Decisão Arbitral
I. Relatório
A…, SA, pessoa coletiva nº…, com sede no sítio da…, freguesia de…, Concelho de ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de ... sob o mesmo número (doravante designada por requerente), apresentou em 08/09/2015 um pedido de constituição de tribunal arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 09/09/2015 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 23-09-2015.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a ora signatária, em 5-11-2015. Comunicada a aceitação do encargo no prazo aplicável, foram as partes notificadas, as quais aceitaram a designação do árbitro indicado, pelo que, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral ficou constituído em 20-11-2015. Na mesma data foi proferido despacho arbitral, nos termos do artigo 17º do RJAT e ATA foi notificada para apresentar a sua Reposta, a qual foi apresentada nos autos em 17-12-2015, que aqui se dá por integralmente reproduzida. Foi junto, também, o respetivo processo administrativo.
Em 29-12-2015 foi proferido despacho arbitral, dispensando a realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT, no qual se fixou prazo para as partes apresentarem, querendo, as suas alegações escritas e fixou data para prolação da decisão arbitral até 22-02-2016, o qual foi prorrogado por mais cinco dias, até 27-02-2016, conforme despacho arbitral proferido em 22-02-2016.
As Partes não apresentaram alegações.
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A Requerente deduziu o presente pedido arbitral com vista à declaração de ilegalidade da liquidação de Imposto do Selo ("IS") emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira ao abrigo do disposto na verba 28.1 da TGIS, sobre o prédio urbano descrito como terreno para construção sob o artigo … da matriz predial urbana da freguesia de…, referente ao ano de 2012, correspondente às notas de cobrança nºs 2013 … (1ª prestação), 2013 … (2ª prestação) e 2013 … (3ª prestação), conforme documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral, no valor global de €42.315,40. O presente pedido arbitral após terem sido deduzidas reclamações graciosas que foram indeferidas e respetivos recursos hierárquicos, os quais foram indeferidos e arquivados.
A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no reembolso dos valores de imposto pagos e no pagamento de juros indemnizatórios.
A Requerente entende, em suma, com referência ao ano de 2012, a consideração do terreno para construção como "prédios com afectação habitacional", para efeitos do disposto na verba 28 da TGIS é ilegal, por violação do disposto nos artigos 6.º, 41.º e 45.º do Código do IMI. Alega ainda que a tributação sobre o património imobiliário introduzida pela Lei n.º 55-A/2012, designadamente pela verba 28 da TGIS, conduz a desigualdades flagrantes entre os cidadãos que não encontram justificação material para o efeito e que, desta forma, a verba 28 da TGIS viola, o princípio da igualdade na vertente da proporcionalidade, constitucionalmente consagrado.
A Autoridade Tributária e Aduaneira (ATA) respondeu, defendendo que o pedido de declaração de ilegalidade e consequente anulação das liquidações controvertidas ser julgado improcedente, com a sua absolvição do pedido. Contestou quer a alegada ilegalidade da liquidação imposto expressa nas notas de cobrança juntas aos autos quer, ainda, as alegadas inconstitucionalidades imputadas à norma contida na verba 28.1 da TGIS.
***
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.
Não ocorre qualquer nulidade que possa inquinar o presente processo.
Cumpre decidir
II. Matéria de facto
1. Factos que se consideram provados
a) A sociedade Requerente, A… SA, é proprietária do prédio urbano com o artigo matricial nº… da Freguesia da…, o qual consiste num terreno para construção e tem o valor patrimonial tributário de € 4. 231.540,00 – Cfr. documentos nºs 1 a 3 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos;
b) A Requerente foi notificada da liquidação de Imposto do Selo, efetuada ao abrigo da verba 28.1. da Tabela Geral do Imposto do Selo, correspondente às notas de cobrança nºs 2013…, 2013 … e 2013…, respetivamente 1ª, 2ª e 3ª prestações no valor de €14.105,13 cada, na quantia global de €42.315,40, referente ao ano de 2012 - Cfr. documentos nºs 1 a 3 juntos ao pedido arbitral;
c) A Requerente apresentou três Reclamações Graciosas com vista à anulação das notas de cobrança supra identificadas, as quais foram indeferidas - cfr. Documentos com os nºs 4 a 6 e 7 a 9 juntos com o pedido arbitral;
d) Em 18-09-2013, 05-02-2014 e 29-04-2014 apresentou três Recursos Hierárquicos dos indeferimentos das Reclamações Graciosas para anulação das ditas notas de cobrança e liquidação de IS, dos quais um foi indeferido e os restantes dois arquivados – Cfr. Documentos nºs 10 a 12 e 13 a 15
e) Em 16-06-2015 a Requerente foi notificada dos Ofícios nºs …, … e…, sendo o primeiro de indeferimento do primeiro Recurso Hierárquico e os segundos de arquivamento dos restantes dois;
f) Em 08-09-2015, a Requerente apresentou o presente pedido de constituição do tribunal arbitral.
2. Factos que se consideram não provados
Não há factos relevantes para decisão que não se tenham provado.
3. Fundamentação da matéria de facto provada
Os factos provados baseiam-se nos documentos indicados para cada um dos pontos, cuja autenticidade e correspondência à realidade não foram questionadas.
III. Matéria de direito
A questão objeto do presente pedido arbitral é a de saber se um terreno para construção, a que foi atribuída, em processo de avaliação, a afetação a "Habitação” se insere no âmbito de incidência do n.º 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), na sua redação inicial ou, dito de outro modo, anterior à Lei do Orçamento de Estado (LOE) para 2014. Vejamos pois, se assiste razão à Requerente.
1. Regime da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro
A Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, efetuou várias alterações ao Código do Imposto do Selo e aditou à TGIS a verba 28, com a seguinte redação:
28 – Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1.000.000 – sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:
28.1 – Por prédio com afectação habitacional – 1 %;
28.2 – Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças – 7,5 %.
Nas disposições transitórias que constam do artigo 6.º daquela Lei n.º 55-A/2012, estabeleceram-se as seguintes regras atinentes à liquidação do imposto previsto naquela verba:
1 – Em 2012, devem ser observadas as seguintes regras por referência à liquidação do imposto do selo previsto na verba n.º 28 da respectiva Tabela Geral:
a) O facto tributário verifica-se no dia 31 de Outubro de 2012;
b) O sujeito passivo do imposto é o mencionado no n.º 4 do artigo 2.º do Código do Imposto do Selo na data referida na alínea anterior;
c) O valor patrimonial tributário a utilizar na liquidação do imposto corresponde ao que resulta das regras previstas no Código do Imposto Municipal sobre Imóveis por referência ao ano de 2011;
d) A liquidação do imposto pela Autoridade Tributária e Aduaneira deve ser efectuada até ao final do mês de Novembro de 2012;
e) O imposto deverá ser pago, numa única prestação, pelos sujeitos passivos até ao dia 20 de Dezembro de 2012;
f) As taxas aplicáveis são as seguintes:
i) Prédios com afectação habitacional avaliados nos termos do Código do IMI: 0,5 %;
ii) Prédios com afectação habitacional ainda não avaliados nos termos do Código do IMI: 0,8 %;
iii) Prédios urbanos quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças: 7,5 %.
2 – Em 2013, a liquidação do imposto do selo previsto na verba n.º 28 da respectiva Tabela Geral deve incidir sobre o mesmo valor patrimonial tributário utilizado para efeitos de liquidação de imposto municipal sobre imóveis a efectuar nesse ano.
3 – A não entrega, total ou parcial, no prazo indicado, das quantias liquidadas a título de imposto do selo constitui infracção tributária, punida nos termos da lei.
Utilizou-se na referida verba 28.1 e nas subalíneas i) e ii) da alínea f) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 55-A/2012, um conceito que não é utilizado em qualquer outra legislação tributária, nestes precisos termos, que é o de “prédio com afectação habitacional”.
Designadamente no CIMI, que em várias normas do Código do Imposto do Selo introduzidas por aquela Lei é indicado como diploma de aplicação subsidiária relativamente ao tributo previstos na referida verba n.º 28 [artigos 2.º, n.º 4, 3.º, n.º 3, alínea u), 5.º, alínea u), 23.º, n.º 7, e 46.º e 67.º do CIS], não é utilizado um conceito com aquela designação.
A Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (LOE 2014), alterou aquela verba n.º 28.1, dando-lhe a seguinte redação:
28.1 - Por prédio habitacional ou por terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI – 1 %
Em causa está a interpretação dos conceitos em presença e o sentido e alcance da norma de incidência em discussão nos presentes autos, sobre os quais as partes revelam diferente entendimento.
2. Conceitos de prédios utilizados no CIMI
No IMI, enumeram-se as espécies de prédios nos seus artigos 3.º a 6.º nos seguintes termos:
Artigo 2.º
Conceito de prédio
1 – Para efeitos do presente Código, prédio é toda a fracção de território, abrangendo as águas, plantações, edifícios e construções de qualquer natureza nela incorporados ou assentes, com carácter de permanência, desde que faça parte do património de uma pessoa singular ou colectiva e, em circunstâncias normais, tenha valor económico, bem como as águas, plantações, edifícios ou construções, nas circunstâncias anteriores, dotados de autonomia económica em relação ao terreno onde se encontrem implantados, embora situados numa fracção de território que constitua parte integrante de um património diverso ou não tenha natureza patrimonial.
2 – Os edifícios ou construções, ainda que móveis por natureza, são havidos como tendo carácter de permanência quando afectos a fins não transitórios.
3 – Presume-se o carácter de permanência quando os edifícios ou construções estiverem assentes no mesmo local por um período superior a um ano.
4 – Para efeitos deste imposto, cada fracção autónoma, no regime de propriedade horizontal, é havida como constituindo um prédio.
Artigo 3.º
Prédios rústicos
1 – São prédios rústicos os terrenos situados fora de um aglomerado urbano que não sejam de classificar como terrenos para construção, nos termos do n.º 3 do artigo 6.º, desde que:
a) Estejam afectos ou, na falta de concreta afectação, tenham como destino normal uma utilização geradora de rendimentos agrícolas, tais como são considerados para efeitos do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS);
b) Não tendo a afectação indicada na alínea anterior, não se encontrem construídos ou disponham apenas de edifícios ou construções de carácter acessório, sem autonomia económica e de reduzido valor.
2 – São também prédios rústicos os terrenos situados dentro de um aglomerado urbano, desde que, por força de disposição legalmente aprovada, não possam ter utilização geradora de quaisquer rendimentos ou só possam ter utilização geradora de rendimentos agrícolas e estejam a ter, de facto, esta afectação.
3 – São ainda prédios rústicos:
a) Os edifícios e construções directamente afectos à produção de rendimentos agrícolas, quando situados nos terrenos referidos nos números anteriores;
b) As águas e plantações nas situações a que se refere o n.º 1 do artigo 2.º
4 – Para efeitos do presente Código, consideram-se aglomerados urbanos, além dos situados dentro de perímetros legalmente fixados, os núcleos com um mínimo de 10 fogos servidos por arruamentos de utilização pública, sendo o seu perímetro delimitado por pontos distanciados 50 m do eixo dos arruamentos, no sentido transversal, e 20 m da última edificação, no sentido dos arruamentos.
Artigo 4.º
Prédios urbanos
Prédios urbanos são todos aqueles que não devam ser classificados como rústicos, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.
Artigo 5.º
Prédios mistos
1 – Sempre que um prédio tenha partes rústica e urbana é classificado, na íntegra, de acordo com a parte principal.
2 – Se nenhuma das partes puder ser classificada como principal, o prédio é havido como misto.
Artigo 6.º
Espécies de prédios urbanos
1 – Os prédios urbanos dividem-se em:
a) Habitacionais;
b) Comerciais, industriais ou para serviços;
c) Terrenos para construção;
d) Outros.
2 – Habitacionais, comerciais, industriais ou para serviços são os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal cada um destes fins.
3 – Consideram-se terrenos para construção os terrenos situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo, exceptuando-se os terrenos em que as entidades competentes vedem qualquer daquelas operações, designadamente os localizados em zonas verdes, áreas protegidas ou que, de acordo com os planos municipais de ordenamento do território, estejam afectos a espaços, infra-estruturas ou equipamentos públicos. (Redacção da Lei n.º 64-A/08, de 31-12)
4 – Enquadram-se na previsão da alínea d) do n.º 1 os terrenos situados dentro de um aglomerado urbano que não sejam terrenos para construção nem se encontrem abrangidos pelo disposto no n.º 2 do artigo 3.º e ainda os edifícios e construções licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal outros fins que não os referidos no n.º 2 e ainda os da excepção do n.º 3.
Posto isto, há que proceder à correta interpretação do normativo legal contido na verba 28.1 da TGIS. Para tanto há que atender aos princípios que orientam a tarefa interpretativa da norma jurídica.
3. Normas sobre interpretação das leis
O artigo 11.º da Lei Geral Tributária estabelece as regras essenciais da interpretação das leis tributárias nos seguintes termos:
Artigo 11.º
Interpretação
1. Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.
2. Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei.
3. Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários.
4. As lacunas resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República não são susceptíveis de integração analógica.
Os princípios gerais da interpretação das leis, para que remete o n.º 1 do artigo 11.º da LGT, são estabelecidos no artigo 9.º do Código Civil, que estabelece o seguinte:
Artigo 9.º
Interpretação da lei
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
4. Conceito de «prédio com afectação habitacional»
Como se vê pelas normas do CIMI transcritas, não é utilizado na classificação dos prédios o conceito de «prédio com afectação habitacional». Também não se encontra este conceito, com esta terminologia, em qualquer outro diploma.
O ponto de partida da interpretação daquela expressão é, naturalmente, o texto da lei, sendo com base nele que há que reconstituir o «pensamento legislativo», como impõe o n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil, aplicável por força do disposto no artigo 11.º, n.º 1, da LGT.
O conceito mais próximo do teor literal desta expressão utilizada é manifestamente o de «prédios habitacionais», definido no n.º 2 do artigo 6.º do CIMI como abrangendo «os edifícios ou construções» licenciados para fins habitacionais ou, na falta de licença, que tenham como destino normal fins habitacionais.
A entender-se que a expressão «prédio com afectação habitacional» coincide com o de «prédio habitacional», é manifesto que as liquidações enfermarão de erro sobre os pressupostos de facto e de direito, porquanto o prédio relativamente ao qual foi liquidado o Imposto do Selo ao abrigo da referida verba n.º 28.1 é um terreno para construção, sem qualquer edifício ou construção, os quais são exigidos por aquele n.º 2 do artigo 6.º para se preencher aquele conceito de «prédios habitacionais».
Por isso, a adotar-se a interpretação de que «prédio com afectação habitacional» significa «prédio habitacional», as liquidações cuja declaração de ilegalidade é pedida são ilegais.
No entanto, a não coincidência dos termos da expressão utilizada na verba n.º 28.1 da TGIS com a que se extrai do n.º 2 do artigo 6.º do CIMI aponta no sentido de não se ter pretendido utilizar o mesmo conceito. Afigura-se, pois, tratar-se de conceitos distintos, como bem se refere no Acórdão Arbitral proferido no processo nº 559/2014 –T, que se transcreve:
“A palavra «afectação», neste contexto de utilização de um prédio, tem o significado de «acção de destinar alguma coisa a determinado uso». ( [1] )
«Quando, como é de regra, as normas (fórmulas legislativas) comportam mais que um significado, então a função positiva do texto traduz-se em dar mais forte apoio a ou sugerir mais fortemente um dos sentidos possíveis. É que, de entre os sentidos possíveis, uns corresponderão ao significado mais natural e directo das expressões usadas, ao passo que outros só caberão no quadro verbal da norma de uma maneira forçada, contrafeita. Ora, na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto (nem sempre exacto) de que o legislador soube exprimir com correcção o seu pensamento». ( [2] )
A relevância do texto da lei é especialmente acentuada em matéria de interpretação de normas de incidência do Imposto do Selo, que se reconduzem a uma amálgama, sob uma denominação comum, de um conjunto incongruente de tributos de naturezas completamente distintas (sobre o rendimento, sobre a despesa, sobre o património, sobre actos, etc.), que não deixa margem apreciável para aplicação do critério interpretativo primordial, que é a unidade do sistema jurídico, que reclama a sua coerência global.
A reconhecida falta de coerência do Imposto do Selo é particularmente exuberante no caso desta verba n.º 28.1, apressadamente incluída à margem do Orçamento Geral do Estado, por um legislador fiscal sem orientação fiscal global perceptível, que vai implementando sucessivamente normas de agravamento fiscal à medida dos revezes da execução orçamental, das imposições dos credores institucionais internacionais (representados pela «troika») e da fiscalização do Tribunal Constitucional.
Na verdade, embora na «Exposição de Motivos» da Proposta de Lei n.º 96/XII/2.ª ([3]), em que se baseou a Lei n.º 55-A/2012, se faça referência à louvável preocupação do Governo de «reforçar o princípio da equidade social na austeridade, garantindo uma efectiva repartição dos sacrifícios necessários ao cumprimento do programa de ajustamento» e ao seu empenho «em garantir que a repartição desses sacrifícios será feita por todos e não apenas por aqueles que vivem do rendimento do seu trabalho», é manifesto, por um lado, que essas razões de equidade, decerto existentes, não começaram a valer em meados de 2012, já existindo no início do ano, quando entrou em vigor o Orçamento Geral do Estado e, por outro lado, que o alcance da verba n.º 28.1, ao tributar acrescidamente os prédios com afectação habitacional e não também os prédios que a não têm, deixa entrever que as preocupações de equidade social e a proclamada intenção de repartição dos sacrifícios por todos atinge muito mais alguns do que propriamente todos.
Neste contexto, não existindo elementos interpretativos seguros que permitam detectar coerência legislativa na solução adoptada na referida verba n.º 28.1 ou o acerto ou desacerto da solução adoptada (relevante para efeitos interpretativos à face do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil), o teor do texto legal tem de ser o elemento primacial da interpretação, em conformidade com a presunção, imposta pelo mesmo n.º 3 do artigo 9.º, de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
À face daqueles significados das palavras «afectação» e «afectar», que são «dar destino» ou «aplicar», a fórmula utilizada naquela verba n.º 28.1 da TGIS, abrange, manifestamente, os prédios que a que já foi dado destino para habitação, os prédios que já estão aplicados a fins habitacionais, pelo que importa indagar se abrangerá também os prédios que, apesar de não estarem ainda aplicados a fins habitacionais, estão a estes destinados.”
A questão agora é a de saber se, à luz da versão da lei em vigor ao tempo do facto tributário (2012), podemos entender que um prédio está afetado a fim habitacional, designadamente quando lhe é fixado esse destino num alvará de loteamento ou ato de licenciamento ou semelhante, ou apenas quando a efetiva atribuição desse destino é concretizada.
Ora, o confronto da verba n.º 28.1 da TGIS com n.º 2 do artigo 6.º do CIMI, que define o conceito de prédios habitacionais, aponta no sentido de ser necessária uma afetação efetiva, já que um edifício ou construção licenciado para habitação ou, mesmo sem licença, mas que tenha como destino normal a habitação, é, à face do n.º 2 daquele artigo 6.º um prédio habitacional, pois nele se dá tal classificação aos «edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal cada um destes fins».
Por isso, no pressuposto de que o legislador da Lei n.º 55-A/2012 soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (como impõe o artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil que se presuma), se pretendesse reportar-se a esses prédios já licenciados para habitação ou que tenham a habitação como destino normal, decerto teria utilizado o conceito de «prédios habitacionais», que expressaria perfeita e claramente o seu pensamento, à face da definição dada por aquele n.º 2 do artigo 6.º do CIMI. Assim sendo, deve presumir-se que o uso de uma expressão diferente tem em vista uma realidade distinta, pelo que, «prédio com afectação habitacional», tal como constava da versão da lei em vigor para 2012, não poderá ser um prédio apenas licenciado para habitação ou destinado a esse fim (isto é, não bastará que seja um «prédio habitacional»), tendo de ser um prédio que tenha já efetiva afetação a esse fim.
Ao que acresce ainda que o texto da lei ao adotar a fórmula «prédio com afectação habitacional», em vez de «prédios urbanos de afectação habitacional», que aparece na referida na exposição de Motivos, aponta claramente no sentido de que se exige, à luz da versão aplicável ao ano de 2012, que a afetação habitacional já estivesse concretizada ao tempo em que ocorre o facto tributário, pois só assim o prédio se poderia considerar como prédio com afetação habitacional.
No caso em apreço, está-se perante um mero terreno para construção, ou seja, algo que naturalmente não poderá ter, de todo, afetação habitacional porquanto não existe nenhum edifício ou construção nele implantado.
Por outro lado, a intenção legislativa de não estender o âmbito de incidência a terrenos construção foi expressamente referida pelo Governo ao apresentar no Plenário da Assembleia da República a Proposta de Lei 96-XII ao dizer, pela voz do Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais:
«Em primeiro lugar, o Governo propõe a criação de uma taxa especial para tributar prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor. É a primeira vez que em Portugal é criada uma tributação especial sobre propriedades de elevado valor destinadas à habitação. Esta taxa será de 0,5% a 0,8%, em 2012, e de 1%, em 2013, e incidirá sobre as casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros. Com a criação desta taxa adicional, o esforço fiscal exigido a estes proprietários será significativamente aumentado em 2012 e em 2013».
A referência expressa a «casas» como alvo da incidência do novo tributo não deixa margem para dúvidas sobre a intenção legislativa, além do que não se encontra na discussão da referida proposta de Lei qualquer referência a «terrenos para construção».
Quanto à alegação que a ATA extrai do disposto no artigo 45.º do CIMI, não tem qualquer relação com a classificação de prédios apenas indicando os fatores a ponderar na avaliação de terrenos para construção.
Por fim, há que ter em conta que a Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (LOE 2014), não visou esclarecer o elemento lógico subjacente à redação inicial da verba n.º 28.1, antes veio confirmar, indiretamente, a interpretação de que ela não abrangia os terrenos para construção. Senão vejamos: se na redação original daquela verba n.º 28.1, ao falar de «prédio com afectação habitacional», o legislador já pretendesse abranger os edifícios e construções que constituíam «prédios habitacionais» (nos termos do artigo 6.º, n.º 2, do CIMI), e os terrenos para construção para que estivesse autorizada ou prevista habitação, seria natural que se atribuísse à nova redação natureza interpretativa, o que não sucedeu. Isto é tanto assim quanto, como se sabe, a mesma Lei n.º 83-C/2013, tomou essa posição noutras disposições [artigo 177.º, n.º 7, relativamente às alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 17.º-A do Código do IRS, e artigo 185.º, n.º 1, relativamente ao artigo 3.º-A do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado]. Por último, é usual nas leis orçamentais, quando se pretende que as novas redações se apliquem às situações potencialmente abrangidas pelas anteriores redações, atribuir-lhe natureza interpretativa. Logo, se o legislador não o fez nesta matéria foi porque entendeu que não o devia fazer, não cabendo ao tribunal ir além do que a lei lhe permite.
Por isso, o facto de não se ter atribuída natureza interpretativa à nova redação aponta no sentido de que se ter pretendido alterar o âmbito de incidência da referida verba n.º 28.1 da TGIS e não mantê-lo, esclarecendo-o.
Por todo exposto, as liquidações impugnadas enfermam de vício de erro sobre os pressupostos de direito, consubstanciado em violação da verba n.º 28.1 da TGIS, que justifica a sua anulação. ( [4] )
5. Questões de conhecimento prejudicado
Na sentença, deve o juiz pronunciar-se sobre todas as questões que deva apreciar, abstendo-se de se pronunciar sobre questões de que não deva conhecer (segmento final do n.º 1 do artigo 125.º, do CPPT), sendo que as questões sobre que recaem os poderes de cognição do tribunal, são, de acordo com o n.º 2 do artigo 608.º, do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo arbitral tributário, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, “as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)”.
Em face da solução dada às questões relativas ao conceito de “prédio com afetação habitacional”, à restituição das quantias pagas e ao pagamento de juros indemnizatórios a favor do sujeito passivo, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas pelas partes, nomeadamente a da invocada inconstitucionalidade da norma de incidência contida na Verba 28.1, da TGIS, por a mesma não ser passível da interpretação que, no caso, foi feita pela AT.
Dito de outro modo, a ilegalidade assacada à liquidação de IS expressa nas notas de cobrança impugnadas nos presentes autos decorre direta e claramente do teor da norma de incidência aplicável, pelo que não se afigura necessário o recurso à análise das alegadas inconstitucionalidades invocadas pela Requerente.
Resolvida, pois, a questão neste plano de aplicação da norma infra constitucional fica prejudicado o conhecimento das questões suscitadas pela Requerente quanto às alegadas inconstitucionalidades.
IV. QUANTO AO PEDIDO DE JUROS INDEMNIZATÓRIOS
Dispõe a alínea b), do nº 1, do art.º 24º, do RJAT, que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta - nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários - restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito.
Tal dispositivo está em sintonia com o disposto no art.º 100º, da LGT, aplicável ao caso por força do disposto na alínea a), do nº 1, do art.º 29º, do RJAT, no qual se estabelece que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”
Dispõe, por sua vez, o artigo 43º, nº1, da Lei Geral Tributária que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”
Da análise dos elementos probatórios constantes dos presentes autos é possível inferir que a AT tinha total e cabal conhecimento dos elementos factuais relevantes para proceder à correta liquidação do imposto. Teve oportunidade para revogar o ato, quer em sede de Reclamação Graciosa quer em sede de Recurso Hierárquico. Acresce que com a notificação do pedido arbitral apresentado e dos meios de prova juntos em anexo ao pedido a AT teve a possibilidade de revogar o ato travando os seus efeitos, o que não sucedeu. Não o tendo feito e mantendo a liquidação e as notas de cobrança inquinadas de erro sobre os pressupostos, e por isso mesmo ilegais, está obrigada a indemnizar.
Assim sendo, atento o disposto no artigo 61º, do CPPT e considerando que se encontram preenchidos os requisitos do direito a juros indemnizatórios, ou seja, verificada a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, tal como previsto no nº 1 do art.º 43º da LGT, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal, calculados sobre as quantias pagas pela Requerente, a contar da data em que foi efetuado o pagamento até ao seu integral reembolso, como forma de se alcançar a reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade.
Não se afigura existirem outras questões relevantes suscitadas pelas partes.
V - Decisão
Nestes termos, decide este Tribunal Arbitral:
a) Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e em consequência anular a liquidação do imposto de selo expressa nas notas de cobrança supra identificadas;
b) Condenar a Requerida a reembolsar a Requerente dos valores que tenham sido pagos indevidamente a título de IS, com referência ao ano de 2012, no valor global de €42.315,40
c) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios à Requerente, desde a data de cada um dos pagamentos indevidos, até sua integral restituição.
d) Condenar a Requerida no pagamento das custas arbitrais.
VI. Valor do processo
De harmonia com o disposto no art. 315.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de €42.315,40
VII. Custas
Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.142,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.
Notifique.
Lisboa, 25 de fevereiro de 2016
A Juiz Árbitro,
(Prof. Dra. Maria do Rosário Anjos)
( [1] ) Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, I volume, página 102.
( [2] ) BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, página 182.
( [4] ) Neste sentido tem vindo a decidir o Supremo Tribunal Administrativo, como pode ver-se pelos acórdãos de 09-04-2014, proferidos nos processos n.ºs 01870/13 e 048/14, e de 23-04-2014, proferidos nos processos n.ºs 0271/14, 0270/14 e 0272/14, disponíveis em http://www.dgsi.pt.