objecto do mesmo".
48. É no sentido do conceito legal de presunção e no respeito dos princípios constitucionais da igualdade e da capacidade contributiva que o legislador atribui plena eficácia à presunção derivada do registo automóvel acolhendo-a, como tal, na definição da incidência subjetiva deste tributo estabelecida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC.
49. Acresce que o Decreto-Lei n.º 54/75, de 12/02, que disciplina o registo de veículos automóveis, não prevendo qualquer norma acerca do carácter constitutivo do registo da propriedade automóvel, estabelece, no n.º 1 do seu artigo 1.º que o registo automóvel visa apenas dar publicidade à situação jurídica dos bens. De acordo com o artigo 7.º do Código do Registo Predial, supletivamente aplicável ao registo automóvel, por remissão do artigo 29.º daquele diploma, determina que o registo apenas "(...) constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define."
50. Pronunciando-se sobre esta matéria, o STJ, em acórdão de 19-02-2004, proferido no Processo n.º 3B4369, conclui que "(...) o registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao acto registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível (presunção "juris tantum") da existência do direito (arts- 1.º, n.º 1, e 7.º, do CRP84 e 350.º, n.º2, do C. Civil) bem como da respectiva titularidade, nos termos dele constantes (...)".
51. Assim, acompanhando-se a reiterada jurisprudência arbitral [5] relativa a situações idênticas, não pode deixar de se entender que a expressão "considerando-se como tais" constante da referida norma, configura uma presunção legal, e que esta é ilidível, nos termos gerais, e, em especial, por força do disposto no artigo 73.º da LGT que determina que as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.
Elisão de presunções
52. As presunções de incidência tributária podem ser ilididas através do procedimento contraditório próprio previsto no artigo 64.º do CPPT ou, em alternativa, pela via de reclamação graciosa ou de impugnação judicial dos atos tributários que nelas se baseiem.
53. No presente caso, a Requerente não utilizou aquele procedimento próprio, tendo antes optado pelo presente pedido de decisão arbitral que, assim, constitui meio próprio para ilidir a presunção de incidência subjectiva do IUC em que se suportam as liquidações tributárias cuja anulação constitui o seu objecto, pois que se trata de matéria que se situa no âmbito da competência material deste tribunal arbitral (arts. 2.º e 4.º do DL 10/2011).
54. Para ilidir a presunção derivada da inscrição do registo automóvel, a Requerente oferece, como meio de prova, a facturação emitida com referência à transmissão dos veículos a que respeitam as liquidações questionadas, incluindo a relativa a veículos sinistrados adquiridos, como "salvados" pelas respetivas seguradoras (Docs.2 e 3).
55. Pronunciando-se sobre a prova documental apresentada, alega a Requerida que "o disposto no artigo 3.º do CIUC que o proprietário que consta da Conservatória do Registo Automóvel é o sujeito passivo do imposto, entendemos que todo o raciocínio propugnado pelo Requerente se encontrava inquinado, não sendo possível ilidir a "presunção" estabelecida."
56. No entanto, acrescenta a Requerida, "ainda que assim não se entenda - o que somente por mera hipótese académica se admite - e a seguir-se o princípio da admissibilidade da elisão da presunção à luz até de jurisprudência já entretanto firmada neste Centro de Arbitragem, importará, ainda assim, apreciar os documentos probatórios juntos pela Requerente e o seu valor, com vista à elisão da presunção."
57. Considerando a Requerida, em termos genéricos, que "as facturas não possuem valor probatório bastante com vista a ilidir a presunção legal constante do registo" sustenta, ainda que na situação evidenciada no presente processo as cópias de faturas apresentadas pela Requerente não são passíveis de "demonstrar a pretensa transmissão dos veículos em causa".
58. Nesse sentido, adianta a Requerida que "… todos os documentos, sem que se compreenda a razão, aparecem em papel timbrado de uma outra empresa que não a Requerente, e que, ao que saibamos, mão é sequer parte neste Processo ...", daí concluindo que "a Requerente não é parte nos negócios eventualmente celebrados, não sendo junta qualquer prova documental do recebimento do preço ...".
59. Com base na referida fundamentação, conclui a Requerida que a "Requerente não é parte nos negócios eventualmente celebrados, não sendo junto nenhum documento legal que demonstre o cancelamento e/ou abatimento dos salvados, não logrando assim demonstrar a pretensa transmissão dos veículos aqui em causa."
60. Da posição da Requerida quanto à prova produzida, extrai-se, assim, que esta, em qualquer caso, seria insuficiente para afastar a incidência tributária definida com base da propriedade, tal como consta do registo, que, em coerência com a posição de fundo por ela assumida, apenas seria afastada em função de actualização, atempada, do próprio registo.
61. Não sendo esse o entendimento do tribunal, importa avaliar a prova produzida pela Requerente no sentido de se determinar se é esta bastante para ilidir a presunção derivada do registo automóvel que, no plano da incidência subjetiva, é acolhida para efeitos do IUC.
62. Para tanto, importa ter-se presente que, na situação em análise, se está perante contratos de compra e venda que, relativos a coisa móveis e não estando sujeitos a qualquer formalismos especial (C. Civil, art. 219.º), operam a correspondente transferência de direitos reais (C. Civil, art. 408.º, n.º 1).
63. Tratando-se de contratos que envolvem a transmissão da propriedade de bens móveis, mediante o pagamento de um preço, têm aqueles, como efeitos essenciais, entre outros, o de entregar a coisa (C. Civil, arts. 874.º e 879.º).
64. No entanto, estando em causa um contrato de compra e venda que tem por objecto um veículo automóvel, em que o registo é obrigatório, o seu cumprimento pontual pressupõe a emissão da declaração de venda necessária à inscrição no registo da corresponde aquisição a favor do comprador, conforme vem sendo entendido pela jurisprudência dos tribunais superiores.[6] Tal declaração, relevante para efeitos de registo, poderá constituir prova da transação, mas não constitui o único ou exclusivo meio de prova da transação.
65. Para efeitos registrais, também não é exigível qualquer formalismo especial, bastando a apresentação à entidade competente de requerimento subscrito pelo comprador e confirmado pelo vendedor, que, através de declaração de venda confirma que a propriedade do veículo foi por aquele adquirida por contrato verbal de compra e venda (vd. Regulamento do Registo Automóvel, art. 25.º, n.º 1, alínea a).
66. Não obstante serem estas as regras decorrentes das disposições da lei civil, relativas ao informalismo da transmissão de coisas móveis e, sendo o caso, do respectivo registo, não pode deixar de ter-se também presente que, na situação em análise, estamos perante transações comerciais, efetuadas por uma entidade empresarial no âmbito da actividade que constitui seu objeto social.
67. Nesse âmbito, a empresa está vinculada ao cumprimento de normas contabilísticas e fiscais específicas, em que a facturação assume especial relevância.
68. Desde logo, por força de normas fiscais, a entidade transmitente dos bens está obrigada a emitir uma fatura relativamente a cada transmissão de bens, qualquer que seja a qualidade do respetivo adquirente (CIVA, art. 29.º, n.º 1, alínea b).
69. Também de acordo com o disposto em normas tributárias, a factura deve obedecer a determinada forma, detalhadamente regulada nos artigos 36.º do Código do IVA e artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 198/90, de 19/06.
70. É com base nesse documento emitido pelo fornecedor dos bens que o adquirente, quando se trate de um operador económico - como é o caso na grande maioria das situações a que se refere o presente processo - irá deduzir o IVA a que tenha direito (CIVA, art. 19.º, n.º 2) e contabilizar o gasto da operação (CIRC, arts. 23.º, n.º 6 e 123.º, n.º 2).
71. Por seu lado, é também com base na faturação emitida que o fornecedor dos bens deverá contabilizar os respetivos rendimentos, conforme decorre do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 123.º do CIRC.
72. Desde que emitidas na forma legal e constituam elementos de suporte dos lançamentos contabilísticos em contabilidade organizada de acordo com a legislação comercial e fiscal, os dados que delas constem são abrangidos pela presunção de veracidade a que se refere o artigo 75.º, n.º 1, da LGT.[7]
73. Com efeito, a referida presunção abrange não só os livros e registos contabilísticos, mas também os respetivos documentos justificativos, conforme, de resto, constitui entendimento pacífico da própria administração tributária [8] e da jurisprudência firmada dos tribunais superiores [9]
74. A presunção de veracidade das faturas comerciais emitidas nos termos legais pode, porém, ser afastada sempre que as operações a que se referem não correspondam à realidade, bastando, para tanto, que a Administração Tributária recolha e demonstre indícios fundados desse fato (LGT, art. 75.º, n.º 2, al. a). [10]
75. No presente caso, a Requerida suscitou dúvidas quanto ao fato de as faturas apresentadas pela Requerente como elemento probatório das transacções a que as mesmas respeitam aparecerem "em papel timbrado de uma outra empresa", de que, em sua opinião, decorre que a Requerente "não é parte nos negócios eventualmente celebrados".
76. Notificada para responder ao alegado quanto ao fato de constar das faturas em causa a identificação de marca de uma outra empresa, esclareceu a Requerente que tal circunstância se deve à existência de parceria acordada com essa empresa - o que comprova com a remessa de cópia do contrato entre ambas celebrado - no âmbito da qual a referida menção serve tão-somente propósitos publicitários.
77. Concomitantemente, a Requerente solicitou ao tribunal a concessão de um prazo para juntar aos autos documentação complementar daquela já oportunamente apresentada, designadamente cópia dos extratos contabilísticos referentes às vendas a clientes e dos "salvados" às seguradoras, bem como dos respetivos mapas de mais e menos valias fiscais.
78. Assim esclarecida a dúvida suscitada pela Requerida e considerada a relevância atribuída pela legislação tributária às faturas emitidas, nos termos legais, pelas empresas comerciais no âmbito da sua actividade empresarial, bem como a presunção de veracidade das operações por elas tituladas, não pode deixar de considerar-se que as mesmas constituem, só por si, prova bastante das transmissões invocadas pela Requerente.
79. Acresce que, no presente caso, são ainda facultados outros elementos, de natureza contabilística e fiscal que, afastando a dúvida suscitada pela Requerida, reforçam a prova das transmissões a que se refere a Requerente.
80. Considera-se, assim, documentalmente provada a transmissão do direito de propriedade dos veículos em causa em todos os casos em data anterior à data exigibilidade do imposto a que se referem as liquidações contestadas.
81. Nestes termos, considera-se ilidida a presunção de propriedade derivada do registo automóvel acolhida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, relativamente aos veículos e períodos a que se reportam as referidas liquidações, devidamente identificados nos autos.
Pedido de juros indemnizatórios
82. A par da anulação das liquidações, e consequente reembolso das importâncias indevidamente pagas, a Requerente solicita ainda que lhe seja reconhecido o direito as juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da LGT.
83. Com efeito, nos termos da norma do n.º 1 do referido artigo, são devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido." Para além dos meios referidos na norma que se transcreve, entendemos que, conforme decorre do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, o direito aos mencionados juros pode ser reconhecido no processo arbitral e, assim, se conhece do pedido.
84. O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de fato ou de direito, imputável aos serviços da AT.
85. No presente caso, ainda que se reconheça não ser devido o imposto pago pela Requerente, por não ser o sujeito passivo da obrigação tributária, determinando-se, em consequência, a anulação das liquidações e respectivo reembolso do imposto pago, não se lobriga que, na sua origem, se encontre o erro imputável aos serviços, que determina tal direito a favor do contribuinte.
86. Com efeito, ao promover a liquidação oficiosa do IUC considerando a Requerente como sujeito passivo deste imposto, a AT limitou-se a dar cumprimento à norma do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, que, como acima abundantemente se referiu, imputa tal qualidade às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.
87. Por outro lado, também como já se concluiu, a referida norma tem a natureza de presunção legal, de que decorre, para a AT, o direito de liquidar o imposto e exigi-lo a essas pessoas, sem necessidade de provar o fatos que a ela conduz, conforme expressamente prevê o n.º 1 do artigo 350.º do C. Civil.
88. A Requerente não suscitou, junto da Administração Fiscal, qualquer procedimento tendente a ilidir aquela presunção.
89. Do exposto, pode, pois, concluir-se pela inexistência de erro imputável à AT, pelo que a Requerente não tem direito aos juros indemnizatórios que peticiona com referência às importâncias indevidamente pagas relativas às liquidações cuja anulação agora se decide.
Decisão
Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, no que concerne à elisão da presunção de incidência subjectiva do IUC, relativamente às liquidações identificadas nos Quadros I e II do pedido, determinando-se a sua anulação e consequente reembolso das importâncias indevidamente pagas.
b) Julgar improcedente o pedido no que respeita ao reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor da requerente.
c) Condenar a Requerida no pagamento das custas.
Valor do processo: € 2 174,11
Custas: Ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixo o montante das custas em € 612,00 , a cargo da Requerida (AT).
Lisboa, 23 de março de 2016,
O árbitro, Álvaro Caneira.
[1] Cfr. Francisco Rodrigues Pardal, "O Uso de Presunções no Direito Tributário", in Ciência e Técnica Fiscal n.º 325-327. pags.20
[2] Neste sentido, vd., entre outros, STA, Acórdãos de 21.4.2010, de 3.11.2010, de 2.5.2012 e de 6.6.2012, Procs. 924/09, 499/10, 895/11 e 903/11, respectivamente.
[3] Vd. artigo 3.º, n.º1 do Regulamento do Imposto Municipal sobre Veículos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 143/78, de 12 de Junho.
[4] Cfr.Jorge de Sousa, CPPT, 6.ª Edição, Áreas Editora. Lisboa, 2011, pags. 586 e STA, Acs. de 29.2.2012 e de 2.5.2012, Procs. 441/11 e 381/12.
[5] A título meramente exemplificativo, cfr. Procs.14/2013-T, 26/2013-T, 27/2013-T, 73/2013-T, 170/2013-T, 217/2013--T, 256/2013-T, 289/2013-T, 294/2013-T, 21/2014-T, 42/2014-T, 43/2014-T, 50/2014-T, 52/2014-T, 67/2014-T6, 68/2014-T, 77/2014-T, 108/2014-T, 115/2014-T, 117/2014-T, 118/2014-T, 120/2014-T, 121/2014-T, 128/2014-T, 140/2014-T, 141/2014-T, 152/2014-T, 154/2014-T, 173/2014-T, 174/2014-T, 175/2014-T, 182/2014-T, 191/2014-T, 214/2014-T, 219/2014-T, 221/2014-T, 222/2014-T, 227/2014-T, 228/2014-T, 229/2014-T, 230/2014-T, 233/2014-T, 246/2014-T, 247/2014-T, 250/2014-T. 262/2014-T, 302/2014-T, 333/2014-T, 414/2014-T, 646/2014-T, todos disponíveis em www.caad.org.pt.
[6] Cfr. STJ, Acs. de 23.3.2006 e de 12.10.2006, Procs. 06B722 e 06B2620.
[7] Assinala-se, ainda, que, no âmbito do procedimento especial para o registo de propriedade de veículos adquiridos por contrato verbal de compra e venda, aprovado pelo Dec.Lei n.º 177/2014, de 15 de Dezembro, a factura constitui, entre outros, documento que indicia a efectiva compra e venda do veículo, desde que dela conste a matrícula do veículo bem como nome do vendedor e do comprador.
[8] Cfr. Parecer do Centro de Estudos Fiscais, homologado por despacho do Director-Geral dos Impostos, de 2 de Janeiro de 1992, publicado em Ciência e Técnica Fiscal n.º 365.
[9] Cfr. STA, Ac. de 27.10.2004, Proc. 0810/04, TCAS, Ac. de 4.6.2013, Proc. 6478/13 e TCAN, Ac. de 15.11.2013, Proc. 00201/06.8BEPNF, entre outros.
[10] Cfr. STA, Acs. de 24.4.2002, Proc. 102/02, de 23.10.2002, Proc. 1152/02, de 9.10.2002, Proc. 871/02, de 20.11.2002, Proc. 1428/02, de 14.1.2004, Proc. 1480/03, entre muitos outros.