Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 715/2015-T
Data da decisão: 2016-03-29  IUC  
Valor do pedido: € 742,34
Tema: IUC – Incidência subjetiva; Presunções legais
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Decisão Arbitral

 

 

 

I.                   RELATÓRIO

 

A…, Lda., pessoa colectiva número…, com domicílio na Av…, Lote…, r/c, Ala…, Edifício…, em Lisboa, apresentou um pedido de constituição do Tribunal Arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), com o objectivo de obter a declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) identificados nos autos relativos ao ano 2015, no valor de €742,34.

 

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Presidente do CAAD em 10.12.2015 e automaticamente notificado à AT.

 

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 10.02.2016.

 

A AT respondeu, defendendo a extinção da instância arbitral, face à intempestividade do pedido de pronúncia arbitral, ou, caso assim não se entenda, a improcedência do pedido.

 

Foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e a realização de alegações finais, em face do teor da matéria contida nos autos.

O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária, são legítimas e estão representadas (artigo 4.º, e n.º 2 do artigo 10 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março).

 

Não ocorrem quaisquer nulidades, sendo que será apreciada prioritariamente a excepção invocada pela Requerida.

 

 

II.                MATÉRIA DE FACTO

 

Com base nos elementos que constam do processo junto aos autos, consideram-se provados os seguintes factos:

 

A)    A Requerente procedeu ao registo inicial  dos veículos com a matrícula …-… -…, …-… -…, …-… -…, …-… -… e …-…-… em nome da A…;

B)    Em 21 de Julho de 2015, a Requerente efectuou o pagamento dos documentos de cobrança n.ºs 2015 … e n.º 2015 … relativos ao IUC sobre os veículos acima identificados, no montante de €742,34;

C)    A 14 de Setembro de 2015, a Requerente apresentou reclamação graciosa dos actos de liquidação sub judice;

D)    A 23 de Novembro de 2015, foi a Requerente notificada da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada;

E)    A Requerente não se conformou com a decisão de indeferimento da AT da reclamação graciosa apresentada, por entender não ser sujeito passivo de IUC.

 

Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7 do CPPT e a prova documental junta aos autos, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

III.             MATÉRIA DE DIREITO

 

A principal questão que se coloca nos presentes autos prende-se com saber se a Requerente deve ser qualificada como sujeito passivo do IUC, em relação ao ano 2015, relativamente aos veículos identificados nos documentos n.º 1 a 10.

 

A – DA POSIÇÃO DAS PARTES

 

A este propósito, o Requerente alega no seu pedido de pronúncia arbitral o seguinte:

 

1.      Nos termos do disposto no artigo 3°, número 1 do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC), "são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais, as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.";

 

2.    A A… consta como primeira titular no Registo de Propriedade Automóvel em relação aos veículos em questão, mas a verdade é que, tal registo decorre de imperativo legal, na medida em que a A… é o operador registado da marca A… em Portugal;

3.      Acontece que, à data da alienação dos veículos ora em questão, o ónus de registo da propriedade recaia apenas no comprador, ficando a ora Requerente dependente da boa-fé do comprador, esperando que o mesmo procedesse ao registo dos veículos em questão;

 

4.      O imposto ora em apreço não pode ser de forma alguma imputado à ora Requerente, porquanto a venda dos mesmos é titulada pelas respectivas facturas as quais, como anteriormente afirmado, são prova bastante da transmissão da propriedade do bem, acrescendo ainda o facto de a ora Requerente não ser a utilizadora dos veículos em questão.

 

5.    O registo, tal como referido anteriormente, tem apenas uma função de segurança jurídica pelo que, em face do disposto no artigo 7° do Código de Registo Predial, o qual é aplicável ex vi artigo 29° do Decreto-Lei nº 54/75 de 12 de Fevereiro, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.

 

6.      Não se conforma a ora Requerente com a actuação da AT na medida em que lhe imputa um imposto o qual, reitere-se, não é de sua responsabilidade, porquanto não é a A… a proprietária para os ora efeitos de IUC, nem tão pouco é a utilizadora dos veículos em questão, tendo assim ilidido a presunção que sobre si recaia

 

Por sua vez a AT alega, em síntese, o seguinte:

 

1.      Por excepção: a Requerente não formulou/concretizou no seu pedido de pronúncia arbitral qualquer pedido tendente à anulação do que em Reclamação Graciosa foi decidido.

 

2.      Com efeito, da leitura do pedido de pronúncia arbitral afere-se que a Requerente não esgrimiu um único argumento contra a fundamentação expendida relativamente ao indeferimento da Reclamação Graciosa, nem contesta a argumentação invocada pela Requerida para o seu indeferimento.

 

3.      Não tendo a Requerente esgrimido qualquer reparo ou contestação aos argumentos tecidos pela Requerida e que culminaram com o indeferimento da referida reclamação, forçoso é concluir que inexiste fundamento para se poder firmar a tempestividade do pedido e, consequentemente, a possibilidade deste Tribunal Arbitral Singular apreciar o pedido formulado relativamente aos atos de liquidação.

 

4.      Por impugnação: o artigo 3.º do CIUC não comporta qualquer presunção legal, sendo certo que a tese peregrina propugnada pela Requerente direciona o seu objetivo para o alvo errado.

 

5.      Mesmo admitindo que, do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial, a ausência de registo não afeta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real, nos termos estabelecidos no Código do IUC (que no caso em apreço constitui lei especial, a qual, nos termos gerais de direito derroga a norma geral), o legislador tributário quis intencional e expressamente que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.

 

6.      De tudo quanto supra se expôs resulta claro que os actos tributários em crise não enfermam de qualquer vício de violação de lei, na medida em que à luz do disposto no artigo 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC e do artigo 6.º do mesmo código, era a Requerente, na qualidade de proprietária, o sujeito passivo do IUC.

 

7.      Todavia, ainda que assim não se entenda – o que somente por mera hipótese académica se admite – e aceitando-se ser admissível a ilisão da presunção à luz da jurisprudência já entretanto firmada neste centro de arbitragem, importará ainda assim, apreciar os documentos juntos pela Requerente e o seu valor probatório com vista a tal ilisão.

 

8.      As facturas não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois tais documentos não revelam por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte dos pretensos adquirentes.

 

9.      Em suma, a Requerente não logrou provar a pretensa transmissão dos veículos elencados nos artigos 1.º e 2.º da petição arbitral.

 

B – DA EXCEPÇÃO INVOCADA

 

Na resposta apresentada, vem a AT defender-se por excepção que, caso se verifique, conduz à absolvição da instância.

 

A este propósito, entende a AT que a Requerente peticiona (unicamente) pela declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de IUC sub judice, cujo prazo de pagamento voluntário terminou no dia 30.06.2015. Em consequência, considera a AT que a petição arbitral apresentada em 30.11.2015 é intempestiva.

 

Sucede que, como resulta dos artigos 6.º a 12.º da petição arbitral, a Requerente pretende impugnar a decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada, cuja decisão foi comunicada à Requerente em 23.11.2015, que entende ser insuficiente e desfasada da realidade.

 

Deste modo, contrariamente ao defendido pela AT, entende-se que da petição arbitral apresentada resulta que o acto impugnado é o acto de indeferimento da reclamação graciosa notificado a 23.11.2015, enquanto acto de segundo grau, que apreciou a legalidade dos actos de liquidação de IUC (actos de primeiro grau).

 

Tendo a petição arbitral como objecto a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, considera-se a mesma tempestiva, à luz das disposições conjugadas previstas nos artigos 10.º, n.º 1 a) do RJAT e do n.º 1 do artigo 102.º do CPPT.

 

 

C – DO PEDIDO

 

Face ao exposto, relativamente à posição das Partes e aos argumentos apresentados, para determinar se os actos de liquidação de IUC, subjacentes à decisão de indeferimento da reclamação graciosa, são ou não ilegais, será necessário verificar:

 

a)      Se a norma de incidência subjectiva constante do artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC estabelece ou não uma presunção;

 

b)      Se a Requerente deve ser considerada sujeito passivo de IUC, para efeitos do disposto o artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC relativamente aos veículos identificados.

 

Vejamos o que deve ser entendido.

 

a)      Interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC

 

Estabelece o artigo 3.º do Código do IUC o seguinte:

 

1-São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.”

 

Resulta do artigo 11.º da Lei Geral Tributária (LGT) que a interpretação da lei fiscal deve ser efectuada atendendo aos princípios gerais de interpretação.

 

Os principais gerais de interpretação estão estabelecidos no artigo 9.º do Código Civil (CC), nos seguintes termos:

 

 

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

 
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.


3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”

 

Estabelece-se, assim, que são três os elementos de interpretação da Lei, a saber: o elemento literal, o elemento histórico e racional e o elemento sistemático.

 

Atendendo ao elemento literal da norma aqui em discussão, importará, em primeiro lugar, reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei. Diz-se no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.”

 

De acordo com a AT, a expressão “considerando-se” não constitui uma presunção legal, sendo intenção do legislador estabelecer expressa e intencionalmente que se consideram como tais (como proprietários) as pessoas em nome das quais os mesmos (veículos) se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal.

 

Sucede que, do ponto de vista literal, constata-se que a expressão “considerando-se” ou “considera-se” é muitas vezes utilizada com sentido equivalente à expressão “presumindo-se” ou “presume-se”.

 

Assim, a título exemplificativo, veja-se o artigo 191.º, n.º 6, do CPPT, entre outros artigos assinalados nas decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 14/2013-T, 27/2013-T, 73/2013-T ou 170/2013-T.

Deste modo, pode dizer-se que a expressão “considerando-se” tem “um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”, devendo reconhecer-se a tal vocábulo uma correspondência corrente e normal a esse sentido presuntivo (Vide decisão arbitral proferida, no âmbito do processo n.º 286/2013-T.

 

Não obstante, e tal como é salientado pela AT, o vocábulo “considerando” também é utilizado fora de contextos presuntivos – Vide artigo 12.º da sua resposta.

 

Por isso, importa submeter ao controlo dos demais elementos de interpretação de natureza lógica o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC.

 

Assim, atendendo ao elemento histórico de interpretação, importa considerar que a proposta de lei n.º 118/X, de 7.03.2007, subjacente à Lei n.º 22-A/2007, de 29.06 consagra “como elemento estruturante e unificador (…) o princípio da equivalência, deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os Requerentes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária.”

 

Neste contexto, parece-nos claro que o legislador pretendeu tributar o sujeito passivo real e efectivo causador de danos viários e ambientais e não um qualquer detentor de registo automóvel.

 

Tal como já foi por diversas vezes salientado em várias decisões arbitrais, o princípio da equivalência visa internalizar as externalidades ambientais negativas, decorrentes da utilização dos veículos automóveis, e foi erigido em princípio fundamental da tributação dos veículos automóveis em circulação.

 

Como defende Sérgio Vasques, in Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, Coimbra, 2001, p. 122, “Assim, um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também”, acrescentando que a concretização do dito princípio “(…) dita outras exigências ainda no tocante à incidência subjectiva do imposto (…)”.

 

Tendo em conta os fundamentos subjacentes à criação do actual Código do IUC, em especial, a erupção do princípio da equivalência em princípio estruturante e unificador da tributação dos veículos em circulação, parece-nos que o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC não pode ser interpretado como um comando fechado, mas antes como uma presunção ilidível, que tem por base a assunção de que na realidade o agente responsável pelos danos ambientais é, em regra, o proprietário registado do automóvel. Assunção essa que não poderá deixar de ser desconsiderada, caso na realidade seja outro o agente responsável, isto é, o sujeito passivo de IUC.

 

 

Do ponto de vista sistemático, importará reforçar novamente que logo no artigo 1.º do Código do IUC se estabelece que “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os Requerentes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.”

 

Como defende A. Brigas Afonso e Manuel T. Fernandes, in Imposto sobre Veículos e Imposto Único de Circulação, Códigos Anotados, pp. pag. 183, “o legislador procura legitimar a tributação dos veículos automóveis com base nas externalidades negativas por eles causadas (na saúde pública, no ambiente, na segurança rodoviária, no congestionamento das vias de comunicação e na paisagem urbana) desmistificando a ideia de que a tributação auto é muito elevada em Portugal.”

 

 

Segundo Batista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 183, o elemento sistemático “compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda ao lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.”

 

Esta é, aliás, a solução mais justa se considerarmos que a unidade do sistema fiscal não pode deixar de ser encontrada no princípio da verdade material e no princípio da proporcionalidade (Vide Saldanha Sanches, in Princípios do Contencioso Tributário, pp. pág. 21, e Alberto Xavier, in Conceito e Natureza do Acto Tributário, pp. 147 e seg.).

 

Pelo exposto não procedem os argumentos da AT, no sentido de que a interpretação proposta pelo Requerente é “uma interpretação que no fundo desvaloriza a realidade registal em detrimento de uma “realidade informal” e insusceptível de um controlo mínimo por parte da AT, (…) ofensiva do basilar princípio da confiança e segurança jurídica que deve enformar qualquer relação jurídica, aqui se incluindo a relação tributária.”

 

Na verdade, a interpretação aqui defendida é não só aquela que melhor de coaduna com o princípio da verdade material, como também a única que serve os propósitos de justiça fiscal.

 

De igual modo, contrariamente ao defendido pela AT, não nos parece defensável, à luz dos princípios constitucionais vigentes, a predominância do princípio da eficiência do sistema tributário sobre o princípio da justiça material. Embora não se possam deixar de compreender as dificuldades práticas que a elisão da presunção estabelecida no artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC possa provocar em termos de cobrança imediata de receitas pela AT, a interpretação da Lei não poderá ser ajustada a essas necessidades, antes devendo ser alterados de forma eficiente e em conformidade com a Lei, os procedimentos associados à cobrança deste imposto.

 

Considerando-se que o direito tributário existe para regular os conflitos de interesses entre as pretensões do Estado de prosseguir o interesse público de obter receitas e as pretensões dos Requerentes de manterem a integridade do seu património, não deverá, em regra, servir como critério interpretativo da norma tributária, a salvaguarda do interesse patrimonial ou financeiro do Estado.

 

Em suma: com base no artigo 9.º do CC, considera-se que todos os elementos de interpretação (literal, histórico e sistemático) apontam no sentido de que o artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC estabelece uma presunção ilidível. Tal significa que os sujeitos passivos de IUC sendo, em princípio, os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas em nome dos quais os mesmos se encontrem registados, poderão, afinal, ser outros, se forem efectivamente outros os provocadores dos danos ambientais, enquanto utilizadores dos veículos em circulação.

 

 

b)       A Requerente deve ser considerada sujeito passivo de IUC, para efeitos do disposto o artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC?

 

Tendo em conta o exposto em a) supra, entende-se que a disposição em análise estabelece uma presunção de propriedade em favor das pessoas em nome de quem se encontrem registados os veículos.

 

Nos termos do artigo 73.º da LGT, “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.”

 

Como defendem Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, pp. pág. 652, 4.ª Edição, “o que se pretende “sempre” é tributar rendimentos reais e não inexistentes e é por esta razão, de se querer sempre tributar valores reais, que o artigo 73.º da LGT permite “sempre” ilidir presunções.

 

É esta a interpretação que está em sintonia, por um lado, com o princípio enunciado no artigo 11.º, n.º 3, da LGT de que, nos casos de dúvida sobre a interpretação das normas tributárias "deve atender-se à substância económica dos factos tributários” e, por outro lado, com o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, que impõe que a tributação da generalidade dos contribuintes, sempre que possível, assente na realidade económica subjacente aos factos tributários e não se compagina com a existência de casos especiais de tributação com base em valores fictícios em situações em que é conhecido ou é apurável o valor real dos factos tributários.

                

No caso em análise, a Requerente manteve-se, no registo, como proprietária dos veículos em causa, pretendendo, por isso, a AT imputar-lhe a responsabilidade pelo pagamento do IUC relativo ao ano 2015, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC.

 

Alega, contudo, a Requerente que os veículos em causa já tinham sido alienados à data da verificação do facto tributário.

 

Para provar tal transferência do direito de propriedade, a Requerente juntou apenas os documentos n.º 1 a 10, que são facturas de venda dos veículos e declarações aduaneiras de veículos, tendo posteriormente, no âmbito do princípio do contraditório, requerido a junção aos autos dos documentos n.º 1 a 5, que constituem, segundo a Requerente, documentos de boa cobrança e as respectivas notas de lançamento.

 

 

Entende, contudo, o Tribunal que tais documentos não são suficientes para demonstrar a transferência do direito de propriedade sobre os veículos, uma vez que não foram juntos quaisquer declarações de venda ou outros documentos demonstrativos da transferência de propriedade, que permitam identificar os novos proprietários dos veículos em causa, à data da verificação do facto tributário. Também não foram apresentadas testemunhas, que pudessem auxiliar na produção dessa prova.

 

Em consequência, com base nos documentos juntos, entende o Tribunal que, por força da presunção estabelecida no artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC, a responsabilidade pelo pagamento dos actos de liquidação sub judice é imputável à Requerente.

 

IV.             DECISÂO

 

Termos em que este Tribunal Arbitral decide:

 

A)    Julgar totalmente improcedente a excepção de intempestividade do pedido arbitral;

 

B)    Julgar totalmente improcedente pedido de anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e consequentemente dos actos de liquidação de IUC identificados;

 

C)    Condenar a Requerente nas custas do presente processo, por ser a parte vencida.

 

V.                VALOR DO PROCESSO

 

Em conformidade com o disposto no artigo 306.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, 97.º-A, n.º 1 a) do CPPT e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o valor do pedido é fixado em €742,34.

 

 

VI.             CUSTAS

 

Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e no artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €306, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerida.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 29 de Março de 2016.

 

 

 

 

 

A Árbitro

 

 

 

 

 

Magda Feliciano

 

(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, da alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)