Decisão Arbitral
1. RELATÓRIO
A… – …, CRL, com o NIPC … e sede na Avenida …, …, …-…, …, ..., da área do Serviço de Finanças da … (doravante designada por Requerente), vem, ao abrigo do artigo 10.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, com intervenção de árbitro singular, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação das liquidações de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT) tituladas pelos conhecimentos n.ºs …, no montante de € 3 028,75 e …, no montante de € 27 258,75, ambas emitidas em 25 de fevereiro de 2011 e pagas na mesma data, pela quantia total de € 30 287,50.
Cumulativamente, pede a Requerente a condenação da Requerida na restituição das quantias indevidamente pagas, acrescidas de juros indemnizatórios.
Para o efeito alega, em síntese, o seguinte:
a. Na prossecução do seu objeto social, enquanto cooperativa de ensino superior instituidora do B… (B…), adquiriu um imóvel com vista à construção de um conjunto de infraestruturas absolutamente necessárias ao ensino das disciplinas do curso de Licenciatura em Educação Física e Desporto, ali lecionado;
b. À data da aquisição, o imóvel estava abrangido pela Reserva Agrícola Nacional (RAN), tendo a Requerente apresentado, junto dos Ministérios da Agricultura, Mar, Ambiente e Ordenamento do Território e da Educação e da Ciência, o pedido de autorização para a sua utilização não agrícola, nos termos do artigo 25.º, do Decreto-Lei n.º 73/2009;
c. O pedido foi deferido pelos Secretários de Estado do Ensino Superior e das Florestas e Desenvolvimento Rural, dado “(…) o relevante interesse público da pretensão requerida (…)”, sendo concedida autorização de utilização de 11 872,21 m2, para a construção de equipamento desportivo;
d. O imóvel passou então a ser classificado como prédio urbano “Outros – Outros campos desportivos”, sendo-lhe atribuído o artigo provisório …;
e. À data da aquisição, vigorava o Estatuto Fiscal Cooperativo (EFC), aprovado pela Lei n.º 85/98, de 16/12, em cujo artigo 10.º se previa que “as cooperativas estão isentas de sisa e de quaisquer direitos sobre imóveis destinados à sede e ao exercício das atividades que constituam o respetivo objeto social”;
f. Trata-se de isenção automática, mas a AT indeferiu o pedido de revisão oficiosa daquelas liquidações, bem como o recurso hierárquico subsequente;
g. No entender da AT, às aquisições efetuadas pela Requerente não pode ser aplicado o disposto no artigo 10.º, do EFC, por se tratar de um prédio rústico, que não teria uma relação imediata e direta com o seu objeto social;
h. No entanto, o propósito subjacente à referida aquisição encontra-se bem patente na Ata n.º 129, da Assembleia Geral da Requerente, em que se demonstra que o terreno foi adquirido para a construção de um conjunto de infraestruturas desportivas absolutamente essenciais ao ensino da Licenciatura em Educação Física e Desporto, cuja primeira fase já teve início;
i. A AT conferiu isenção de IMI ao prédio urbano “Outros – Outros campos desportivos”, ao abrigo do disposto no n.º 9 do artigo 66.º-A, do EBF (anterior artigo 10.º, do EFC), por reconhecer que o terreno foi adquirido para o exercício de atividades que integram o objeto social da Requerente;
j. Nestes termos, pede a Requerente a anulação dos atos tributários impugnados, bem como das decisões de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e do recurso hierárquico, com o consequente reembolso do imposto indevidamente pago.
Termina a Requerente por pedir a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º, da Lei Geral Tributária (LGT), atribuindo ao pedido o valor de € 30 287,50, oferecendo prova testemunhal e requerendo declaração de parte.
Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou o PA e resposta, na qual defende a manutenção das liquidações de IMT impugnadas e da decisão de indeferimento do recurso hierárquico, que considera legais, com os seguintes fundamentos:
a. Não existem factos controvertidos ou objeto de litígio, porque estão documentalmente provados: é a integração dos factos no direito aplicável que divide as partes;
b. Tanto a pretensão da Requerente como como a decisão do recurso hierárquico, passam pela análise do artigo 10.º do Estatuto Fiscal Cooperativo (EFC), introduzido pela Lei nº 85/98, de 16/12, vigente à data dos factos;
c. Segundo a informação n.º …/2015, de 11/03/2015, que serviu de base à decisão do recurso hierárquico, “(…) conclui-se que a concessão desta isenção dependia da verificação de dois pressupostos, um de natureza subjetiva e outro de natureza objetiva, (…) e tal isenção pressupunha a verificação de uma condição – afetação dos bens “à direta e imediata realização dos seus fins (…)”;
d. Aí se refere ainda que “(…) temos dúvidas que aquisição de um prédio rústico para a construção de equipamentos desportivos preencha o requisito de afetação do imóvel de forma direta e imediata à realização dos fins da entidade beneficiária, uma vez que da leitura atenta dos Estatutos da Recorrente não se encontra qualquer referência nesse sentido”, (…)“Não decorre de nenhuma destas disposições estatutárias, nem implicitamente, que a construção das infraestruturas desportivas em causa se enquadra no objeto social da Recorrente, o qual, em primeira linha e fundamentalmente, é o da criação e manutenção de estabelecimentos de ensino superior”;
e. E “a aplicação do disposto no artigo 10.º EFC depende da verificação de dois pressupostos, sendo que o pressuposto de natureza objetiva, de acordo com o qual a isenção apenas é aplicável aos imóveis que se destinem à sede ou ao exercício da atividade que constitua o respetivo objeto social da cooperativa, não se verificou à data dos factos tributários que é o momento em que se celebrou a escritura de compra e venda”;
f. “Não é relevante, nesta sede de IMT, o facto de em sede de Imposto Municipal sobre Imóveis, a AT ter adotado uma posição diferente, porquanto são impostos com uma estrutura diferente: enquanto o IMT é um imposto de obrigação instantânea, o IMI é um imposto periódico, logo os pressupostos da isenção de IMT têm que se verificar à data da transmissão do prédio, efetivamente, adquirido”; “[a]o invés, a isenção de IMI foi aferida tendo já por objeto o prédio urbano e não o rústico, bem o destino ou uso que está efetivamente a ser dado ao prédio urbano”;
g. “Em consequência (…), o momento da análise e da aferição da legalidade das liquidações de IMT reporta-se, igualmente, à data da aquisição, momento em que ocorre o facto tributário, e não podendo a norma de isenção afastar a tributação, pelas razões que vêm referidas, a tributação ocorrida é legal por aplicação das regras gerais de liquidação”.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral deu entrada no CAAD em 3 de setembro de 2015, tendo sido aceite pelo Exm.º Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT, em 23 de setembro de 2015.
A Requerente informou que não pretendia designar árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º, do RJAT, foi a signatária nomeada árbitro pelo Exm.º Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, encargo que aceitou no prazo legalmente previsto, sem oposição das Partes.
O Tribunal Arbitral Singular foi regularmente constituído em 20 de novembro de 2015 e é materialmente competente para apreciar e decidir o litígio objeto dos presentes autos.
As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.
Não existindo factos controvertidos, foi dispensada a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, tendo-se determinado que o processo prosseguisse com alegações escritas sucessivas, pelo prazo de 10 dias, com início nas alegações da Requerente.
A Requerente apresentou as suas alegações escritas dentro do prazo designado, em que reitera os argumentos aduzidos na p. i., acrescentando que o artigo 10.º, do EFC, não impunha “que o imóvel adquirido tivesse uma relação “direta” e “imediata” com o seu objeto social”, não se podendo concluir que “o prédio não foi destinado imediatamente à realização dos fins estatutários”.
A Requerida não apresentou alegações.
2. MATÉRIA DE FACTO
2.1. Factos que se consideram provados:
2.1.1. A Requerente é uma cooperativa de ensino superior, instituidora do B… (B…);
2.1.2. O B…, reconhecido pela Portaria n.º …/91, de 2 de outubro, foi autorizado a ministrar o curso superior de Educação Física e Desporto (Portaria n.º …/92, de 11 de dezembro), de cujo currículo constam disciplinas como “Jogos de Raquete” e “Atletismo”;
2.1.3. De acordo com os Estatutos do B…, constantes do aviso n.º …/98 (2.ª Série) publicado no Diário da República n.º …, II Série, de …/04/1998, compete à entidade instituidora, nomeadamente, “Afetar ao estabelecimento de ensino um património específico em instalações e equipamentos” (artigo 2.º, n.º 1, alínea b);
2.1.4. Em sessão extraordinária da Assembleia Geral da Requerente, de 06/12/2010, foi deliberada “a aquisição de uma parcela de terreno que faz confrontação com o da A… até à linha do metro”, dada a “manifesta necessidade de infraestruturas invocadas pelo Conselho da Direção do B…” e “a urgência em avançar-se, não só para a construção de um Pavilhão Desportivo, mas também para outros equipamentos” (Ata n.º129);
2.1.5. Em 25/02/2011, a Requerente procedeu ao pagamento, no Serviço de Finanças de ... … (Código …), das liquidações tituladas pelos seguintes conhecimentos de IMT:
2.1.5.1. N.º …, da quantia de € 3 028,75, relativo à aquisição do usufruto vitalício sobre o prédio rústico inscrito sob o artigo … da freguesia de … (…), concelho da ..., localizado em …, com a área total de 14.470,00 m2;
2.1.5.2. N.º …, da quantia de € 27 258,75, pela aquisição da nua-propriedade do mesmo imóvel;
2.1.6. Na mesma data anterior, foi celebrada a escritura pública de compra e venda das figuras parcelares do direito de propriedade do prédio identificado, no Cartório do Notário C…, em ..., junto à qual ficaram arquivados, entre outros, os conhecimentos de IMT antes referidos e cópia certificada da Ata n.º …, da Assembleia Geral da Requerente, antes referida;
2.1.7. Por requerimento dirigido ao Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas, em 21 de julho de 2011, foi pedido o “reconhecimento de interesse público relevante da pretensão formulada de acordo com as caraterísticas e objetivos que constam da Memória Descritiva (…), ao abrigo do disposto no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 73/2009, de 31 de março (…) para utilização não agrícola de 11 872,21 m2 de terreno, localizado no lugar de … ou …, Freguesia de … (…), concelho da ..., inscrito na(s) matriz(es) predial(ais) (rústica(s), urbana(s) ou mistas)) n.º(s) …, sob o(s) artigo(s) …, com a área de 11 872,21 m2 (…)”;
2.1.8. Através do Despacho conjunto n.º …/2012, de 11 de julho, do Secretário de Estado do Ensino Superior e do Secretário de Estado das Florestas e Desenvolvimento Rural, publicado no Diário da República, 2.ª Série, de … de julho de 2012, foi declarado “o relevante interesse público da pretensão requerida (…) nos termos do n.º 1 do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 73/2009, de 31 de março, para utilização de 11 872,21 m2 para a construção de equipamento desportivo, constituído por campo de jogos, pista de atletismo e campos de ténis em terreno adjacente às instalações do B… – … incluído na RAN (…)”;
2.1.9. Em 22 de fevereiro de 2012, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa das liquidações de IMT antes identificadas, invocando a isenção daquele imposto, conferida pelo n.º 1 do artigo 10.º, do Estatuto Fiscal Cooperativo (EFC), aprovado pela Lei n.º 85/98, de 16 de dezembro, correspondente ao atual n.º 8 do artigo 66.º-A, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), segundo o qual “as cooperativas são isentas de sisa na aquisição de quaisquer direitos sobre imóveis destinados à sede e ao exercício das atividades que constituam o respetivo objeto social”;
2.1.10. Por despacho da Senhora Chefe do Serviço de Finanças da ..., de 29 de janeiro de 2013, notificado à Requerente pelo ofício n.º … do referido SF, de 30 de janeiro de 2013, registado com aviso de recepção, foi o pedido indeferido com fundamento na não verificação dos pressupostos de isenção, uma vez que, tratando-se de um prédio rústico, “não poderá ser destinado ao exercício das atividades que constituem o respetivo objeto social estabelecido no art.º 3.º dos estatutos, ou seja, “a criação e manutenção de estabelecimentos de ensino superior…”;
2.1.11. Em 13 de fevereiro de 2013, a Requerente apresentou a declaração modelo 1 de IMI, para inscrição na matriz de um prédio urbano novo, proveniente do prédio rústico anteriormente inscrito na matriz da freguesia de … (…), concelho da ..., sob o artigo …, a que foi atribuído o artigo provisório …, com a classificação de “Outros campos desportivos”, com a área total de 11 872,0000 m2, e data de ocupação em 19/07/2012;
2.1.12. Em 8 de março de 2013, apresentou a Requerente recurso hierárquico da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, em que reitera o argumento de que “Independentemente de o imóvel em causa se reconduzir a um prédio rústico ou urbano, é inquestionável a afetação do mesmo ao exercício das atividades que constituem o objeto social da Recorrente”;
2.1.13. Da fundamentação da decisão de indeferimento do recurso hierárquico (Informação n.º …/2015, que suportou o despacho da Senhora Diretora de Serviços do IMT, de 17 de março de 2015), notificada à Requerente através do ofício n.º …/…-… do Serviço de Finanças da ..., de 16 de junho de 2015, registado com aviso de recepção, consta, nomeadamente, que “Da leitura do n.º 1 do art.º 10.º do EFC, conclui-se que a concessão desta isenção dependia da verificação de dois pressupostos, um de natureza subjetiva e outro de natureza objetiva, na medida em que só poderiam beneficiar da mesma determinados beneficiários, a saber, as cooperativas e tal isenção pressupunha a verificação de uma condição – a afetação dos bens “à direta e imediata realização dos seus fins”. (…) No caso em apreço (…) temos dúvidas que a aquisição de um prédio rústico para a construção de equipamentos desportivos preencha o requisito de afetação do imóvel de forma direta e imediata à realização dos fins da entidade beneficiária (…)”;
2.1.14. Pela Câmara Municipal da ..., foi emitido, em 8 de janeiro de 2015, o Alvará de Obras de Construção n.º …/15 – Processo n.º …/12, nos termos do artigo 74.º, do RJEU, iniciando-se o prazo do licenciamento em 8 de janeiro de 2015, com termo final em 8 de julho de 2016.
2.2. Fundamentação da matéria de facto provada:
A convicção do Tribunal quanto à matéria de facto dada como provada resultou da análise crítica da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral, expressamente aceite pela Requerida.
2.3. Factos não provados
Não existem factos relevantes para a decisão da causa que devam considerar-se não provados.
3. MATÉRIA DE DIREITO – FUNDAMENTAÇÃO
3.1.Questão a decidir
A única questão a decidir nos presentes autos é a de saber se a Requerente, Cooperativa de Ensino Superior, cujo objeto social consiste na “criação e manutenção de estabelecimentos de ensino superior”, sendo sua obrigação “dotar o estabelecimento de ensino [B…] de instalações e equipamentos necessários ao desenvolvimento das suas atividades pedagógicas e de investigação”, podia beneficiar da isenção de IMT, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 10.º, do Estatuto Fiscal Cooperativo (EFC), na aquisição de um prédio rústico para construção das infraestruturas de suporte às disciplinas do curso de Licenciatura em Educação Física e Desporto, ali ministrado.
De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 124.º, do CPPT, de aplicação subsidiária ao processo arbitral tributário, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, não existindo vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado, deverá o tribunal apreciar os vícios arguidos que determinem a sua anulabilidade.
Na situação em análise, não sendo invocados factos nem razões de direito que determinem a nulidade dos atos de liquidação impugnados, mas tão só a sua anulabilidade, por erro na aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 10.º, do EFC, passaremos de imediato à sua apreciação.
3.2.Do mérito das liquidações impugnadas. Do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito.
Como resulta do probatório supra, os atos de liquidação de IMT ora impugnados, foram emitidos pela AT e pagos pela Requerente, em 25 de fevereiro de 2011, data em que se encontrava em vigor o Estatuto Fiscal e Cooperativo, aprovado pela Lei n.º 85/98, de 16 de dezembro, posteriormente revogado pelo artigo 148.º, da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, e em cujo artigo 10.º, n.º 1, se previa que as Cooperativas ficavam isentas de sisa (atual IMT), “na aquisição de quaisquer direitos sobre imóveis destinados à sede e ao exercício das atividades que constituam o respetivo objeto social”.
Ora, face ao teor daquela norma, considera a Requerente que, não sendo ali exigida a afetação imediata e direta do imóvel ao exercício da sua atividade, nem se fazendo qualquer distinção entre a aquisição de prédios, qualquer que fosse a sua classificação e, tendo efetivamente destinado o prédio adquirido à construção de infraestruturas necessárias ao bom funcionamento do estabelecimento de ensino superior que instituiu, poderá beneficiar da isenção de IMT ali prevista.
Lançando mão dos elementos a que se refere o artigo 9.º, do Código Civil, cabe ao intérprete “reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico”, o que, na situação em análise, não poderá deixar de nos remeter para o Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF).
Tem a doutrina apontado o escasso sucesso de qualquer tentativa de codificação dos benefícios fiscais, já porque muitos destes, traduzindo-se em incentivos à atuação dos sujeitos passivos, enquanto medidas de política económica, social ou cultural, têm natureza essencialmente dinâmica, já porque a aprovação do EBF, pelo Decreto-Lei n.º 215/89, de 1 de julho, não impediu a manutenção dos benefícios fiscais inseridos nos códigos tributários, nem a criação de novos benefícios fiscais avulsos, por legislação extravagante relativamente ao EBF.
Porém, apesar da falha de codificação, que impediria o “tratamento sistemático da matéria”[1], dispõe o EBF de uma parte geral – a Parte I – Princípios Gerais (que atualmente integra os artigos 1.º a 15.º-A), aplicável a todos os benefícios fiscais, quer os incluídos no EBF, quer os constantes dos códigos fiscais, quer de outros diplomas avulsos que os consagrem (cfr. o artigo 1.º, do EBF – Âmbito de aplicação, cuja estatuição prevê que “As disposições da parte I do presente Estatuto aplicam-se aos benefícios fiscais nele previstos, sendo extensivas aos restantes benefícios fiscais, com as necessárias adaptações, sendo caso disso.”).
Assim, muito embora o artigo 2.º, do EFC, em vigor à data dos factos, estabelecesse que a interpretação e aplicação das suas normas se deviam reger, pelos princípios da “autonomia e especialidade” “face ao regime fiscal geral e adaptado às especificidades do sector cooperativo” (alínea a), e proibisse a discriminação negativa das cooperativas “face a outras entidades quando no desempenho de funções idênticas” (alínea c), mantendo-se, para efeitos fiscais, a equiparação das cooperativas a “pessoas coletivas de utilidade pública e a instituições particulares de solidariedade social” (artigo 20.º, n.º 3), não continha regra que afastasse a aplicação subsidiária da Parte I, do EBF.
Deverão, por isso, considerar-se aplicáveis aos benefícios fiscais com assento no EFC as normas daquela Parte I, do EBF, em especial para o que à solução do caso concreto interessa, a do artigo 12.º deste corpo normativo, relativa à “Constituição do direito aos benefícios fiscais”, segundo o qual “O direito aos benefícios fiscais deve reportar-se à data da verificação dos respetivos pressupostos, ainda que esteja dependente de reconhecimento declarativo pela administração fiscal ou de acordo entre esta e a pessoa beneficiada, salvo quando a lei dispuser de outro modo.”.
Aqui chegados, importa verificar quais serão, para o caso que nos ocupa, os pressupostos de que depende a constituição do direito ao benefício fiscal, ou seja, quais são as condições ou factos antecedentes necessários à produção do efeito isenção.
Os benefícios fiscais, entre os quais as isenções, caraterizam-se por impedirem o nascimento da obrigação tributária, reportando-se a factos ou situações que se encontram abrangidos pela norma de incidência objetiva ou subjetiva do imposto, pelo que, nas palavras de Saldanha Sanches, “Do ponto de vista formal, estamos perante uma isenção sempre que a lei subtrai à tributação, através da previsão normativa de um facto impeditivo, situações e sujeitos que, de outra feita, ficariam dentro do âmbito de previsão da norma tributária.”.[2]
Do ponto de vista material, os benefícios fiscais traduzem-se em “medidas de caráter excecional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores aos da própria tributação que impedem” (artigo 2.º, n.º 1, do EBF), de interesses públicos justificados por “um fim social admitido pela Constituição”[3].
E não merece qualquer dúvida de que a Constituição da República Portuguesa (CRP), em qualquer das suas versões, sempre apoiou a criação e a atividade das cooperativas, nomeadamente através da atribuição de benefícios fiscais (cfr. o artigo 85.º, do texto constitucional, na redação em atualmente em vigor).
Ora, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 10.º, do EFC, as cooperativas beneficiavam da isenção de sisa “na aquisição de quaisquer direitos sobre imóveis destinados à sede e ao exercício das atividades que constituam o respetivo objecto social”, sem que ali se especificasse se aquela destinação deveria ser direta ou imediata, como pretende a AT na decisão de indeferimento do recurso hierárquico apresentado pela Requerente, ao afirmar que “(…) sendo o prédio em questão um prédio rústico, ainda que posteriormente tenha sido alterada a sua classificação, conclui-se que a sua aquisição não tem uma relação imediata e direta com os fins e objeto social da Recorrente, contrariando, assim, o disposto no n.º 1 do artigo 10.º, do EFC”.
Porém, a questão que se coloca não é tanto a de saber se a afetação do imóvel ao exercício das atividades que constituem o objeto social da Requerente (construção de infraestruturas de apoio a licenciatura ministrada pelo B…) deveria ser, ou não, imediata e direta, mas antes a de saber se essa afetação era possível e qual o momento relevante para aferir de tal possibilidade.
O IMT recai sobre as transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis situados no território nacional (n.º 1 do artigo 2.º, do Código do IMT); é sujeito passivo do imposto, em regra, a pessoa singular ou coletiva “para quem se transmitem os imóveis” (artigo 4.º, do CIMT) e a obrigação tributária de IMT constitui-se “no momento em que ocorrer a transmissão”, conforme a estatuição do n.º 2 do artigo 5.º, do mesmo Código.
Ora, tendo em conta a definição de benefício fiscal constante do artigo 2.º, n.º 1, do EBF e a sua caraterização como facto impeditivo da constituição da obrigação de imposto, o momento relevante para a verificação dos respetivos pressupostos e consequente nascimento do direito ao benefício fiscal em sede de IMT, será o momento da ocorrência do facto tributário, ou seja, da transmissão, a menos que se esteja perante uma isenção condicional, dependente da verificação de um facto ou situação acessória, sem a qual a isenção não devesse começar[4].
À data da aquisição do prédio pela Requerente, existia uma impossibilidade legal da sua afetação ao fim a que se destinava, ou seja, a de nele proceder à construção de equipamentos desportivos ou de qualquer outro tipo de construção, por se tratar de um prédio incluído na reserva agrícola nacional (RAN), disciplinada pelo Decreto-Lei n.º 73/2009, de 31 de março, que a define como sendo “uma restrição de utilidade pública, à qual se aplica um regime territorial especial, que estabelece um conjunto de condicionamentos à utilização não agrícola do solo” (artigo 2.º, n.º 2), apenas derrogável a requerimento dos interessados, para a realização de “ações de relevante interesse público que sejam reconhecidas como tal por despacho conjunto do membro do Governo competente pela área do desenvolvimento rural e do membro do Governo competente em razão da matéria, desde que não se possam realizar de forma adequada em áreas não integradas na RAN.” (artigo 25.º, n.º 1, na redação originária, em vigor à data dos factos).
No entanto, o reconhecimento do “relevante interesse público” a que se refere o n.º 1 do artigo 25.º, do Decreto-Lei n.º 73/2009, de 31 de março, apenas releva para efeitos de utilização não agrícola do solo de imóveis integrados na RAN, não configurando facto constitutivo do direito ao benefício fiscal de isenção de IMT, desde logo, por incompetência dos membros do Governo ali mencionados, em matéria fiscal.
Assim, tendo a aquisição do imóvel pela Requerente e o consequente pagamento das liquidações de IMT impugnadas ocorrido em data anterior à possibilidade da sua afetação aos fins sociais a que se destinava, nem existindo norma que atribuísse eficácia suspensiva ao deferimento do pedido de “utilização não agrícola do solo” de prédios integrados na RAN, por despacho conjunto dos membros do Governo competentes na matéria, conclui-se não estarem, àquela data, reunidos os pressupostos de que dependia o nascimento do direito ao benefício fiscal e que impediriam a aplicação do regime da “tributação regra”.
A isenção a que se referia o n.º 1 do artigo 10.º, do EFC, não era automática, mas sim de reconhecimento oficioso (ou automático), não carecendo de ser requerida (artigo 3.º, do EFC); contudo, a apresentação da declaração a que se refere o n.º 1 do artigo 19.º, do CIMT, deve anteceder a transmissão dos bens, mesmo nas situações de isenção (n.º 3, do mesmo artigo, aditado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31/12), devendo conter os “demais esclarecimentos indispensáveis à exata liquidação do imposto”, incluindo os elementos necessários à verificação da isenção de reconhecimento automático, pelo serviço de finanças onde seja apresentada (artigo 10.º, n.º 8, alínea d), do CIMT).
Em face de quanto antecede, conclui-se não ser de emitir qualquer juízo de censura à emissão das liquidações de IMT objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, assim como não merecem censura as decisões de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e do recurso hierárquico subsequente, por não se encontrarem verificados, no momento relevante, os pressupostos necessários ao reconhecimento da isenção.
4. DECISÃO
Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados, decide este tribunal arbitral:
a) Julgar improcedente o pedido de anulação das liquidações de IMT impugnadas, que devem ser mantidas na ordem jurídica;
b) Condenar a Requerente em custas, por ser a Parte vencida.
VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 30 287,50 (trinta mil, duzentos e oitenta e sete euros e cinquenta cêntimos).
CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 1 836,00 (mil oitocentos e trinta e seis euros), a cargo da Requerente.
Notifique-se.
Lisboa, 15 de fevereiro de 2016
O Árbitro,
/Mariana Vargas/
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.
A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.
[1] Saldanha Sanches, “Manual de Direito Fiscal”, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2007, pág. 456.
[2] Ob. citada, pág. 449.
[3] Guilherme W. d´Oliveira Martins, “Os Benefícios Fiscais: Sistema e Regime”, Cadernos IDEFF, Almedina, Coimbra, 2006, pág. 32.
[4] Sobre a distinção entre isenções puras ou absolutas e isenções condicionais, cfr. PEREIRA, Manuel Henrique de Freitas, “Fiscalidade”, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2014, pág. 430.