Decisão Arbitral
Os árbitros José Pedro Carvalho (árbitro presidente), Francisco de Carvalho Furtado e Pedro Galego (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do CAAD para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 23 de Setembro de 2015, acordam no seguinte:
I. Relatório
1. A Requerente A... S.A. Sucursal em Portugal, pessoa colectiva n.º …, com sede na Rua…, …, …, …-… Porto, tendo sido notificada de actos de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado e Juros Compensatórios praticados por referência aos períodos de tributação de 201112T a 201312T, no montante global de € 102.946,23, vem apresentar, ao abrigo da alínea a), do n.º 1 do artigo 2.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (“Regime Jurídico da Arbitragem Tributária”, doravante “RJAT”) pedido de pronúncia arbitral com vista à anulação daqueles actos.
2. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
3. A pretensão objeto do pedido de pronúncia arbitral consiste na anulação daqueles actos.
4. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
5. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, os quais comunicaram a aceitação da designação dentro do prazo.
6. Em 26 de Agosto de 2015, as partes foram notificadas da designação dos árbitros não tendo arguido qualquer impedimento.
7. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 23 de Setembro de 2015.
8. Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.
9. A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral a Requerente alega, em síntese, o seguinte:
a) A Requerente dedica-se à comercialização, em território português, de artigos para implantologia dentária, de que destaca os implantes dentários, pilares e peças de ligação;
b) Os seus Clientes são clínicas dentárias e médicos dentistas;
c) As vendas dos bens que comercializa têm pleno enquadramento na Verba 2.6 da Lista I anexa ao Código do IVA;
d) A doutrina resultante do despacho de 11 de Maio de 2007 no Processo de Informação Vinculativa n.º … não se pode sobrepor à Lei;
e) Estão em causa alienações de bens que substituem no todo ou em parte órgão humano, sendo que a Verba 2.6 da Lista I anexa ao Código do IVA não pode ser interpretada restritivamente como faz a Requerida;
f) A interpretação restritiva da Requerida coloca em causa o princípio da igualdade, de dignidade constitucional, na justa medida em que estaríamos perante situações iguais com taxas de tributação diferentes;
g) A letra da Lei não restringe a sua aplicação à situação de alienação de próteses completas;
h) O acto médico em causa implica diversas fases, diferidas no tempo, pelo que não faria sentido, do ponto de vista económico, que os Clientes adquirissem todos os componentes da prótese em simultâneo;
i) Estes elementos componentes da prótese são adquiridos ao longo do procedimento médico;
j) O conceito de prótese não abarca apenas o conjunto de peças, sendo que cada uma dessas peças é, por si, uma prótese, devendo, na sua comercialização, ser aplicada a taxa reduzida de tributação;
k) A interpretação da Lei deve ser feita de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, presumindo-se que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados;
l) Uma vez que nenhuma Clínica ou médico adquire as próteses completas a interpretação, restritiva e não conforme com o artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil, da Requerida, transforma a Verba 2.6 da Lista I anexa ao Código do IVA vazia de conteúdo e de impossível aplicação;
m) A interpretação das normas legais em causa deve ter em consideração que o IVA é um imposto que atinge tendencialmente todos os actos de consumo e que reveste como característica principal a neutralidade;
n) A interpretação que a Requerida pretende fazer valer cria situações injustas e discriminatórias entre as diferentes próteses dentárias, dado que as operações de alienação de próteses de peça única seriam tributadas à taxa reduzida e as operações de alienação de próteses compostas, seriam tributadas à taxa normal;
o) A interpretação e aplicação que a Requerida faz da Lei viola o disposto nos artigos 5.º, n.º 2 e 7.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária, pois põe em causa dos fins da tributação, de generalidade, igualdade, legalidade e de justiça material;
p) Os actos de liquidação de juros compensatórios estão afectados pelos mesmos vícios imputados aos actos de liquidação de imposto devendo, também, serem anulados.
10. A Requerida apresentou resposta, defendendo-se por impugnação, alegando, em síntese, o seguinte:
a) No âmbito do procedimento de inspecção tributária constatou-se que a requerente desenvolveu a sua actividade de comercialização de aparelhos médicos de ortodontia – implantes dentários e demais peças de ligação;
b) Nas operações de alienação dos referidos bens, a Requerente aplicou a taxa reduzida de IVA de 6% por entender que a venda daqueles bens se enquadra na verba 2.6 da Lista I anexa ao Código do IVA;
c) O entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira sobre esta matéria é, desde 1987, o de que se o sujeito passivo facturar ao Cliente um conjunto de bens constituído por prótese, implante e peças de ligação, tal operação será sujeita à taxa reduzida de IVA, mas se o sujeito passivo facturar ao Cliente apenas implantes e peças de ligação ou ambos, enquanto componentes avulsos, deverá aplicar a taxa normal de IVA;
d) A Verba 2.6 da Lista I anexa ao Código do IVA apenas abrange a transmissão do artigo em si, que configure uma peça artificial que substitua o órgão do corpo humano ou parte dele autonomamente e unitariamente;
e) As situações de aplicação da taxa reduzida representam um desvio à aplicação do regime geral do IVA, pelo que o Tribunal de Justiça da União Europeia tem-se pronunciado no sentido de interpretação estrita das normas que prevêem a aplicação destas taxas;
f) O objectivo da taxa reduzida é o de diminuir o encargo suportado pelo consumidor final;
g) Sendo estes bens utilizados por profissionais e entidades do sector da saúde, que beneficiam de isenção do imposto nas prestações de serviços que realizam, o encargo destas despesas dificilmente recai sobre o consumidor final;
h) O artigo 11.º, n.º 4, da Lei Geral Tributária proíbe a integração analógica das lacunas resultantes de normas tributárias abrangidas pela reserva de Lei da Assembleia da República – cfr. artigos 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa;
i) As normas que prevêem a taxa reduzida de IVA incluem-se no lote abrangido pela reserva de Lei da Assembleia da República, pelo que na sua interpretação não se pode recorrer à analogia;
j) O artigo 11.º da Lei Geral Tributária obriga a que na interpretação das normas tributárias sejam observadas as regras e princípios gerais de interpretação das Leis, previstas no artigo 9.º, do Código Civil;
k) Tendo presente as referidas regras de hermenêutica jurídica, o conceito de material de prótese abrange aquele que se destine ou seja apto à substituição de um membro ou órgão do corpo humano, de forma total ou parcial;
l) No caso em apreço, a prótese consiste na peça designada por coroa (dente artificial em porcelana), o qual não é comercializado pela Requerente;
m) O implante (forma de fixação da prótese) não beneficia do mesmo tratamento fiscal da prótese;
n) Estes elementos constituem material para prótese, e não material de prótese, como resulta da letra da Verba 2.6, da Lista I anexa ao Código do IVA;
o) Não constando os bens alienados pela Requerente da lista I anexa ao Código do IVA, e não sendo possível recorrer à analogia ou promover a interpretação extensiva de tal norma, deve considerar-se que os mesmos bens não se encontram abrangidos pela possibilidade de aplicação da taxa reduzida de IVA, na sua comercialização;
p) A Autoridade Tributária e Aduaneira não se socorre, na sua interpretação, dos conceitos de “aparelho completo” ou de “unidade única de implante”, considerando antes que a aplicação da taxa reduzida se aplica a todos os bens que, por si mesmos, possam substituir um órgão ou membro do corpo humano, e não quaisquer elementos que sejam utilizados individualmente no processo de substituição;
q) Todos os bens elencados na Verba 2.6 da Lista I anexa ao Código do IVA são bens que já se encontram numa fase em que podem ser utilizados, quando adquiridos, para as finalidades de superação de uma enfermidade ou deficiência humana;
r) A ratio desta norma é, pois, a de reduzir a tributação de produtos especificamente concebidos para a correcção ou compensação de deficiências ou para a substituição, total ou parcial, de órgãos ou membros do corpo humano;
s) Os bens comercializados pela requerente não se incluem em tal categoria pois apenas servem de suporte à prótese dentária, não lhes sendo aplicável a taxa reduzida de imposto por estarem em causa bens não expressamente previstos na Verba 2.6 da Lista I, anexa ao Código do IVA;
t) O princípio da neutralidade fiscal postula que o imposto não deve influir na escolha do consumidor;
u) As normas tributárias devem ser interpretadas tendo presente o princípio da neutralidade;
v) O princípio da neutralidade é colocado em crise se incidirem taxas diferentes sobre os materiais necessários à elaboração de cada um dos diferentes tipos de próteses;
w) Só a aplicação da taxa normal de imposto às peças, partes e acessórios garante a neutralidade do imposto;
x) Os autos versam apenas sobre matéria de direito pelo que deverá ser dispensada a produção de prova testemunhal, por se tratar de acto inútil;
y) Conclui pedindo a improcedência do pedido formulado pela Requerente e a manutenção dos actos de liquidação de IVA e de Juros Compensatórios.
11. Em 26 de Outubro de 2015 foi proferido despacho no sentido de a Requerente informar o Tribunal se mantém interesse na inquirição das testemunhas arroladas e, em caso afirmativo, para indicar quais os concretos factos sobre os quais recairá a inquirição.
12. Através de peça processual apresentada em 6 de Novembro de 2015, a Requerente prescindiu da inquirição das testemunhas arroladas.
13. Por despacho de 11 de Novembro de 2015 foi decidido dispensar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, concedendo-se o prazo de dez dias para as partes apresentarem as suas alegações (sucessivas).
14. Quer a Requerente, quer a Requerida, não apresentaram alegações
II. Saneamento
1. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
2. O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.
3. O processo não enferma de nulidades.
4. Não se verificam quaisquer outras circunstâncias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
III. Questões a decidir
1. Nos presentes autos a questão a decidir é a de determinar se os bens comercializados pela Requerente (aparelhos médicos de ortodontia - implantes de titânio e pilares) se encontram abrangidos na previsão da verba 2.6 da Lista I anexa ao Código do IVA, sendo a sua alienação tributada, em IVA, com aplicação da taxa reduzida de 6% prevista no artigo 18.º, n.º 1, alínea a), do Código do IVA.
IV. Mérito
IV.1. Matéria de facto
1. Factos provados
2. Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:
a) A Requerente é uma sociedade comercial que tem por objecto a compra e venda, exploração, formação, fabrico, distribuição, armazenamento, entretimento, importação e exportação, por conta própria ou alheia, de material e maquinaria médica, hospitalar, odontológica, de implantologia, raios X, depósito dentário, laboratório dentário e clinica dentária em Portugal – Doc. 19, junto ao Requerimento Inicial;
b) Em cumprimento da Ordem de Serviço n.º OI 2014… a Requerente foi objecto de um procedimento de inspecção tributária, externa, e de âmbito parcial, aos anos de 2011, 2012 e de 2013 – Doc. 20, junto ao Requerimento Inicial;
c) No âmbito do referido procedimento de inspecção foram efectuadas correcções aritméticas apurando-se imposto (IVA) em falta em cada um dos períodos de tributação por se considerar que o procedimento adotado pelo sujeito passivo, consubstanciado na aplicação da taxa reduzida do IVA para efeitos de liquidação do imposto exigível nas transmissões de implantes, pilares dentários e outros acessórios efectuadas no mercado nacional, carece de qualquer base legal, por falta de enquadramento de tais bens em qualquer das verbas das listas anexas ao CIVA – Doc. 20, junto ao Requerimento Inicial;
d) A requerente exerce, em território português, a actividade de comercialização de aparelhos médicos de ortodontia – implantes dentários e demais peças de ligação ou fixação de prótese dentária.
e) Tais artigos são destinados a clínicas dentárias e médicos dentistas que efetuam implantologia odontológica.
f) Sobre tais artigos, nos períodos abrangidos pelas liquidações em causa, a Requerente, procedeu à liquidação de IVA à taxa reduzida.
g) A Requerente foi notificada do acto de liquidação de IVA n.º 2015 …, praticado por referência ao período de 201203T, no valor de € 6.347,74, o qual foi pago em 13 de Abril de 2015 – Doc. 2, junto ao Requerimento Inicial;
h) A Requerente foi notificada do acto de liquidação de IVA n.º 2015 …, praticado por referência ao período de 201206T, no valor de € 18.846,11, o qual foi pago em 13 de Abril de 2015 – Doc. 3, junto ao Requerimento Inicial;
i) A Requerente foi notificada do acto de liquidação de IVA n.º 2015 …, praticado por referência ao período de 201209T, no valor de € 8.616,71, o qual foi pago em 13 de Abril de 2015 – Doc. 4, junto ao Requerimento Inicial;
j) A Requerente foi notificada do acto de liquidação de IVA n.º 2015 …, praticado por referência ao período de 201212T, no valor de € 13.486,90, o qual foi pago em 13 de Abril de 2015 – Doc. 5, junto ao Requerimento Inicial;
k) A Requerente foi notificada do acto de liquidação de IVA n.º 2015 …, praticado por referência ao período de 201303T, no valor de € 8.488,44, o qual foi pago em 13 de Abril de 2015 – Doc. 6, junto ao Requerimento Inicial;
l) A Requerente foi notificada do acto de liquidação de IVA n.º 2015 …, praticado por referência ao período de 201306T, no valor de € 14.240,79, o qual foi pago em 13 de Abril de 2015 – Doc. 7, junto ao Requerimento Inicial;
m) A Requerente foi notificada do acto de liquidação de IVA n.º 2015 …, praticado por referência ao período de 201309T, no valor de € 10.377,40, o qual foi pago em 13 de Abril de 2015 – Doc. 8, junto ao Requerimento Inicial;
n) A Requerente foi notificada do acto de liquidação de IVA n.º 2015 …, praticado por referência ao período de 201312T, no valor de € 14.171,25, o qual foi pago em 13 de Abril de 2015 – Doc. 9, junto ao Requerimento Inicial;
o) A Requerente foi notificada do acto de liquidação de Juros Compensatórios n.º 2015…, praticado por referência ao período de 201112T, no valor de € 195,00, o qual foi pago em 13 de Abril de 2015 – Doc. 10, junto ao Requerimento Inicial;
p) A Requerente foi notificada do acto de liquidação de Juros Compensatórios n.º 2015…, praticado por referência ao período de 201203T, no valor de € 666,33, o qual foi pago em 13 de Abril de 2015 – Doc. 11, junto ao Requerimento Inicial;
q) A Requerente foi notificada do acto de liquidação de Juros Compensatórios n.º 2015…, praticado por referência ao período de 201206T, no valor de € 1.786,50, o qual foi pago em 13 de Abril de 2015 – Doc. 12, junto ao Requerimento Inicial;
r) A Requerente foi notificada do acto de liquidação de Juros Compensatórios n.º 2015…, praticado por referência ao período de 201209T, no valor de € 730,88, o qual foi pago em 13 de Abril de 2015 – Doc. 13, junto ao Requerimento Inicial;
s) A Requerente foi notificada do acto de liquidação de Juros Compensatórios n.º 2015…, praticado por referência ao período de 201212T, no valor de € 1.008,00, o qual foi pago em 13 de Abril de 2015 – Doc. 14, junto ao Requerimento Inicial;
t) A Requerente foi notificada do acto de liquidação de Juros Compensatórios n.º 2015…, praticado por referência ao período de 201303T, no valor de € 551,63, o qual foi pago em 13 de Abril de 2015 – Doc. 15, junto ao Requerimento Inicial;
u) A Requerente foi notificada do acto de liquidação de Juros Compensatórios n.º 2015…, praticado por referência ao período de 201306T, no valor de € 780,31, o qual foi pago em 13 de Abril de 2015 – Doc. 16, junto ao Requerimento Inicial;
v) A Requerente foi notificada do acto de liquidação de Juros Compensatórios n.º 2015…, praticado por referência ao período de 201309T, no valor de € 465,13, o qual foi pago em 13 de Abril de 2015 – Doc. 17, junto ao Requerimento Inicial;
w) A Requerente foi notificada do acto de liquidação de Juros Compensatórios n.º 2015…, praticado por referência ao período de 201312T, no valor de € 489,19, o qual foi pago em 13 de Abril de 2015 – Doc. 18, junto ao Requerimento Inicial;
x) Em 23 de Junho de2015, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.
3. Fundamentação da matéria de facto
a) A factualidade provada teve por base os documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e no processo administrativo, não havendo controvérsia sobre eles.
b) Inexistem outros factos com relevo para apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.
IV.2. Do direito
A questão central a decidir prende-se com a interpretação da verba 2.6 da Lista I, anexa ao Código do IVA de forma a aquilatar se a mesma incorpora na sua previsão os bens vendidos pela Requerente e melhor identificados no procedimento administrativo – como entende a Requerente -, ou se essas mesmas vendas devem ser tributadas à taxa normal de 23% - como preconiza a Requerida.
Com efeito, quer nas Conclusões do relatório de Inspecção Tributária, quer nas peças processuais apresentadas nos presentes autos, a Requerida defende o entendimento segundo o qual “(…) a verba 2.6 se restringe aos «bens completos» como sendo aqueles que, por si mesmos, podem substituir um órgão ou membro do corpo humano e não quaisquer elementos que sejam utilizados individualmente no processo de substituição ”. Deste modo, uma vez que a Requerente promove a venda de bens (implante de titânio e pilar) necessários para fixação e suporte da prótese, mas que não são prótese, deverá, no entender da Requerida, aplicar nas nessas operações o artigo 18.º, n.º 1, alínea c) do Código do IVA, ou seja a taxa de 23%.
A Requerente não se conforma com o aludido entendimento uma vez que considera que a prótese é um todo, incluindo o material de fixação e de suporte, não podendo a taxa de imposto, neste caso o Imposto sobre o Valor Acrescentado, ser distinta consoante a prótese seja vendida em peças separadas ou como um todo, pelo que sustenta dever aplicar nestas operações o artigo 18.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA.
É, pois, sobre o confronto destas teses que o Tribunal se deverá pronunciar.
Nos termos do disposto no artigo 18.º, do Código do IVA as operações previstas nas normas de incidência objectiva serão tributadas da seguinte forma:
a) as importações, transmissões de bens e prestações de serviços constantes da lista I (anexa ao Código do IVA), à taxa de 6%”;
b) as importações, transmissões de bens e prestações de serviços constantes da lista II (anexa ao Código do IVA), à taxa de 13%”; e,
c) as restantes importações, transmissões de bens e prestações de serviços, à taxa de 23%.
Da letra do artigo 18.º, do Código do IVA resulta, pois, que a taxa normal é de aplicação subsidiária.
Atentos os contornos do caso em apreço importará, como se deixou já referido, analisar a verba 2.6, da lista I anexa ao Código do IVA, que elenca alguns dos bens sujeitos à taxa reduzida, de forma a verificar se os bens alienados pela requerente – implantes de titânio e pilares - se incluem, ou não, nos aí elencados.
Na verba 2.6 da Lista I anexa ao Código do IVA encontram-se elencados os seguintes bens:
“Aparelhos ortopédicos, cintas médico-cirúrgicas e meias medicinais, cadeiras de rodas e veículos semelhantes, accionados manualmente ou por motor, para deficientes, aparelhos, artefactos e demais material de prótese ou compensação destinados a substituir, no todo ou em parte, qualquer membro ou órgão do corpo humano ou a tratamento de fracturas e as lentes para correcção de vista, bem como calçado ortopédico, desde que prescrito por receita médica, nos termos regulamentados pelo Governo”.
Nestes termos é relevante apurar e densificar os conceitos, quer de material de prótese, quer de órgão do corpo humano, e, bem assim, verificar se os bens transaccionados se incluem em material de prótese e se se destinam a substituir, total ou parcialmente, órgão do corpo humano.
Prótese pode ser definida como substituição de um órgão do corpo ou de parte dele, por uma peça artificial (Dicionário do Estudante, Português, Porto Editora, pág. 795).
Por outro lado, órgão humano pode ser definido como parte de um corpo organizado com uma função particular (Dicionário do Estudante, Português, Porto Editora, pág. 719).
Como é do conhecimento geral o Dente é uma estrutura dura, saliente e esbranquiçada composta por polpa, dentina e esmalte que é implantada na arcada dentária. Em termos de função é evidente que este órgão é usado para cortar, prender e triturar alimentos, preparando-os para serem deglutidos. Ora, inexistem dúvidas de que o dente é um órgão do corpo humano, sendo que o mesmo é constituído por: raiz, colo e coroa. A raiz assegura a junção do dente à arcada dentária, o colo assegura a ligação entre a raiz e a coroa e a coroa define a função do dente (v.g. cortar, prender, triturar) e protege a estrutura vascular e nervosa do dente.
Os bens alienados pela Requerente implante de titânio e pilar visam substituir as “originais” raiz e colo do dente, assegurando o primeiro a conexão à arcada dentária e o segundo a ligação entre o implante e a coroa. Ou seja, cada uma é destas partes é indispensável à substituição funcional do órgão (o dente) consubstanciando-se na substituição de parte de órgão do corpo humano.
Ainda que o procedimento tenha diversas fases em momentos temporários distintos (pela necessidade, entre o mais, de cicatrização), na verdade estamos perante um único procedimento médico sendo que cada etapa, e os elementos aplicados, são essenciais à substituição funcional do órgão. A coroa individualmente considerada não é uma prótese na justa medida em que, sem implante de titânio e sem pilar não é apta a substituir funcionalmente o dente – em bom rigor nem é possível de colocar (fixar) no corpo humano (Anatomia Humana, Rouviere, Masson). Deste modo, sendo cada um dos componentes essencial para a substituição funcional do órgão parece curial que se conclua que estamos perante material de prótese.
Por tudo o exposto, e atentos os critérios mais exigentes de hermenêutica jurídica, serão estes, os significados a atribuir, a cada um dos termos em análise (de coroa, implante, pilar e prótese)
Destarte, verifica-se, no caso concreto, que qualquer um dos bens objecto de transmissão pela Requerente é material de prótese, que se destina a substituir, no todo ou em parte, órgão do corpo humano – o dente.
Em face do exposto, deverá improceder o entendimento da Requerida, segundo o qual “a verba 2.6 aplica-se, pois, aos aparelhos e próteses em si, produto final, no caso em apreço ao dente artificial (prótese)”. Como vimos, o conceito de prótese também abarca os elementos introduzidos para substituição de partes do órgão, designadamente o implante de titânio (em substituição da raiz) e o pilar (em substituição do colo).
Os bens em causa constituem, assim, material de prótese (não material para prótese), com função substitutiva de parte ou totalidade de órgão do corpo humano – o dente.
Nestes termos, tal transmissão encontra perfeito e directo enquadramento legal no elemento literal da norma contida no ponto 2.6 da lista I anexa ao Código do IVA, aplicando-se, em consequência, a tais transacções, a taxa reduzida de 6%, contemplada no art. 18.º, n.º 1, a) do referido diploma.
Importa, ainda referir que a interpretação sufragada pela Requerida – aplicação da taxa reduzida apenas ao dente artificial, enquanto unidade, não encontra suporte na letra da Lei
Com efeito, a verba 2.6 da Lista I anexa ao Código do IVA não exige que os materiais de prótese sejam transmitidos de modo agregado – cfr Acórdãos 429/2014-T e 530/2014-T do CAAD. A Lei apenas exige que se tratem de materiais de prótese destinados a substituir, no todo ou em parte, órgão do corpo humano.
Deste modo, inexistindo na letra da Lei qualquer referência à forma de alienação dos bens (em agregado por contraposição a fraccionado)[1] e devendo o intérprete presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (cfr. artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), impõe-se a conclusão de que tal circunstancialismo é irrelevante para a determinação da taxa de imposto a aplicar, improcedendo a argumentação da Requerida.
Em face de tudo o que se deixa exposto conclui-se que a Autoridade Tributária e Aduaneira incorreu em erro sobre os pressupostos, violando o disposto no artigo 18.º, do Código do IVA e, bem assim, na verba 2.6 da Lista I anexa àquele Código devendo os actos de liquidação em apreço serem declarados ilegais e anulados em conformidade.
Sendo ilegais os actos de liquidação de imposto também o serão os actos de liquidação de juros compensatórios que também constituem o objecto do presente pedido de pronúncia arbitral. Nos termos do disposto no artigo 35.º, da Lei Geral Tributária, o direito do Estado a liquidar juros compensatórios depende da existência de uma situação de atraso na liquidação de imposto, por culpa imputável ao sujeito passivo.
Ora, em face da conclusão alcançada no que respeita à legalidade dos actos de liquidação de imposto é forçoso concluir que, inexistindo qualquer atraso na liquidação de imposto, não se verificam os pressupostos para a prática dos actos de liquidação de juros compensatórios.
Conclui-se, pois, que os actos de liquidação de juros compensatórios são ilegais por violação do disposto no artigo 35.º, da Lei Geral Tributária, sendo anulados em conformidade.
V. Decisão
Termos em que acorda o presente Tribunal Arbitral em julgar totalmente procedente o pedido formulado pela Requerente, declarado ilegais e anulando os actos de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado e de Juros Compensatórios em apreço
VI. Valor do Processo
De harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 306.º e no n.º 2 do artigo 297.º, ambos do Código do Processo Civil, da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 102.946,23 (cento e dois mil, novecentos e quarenta e seis euros e vinte e três cêntimos).
VII. Custas
De acordo com o previsto no n.º 4 do artigo 22.º, no n.º 2 do artigo 12.º, ambos do RJAT, no artigo 2.º, no n.º 1 do artigo 3.º e nos n.ºs 1 a 4 do artigo 4.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como na Tabela I anexa a este diploma, fixa-se o valor global das custas em € 3.060,00 (três mil, e sessenta euros), a pagar pela Requerida.
Lisboa, 17 de Janeiro de 2016.
Os árbitros,
José Pedro Carvalho
(Árbitro Presidente)
Francisco de Carvalho Furtado (Relator)
(Árbitro Vogal)
Pedro Galego (Relator)
(Árbitro Vogal)
[1] Pelo contrário: ao referir-se a “material de prótese”, e não, simplesmente, a “prótese”, está o legislador, precisamente, a dar a indicação oposta à apresentada pela AT, querendo, expressamente, não se cingir apenas à prótese, enquanto objecto singular (“bem completo”, na terminologia da AT).