Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 471/2015-T
Data da decisão: 2016-01-12  IVA  
Valor do pedido: € 11.606,99
Tema: IVA – Direito à dedução do IVA incorrido na aquisição de unidades de alojamento
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Decisão Arbitral

 

A Árbitro Dra. Filipa Barros (árbitro singular), designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral Singular, constituído em 6 de Outubro de 2015, acorda no seguinte:

 

       I.     RELATÓRIO

 

                 A sociedade A…, LDA., NIPC…, com sede na Rua..., n.º..., ...-..., Lisboa, adiante “Requerente”, vem, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do artigo 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante referido por “RJAT”[1], requerer a constituição de Tribunal Arbitral para pronúncia sobre a ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IVA n.º 2014..., no valor total de € 11 606,99, referente ao terceiro trimestre de  2012, e dos correspondentes juros compensatórios.

 

                 Para fundamentar o seu pedido, considera a Requerente, em síntese, que lhe assiste o direito à dedução integral do IVA suportado na compra de duas fracções autónomas, as quais qualifica como unidades de alojamento integradas numa exploração turística, adquiridas para a realização de operações sujeitas a IVA.

                 Assim, argumenta que tendo exercido a renúncia à isenção de IVA no momento da aquisição das referidas fracções autónomas, estas deverão considerar-se integradas na exploração turística, ainda que o proprietário tenha reservado para si o direito de as utilizar por um período não superior a 90 dias por ano, nos termos do contrato de cessão de exploração turística celebrado pela Requerente. Acrescenta ainda que atuou ao abrigo do previsto no n.º 3 do artigo 30.º do Decreto Regulamentar n.º 36/97, segundo o qual “as unidades de alojamento não se consideram retiradas da exploração turística pelo facto de ter sido reservado aos respectivos proprietários o direito de as utilizarem em proveito próprio por um período não superior a 90 dias em cada ano, nos termos estabelecidos em contrato celebrado entre estes e a entidade exploradora.”   

                 Porquanto, conclui a Requerente que estando as fracções autónomas integradas numa exploração turística, ainda que o turista 90 dias por ano seja o proprietário, estas deverão considerar-se sempre afectas à prestação de serviços de alojamento turístico e integralmente destinadas aos fins da atividade pela qual o contribuinte, ora Requerente, se encontra colectado, devendo, por conseguinte, considerar-se legítima a dedução da totalidade do IVA liquidado, e anulados os atos de liquidação adicional de IVA relativos ao terceiro trimestre de 2012, com as legais consequências, valor de € 11.606,99. 

                 No dia 7 de Agosto de 2015, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e, de imediato, notificado à Requerida nos termos legais.

 

                 A Requerente não procedeu à nomeação de Árbitro.

 

                 Assim, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, por decisão do Exmo. Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes, nos prazos legalmente previstos, foi designado árbitro do Tribunal Arbitral Singular a Exma. Dra. Filipa Barros, que comunicou, ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo estipulado no artigo 4.º do Código Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa.

                 Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 6 de Outubro de 2015, seguindo-se os pertinentes trâmites legais.

                

                 A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta na qual defende a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

 

                 Para tanto, invoca que no âmbito de um procedimento de inspeção realizado pela Direção de Finanças de …, em 28 de Março de 2014, se verificou que a Requerente adquiriu por escritura pública de compra e venda duas fracções autónomas, integradas num prédio urbano, tendo para tanto renunciado à isenção de IVA. Subsequentemente, a Requerente afectou tais fracções à sua atividade secundária de exploração turística mediante a celebração de um contrato de cessão de exploração, através do qual se reservou no direito de as utilizar, anualmente, por um período de 90 dias, para os seus próprios fins ou os que tivesse por conveniente.   

                 Nestes termos, entende a Requerida que se durante o período de 90 dias por ano, as prestações de serviços levadas a cabo pela Requerente não são tributadas a jusante, face às regras do imposto, nomeadamente as consagradas ao nível do direito à dedução, a Requerente não poderia deduzir o IVA suportado a montante, impondo-se proceder à regularização do imposto deduzido, o que, no caso do autos, se aferirá pela proporção de tempo em que as fracções não estão afectas ao exercício da atividade turística mas ao uso particular dos proprietários das fracções.

                 Tal conclusão decorre da aplicação do princípio inerente ao direito à dedução, conforme disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA, e que se traduz no facto de só ser possível deduzir o imposto que seja conexo com o exercício de operações sujeitas a imposto e dele não isentas.  

                 Finalmente, segundo o entendimento da Requerida só assim não seria relativamente à gratuitidade de operações se estivéssemos no domínio de situações de auto consumo interno ou externo previstas na alínea b), do n.º 2 do artigo 4.º do Código do IVA, pressupondo-se que a Requerente tivesse liquidado o correspondente imposto, o que não se verificou no caso sub judice.                                                            

 

                 Posteriormente, e uma vez notificadas para o efeito, ambas as partes vieram aos autos comunicar que prescindiam da realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, pelo que, foi a mesma dispensada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 18.º do RJAT, porquanto no caso, não se verificava qualquer das finalidades que legalmente lhe estão cometidas, e no processo arbitral regem os princípios da economia processual e da proibição da prática de atos inúteis.

                 Subsequentemente, foram apresentadas alegações escritas pela Requerente, seguidas das alegações da Requerida.

                 Nas alegações apresentadas as partes limitaram-se a dar por reproduzidas as posições defendidas nos respectivos articulados.

 

                                                                 ******

 

          Face à posição assumida pelas partes, a questão principal a decidir nos presentes autos, passa por aferir se nos termos da alínea a), do n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA, o direito à dedução do IVA pago a montante por um sujeito passivo na aquisição de duas fracções autónomas que se encontram afectas à exploração turística lhe pode ser negado, na parte referente à utilização para fins privados que é conferida aos bens durante 90 dias em cada ano.  

 

II. SANEAMENTO DO PROCESSO

                

          O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

          As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas, (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de Março).

          O processo não enferma de nulidades.

          Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

          Tudo visto, cumpre proferir decisão.  

 

 

III. FUNDAMENTAÇÃO

 

A. Matéria de Facto

 

1. Factos dados como provados

 

Estão documentalmente comprovados e/ou aceites pelas partes nos respetivos articulados, os seguintes factos:

 

1)      A Requerente é uma sociedade comercial que exerce como atividade principal a compra e venda de bens imobiliários (CAE 13 201), e como atividade secundária a exploração de apartamentos turísticos sem restaurante (CAE 55 123);

2)      Em termos de IVA, a Requerente encontra-se enquadrada no regime normal de periodicidade trimestral; 

3)      Por escritura pública de compra e venda outorgada a 4 de Julho de 2012, a Requerente adquiriu à sociedade B... S.A., pelo preço global de € 305.120,00 acrescido de IVA à taxa legal em vigor de 23%, o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo..., da freguesia de..., as seguintes fracções:

a)      Fracção autónoma designada pela letra “DK”, no valor de €164.900,00 acrescido de IVA no valor de 37.927,00;

b)      Fracção autónoma designada pela letra “GO”, no valor de €140.220,00, acrescido de IVA no valor de € 32.250,60;

4)      Nos termos exarados na escritura de compra e venda das fracções autónomas a Requerente exerceu a opção de renúncia à isenção de IVA, tendo sido liquidado IVA no montante de € 70.177,60;

5)      Na data da escritura pública de compra e venda foi celebrado um contrato de Cessão de Exploração Turística e de Gestão de Imóvel, “o qual refere na sua cláusula 3.ª que terá início na data da celebração e será válido até 31/12/2020, renovando-se automaticamente e por períodos iguais e sucessivos de 10 anos, caso não seja denunciado pelos contratantes” (cf. relatório de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de …, junto com o Processo Administrativo, doravante, P.A.);

6)      Na cláusula 12.º do mesmo contrato é estipulado que os adquirentes têm o direito a ocupar a fração adquirida pelo período de 90 dias em cada ano;

7)      Resulta de publicação em Diário da República, 2ª Série – N.º ... – … de Abril de 2010, o Despacho n.º .../2010 com o seguinte teor: “Por Despacho do Secretário de Estado do Turismo de 26 de Fevereiro de 2010, foi atribuída a utilidade turística, a título prévio, ao C... com a categoria projetada de quatro estrelas, a instalar em Monchique, de que é representante e sociedade B... (… S.A.);           

8)      Ao abrigo da Ordem de serviço n.º OI 2014..., de 28 de Março, a Direção de Finanças de … realizou uma ação inspetiva que incidiu sobre a dedução integral do IVA que a Requerente suportou por força da aquisição das fracções DK e GO;

9)      Resulta do relatório de Inspeção Tributária que “na declaração periódica de IVA referente ao terceiro trimestre de 2012 o contribuinte não só liquidou o valor de IVA acima referido, que era devido face à renúncia à isenção, como também deduziu integralmente o mesmo valor.

Considerando que nos termos do art.º 20, n.º 1 alínea a), do CIVA, só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre os bens adquiridos pelo sujeito passivo para a realização de operações sujeitas a imposto e que a fracção adquirida não o foi integralmente para este fim, uma vez que no próprio ato ficou estipulado que os adquirente ficavam com o direito a utilizá-la 90 dias em cada ano, haverá lugar à correspondente retificação do direito à dedução, nos termos do citado artigo 20.º, do CIVA, uma vez que apenas haverá direito à dedução do imposto correspondente ao período afecto à exploração. Assim, considerando que o imóvel tinha de ser integralmente destinado aos fins da atividade pela qual o contribuinte se encontra coletado, por um período de 20 anos e que, desde o início, lhe foi atribuído parcialmente, um fim diferente, teremos o seguinte:

a)      O valor de IVA deduzido, pela aquisição das duas fracções, no 3.º trimestre de 2012, foi de 70.177,60, valor que corresponde a uma dedução de € 3.508,88 (70.177,60/20) em cada um dos 20 anos em que a afectação teria de manter-se integralmente.

b)      Em cada um dos 20 anos, não poderá aceitar-se a dedução de 3/12, dos mesmos € 3.508,88, no montante de 877,22, correspondente ao período em que o prédio é usufruído pelo adquirente. Nestes termos haverá lugar à regularização de IVA no valor de (877,22x20)=17.544,40€, no terceiro trimestre de 2012.”  

10)  Em 5 de Maio de 2014, através do Ofício n.º..., emitido pela Direção de Finanças de …, a Requerente foi notificada para exercer o direito de audição do projeto de relatório resultante da ação inspectiva;

11)  Em 26 de Agosto de 2014 a Requerente exerceu o respetivo direito de audição, o qual se dá por integralmente reproduzido, onde alega, entre outros aspectos, o seguinte:

“(...) as unidades de alojamento estão integradas na exploração turística quando estejam disponíveis para ser locadas dia a dia a turistas pela entidade exploradora, não se considerando retiradas da exploração pelo facto de ter sido reservado ao proprietário o direito de as utilizar por um período não superior a 90 dias por ano.

Se a unidade de alojamento continua a considerar-se como integrada na exploração turística, continua a ter como fim a prestação de serviço de alojamento turístico, ainda que o turista, 90 dias por ano seja o proprietário.”

12)  Em 25 de Outubro de 2014, a Requerente foi notificada da liquidação adicional elaborada com base na correção efetuada pelos Serviços de Inspeção Tributária referente ao Imposto sobre o Valor Acrescentado, no montante de 11.606,99, para proceder ao respectivo pagamento até 05 de Janeiro de 2015;

13)  Em 25 de Fevereiro de 2015 a Requerente deduziu reclamação graciosa da liquidação adicional mencionada, a qual se dá por integralmente reproduzida, na qual pediu “anulação da liquidação de IVA sub judice, com as legais consequências”;    

14)  Em 7 de Abril de 2015, a Requerente foi notificada pelo Ofício remetido pela Divisão de Justiça Tributária da Direção de Finanças de … para exercer o direito de audição prévia e tomar conhecimento do projeto de decisão e da sua fundamentação concluindo pelo indeferimento da reclamação graciosa apresentada;

15)  Em 29 de Abril de 2015 a Requerente foi notificada pelo Ofício remetido pela Divisão de Justiça Tributária da Direção de Finanças de …, da decisão da reclamação graciosa apresentada, da qual consta o indeferimento, em sede de IVA, do pedido da Requerente;

16)  Em 17 de Julho de 2015 a Requerente procedeu ao pagamento da quantia de IVA em causa acrescida dos respectivos juros, no montante total de € 12.881,75;

17)  Em 24 de Julho de 2015, a Requerente deduziu o pedido de constituição do Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo. (cfr. requerimento electrónico ao CAAD).

2.    Factos não provados

 

       Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

 

3.    Motivação

           

       A convicção do Tribunal ao estabelecer o quadro factual supra, fundou-se no Processo Administrativo instrutor e nos documentos juntos aos autos que instruíram as peças processuais apresentadas pelas partes.

 

       Matéria de direito 

 

1.      Delimitação da questão: Direito à dedução do IVA incorrido na aquisição de unidades de alojamento inseridas em empreendimentos turísticos destinadas parcialmente ao uso particular dos titulares da empresa

 

       A questão a decidir passa por saber se uma empresa como a Requerente que adquiriu unidades de alojamento num empreendimento turístico, tendo para tal renunciado à isenção de IVA, poderá deduzir a totalidade do imposto incorrido a montante na aquisição, quando nos termos do contrato de cessão de exploração turística celebrado com o empreendimento, ficou reservado o direito daquela utilizar as unidades de alojamento em proveito próprio, por um período não superior a 90 dias em cada ano.    

       De acordo com a posição assumida pela Autoridade Tributária quando uma atividade não está abrangida pelas regras de incidência real ou pessoal do imposto tal situação impossibilita qualquer direito à dedução do IVA suportado a montante.

       Ora, constatando-se que as prestações de serviços levadas a cabo pela Requerente durante 90 dias por ano não são tributadas a jusante, ou seja, a Requerente não liquida imposto pela realização das prestações de serviço que ela própria adquire, então o direito à dedução do IVA suportado a montante pela Requerente deverá aferir-se na proporção do tempo em que as duas fracções se encontram afetas ao exercício da atividade turística, excluindo o tempo de afetação ao uso particular dos titulares da empresa.

       Pelo contrário, a Requerente considera que lhe assiste o direito à dedução integral do IVA suportado na aquisição das fracções por ter operado a renúncia à isenção daquele imposto na aquisição das mesmas, nos termos do n.º 5 do artigo 12.º do Código do IVA. Adicionalmente, defende que sendo as referidas fracções autónomas unidades de alojamento integradas num regime de exploração turística continuam a ter como fim a prestação de serviços de alojamento turístico, ainda que o turista, 90 dias por ano, seja o proprietário, invocando em prol da sua tese o disposto no artigo 45.º, do Decreto-Lei n.º 167/97 de 4 de Julho que estabelecia a versão anterior do regime jurídico dos empreendimentos turísticos.  

       Considerando as posições assumidas pelas partes, para a melhor análise da questão objeto dos presentes autos deverão ser compulsadas as regras que regem este imposto de acordo com o Direito da União Europeia, considerando a respectiva transposição a nível interno e a interpretação administrativa e judicial que sobre as mesmas tem vindo a ser levada a cabo, especialmente pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).

       Dado que se pretende decidir em que medida poderá a Requerente manter inalterada a dedução da totalidade do IVA previamente suportado com a compra de duas fracções autónomas integradas numa exploração turística com reserva do direito de utilização ao proprietário por um período não superior a 90 dias por ano, justifica-se tecer algumas considerações prévias no que concerne ao direito à dedução, quer sobre a respectiva natureza, quer no que tange ao respectivo exercício atendendo ao tipo de utilização conferida pela Requerente aos bens imóveis em causa.

 

2. Da natureza e amplitude do direito à dedução

 

       A título preliminar importa começar por referir que o IVA é um imposto de matriz comunitária, introduzido em Portugal pelo Decreto-Lei nº 394-B/94, de 26.12, que veio transpor a Sexta Diretiva do IVA (Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977) alterada pela Diretiva n.º 2006/112/CE, de 28 de Novembro (doravante Diretiva do IVA). O IVA caracteriza-se por ser um imposto indireto, plurifásico, que atinge tendencialmente todo o ato de consumo.

       O direito à dedução é um elemento essencial do funcionamento do imposto, devendo garantir a neutralidade, que configura a característica nuclear do imposto e o coloca num plano de vantagem relativamente aos demais impostos de consumo. A neutralidade fiscal constitui o equivalente, em matéria de IVA, do princípio da igualdade de tratamento[2].

       O direito à dedução consubstancia-se como o elemento essencial do funcionamento do imposto, a “trave-mestra do sistema do imposto sobre o valor acrescentado[3], designada como método da dedução do imposto, método do crédito de imposto, método subtrativo indireto ou ainda método das facturas, de acordo com o qual, e em conformidade com o disposto no artigo 19.º do Código do IVA, através de uma operação aritmética de subtração, ao imposto apurado nas vendas e prestações de serviços (outputs) e identificável nas respectivas faturas, deduz-se o imposto suportado nas compras e outros gastos (inputs).

       Por conseguinte, o objetivo de neutralidade vertido na Primeira Diretiva IVA determina que, “Em cada operação, o IVA, calculado sobre o preço do bem ou serviço à taxa aplicável ao referido bem ou serviço, é exigível, com prévia dedução do montante do imposto que tenha incidido diretamente sobre o custo dos diversos elementos constitutivos do preço”, (vide 2.º parágrafo, do n.º 2, do artigo 1.º da Diretiva).

      

       O Código do IVA determina, como regra geral, a dedutibilidade do imposto devido ou pago pelo sujeito passivo nas aquisições de bens e serviços feitas a outros sujeitos passivos. O regime da dedução assim estabelecido visa aliviar inteiramente o empresário do peso do IVA devido ou pago no quadro de todas as suas atividades económicas. Desta forma a neutralidade é assegurada quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, independentemente do seu fim ou do seu resultado na condição de essas atividades estarem elas mesmas sujeitas a IVA.[4]

       O sistema europeu do IVA não fixa qualquer limitação de princípio quanto ao tipo de bens e serviços capazes de gerar o direito à dedução. As situações de exclusão do direito à dedução são excepcionais, reportam-se a casos específicos enunciados pelo legislador nacional em termos taxativos, de acordo com o estatuído na Diretiva IVA, em função do tipo de despesas em causa, devendo ser aplicados com respeito pelos princípios da proporcionalidade e igualdade, não podendo esvaziar o sistema comum do IVA do seu conteúdo.[5] Assim, nos termos do artigo 176.º da Diretiva IVA, excluídos do direito à dedução ficam, por princípio, apenas os bens ou serviços que suscitem confusão entre as esferas pessoal e a esfera empresarial. Conforme se salienta no Acórdão Metropol, “As disposições que preveem derrogações ao princípio do direito à dedução do IVA, que garante a neutralidade deste imposto, são de interpretação restrita.” (vide, ponto 59).[6]

       Note-se que as regras do exercício do direito à dedução do imposto contemplam requisitos objetivos relacionados com o tipo de despesas, requisitos formais relativos à densidade formal do documento de suporte do IVA, requisitos subjetivos, relativos ao sujeito passivo e temporais, atinentes ao período em que é possível exercer o direito à dedução do IVA, os quais se devem verificar em simultâneo.

       Com especial relevância para o caso dos autos, a Diretiva IVA condiciona o exercício do direito à dedução a requisitos de substância variados, resultantes do seu artigo 168.º e os demais preceitos que integram o Título X. Do ponto de vista subjetivo, o artigo 168.º, em parte incorporado pelo artigo 20.º n.º 1 alínea a) do Código do IVA, faculta a dedução do IVA suportado pelo sujeito passivo no Estado-membro em que se encontra estabelecido, nas transmissões de bens e prestações de serviços, assim como operações assimiladas, nas aquisições intracomunitárias de bens e nas importações, no entanto, coloca como premissa básica da dedução que “os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas (...)”, (nosso sublinhado) sendo este um requisito fundamental e um garante da neutralidade do imposto.

             Note-se que o TJUE admite a dedução do IVA de encargos suportados com intenção confirmada por elementos objetivos de os destinar ao desenvolvimento de uma atividade económica, não obstante ainda não se ter concretizado o exercício efetivo de transmissões de bens ou de prestações de serviços que venham a constituir o objeto social da entidade, mesmo que tal não venha efetivamente a concretizar-se. A grande amplitude do direito à dedução do IVA confirma-se pela jurisprudência firmada em relação às chamadas atividades preparatórias, não se exigindo que a atividade do sujeito passivo tenha já começado para se poder deduzir o IVA respectivo entretanto incorrido nos atos de preparação.[7]

       O artigo 168.º da Diretiva IVA, vem também preconizar a existência de um nexo de causalidade entre o bem ou serviço adquirido (input) e o output tributado, para que o IVA seja susceptível de ser dedutível. Por conseguinte, o IVA suportado a montante numa determinada operação só é dedutível na medida em que possa estar relacionada a jusante com uma operação efetivamente tributada, devendo a relação ser aferida casuisticamente e em função do reporte e inclusão do custo suportado, no preço da operação tributada.

       Neste contexto, o TJUE concluiu que os bens ou serviços a montante devem apresentar uma relação direta e imediata com uma ou diversas operações sujeita(s) a imposto a jusante, sendo que o direito à dedução do IVA pressupõe que as despesas em causa devam constituir parte integrante dos elementos constitutivos do preço das operações tributadas.[8] Na análise do alcance daquela expressão “ (…) relação direta e imediata (…)”, concluiu o Advogado-geral no Caso Midland Bank, que o emprego dos dois adjetivos «direto» e «imediato» não pode deixar de significar uma relação especialmente próxima entre as operações tributáveis efetuadas por um sujeito passivo e os bens ou serviços fornecidos por outro sujeito passivo.[9] Contudo, a densidade dessa relação pode ser diferente consoante a qualidade do sujeito passivo e a natureza das operações efectuadas e estas variáveis podem também ter repercussões sobre o ónus da prova da existência da relação, o qual cabe ao operador interessado na dedução.

       Assim, de acordo com a jurisprudência do TJUE, sempre que um sujeito passivo exercer atividades económicas destinadas a realizar exclusivamente operações tributáveis, não é necessário, para que se possa deduzir na totalidade o imposto, estabelecer, quanto a cada operação a montante, a existência de uma relação direta e imediata com a operação específica sujeita a imposto.[10]

       O que o legislador apenas exige é que os bens e serviços sejam utilizados ou susceptíveis de o ser “para os fins das próprias operações tributáveis” (sublinhado nosso). Não é necessária a existência de uma relação com uma operação específica tributável, sendo suficiente que exista uma relação com a atividade da empresa.

       Ora, a questão de se aferir da existência ou não de uma relação direta e imediata assume particular relevância quando se pretende aplicar o princípio geral da dedução da totalidade do IVA a situações nas quais o sujeito passivo efetua operações tributáveis e/ou isentas ou ainda operações não tributáveis.

       Na ausência de uma relação imediata e direta entre os bens ou os serviços e a operação tributável, o direito à dedução está limitado pela aplicação de um pro rata ou é recusado quando a operação a jusante é uma operação isenta.

       Note-se que, as questões que se podem colocar no âmbito do direito à dedução do IVA não se limitam ao tema da afetação de inputs por parte dos chamados sujeitos passivos mistos. Com efeito, a par destes, e com relevância central no caso dos autos, coloca-se a questão dos consumos privados, conforme identificada no Livro Verde apresentado pela Comissão Europeia em 2010, “a neutralidade deste imposto implica que o IVA incidente sobre bens e serviços utilizados em atividades económicas tributadas deva ser inteiramente dedutível. Pode ser difícil alcançar este objetivo e garantir a igualdade das condições de concorrência das empresas da UE sempre que os bens ou serviços utilizados para fins múltiplos (atividades tributadas, atividades isentas e fins não profissionais) e o destino desses bens e serviços evolua durante a sua vida económica.”[11] (sublinhado nosso).

       Por último, importa referir como requisito do exercício do direito à dedução o requisito temporal, nos termos do qual “O direito à dedução nasce no momento em que o imposto dedutível se torna exigível”, permanecendo, no entanto, o requisito cumulativo da posse da factura, ou do recibo de pagamento do IVA que faz parte das declarações de importação.

       Por sua vez, de acordo com as regras do n.º 1 do artigo 19.º do Código do IVA, estipula-se que confere direito à dedução, designadamente, o imposto devido ou pago pelo sujeito passivo nas aquisições de bens e serviços feitas a outros sujeitos passivos e o imposto pago pela aquisição dos serviços referidos nas alíneas e), h), i), j) e l) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA.

       Em conformidade com o disposto na alínea a), do n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA, conferem, nomeadamente, direito à dedução do IVA as transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas e as transmissões de bens e prestações de serviços que consistam em operações efectuadas no estrangeiro que seriam tributáveis se fossem efectuadas em Portugal.

       Em síntese, resulta das disposições legais supra citadas e da jurisprudência emanada pelo TJUE, uma exigência de que os bens e serviços adquiridos pelo sujeito passivo sejam utilizados na realização de operações tributadas.

 

3. Do caso concreto

      

       No caso em apreço a Requerente adquiriu duas fracções autónomas que fazem parte do património da sociedade, tendo para tanto renunciado à isenção de IVA nos termos do Decreto-Lei n.º 21/2007 de 29 de Janeiro. Tais fracções, ou unidades de alojamento, segundo a tese da Requerente encontram-se integradas numa exploração turística e continuam a ter “como fim a prestação de um serviço de alojamento turístico, ainda que o turista 90 dias por ano seja o proprietário”. Tal facto, justificaria, segundo a Requerente, a legalidade da dedução integral do IVA incorrido quando da compra das fracções, com renúncia à isenção daquele imposto.

       Ora, salvo devido respeito, a Requerente não tem razão.

       Vejamos em seguida as disposições do Código do IVA e a vasta jurisprudência proferida pelo TJUE, acompanhada aliás pela jurisprudência do STA e do Tribunal Arbitral, que procura alcançar igualdade de tratamento e o respeito pelo princípio da neutralidade fiscal, no enquadramento conferido em sede de IVA à utilização mista de bens, ou seja, nas situações de bens que foram inicialmente afetos à empresa e posteriormente utilizados, pelo menos em parte, em fins privados, muito embora o sujeito passivo tenho deduzido integralmente o IVA na respectiva aquisição. 

       Ora, no caso dos autos, resultou inequivocamente provado, que no próprio ato da escritura de compra e venda do imóvel a adquirente, ora Requerente, ficava com direito de usar as fracções já identificadas 90 dias em cada ano, conforme também resulta da cláusula 12.ª de Cessão de Exploração Turística e de Gestão do Imóvel. Por conseguinte, era intenção da Requerente, desde o momento da compra das referidas fracções autónomas, destiná-las ao uso particular do proprietário, durante três meses por ano, não havendo qualquer dúvida, como a própria Requerente afirma, “que durante esse período de tempo o turista é o proprietário”.

       Por outro lado, resulta do probatório que apesar da Requerente se colocar no papel de “turista” 90 dias por ano, na utilização das unidades de alojamento para uso privado, não atuou, em sede de IVA, nas vestes de um verdadeiro turista, designadamente, equiparando o uso das unidades de alojamento, durante o referido período, a uma prestação de serviços efectuada a título oneroso e tributada nos termos conjugados do artigo 4.º n.º 2 alínea a) e do artigo 16.º n.º 2 alínea c), ambos do Código do IVA. Paradoxalmente, embora a Requerente afirme que nesse período de tempo em que as unidades de alojamento são destinada à utilização privada do proprietário não são retiradas do mercado, por outro lado, não se compreende, sendo esse o caso, porque razão tal utilização não foi enquadrada nos parâmetros normais de mercado, e considerada como uma prestação de serviços de alojamento turístico sujeita a IVA, nos termos legais.  

       Ora, o artigo 4.º n.º 2, alínea a) e o artigo 16.º n.º 2 alínea c), ambos do Código do IVA equiparam, por via de uma ficção legal, a existência de uma prestação de serviços tributada para efeitos de IVA, no âmbito da tributação de consumos privados evitando por em causa a neutralidade que norteia a aplicação do imposto e a desigualdade de tratamento que se criaria entre um sujeito passivo que afeta um bem da sua empresa ao uso privado e o consumidor normal que adquire um bem do mesmo tipo.[12]

       De acordo com a jurisprudência constante do TJUE, um sujeito passivo tem a possibilidade de escolher, para efeitos da aplicação da Sexta Diretiva, integrar ou não na sua empresa a parte de um bem que está afeta ao seu uso privado.[13]

       Se o sujeito passivo escolher tratar como bens da empresa os bens de investimento utilizados ao mesmo tempo para fins profissionais e para fins privados, o IVA pago a montante sobre a aquisição desses bens é, em princípio, integral e imediatamente dedutível.[14] E acrescenta-se que “um sujeito passivo que opta por afetar a totalidade de um edifício à sua empresa e que, em seguida, utiliza uma parte desse edifício para o seu uso privado ou do seu pessoal tem, por um lado, o direito de deduzir o IVA pago a montante sobre a totalidade das despesas de construção do referido edifício e, por outro, a obrigação correspondente de pagar o IVA sobre o montante das despesas efetuadas com a execução dessa utilização privada.”[15] Em todo o caso, a tributação do consumo privado pressupõe a prévia afetação do bem a uma atividade económica e o subsequente exercício do direito à dedução.

       O TJUE relembraria, a propósito, que do artigo 168.º da Diretiva IVA resulta que o sujeito passivo que agindo nessa qualidade no momento em que adquire um bem, o utilize para os fins das próprias operações tributadas, fica habilitado a deduzir o IVA que tenha incorrido com essa aquisição. Inversamente quando um bem não seja utilizado para os fins das atividade económicas do sujeito passivo, tal como o artigo 9.º as define, mas antes para consumo privado do sujeito passivo, não se constitui o direito à dedução.[16] Assim, embora o TJUE admita a possibilidade de se adquirir um bem de investimento que se destine simultaneamente a uso privado e a uso profissional e o sujeito passivo opte por afetar esse bem integralmente à empresa e assim deduza todo o IVA que sobre ele tenha incidido, no entanto sempre que faça a utilização desse bem para as necessidades privadas do sujeito passivo, tal operação é equiparada a uma prestação de serviços efectuada a título oneroso havendo lugar à liquidação de IVA a jusante.  

       Não restam dúvidas que o caminho escolhido pela Requerente, foi diferente, optando por deduzir integralmente o IVA incorrido na aquisição de duas fracções autónomas destinadas a um uso misto - em parte exploração turística (9 meses por ano) em parte ao uso dos próprios titulares da empresa (3 meses por ano), - não obstante se constatar que na utilização privativa desse bem afeto à empresa não houve liquidação de qualquer IVA sobre o valor das despesas efetuadas com a referida utilização. 

       Se por hipótese aceitássemos a posição adoptada pela Requerente, esta possuiria claras vantagens económicas comparativamente ao consumidor final que adquire um bem do mesmo tipo, senão vejamos: o consumidor final suporta a totalidade do IVA que lhe é repercutido, enquanto a Requerente, utilizando a sua qualidade de empresa, poderia subtrair-se ao pagamento do IVA por via da correspondente dedução integral, mesmo quando sabe à partida que utilizará o imóvel, em parte, num tipo de consumo susceptível de ser inserido numa esfera estritamente privada.

       Ora, chegados a este ponto, importará seguir de perto a análise do Caso Charles e Charles-Tigmens pela evidente utilidade para o caso em exame.[17] Conforme explicou nas suas conclusões o Advogado Geral F.G. Jacobs, segundo uma linha jurisprudencial consolidada o sujeito passivo tem a possibilidade de escolher para efeitos da aplicação da Sexta Diretiva entre integrar ou não na sua empresa a parte de um bem que está afecta ao uso privado, dai retirando as necessárias consequências no que toca ao exercício do direito à dedução.

       Sendo assim, um sujeito passivo que adquire um bem que sabe à partida que será alvo de afetação a fins privados poderá optar por duas vias, embora as respetivas condições de aplicação sejam diferentes e essas vias não sejam simplesmente intermutáveis.  

       A primeira diz respeito à situação em que um sujeito passivo utiliza a título privado bens ou serviços originalmente tratados como destinados a fins empresariais tributáveis em relação aos quais deduziu o IVA cobrado a montante. Ao abrigo da equiparação a prestações de serviços[18] o sujeito passivo é, na prática, visto como agindo na dupla qualidade de empresário e de adquirente privado pelo que tem de cobrar IVA devido a jusante sobre essa operação.

       A segunda via é o recurso ao mecanismo da dedução proporcional do IVA em função da utilização profissional efetiva, procedendo nos anos seguintes aos devidos ajustamentos em função da alteração da percentagem de afetação do bem a uso profissional ou privado. A relevância desta segunda via, é largamente explorada no caso VNLTO[19], no qual se define o alcance da tributação dos consumos privados e a consequente legitimação da dedução do IVA suportado a montante por via da afetação inicial de um bem a uma atividade tributada, no caso particular de sujeitos passivos de IVA que sejam pessoas coletivas.

       Neste processo, o TJUE articula os conceitos de “atividade económica”, “atividade não económica” e “fins estranhos à empresa” e recorda que só nos casos de aquisição de um bem simultaneamente afeto ao objeto de atividade da VNLTO e a fins privados de um seu administrador, de um seu empregado, de um terceiro ou em geral, a fins estranhos ao objeto da VNLTO é que seria de admitir a jurisprudência firmada no caso Charles-Tijmens (2005), os quais se centravam numa pessoa singular com a qualidade de sujeito passivo. Por outro lado, recordando o caso Securenta (2008) o TJUE defende que na utilização mista de um bem ou serviço numa atividade económica e numa atividade não económica, a dedução só será efetuada de forma proporcional, apesar de se ter remetido os critérios e métodos a utilizar para a livre apreciação de cada Estado-Membro.[20]      

       Sobre a interpretação a dar ao conceito de “bens”, defende o Advogado-geral Paolo Mengozzi, que os bens deverão ser entendidos como bens de investimento, ou seja bens cujo consumo seja escalonado no tempo, portanto passíveis de uma utilização duradoura.

       Assim, com o Acórdão VNLTO fica clarificada a questão do regime de dedução do IVA suportado a montante por parte de sujeitos passivos que ainda no âmbito da prossecução do seu objeto social ou profissional, pratiquem operações inseridas no conceito de atividade económica e fora deste conceito, impondo neste caso a dedução parcial do imposto com base na afetação real e não permitindo a dedução integral do IVA. Este acórdão, no seguimento de jurisprudência anterior[21]reitera o princípio de que “quando os bens ou serviços adquiridos por um sujeito passivo são utilizados para os fins de operações isentas ou não estão abrangidos pelo âmbito de aplicação do IVA, não pode haver cobrança do imposto a jusante nem dedução deste a montante”.[22]   

       Acresce referir que tendo em vista ultrapassar as frequentes divergências entre as posições assumidas pelo TJUE e as Administrações Fiscais reportadas ao caso concreto da utilização de bens de investimento para fins quer profissionais quer não profissionais e procurando terminar com as várias alternativas de enquadramento da questão, conforme supra explanadas, foi aprovada a Diretiva n.º 2009/162/UE do Conselho, de 22 de Dezembro que altera diversas disposições da Diretiva IVA, com efeitos a partir de 2011 aditando o artigo 168.º - A, cujo n.º 1 referindo que:

 

                                                          «Artigo 168.º-A

1.   No caso de bens imóveis integrados no património da empresa de um sujeito passivo e por este utilizados tanto para as atividades da empresa como para seu uso próprio ou do seu pessoal ou, de um modo geral, para fins alheios à empresa, o IVA que incide sobre as despesas relativas a esses bens imóveis é dedutível de acordo com os princípios estabelecidos nos artigos 167.º, 168.º, 169.º e 173.º apenas na proporção da sua utilização para as atividades da empresa do sujeito passivo.

Em derrogação do disposto no artigo 26.º, as mudanças na proporção da utilização de um bem imóvel a que se refere o primeiro parágrafo são tidas em conta de acordo com os princípios previstos nos artigos 184.º a 192.º tal como aplicados no Estado-Membro em causa.

2. (...) »;

 

       Na esteira desta evolução, o Código do IVA aditou o n.º 7 do artigo 19.º, circunscrevendo a sua aplicação aos bens imóveis, de acordo com o qual “Não pode deduzir-se o imposto relativo a bens imóveis afetos à empresa, na parte em que esses bens sejam destinados a uso próprio do titular da empresa, do seu pessoal ou em geral a fins alheios à mesma”.[23]

 

       Cabe ainda referir que esta dedução se encontra circunscrita a utilização do método da afetação real, nos termos do artigo do n.º 1 e 2 do artigo 23.º do Código do IVA.

       Por conseguinte, o artigo 19.º n.º 7 do Código do IVA, aplicável ao caso em exame, impede a dedução integral ab initio do IVA, e posterior tributação dos consumos privados nos termos do artigo 4.º n.º 1 do Código do IVA, faculdade anteriormente conferida pela Diretiva IVA. Note-se que tal impossibilidade surge nas situações em que a utilização mista do imóvel (atividade económica e fins alheios à empresa) se verifique no momento inicial da afetação, quando o IVA dedutível se torna exigível, devendo o sujeito passivo adoptar uma dedução proporcional com base na afetação real, sujeita a eventuais regularizações posteriores em caso de alteração das condições iniciais de afetação do bem.[24] Por conseguinte, a dedução integral do IVA suportado na aquisição das duas frações, no valor de €70.177,60 só seria admissível em caso de afetação integral e permanente aos fins da atividade pelo qual a Requerente se encontra coletada, por um período de 20 anos, nos termos previstos no n.º 7 do artigo 19.º do Código do IVA. 

       Nestes termos, não procede a alegação da Requerente quanto à aplicação ao caso em apreço das regras previstas no artigo 45.º do Decreto-Lei n.º 167/97 de 4 de Julho, conjugadas com o n.º 3 do artigo 30.º do Decreto-Regulamentar n.º 36/97, de 25 de Setembro, que estabelece o seguinte:

       “As unidades de alojamento não se consideram retiradas da exploração turística pelo facto de ter sido reservado aos respectivos proprietários o direito de as utilizarem em proveito próprio por um período não superior a 90 dias em cada ano, nos termos estabelecidos em contrato celebrado entre estes e a entidade exploradora do hotel-apartamento.”

       Tais diplomas estabelecem o quadro regulatório essencial para a instalação e funcionamento dos empreendimentos turísticos destinados à atividade do alojamento turístico, sendo certo que o que se discute nos autos é uma questão de enquadramento fiscal, em sede de IVA, do direito à dedução invocado pela Requerente. Ora, sendo o IVA um imposto de matriz comunitária, mostra-se hoje consensual não só a eficácia direta vertical reconhecida às Diretivas, como também o primado do direito europeu, fazendo este sistema jurídico parte integrante do ordenamento jurídico dos estados-membros a partir do momento da entrada em vigor, impondo-se, por isso, a sua aplicação aos tribunais nacionais.[25]

       Acresce referir que o objetivo da Diretiva IVA não é o de definir as regras de instalação, funcionamento e exploração dos alojamentos turísticos, cabendo essa determinação ao direito nacional, o qual não poderá em caso algum comprometer os objectivos da Diretiva, em matéria de IVA, que visa basear o sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado numa definição uniforme das operações tributáveis e do regime de deduções, designadamente no que toca ao “regime que permite a regularização das deduções aplicáveis aos bens de investimento durante toda a vida útil do ativo, em função da sua utilização efetiva (...)”.[26]  Ora, tal regime ficaria comprometido se as regras aplicáveis à dedução do IVA em bens imóveis (de investimento) ficassem sujeitas à ocorrência de condições regulamentares de natureza extra-tributária que variam de um Estado-Membro para outro.

      

       Assim, somos de concluir pela legalidade das liquidações adicionais de IVA referentes ao terceiro trimestre do ano de 2012 e respetivos juros compensatórios efectuadas por parte da AT, no sentido em que não pode ser reconhecido um direito à dedução do imposto incorrido a montante quando, se tenha provado que as fracções adquiridas destinadas a alojamento são destinadas 90 dias por ano ao uso particular do sujeito passivo, ora Requerente, facto que se encontra consagrado no próprio ato de aquisição dos referidos bens imóveis.  

 

       Por fim, a Requerente insurge-se contra a violação dos princípios da legalidade, da boa-fé e da proteção da confiança, por considerar que houve aplicação retroactiva da lei a um facto tributário ocorrido ao abrigo da lei antiga.

       Ora, conforme resulta do supra exposto, também nesta vertente, não assiste razão à Requerente. O facto tributário que determinou a liquidação e pagamento do imposto reporta-se à data de 4 de Julho de 2012, encontrando-se em vigor a lei que prevê o regime de dedução do IVA aplicável à operação realizada pela Requerente. Note-se que a lei relevante aplicável ao caso, não é, como alega a Requerente, o regime Jurídico dos Empreendimentos Turísticos, mas o disposto no Código do IVA (artigo 19.º n.º 7) e na Diretiva IVA (artigo 168.º-A).

       Deste modo, quando da celebração do contrato de cessão de exploração turista através do qual se reservava no direito de utilização das fracções autónomas adquiridas, anualmente, por um período de 90 dias, para os seus próprios fins, a Requerente tinha condições para equacionar as consequências fiscais do seu comportamento.  

       Ademais, o princípio da boa-fé, consagrado no artigo 59º, nº 2 da Lei Geral Tributária, pressupõe por parte da AT um dever de atuação segundo a boa fé, sendo constitucionalmente imposto a toda a Administração, nos termos do n.º 2 do artigo 266.º da C.R.P. Este princípio tem um conteúdo de carácter ético, impondo aos intervenientes no procedimento tributário que atuem com lealdade e sinceridade recíprocas no decurso do procedimento tributário, abstendo-se de atuações que possam enganar o outro interveniente, ou ocultando-lhe elementos que possam ter proveito para a defesa das suas posições.

       Em sintonia com o preceituado no artigo 59.º da Lei Geral Tributária, o artigo 48.º do Código de Procedimento e Processo Tributário estabelece que a AT esclarecerá os contribuintes e outros obrigados tributários sobre a necessidade de apresentação de declarações, reclamações e petições e a prática de quaisquer outros atos necessários ao exercício dos seus direitos, incluindo a correção dos erros ou omissões manifestas que se observem.

       Ora, a violação pela AT dos deveres de colaboração e de atuação segundo as regras da boa-fé, pode consistir em vício autónomo de violação de lei.

       Com efeito, a relevância deste princípio não se esgota nos atos praticados no exercício de poderes discricionários, tendo vindo a ser colocada a possibilidade da sua aplicação em caso de atos praticados no exercício de poderes vinculados.

       Conforme se demonstrou nos autos, a AT atuou com respeito pelo princípio da legalidade, e aplicou o regime fiscal vigente à data da prática dos factos tributários relevantes.

       Note-se ainda que o princípio da tutela da confiança visa salvaguardar os sujeitos jurídicos contra atuações injustificadamente imprevisíveis daqueles com quem se relacionem.[27]

       De acordo com a jurisprudência do STA, no âmbito da atividade administrativa são pressupostos da tutela de confiança (a) um comportamento gerador de confiança, (b) a existência de uma situação de confiança, (c) a efetivação de um investimento de confiança e (d) a frustração da confiança por parte de quem a gerou.[28]

       Ora, estas circunstâncias, não se verificaram no caso presente. A AT não violou a confiança da Requerente, limitando-se na sua atuação a aplicar a lei – Código do IVA e Diretiva IVA – ao caso vertente. A Requerente, por seu turno, teria a obrigação de conhecer o regime jurídico-tributário aplicável aos seus investimentos, à data da prática dos factos tributários relevantes.

       Não se verifica, por conseguinte, uma situação de confiança justificada, merecedora da tutela reclamada pela Requerente e, assim, a atuação a AT não merece qualquer tipo de censura, concluindo-se, pela legalidade das liquidações adicionais de IVA referentes ao terceiro trimestre do ano de 2012 e respetivos juros compensatórios efectuadas por parte da AT.

 

4.    Decisão

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)      Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, manter o ato tributário impugnado;

b)      Condenar a Requerente nas custas do processo, no montante de € 918,00.

 

       Fixa-se o valor do processo em € 11.606,99 (onze mil seiscentos e seis euros e noventa e nove cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

5. Custas

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a suportar pela Requerente, uma vez que o pedido foi integralmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 12 de Janeiro de 2016

 

 A Árbitro

 

 

 

 

 

 

(Filipa Barros)

 

 

 



[1] Acrónimo de Regime Jurídico da Arbitragem Tributária.

[2] Acórdão S. Puffer, Proc. C-460/07 de 23 de Abril de 2009.

[3] Cfr. Xavier de Basto, (Lisboa 1991) A tributação do consumo e a sua coordenação internacional, p. 41.  

[4] É abundante a Jurisprudência que o TJUE tem desenvolvido a esse respeito, referindo-se a título meramente exemplificativo as seguintes decisões: Acórdão Sosnoowska, Proc. C-25/07, de 10 de Julho de 2008, Acórdão Bonik, C-285/11 de 6 de Dezembro de 2012, Acórdão Petroma, C-271/12 de 8 de Maio de 2013.     

[5] Clotilde Celorico Palma, (Coimbra 2006), Estudos de Imposto sobre o Valor Acrescentado, p. 153.   

[6] Acórdão Metropol, Proc.C-409/99 de 8 de Janeiro de 2002.

[7] Acórdão Rompelman, Recueil, Proc. C-268/83, de 14 de Fevereiro de 1985; Acórdão Lennartz, Proc. C-97/90, de 11 de Julho de 1991; Acórdão Inzo, Proc. C-110/94, de 29 de Fevereiro de 1996, Acórdão Gabalfrisa, Procs. apensos C-110/98 a C-147/98, de 21 de Março de 2000. Mais recentemente veja-se, nomeadamente, o Acórdão, Klub Ood, Proc. C-153/11, de 22 de Março de 2011.

[8] Acórdão BLP Group, Proc. C-4/94 de 6 de Abril de 1995. 

[9] Acórdão Midland, Proc. C-98/98 de 8 de Junho de 2000.

[10] Conclusões do Advogado-geral António Saggio apresentadas em 30 de Setembro de 1999 no Caso Midland Bank.

[11] Cfr. Comissão Europeia, Livro Verde sobre o Futuro do IVA. Rumo a um sistema de IVA mais simples, mais sólido e eficaz, COM (2010) 695 final, Bruxelas, 1.12.2010.

[12] Sobre a temática da tributação dos consumos privados enquanto forma de garantir a igualdade de tratamento entre sujeitos passivos e consumidores finais veja-se designadamente Acórdão Enkler, Proc. C-230/94 de 26 de Setembro de 1996, Acórdão De Jong, Proc. C-20/91 de 6 de Maio de 1992, Acordão Hotel Scandic, Proc. C-412/03, de 20 de Janeiro de 2005, entre outros.

[13] Vide designadamente Acórdão Armbrecht, Proc. C-291/92, de 4 de outubro de 1995, n.° 20 relativo à utilização mista de um imóvel compreendendo hotel, restaurante e parte reservada a habitação e Acórdão Seeling, Proc. C-269/00, de 16 de Março de 2002. 

[14] Vide Acórdão Lennartz, Proc. C-97/90, de 11 de Julho de 1991 e Acórdão Seeling, já referido.  

[15] Acórdão Medicom, procs. n.os C-210/11 e C-211/11, de 18 de Junho de 2013.

[16] Acórdão Le Klub n.º 36, já referido.

[17] Acordão de 14 de Julho de 2005, Proc. C-434/03.

[18] Conforme artigo 16.º da Diretiva IVA. 

[19] Acordão de 12 de fevereiro de 2009, Proc. C-515/07.

[20] Acórdão de 13 de Março de 2008, Proc. C-437/06, vide concretamente pontos 50 e 51. 

[21] Acórdão Wollny, Proc. C-72/05 de 14 de Setembro de 2006, n.º 20. 

[22] Cfr. Acórdão VNLTO, n.º 28.

[23] A alteração legislativa materializou-se com o Decreto-Lei n.º 134/2010 de 27 de dezembro.

[24] Também neste sentido vide Rui Manuel Pereira da Costa Bastos, “Direito à Dedução do IVA. O caso  particular dos inputs de utilização mista” in Cadernos IDEFF, n.º15, Almedina. 

[25] Entre outros vide Acórdão Costa vs. Enel, proc. n.º C-6/64 de 15 de Julho de 1964, Acórdão Von Colson, proc. n.º C-14/83 de 10 de Abril de 1984, Acórdão Marlesing, proc.n.º C-106/89 de 13 de Novembro de 1990.   

[26] Cf. 40.º considerando da Diretiva IVA, Diretiva 2006/112/CE do Conselho de 28 de Novembro de 2006.  

[27] Neste sentido, Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 3ª edição, pág. 221

[28] Vide, designadamente, Acórdãos do STA, Proc. n.º 0753/11, de 21 de Setembro de 2011 e proc. n.º 0589/11 de 7 de Junho de 2011.