Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 405/2015-T
Data da decisão: 2016-03-04  IRS  
Valor do pedido: € 470.605,40
Tema: IRS – Partilha; herança Indivisa; mais-valia
Versão em PDF

       

 

Decisão Arbitral

 

Acordam os Árbitros Fernanda Maçãs (Árbitro Presidente), Catarina Gonçalves e Mariana Vargas, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral:

 

I.                   RELATÓRIO

 

1.             No dia 1 de julho de 2015, A… e B…, residentes na Rua…, nº…, Edifício…, Lisboa, titulares de NIF n.º … e … (Requerentes), apresentaram pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do ato de indeferimento parcial da reclamação graciosa com o n.º …-2012-…e da consequente liquidação de IRS com o n.º 2011 … e correspondente demonstração de acerto de contas com o n.º 2011…, referentes ao ano de 2007, no valor de € 470.605,40.

 

2.             Para fundamentar o seu pedido alegam os Requerentes, em síntese, que:

 

A.        falta de notificação do início do procedimento de inspeção

a.    Não foi devidamente notificada do início do procedimento de inspeção.

b.    O procedimento de inspeção teve natureza externa e não interna, como pretende a AT, na medida em que não se tratou de um procedimento que tenha sido levado a cabo, exclusivamente, nos serviços da administração tributária, através da análise formal de coerência dos documentos.

c.    A omissão da formalidade torna nulo todo o procedimento inspetivo e inquina de vício de forma todo o procedimento.

 

B.       incompetência territorial e da impossibilidade de atribuir efeitos retroativos à ratificação dos atos de inspeção

a.    A inspeção tributária foi levada a cabo pela Direção de Finanças de …; contudo os Requerentes são – e eram à data dos factos controvertidos –, residentes fiscais em Lisboa, pelo que o órgão competente para a concretização dos atos de inspeção é a Direção de Finanças de Lisboa, e não a Direção de Finanças de… .

b.    A Direção de Finanças de Lisboa pretendeu sanar tal irregularidade, ratificando os atos de inspeção com efeitos retroativos, nos termos do disposto no artigo 137.º, n.º 3, do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”).

c.    No entanto, nos termos do disposto no art.º 137.º, n.º 4, do CPA, na redação à data dos factos, a ratificação, reforma e conversão retroagem os seus efeitos à data dos atos a que respeitam, desde que não tenha havido qualquer alteração ao regime legal, o que não se verificou dado que nomeadamente o art.º 16.º do RCPIT, relativo à competência material e territorial para a prática dos atos de inspeção, sofreu uma alteração legislativa.

d.   Não podendo a sanação dos atos de inspeção praticados ter efeitos retroativos, não podem ser aproveitados os atos praticados por Direção de Finanças de…, estando o ato de liquidação inquinado por vício de incompetência.

 

C.       Vício de violação de lei (errónea qualificação e quantificação dos rendimentos)

a.    A partilha apenas tem efeito meramente declarativo não constituindo qualquer efeito constitutivo de direitos para os sujeitos passivos, não configurando uma transferência para o património individual dos Requerentes de bens afetos à sua atividade empresarial.

b.    Tratando-se de um ato sujeito a Imposto do Selo não pode, concomitantemente, ser sujeito a IRS, na medida em que se insere na delimitação negativa de incidência prevista no artigo 12.º do CIRS, ainda que houvesse um incremento patrimonial.

c.    O conceito de mais-valias, para efeitos do disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 3.º, do Código do IRS, remete para a definição de mais-valias contida no artigo 43.º, do Código do IRC; no caso de venda de um estabelecimento comercial criado de raiz pela atividade de um comerciante, em que não existe valor de aquisição, estar-se-á perante uma mais-valia não tributável.

d.   Ainda que assim não se entenda, a venda seria tributada em sede de IRS, na Categoria G, a título de mais-valias, pela alienação onerosa de partes sociais, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º do respetivo Código, sendo o ganho sujeito a IRS constituído pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, líquidos da parte qualificada como rendimentos de capitais, se for caso disso;

e.    O valor de aquisição das partes sociais deve ser o valor que tenha sido considerado para efeitos de liquidação de Imposto do Selo, conforme artigo 45.º do Código do IRS;

f.     Não houve qualquer afetação a um fim diferente do estabelecimento, por via da partilha, tanto mais que o estabelecimento não cessou a sua atividade, tendo sido alienado para o exercício da atividade que tinha vindo a desenvolver;

g.    A transferência para o património particular dos herdeiros dos bens afetos ao ativo da atividade empresarial pressuporia que, após a cessação da herança indivisa, tivesse sido dada continuidade ao negócio na esfera pessoal dos Requerentes, o que não sucedeu, uma vez que a partilha coincidiu temporalmente com o contrato de compra e venda e efetuou-se através da adjudicação de um terço indiviso do estabelecimento para cada um dos herdeiros;

h.    Nos termos do n.º 6 do artigo 12.º, do Código do IRS, na redação vigente à data, “O IRS não incide sobre os incrementos patrimoniais sujeitos a imposto sobre as sucessões e doações, nem sobre os que se encontrem expressamente previstos em norma de delimitação negativa de incidência deste imposto”. Com a abolição do Imposto Sobre as Sucessões e Doações, aqueles incrementos patrimoniais passaram a ser tributados em sede de Imposto do Selo;

i.      Caso assim se não entenda, sempre seria de entender que a atividade comercial foi exercida desde a data do falecimento da autora da herança até à data da venda, por uma sociedade irregular, cujos sócios eram os três herdeiros, entre os quais os aqui Requerentes e que existiu qua tale perante terceiros, não se podendo negar a existência de uma atividade comum, desenvolvida no seio do estabelecimento comercial, com vista à obtenção de lucro;

j.      Situação em que a venda do estabelecimento seria tributada em IRS, na Categoria G, a título de mais-valias, pela alienação onerosa de partes sociais, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º, do Código do IRS, sendo o ganho sujeito a imposto constituído pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, líquidos da parte qualificada como rendimentos de capitais, sendo caso disso;

k.    Ora o valor de realização, corresponde ao da quota-parte do Requerente marido no valor da venda; quanto ao valor de aquisição das respetivas partes sociais, releva o valor que tenha sido considerado para efeitos de liquidação do Imposto do Selo (artigo 45.º, do Código do IRS), que coincide com o valor de realização, não havendo qualquer valor a apurar que possa ser tributado em IRS;

l.      É assim inequívoco que o ato de liquidação se encontra inquinado de vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de direito como resulta de todo o exposto.

 

3.             No dia 3 de julho de 2015, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

 

4.             A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral coletivo, os quais comunicaram a aceitação da designação dentro do prazo.

 

5.             Em 27 de agosto de 2015, as partes foram notificadas da designação dos árbitros não tendo arguido qualquer impedimento.

 

6.             Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 11.º do RJAT, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 11 de Setembro de 2015.

 

7.             No dia 12 de outubro de 2015, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendeu-se por impugnação, invocando, em, síntese:

 

a)    O procedimento inspetivo é de natureza interna e, portanto, não está sujeita à notificação prévia a que alude o art. 40.º do RCPIT;

b)   Tratando-se de uma ação inspetiva de cariz interno, atento o seu objeto e o lugar em que ocorreu, o seu início não tinha de ser notificado aos Réus, não tendo, consequentemente, ocorrido a omissão de tal formalidade por não legalmente prescrita para os procedimentos inspetivos internos;

c)    Era à Direção de Finanças de Lisboa que competia, nos termos conjugados das disposições do n.º 5 do art. 65.º do CIRS e o art. 16.º do RCPIT, a ação inspetiva, em sede de IRS, dado o domicílio fiscal dos Requerentes no Serviço de Finanças de Lisboa …;

d)   Contudo, os atos praticados ao longo do procedimento inspetivo, em especial, o despacho da Chefe de Divisão da Inspeção Tributária da Direção de Finanças de…, proferido em 05/12/2011, foram objecto de ratificação – despacho de 21/08/2014 da Diretora de Finanças de Lisboa, ficando, assim, sanada a irregularidade decorrente da incompetência territorial;

e)    Quanto ao alegado erro na qualificação e quantificação dos rendimentos, o que está a ser tributado aos Requerentes não é a transmissão da propriedade dos bens da herança para os herdeiros, já que essa transmissão ocorreu na data do óbito (art. 2031.º do C.C) e foi tributada em sede de Imposto de Selo,

f)       mas sim em sede de “(…) mais- valias apuradas no âmbito das atividades empresariais geradoras de rendimentos empresariais e profissionais (…) designadamente as resultantes da transferência para o património particular dos empresários de quaisquer bens afetos ao ativo da empresa (…)” (cfr. al. c) do n.º2 doo art. 3.º, do CIRC);

g)   Como se lê na fundamentação do ato em crise “com a cessão da atividade da herança indivisa e a partilha dos bens do estabelecimento comercial (existências, imobilizado e alvará de farmácia) pelos herdeiros, verificou-se uma transferência para o património particular dos herdeiros dos bens afetos ao ativo da atividade empresarial, a qual está sujeita ao apuramento de mais-valias no âmbito da atividade geradora de rendimentos empresarias” (fls. 411 do p. a.);

h)   A tributação que está aqui em causa é, pois, a das mais-valias que resultam da transferência para o património particular dos empresários, ou seja, para o património particular dos contitulares da empresa (o estabelecimento de farmácia “Diana”) dos bens afetos ao ativo da empresa;

i)     Ao contrário do que sustentam os Requerentes a tributação/correção em crise não é originada pela escritura de partilha dos bens da herança indivisa, mas antes pela cessação da sua atividade, que ocorreu por ter sido partilhada a herança indivisa (cfr. al. d) do n.º1 do art. 114.º, do CIRS).   

 

8.             No dia 1 de dezembro de 2015, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, onde foram inquiridas as testemunhas, no ato, apresentadas pelos Requerentes.

 

9.             Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respetivas posições jurídicas.

 

10.         Foi fixado o dia 10 de março de 2016 para efeito da prolação de decisão final.

 

 

II.                SANEAMENTO

 

11.1.   O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 1, do RJAT.

 

11.2.   As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

11.3. O processo não enferma de nulidades.

 

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

 

III. MÉRITO

 

A. MATÉRIA DE FACTO

 

A.1. Factos dados como provados

 

Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas, prévias, e de mérito, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:

a.    Os Requerentes são marido e mulher, sendo o Requerente marido (A…) herdeiro de C… .

b.    C… exercia a atividade “Comércio a retalho de produtos farmacêuticos”, explorando o estabelecimento comercial de farmácia denominado “D…”.

c.    Em 6 de janeiro de 2007, ocorreu o óbito de C…, tendo nessa data o Requerente adquirido o direito a uma quota-parte da herança, conjuntamente e em igual proporção com os seus dois irmãos.

d.   Em 26 de junho de 2007, foi participada a transmissão gratuita resultante do óbito, incluindo a do estabelecimento comercial farmácia “D…” em …, ao qual foi atribuído o valor de € 3.515.000,00.

e.    Em virtude de os beneficiários serem descendentes da autora da herança, aplicou-se a isenção prevista na alínea e) do artigo 6.º do Código do Imposto do Selo.

f.     Após o óbito, os coerdeiros continuaram a exploração do estabelecimento comercial já referido, tendo exercido tal atividade no âmbito da herança indivisa “C… Herdeiros”, NIF… .

g.    No dia 5 de novembro de 2007, cessou a atividade da herança indivisa.

h.    No dia 6 de novembro de 2007, foram outorgadas simultaneamente duas escrituras: uma escritura de partilha e uma escritura de compra e venda.

i.      Na escritura de partilha, o estabelecimento comercial foi adjudicado na proporção de um terço indiviso a cada um dos três herdeiros (€ 1.171.666,67).

j.      Na escritura de compra e venda, cada um dos herdeiros vendeu a respetiva quota-parte à sociedade “E… Lda”, titular do número de identificação fiscal…, pelo preço global de € 3.515.000,00.

k.    Com a declaração modelo 3/IRS, referente ao ano de 2007, relativa aos Requerentes, foram apresentados: Anexos C, I e D. Foi também apresentado o Anexo I da IES.

l.      A 2 de agosto de 2008, o Requerente foi notificado pela AT para proceder à apresentação dos elementos comprovativos da sua situação pessoal, nomeadamente através da entrega do duplicado da declaração de IRS e da comprovação das deduções à coleta efectuadas.

m.  Em setembro de 2008, os Requerentes foram notificados da demonstração de liquidação de IRS com o n.º 2008…, através do documento de cobrança n.º 2008…, a qual foi alvo de reclamação graciosa.

n.    A 20 de janeiro de 2009, o Requerente foi notificado, no Processo …-2008/…do deferimento parcial da reclamação graciosa apresentada.

o.    Em 13/08/2010 foi emitida pelos Serviços de Inspeção Tributária da DF de…, a ordem de serviço nº OI2010… para procedimento inspetivo interno, parcial, referente ao IRS de 2007, aos Requerentes.

p.    Em 04/11/2011 foi emitido pelos Serviços de Inspeção Tributária da DF de … o DI 2011… relativo à herança indivisa C… Herdeiros, NIF… .

q.    Em dezembro de 2011, como corolário dessa inspeção tributária, os Requerentes foram notificados do documento de liquidação adicional n.º 2011 … e compensação n.º 2011…, do qual resultou um valor a pagar de € 536.773,80 (correspondente a imposto em falta e juros compensatórios).

r.     Por não concordarem com a liquidação, os Requerentes apresentaram, em 10 de fevereiro de 2012, reclamação graciosa, tendo em 17 de dezembro de 2013, procedido ao pagamento do imposto (no montante de € 470.605,40) ao abrigo do Regime Excecional de Regularização de Dívidas Fiscais e à Segurança Social, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 151-A/2013, beneficiando assim da dispensa de pagamento dos respetivos juros compensatórios.

s.     Em 21/08/2014, foi proferido despacho de ratificação-sanação pela Diretora de Finanças de Lisboa.

t.     No dia 9 de dezembro de 2014, o Requerente marido foi notificado, pelo Ofício n.º …, de 5 de dezembro, do projeto de decisão de deferimento parcial da reclamação graciosa com o n.º …-2012-…a qual foi, em 2 de abril de 2015, parcialmente deferida.

u.    O procedimento inspetivo aos Requerentes assentou, entre outra, na documentação obtida no âmbito do despacho de inspeção (DI) externa nº DI2011… à Herança indivisa.

 

A.2. Factos dados como não provados

 

Inexistem outros factos com relevo para apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

 

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, conjugados com a prova testemunhal produzida, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

 

B. DO DIREITO

 

B.1 Ordem de apreciação dos vícios

 

De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 124.º, do CPPT, de aplicação subsidiária ao processo arbitral tributário, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, não existindo vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado, deverá o tribunal apreciar os vícios arguidos que determinem a sua anulabilidade.

 

Na situação em análise, vêm os Requerentes invocar vícios do procedimento de inspeção tributária, que, em seu entender, determinam a nulidade daquele procedimento, bem como a da subsequente liquidação adicional de IRS do ano de 2007.

 

Vejamos.

 

1.                  Dos vícios do procedimento de inspeção tributária

 

a.                  Da falta de notificação prévia

 

Alegam os Requerentes que, muito embora os serviços de inspeção tributária da Direção de Finanças de … tenham classificado o procedimento de inspeção como sendo um “procedimento inspectivo interno (…) credenciado pela Ordem de Serviço n.º OI2010…, emitida pela Direção de Finanças de…”, de âmbito parcial/univalente – IRS, nos termos do artigo 14.º, n.º 1, alínea b), do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária (RCPIT), este procedimento não foi meramente “interno”, pois foram recolhidos elementos junto da contabilidade da herança indivisa de que o Requerente marido era cabeça de casal, a coberto do despacho de inspeção externa n.º DI2011… . Deste modo, deveria o início do procedimento ter sido previamente notificado ao Requerente marido (e não a ambos, como consta do ofício que lhes foi dirigido pelo referido serviço da AT – cfr. o artigo 39.º, alínea c), do RCPIT), com a antecedência mínima de cinco dias, como exige o n.º 1 do artigo 49.º, do RCPIT, e não se estar perante situação em que, nos termos do artigo 50.º, do mesmo diploma, a notificação prévia do início do procedimento de inspeção pudesse ser dispensada. Contudo, os Requerentes apenas souberam que estava em curso o sobredito procedimento, quando foram notificados do projeto de relatório dos serviços de inspeção tributária (RIT), em 10/11/2011. No requerimento em que exerceram o direito de audição prévia sobre o projeto de relatório, os Requerentes arguiram perante a AT a falta de notificação prévia, bem como outras irregularidades do procedimento, entre as quais o desconhecimento do teor da ordem de serviço que lhe deu origem e de que lhes deveria ter sido dado conhecimento no início da fiscalização, nos termos do artigo 51.º, do RCPIT.

 

Quanto aos fins, o procedimento de inspeção tributária classifica-se em (a) procedimento de comprovação e verificação, visando a confirmação do cumprimento das obrigações do sujeito passivo e demais obrigados tributários e, (b) procedimento de informação, visando o cumprimento dos deveres legais de informação ou de parecer dos quais a inspeção tributária seja legalmente incumbida (artigo 12.º, n.º 1, do RCPIT).

 

Quanto ao lugar da realização da inspeção, o procedimento inspetivo pode classificar-se como interno ou como externo, consoante os atos que o integram se efetuem nas dependências orgânicas e nos serviços da AT ou em instalações ou dependências dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários, de terceiros com quem estes mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a AT tenha acesso (cfr. o artigo 13.º, alíneas a) e b), do RCPIT, respetivamente).

 

Segundo Joaquim Freitas da Rocha e João Damião Caldeira[1], “O procedimento interno é uma espécie de inspeção cadastral, efetuada dentro dos próprios serviços de inspeção, com recurso aos elementos declarados pelos sujeitos passivos, e engloba atividades de mera constatação em que a Administração se limita a verificar o cumprimento por parte dos sujeitos passivos dos seus deveres declarativos (…) limita-se particularmente a confrontar através do cruzamento da informação disponível nas suas bases de dados, se o sujeito passivo cumpriu ou não com os seus deveres e se os elementos declarados coincidem com os elementos fornecidos pelas declarações entregues por outros obrigados tributários com quem o sujeito passivo mantém ou manteve relações (…) trata-se de uma atividade de comprovação formal para verificação da exatidão do formalmente declarado pelo sujeito passivo.”; por outro lado, “O procedimento será externo quando os atos de inspeção sejam praticados, total ou parcialmente, nas instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro lugar a que a administração tenha acesso. Nesta atividade, já de cariz investigatório, visa-se verificar a exatidão dos valores declarados em função dos elementos que constam da sua contabilidade e documentos, se ocorre ou não alguma omissão de valores e se os valores declarados estão de acordo com as normas de incidência tributária que são aplicáveis à sua atividade. Sempre que o procedimento de inspeção vise a análise ou verificação da contabilidade, dos livros de escrituração ou outros documentos relacionados com a atividade do sujeito passivo inspecionado, o procedimento de inspeção deve classificar-se sempre como sendo de natureza externa e realiza-se, regra geral, nas instalações ou dependências onde aqueles elementos estejam ou devam estar localizados” (sublinhado nosso).

 

Ora, na situação em apreço, o procedimento de inspeção aberto em nome do Requerente, através da ordem de serviço n.º OI2010…, emitida por despacho da Senhora Chefe de Divisão de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de … em 13/08/2010 (anexo 13 do RIT), terá sido inicialmente concebido como procedimento interno, tendo em vista a verificação do cumprimento das operações declarativas do Requerente marido, quer na sua qualidade de cabeça de casal da herança indivisa, quer a título individual, com base na declaração modelo 3 de IRS apresentada para o ano de 2007 (em especial os anexos C e I, respeitantes à herança indivisa e ao anexo D, por si entregue, na qualidade de herdeiro), por confronto com os documentos na posse da AT, nomeadamente a declaração de cessação da atividade da herança indivisa, em 5/11/2007, e as escrituras de partilha e de compra e venda, celebradas em 6/11/2007, mas foi posteriormente complementado pelo despacho de inspeção externa n.º DI2011…, da Senhora Chefe de Divisão de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de …, datado de 4/11/2011, que teve por objeto a recolha de elementos da contabilidade da herança indivisa.

 

A recolha dos referidos elementos não teve como escopo apenas a verificação do cumprimento, por parte dos Requerentes, das suas obrigações declarativas, mas também, como decorre do RIT, a correção dos “rendimentos próprios do sujeito passivo”, com base naqueles elementos contabilísticos, por via da imputação, nos termos do artigo 19.º, do Código do IRS, do “lucro tributável da herança indivisa (apurado no Anexo C da decl. IRS entregue pelo sujeito passivo na qualidade de administrador) e, consequentemente acrescido ao lucro total imputado aos contitulares (apurado no Anexo I da decl. IRS entregue pelo sujeito passivo na qualidade de administrador” (pág. 7, do RIT). Nem se pode dizer que os atos de inspeção à contabilidade da herança indivisa revistam a natureza de atos preparatórios do procedimento de inspeção aos sujeitos passivos impugnantes, a que se refere o n.º 2 do artigo 44.º, do RCPIT, porquanto aqueles tiveram lugar em data posterior à da sua abertura.

 

Assim sendo, dúvidas não restam de que o procedimento de inspeção tributária de que resultou a liquidação adicional de IRS do ano de 2007 ora impugnada, tendo assentado na informação recolhida junto da contabilidade da herança indivisa, apta a fundamentar correções à matéria tributável, deve ser classificado como procedimento externo, não obstante a Requerida o ter classificado como procedimento interno, por ter lugar nos serviços da AT.

 

Todavia, daqui não resulta necessariamente a nulidade do procedimento, por omissão da notificação prévia do seu início ao sujeito passivo ou por falta de credenciação dos funcionários intervenientes no mesmo.

 

Efetivamente, como tem vindo a ser decidido pela jurisprudência, “sendo certo que o n.º 1 do art.º 49.º do RCPIT aplica no âmbito tributário o princípio da comunicação previsto no art.º 55.º do CPA, não deve olvidar-se que, à luz deste normativo, a falta de comunicação do início de procedimento oficioso não gera invalidade se, não obstante a mesma, se demonstrar que o interessado teve conhecimento do procedimento (e do respectivo objeto) a tempo de nele poder intervir (…) «se, não obstante ocorrer falta de comunicação do procedimento «… se demonstrar que o interessado em causa teve conhecimento do procedimento a tempo de poder nele intervir – e se houver lugar à audiência, o interesse em causa poderá ficar desde logo satisfeito, pese a falta de comunicação» ” – cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 5/11/2014, Processo n.º 0914/13, disponível em http://www.dgsi.pt.

 

Tendo os Requerentes sido notificados do projeto do RIT, através do ofício n.º … da Direção de Finanças de …, de 9/11/2011, na sequência do qual o Requerente marido exerceu o direito de audição, por requerimento apresentado em 21/11/2011, conclui-se, de acordo com o Acórdão do STA, acima citado, que “(…) considerando que o ato final do procedimento inspetivo se reconduz ao respetivo relatório final, a eventual falta de notificação a que alude o n.º 1 do citado art.º 49.º do RCPIT, sempre se degradará, necessariamente, em mera irregularidade, sem efeitos invalidantes, desde que seja dado ao interessado a possibilidade legal de exercer o seu direito de audição, quer durante o procedimento, quer no final do procedimento aquando da elaboração do projeto de relatório final. Ou seja, a alegada violação de lei sempre se degradaria, necessariamente, em mera irregularidade, sem efeitos invalidantes do ato de liquidação”.

 

Improcede, pelos motivos indicados, a invocada nulidade do procedimento de inspeção.

 

b.                  Da incompetência territorial para o procedimento de inspeção. Sanação pelo órgão competente

 

Vêm ainda os Requerentes invocar a incompetência territorial da Direção de Finanças de …, à luz do disposto no artigo 16.º, do RCPIT, na redação vigente à data do procedimento de inspeção, bem como a impossibilidade de sanação daquela irregularidade, que não poderia ter efeitos retroativos, nos termos do n.º 4 do artigo 137.º, do (antigo) Código de Procedimento Administrativo (CPA), dada a alteração do quadro legislativo ocorrida entre a data do seu início e a da tentativa da sua sanação pelo órgão que seria territorialmente competente.

 

De acordo com o pedido (ponto 85.º, da p. i.), tal facto “inquina o ato de liquidação por vício de incompetência, o que determina a respetiva anulabilidade, nos termos do disposto no artigo 163.º, do CPA (…)”.

 

Vejamos se lhes assiste razão.

 

A redação do artigo 16.º, do RCPIT, em vigor quer à data do início do procedimento de inspeção (13/08/2010), quer à data da conclusão do RIT (09/11/2011), era a seguinte:

“Artigo 16º - Competência material e territorial

1 - São competentes para a prática dos atos de inspeção tributária, nos termos da lei, os seguintes serviços da Direção-Geral dos Impostos:

a) As direções de serviços de inspeção tributária que nos termos da orgânica da Direção-Geral dos Impostos integram a área operativa da inspeção tributária, relativamente aos sujeitos passivos e demais obrigados tributários que devam ser inspeccionados pelos serviços centrais;

b) Os serviços periféricos regionais, relativamente aos sujeitos passivos e demais obrigados tributários com domicílio ou sede fiscal na sua área territorial;

c) Os serviços periféricos locais, relativamente aos sujeitos passivos e demais obrigados tributários com domicílio ou sede fiscal na sua área territorial.

2 - São inspecionados diretamente pelos serviços centrais os sujeitos passivos designados pelo diretor-geral dos Impostos, bem como os que constem de despacho publicado no Diário da República.

 

À data da ratificação dos atos do procedimento de inspeção (por despacho da Senhora Diretora de Finanças de Lisboa, de 18/08/2014), a redação introduzida àquela norma do RCPIT pelo Decreto-Lei n.º 6/2013, de 17/01, é do seguinte teor:

“Artigo 16º - Competência material e territorial

1 - São competentes para a prática dos atos de inspeção tributária, nos termos da lei, os seguintes serviços da Administração Tributária e Aduaneira:

a) A Unidade dos Grandes Contribuintes, relativamente aos sujeitos passivos que de acordo com os critérios definidos sejam considerados como grandes contribuintes;

b) As direções de serviços de inspeção tributária que nos termos da orgânica da Autoridade Tributária e Aduaneira integram a área operativa da inspeção tributária, relativamente aos sujeitos passivos e demais obrigados tributários que devam ser inspecionados pelos serviços centrais;

c) As unidades orgânicas desconcentradas, relativamente aos sujeitos passivos e demais obrigados tributários com domicílio ou sede fiscal na sua área territorial.

2 - Sem prejuízo das competências da Unidade dos Grandes Contribuintes, são inspecionados diretamente pelos serviços centrais os sujeitos passivos designados pelo diretor-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

A sanação do vício de incompetência opera por ratificação, ato secundário através do qual o órgão competente pratica um novo ato administrativo com o mesmo conteúdo decisório de um anterior ato anulável, por vício de incompetência relativa ou outras invalidades formais e procedimentais, tornando-o válido.

 

Dispunham os n.ºs 3 e 4 do artigo 137.º, do CPA de 1991, em vigor à data da decisão da reclamação graciosa:

 “Artigo 137º - Ratificação, reforma e conversão

1 - (…).

2 - (…).

3 - Em caso de incompetência, o poder de ratificar o ato cabe ao órgão competente para a sua prática.

4 - Desde que não tenha havido alteração ao regime legal, a ratificação, reforma e conversão retroagem os seus efeitos à data dos atos a que respeitam.”.

 

A proibição da retroatividade da sanação, em caso de alteração do regime legal, decorre do princípio “tempus regit actum”, pois, «como emanação do princípio da legalidade a que toda a atividade administrativa está sujeita, os atos administrativos devem reger-se pelas normas que estiverem em vigor à data da sua prática (...). Este princípio significa, pois, que, em regra, a legalidade do ato administrativo deve ser aferida pela situação de facto e de direito existente à data da sua prolação» - (cfr. o Parecer n.º 42/2010, do Conselho Consultivo da PGR, disponível em http://www.ministeriopublico.pt).

 

Há, assim, que averiguar se a alteração introduzida à redação do artigo 16.º, do RCPIT, consubstancia uma significativa “alteração ao regime legal”, de molde a impedir a eficácia retroativa da ratificação do procedimento de inspeção.

 

O Decreto-Lei n.º 6/2013, de 17/01, surgiu para permitir o adequado funcionamento da Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC), serviço central da AT, criada pelo Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15/12, pela fusão da Direção-Geral dos Impostos (DGCI), da Direção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC) e da Direção-Geral de Informática e Apoio aos Serviços Tributários e Aduaneiros (DGITA).

 

A AT encontra-se estruturada em unidades nucleares integradas nos seus serviços centrais - direções de serviços - e em serviços desconcentrados - as direções de finanças e as alfândegas, a nível regional, e os serviços de finanças e as delegações e postos aduaneiros, a nível local, - (cfr. os artigo 1.º, alíneas a) e b) e 35.º, da Portaria n.º 320-A/2011, de 30/12, alterada pela Portaria n.º Portaria n.º 337/2013, de 20/11).

 

Às direções de finanças são atribuídas as competências constantes do artigo 36.º, da citada Portaria n.º 320-A/2011, de 30/12, entre as quais as de “i) Assegurar as atividades relacionadas com a inspeção tributária, desenvolvendo os procedimentos de investigação das irregularidades fiscais, de prevenção e combate à fraude e evasão fiscais que lhes sejam cometidas”. Estas competências são em tudo idênticas às que eram atribuídas às direções de finanças pela alínea i) do artigo 28.º, da Portaria n.º 348/2007, de 30/03, emitida em execução do Decreto-Lei n.º 81/2007, de 29/03, que definiu a missão, atribuições e tipo de organização interna da DGCI, segundo a qual cabia àqueles serviços desconcentrados/periféricos regionais “i) Assegurar as atividades relacionadas com a inspeção tributária, desenvolvendo os procedimentos de investigação das irregularidades fiscais, de prevenção e combate à fraude e evasão fiscais que lhes sejam cometidas”.

 

Sendo as competências das direções de finanças, enquanto serviços periféricos regionais da DCGI, à data da conclusão do procedimento de inspeção, em tudo idênticas às que lhes são atribuídas, enquanto serviços desconcentrados da AT, que sucedeu à DGCI, conclui-se não ser substancial a alteração legislativa introduzida ao artigo 16.º, do RCPIT, pelo Decreto-Lei n.º 6/2013, de 17/01, não podendo considera-se ter havido uma alteração ao regime legal das competências inspetivas das direções de finanças, impeditiva da validade da ratificação dos atos produzidos em data anterior à da sua entrada em vigor, tanto mais que, à data da ratificação, se não tinha registado qualquer alteração de facto na situação tributária objeto do RIT.

 

2.                  Do mérito da liquidação impugnada. Do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito.

 

A liquidação adicional de IRS do ano de 2007, emitida em nome dos Requerentes e objeto dos presentes autos, funda-se na imputação dos rendimentos de mais-valias apurados pela cessação da atividade da herança indivisa e posterior alienação do estabelecimento comercial, como consta do RIT, na parte que se transcreve:

“(…) com a cessação da atividade da herança indivisa e a partilha dos bens do estabelecimento comercial (existências, imobilizado e alvará de farmácia) pelos herdeiros, verificou-se uma transferência para o património particular dos herdeiros dos bens afetos ao ativo da atividade empresarial (…) a referida transferência de bens da esfera empresarial para a esfera privada dos contitulares está sujeita ao apuramento de mais-valias no âmbito da atividade geradora de rendimentos empresariais (cat. B), conforme determina a alínea c) do n.º 2 do artigo 3.º do Código do IRS.” – pág. 3.

 “Quanto ao valor de realização, determina a alínea c) do n.º 3 do artigo 43.º do Código do IRC (redação à data) que se considera «no caso de bens afetos permanentemente a fins alheios à atividade exercida, o seu valor de mercado» (…)”.

No entanto, no caso em apreço, verifica-se que o valor atribuído pelos contitulares ao estabelecimento comercial (que corresponde ao referido “valor de realização”) é um valor de mercado idóneo visto que, na mesma data, os herdeiros procederam à alienação dos respetivos terços indivisos dos bens que compunham o estabelecimento individual, a uma entidade terceira, pelo mesmo preço total de € 3.515.000,00, conforme escritura de compra e venda (anexo 8) ” – pág. 4.

(…) “relativamente ao alvará de farmácia (que representa certamente uma grande fatia do valor do estabelecimento comercial) (…) estamos perante uma transmissão do alvará por parte da primeira entidade proprietária, o que gera sempre mais-valias, pois, nesta fase não existe qualquer registo de valor de aquisição. O alvará não foi adquirido, ele foi registado pela própria. Portanto o valor de realização representa na sua totalidade um valor tributável”.

(…) “com base nas fichas do imobilizado (Anexo 10), recolhidas junto da contabilidade da herança indivisa, apuraram-se os (…) valores de aquisição líquidos atualizados com base nos coeficientes aprovados pela Portaria n.º 768/2007, de 09/07 (…)” – pág. 5.

(…) “estando determinados quer o valor de realização, quer o valor de aquisição, estamos em condições de apurar o ganho sujeito a IRS, que, conforme o n.º 2 do art. 43.º do Código do IRC, conjugado com a al. c) do n.º 2 do art. 3.º do Código do IRS (redações à data), resulta da diferença entre aqueles dois valores: Ganho sujeito a IRS = Valor de Realização – Valor de Aquisição”.

Logo, no caso em apreço, estamos perante uma mais-valia ou ganho sujeito a IRS no montante de € 3.361.467,18 (€ 3.515.000,00 - € 153.532,82) ” – pág. 6.

(…) “Relativamente aos rendimentos próprios do sujeito passivo, deverá ser acrescido ao rendimento líquido que lhe foi imputado (declarado por este no Anexo D da decl. de IRS), a correspondente quota-parte de um terço da referida correção ao lucro da herança indivisa (…) ” – pág. 7.

 

Vejamos se assiste razão à Fazenda Pública.

 

 Refere a AT na sua Resposta que “O que está a ser tributado aos Rs. não é a transmissão da propriedade dos bens da herança para os herdeiros, já que essa transmissão ocorreu na data do óbito (cfr. art. 2031º do C.C.) e foi tributada em sede de Imposto de Selo.”

 

De facto, com a abertura da herança, ocorreu a transmissão gratuita para os herdeiros, entre os quais o ora Requerente marido, transmissão sujeita a Imposto do Selo, embora dele isenta, dado o grau de parentesco (cfr. os artigos 1.º, n.ºs 1 e 3, alínea d), 2.º, n.º 2, alínea a) e 6.º, alínea e), todos do Código do Imposto do Selo e verba 1.2, da TGIS a ele anexa), na qual foi atribuído ao estabelecimento comercial, enquanto universalidade, incluindo portanto os seus ativos tangíveis e intangíveis, nomeadamente o alvará, o valor de € 3.515.000,00, que serviria de base à liquidação do Imposto do Selo e que não foi contestado ou corrigido pela AT (cfr. a liquidação de Imposto do Selo, cópia junto à p. i.).

 

Continua a AT dizendo que o que está a ser tributado são as “(…) mais-valias apuradas no âmbito das atividades empresariais geradoras de rendimentos empresariais e profissionais (…) designadamente as resultantes da transferência para o património particular dos empresários de quaisquer bens afetos ao ativo da empresa (…)” (cfr. al. c) do n.º 2 do art. 3.º do CIRS).

 

A argumentação da AT assenta, porém, em erro nos pressupostos de facto e de direito.

 

Com efeito, em rigor, e nos termos da matéria dada como provada no Relatório da IT, o que foi objeto de correção foi o rendimento líquido apurado ao estabelecimento comercial (farmácia) no ano fiscal correspondente à cessação da sua atividade na situação jurídica de herança indivisa e de contitularidade para efeitos de imputação dos rendimentos aos respetivos contitulares (artigo 19.º do CIRS), determinada pela partilha. A esse apuramento são naturalmente alheios os factos posteriores, seja a partilha em si mesma, seja a posterior alienação das quotas naquela atribuídas aos herdeiros a uma terceira entidade.

 

Há, no entanto, que avaliar se o rendimento em causa deve ser qualificado como um rendimento empresarial e profissional (categoria B), tal como pretende a AT, ao abrigo da referida alínea c) do nº 2 do artigo 3.º do CIRS. Antecipa-se que sim, face ao caráter preponderante da categoria B e ao facto de uma cessação de atividade determinada por um facto equivalente a uma alienação onerosa (a partilha) de ativos afetos ao exercício de uma atividade empresarial.

Com efeito, de acordo com a referida disposição legal, são rendimentos da categoria B, “As mais-valias apuradas no âmbito das atividades geradoras de rendimentos empresariais e profissionais, definidas nos termos do artigo 43.º do Código do IRC, designadamente as resultantes da transferência para o património particular dos empresários de quaisquer bens afetos ao ativo da empresa e, bem assim, os outros ganhos ou perdas que, não se encontrando nessas condições, decorram das operações referidas no nº 1 do artigo 10º, quando imputáveis a atividades geradoras de rendimentos empresariais e profissionais”.

 

O facto de a cessação da atividade da herança indivisa ocorrer por partilha dos bens da herança, entre os quais se inclui o estabelecimento comercial, apenas releva, neste caso, para determinar o “valor de realização”, ou seja, o valor pelo qual se operou a transmissão para os herdeiros dos bens afetos ao ativo da atividade empresarial. Recorde-se que o que está em causa é o resultado imputado aos herdeiros, logo, e necessariamente, um resultado apurado ainda na herança indivisa.

 

É certo que, a partilha, como salientam os Requerentes, tem efeito meramente declarativo, retroagindo à data do óbito, tendo sido nessa data atribuído um valor de € 3.515.000,00 ao estabelecimento comercial. Porém, enquanto o estabelecimento comercial integrado na herança indivisa assim se manteve, foi anualmente objeto de declaração para efeitos de apuramento do seu rendimento coletável em IRS e esse rendimento coletável foi imputado aos herdeiros na proporção das suas quotas hereditárias ao abrigo do regime da contitularidade e previsto no artigo 19.º do CIRS. Neste caso, o efeito civil da partilha, não tem qualquer tradução ou efeito fiscal, porque o que está em causa é, apenas, apurar o resultado desse mesmo estabelecimento comercial à data da cessação da sua atividade.

 

Ora, o “valor de venda” do estabelecimento comercial, tomando como tal o valor por que os herdeiros o avaliaram à data da partilha, verifica-se ter sido de € 3.515.000,00, não tendo a AT colocado esse valor em causa, considerando-o, de resto, consentâneo com o valor de mercado (n.º 3 do artigo 29.º do Código do IRS).

 

A questão decidenda tem a ver, exclusivamente, pois, com o valor que deve ser considerado como valor de aquisição dos ativos alienados.

 

E é precisamente aqui que falece razão à argumentação da AT.

 

Ao pretender corrigir o “valor de aquisição” para o valor das existências que constavam do inventário do estabelecimento comercial à data da partilha, a AT praticou um ato indevido porque, nesta sede, não tem fundamento legal para praticar. Na verdade, a haver alguma correção, ela teria de ter sido efetuada ao valor atribuído ao estabelecimento comercial para efeitos de tributação em Imposto do Selo. Não o tendo sido, operou irreversivelmente a delimitação negativa de incidência expressa no n.º 6 do artigo 12.º do CIRS nos seguintes termos: O IRS não incide sobre os incrementos patrimoniais provenientes de transmissões gratuitas sujeitas ao imposto do selo, nem sobre os que se encontrem expressamente previstos em norma de delimitação negativa de incidência deste imposto.

 

Nestas circunstâncias, o valor de custo a considerar, excetuada a eventual diferença entre existências “iniciais” e “finais”, que nem sequer vem referida no Relatório da IT, deverá ser o que foi atribuído ao estabelecimento comercial para efeitos de Imposto do Selo, isto é, € 3.515.000,00.

 

E foi ainda o mesmo valor de € 3.515.000,00, o valor global equivalente à alienação onerosa que, por ato de partilha, determinou a cessação da atividade do estabelecimento comercial em situação de herança indivisa.

 

Ora, resultando provado não existir qualquer diferença entre o valor de venda e o valor de custo, de € 3.515.000,00, não há matéria tributável para apuramento de qualquer resultado tributável no âmbito da categoria B, no que diz respeito à alienação dos ativos afetos ao exercício da atividade empresarial desenvolvida no estabelecimento comercial (farmácia) em situação de herança indivisa.

 

Assim sendo, forçoso é concluir-se que a pretensão da AT no apuramento de um rendimento a imputar aos Requerentes, não é suportada, quer pela realidade dos factos documentalmente provados, quer pelo direito aplicável.

 

Acresce que dar relevância à correção efetuada pela AT a propósito da cessação da atividade, implicaria tributar por uma outra via a transmissão, cujo aspeto quantitativo não foi contestado em sede própria, para os herdeiros, isenta como já referido, o que colocaria em causa toda a coerência do sistema fiscal.

           

Por tudo o que vai exposto, conclui-se que assiste, desta forma, razão aos Requerentes.

 

 

3.                  Do direito a juros indemnizatórios

No que respeita ao pedido de pagamento de juros indemnizatórios formulado pelos Requerentes, dir-se-á, antes de mais, que o processo arbitral tributário foi concebido como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (cfr. a autorização legislativa concedida ao Governo pelo artigo 124.º, n.º 2 (primeira parte) da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril – Lei do Orçamento do Estado para 2010).

 

Assim, apesar de o artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, utilizar a expressão “declaração de ilegalidade” como delimitativa da competência dos tribunais arbitrais que funcionam junto do CAAD, deverá entender-se que se compreendem nessa competência os poderes que no processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, como seja o de apreciar o erro imputável aos serviços, enquanto fonte da obrigação de indemnizar.

 

Um dos pressupostos do dever de indemnizar através do pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º, da Lei Geral Tributária (LGT), é o de a anulação, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, do ato de liquidação de que tenha resultado pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, ficar a dever-se a erro, de facto ou de direito, da AT.

 

O erro imputável aos serviços pode consistir em erro sobre os pressupostos de facto, ou em erro sobre os pressupostos de direito, verificando-se este quando “na prática do ato tenha sido feita errada interpretação ou aplicação das normas legais, como as normas de incidência objetiva e subjetiva (…)”[2] e “fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou a impugnação judicial dessa mesma liquidação e o erro não for imputável ao contribuinte[3].

 

Concluindo-se pelo erro da AT na emissão da liquidação de IRS do ano de 2007, pelos motivos acima apontados, terá de ser reconhecido o direito dos Requerentes a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT.

 

Assim sendo, por força do estabelecido no artigo 61.º do CPPT, verificada a existência de erro imputável aos serviços da Administração Tributária, do qual resultou pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido (vide art. 43.º/1 da LGT), a Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal, calculados sobre o valor de € 470.605,40, que serão contados desde a data do pagamento desse montante, até ao integral reembolso dessa mesma quantia.

 

 

C. DECISÃO

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

a)      Anular parcialmente o ato de indeferimento da reclamação graciosa n.º …-2012-…e da consequente liquidação de IRS com o n.º 2011 … e correspondente demonstração de acerto de contas com o n.º 2011…, referentes ao ano de 2007, no valor de € 470.605,40;

b)      Condenar a Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal em vigor, contados desde a data do pagamento, até ao integral reembolso do mencionado montante.

 

 

D. VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 470.605,40, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

 

E. CUSTAS

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 7.344,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Lisboa, 4 de março de 2016.

 

 

O Árbitro Presidente

 

 

 

(Fernanda Maçãs)

 

O Árbitro Vogal

 

 

 

(Catarina Gonçalves)

 

O Árbitro Vogal

 

 

 

(Mariana Vargas)

 

 



[1]                      Cfr. os AA citados, in “Regime Complementar de Inspeção Tributária (RCPIT) – Anotado e Comentado”, Coimbra Editora, 1.ª Edição, maio de 2013, págs. 81 e segs.

[2]                      SOUSA, Jorge Lopes de, “Código de Procedimento e de Processo Tributário – anotado e comentado”, II

                Volume, Áreas Editora, 6.ª Edição, 2011, pág. 115.

[3]                      CAMPOS, Diogo Leite de, RODRIGUES, Benjamim Silva, SOUSA, Jorge Lopes de, “Lei Geral Tributária – Anotada e Comentada”, Encontro da Escrita, 4.ª Edição, pág. 342.