Decisão Arbitral
A Árbitro Dra. Filipa Barros (árbitro singular), designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral Singular, constituído em 14 de Setembro de 2015, acorda no seguinte:
I. RELATÓRIO
A..., com sede no edifício ... sito à ..., n.º..., ...-..., NIPC..., adiante “Requerente”, vem, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), e artigo 10º n.º 1 e n.º 2, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante referido por “RJAT”[1], e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral para declaração de ilegalidade dos atos de autoliquidação referentes ao exercício de 2009 e 2011, consubstanciados nas declarações periódicas de Dezembro de 2009 e de Janeiro a Outubro de 2011, com as demais consequências, designadamente a declaração de ilegalidade e anulação do ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa de IVA relativo aos anos 2009 e 2011, com vista regularizar o IVA liquidado em excesso no valor de € 52.056,45.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e, de imediato, notificado à Requerida nos termos legais.
Nos termos e para os efeitos do disposto do nº 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, por decisão do Exmo. Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes, nos prazos legalmente previstos, foi designado árbitro do Tribunal Arbitral Singular a Senhora Dra. Filipa Barros, que comunicou, ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo estipulado no artigo 4.º do Código Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa.
O Tribunal foi constituído no dia 14 de Setembro de 2015, em consonância com a prescrição da alínea c), do nº 1 do artigo 11.º do RJAT.
No dia 15 de Outubro de 2015, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por exceção e por impugnação.
No dia 30 de outubro de 2015 o Requerente, devidamente notificado para o efeito, pronunciou-se por escrito quanto às exceções deduzidas pela Requerida na sua resposta, pugnando pela respetiva improcedência.
Posteriormente, notificadas para o efeito, ambas as partes vieram aos autos comunicar que prescindiam da realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, pelo que a realização da referida reunião do Tribunal Arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 18.º do RJAT, foi dispensada, atendendo a que, no caso, não se verificava qualquer das finalidades que legalmente lhe estão cometidas, e que o processo arbitral se rege pelos princípios da economia processual e da proibição da prática de atos inúteis.
Subsequentemente, foi concedido ao Requerente e à Requerida o prazo de 20 dias para apresentaram, de forma sucessiva, as respetivas alegações escritas, faculdade que as partes optaram por não exercer.
A fundamentar o seu pedido alega o Requerente, no essencial, o seguinte:
a) O Requerente é uma pessoa coletiva de direito público, de base territorial, cuja atividade consiste na prossecução das suas competências municipais, nas mais diversas áreas, encontrando-se enquadrada para efeitos de IVA no regime normal mensal. Neste âmbito, e após uma revisão que efetuou aos seus procedimentos internos relativos aos anos de 2009 e 2011, em matéria de IVA, verificou que suportou IVA em excesso nas aquisições de determinados recursos diretamente associados a atividades tributadas do Município, nomeadamente Campeonato..., parque de campismo de..., venda de sacos na feira do fumeiro, distribuição de água aos munícipes, pelo que, tratando-se de recursos exclusivamente afetos à realização de operações tributadas, o Município tinha direito a deduzir a totalidade do IVA incorrido na aquisição de tais recursos.
b) Acresce que o Requerente detectou ainda a possibilidade de dedução parcial de IVA, através da afetação real, em recursos simultaneamente afectos a atividades tributadas e atividades não tributadas que não conferem direito à dedução, bem como a possibilidade de dedução parcial mediante a utilização do método do prorata aplicável ao IVA incorrido nos recursos de utilização mista.
c) Tendo em vista recuperar o IVA liquidado em excesso, em resultado do que considerou ser um incorreto enquadramento em sede de IVA das sobreditas operações, o Requerente apresentou a 30 de Dezembro de 2013, ao abrigo do disposto no artigo 78.º da Lei Geral Tributaria (LGT) e do artigo 98.° do Código IVA, um pedido de revisão oficiosa das autoliquidações de IVA efetuadas em excesso, no montante total de € 52.056,45, (sendo 27.081,07 respeitante ao ano de 2009 e € 24.975,38 respeitante a 2011).
d) O Pedido de Revisão Oficiosa foi indeferido,c– Dão de Administraçãoçde ransferencias artes. conforme Ofício nº ... de 14 de Abril de 2015, por despacho de 23/03/2015 proferido pelo Exmo. Subdirector – Geral, por delegação de competências da Divisão de Administração da Direção de Serviços do IVA, considerando a AT que a regularização pretendida pelo Requerente não podia ser autorizada, por intempestividade do prazo de regularização reivindicado, não sendo lhe sendo aplicável nem o prazo de 4 anos previsto no n.º 2 do artigo 98.º do CIVA e no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, nem o prazo de 2 anos previsto no n.º 1 do artigo 131.º do Código do Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e o no n.º 6 do artigo 78.º do CIVA.
e) A este respeito, entende o Requerente que o facto das facturas estarem contabilizadas não obsta á possibilidade de ser efectuada uma correção ao IVA deduzido pelo Município, nos termos da regra constante do n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA, que permite o direito ao reembolso do imposto entregue em excesso até ao decurso de 4 anos após o nascimento do direito à dedução, estando o imposto em causa ainda dentro do limite temporal aquando da entrega do pedido de revisão oficiosa.
f) O Requerente refere ainda que o n.º 1 do artigo 98.º não se opõe a que o sujeito passivo possa operar uma revisão retroativa do método de dedução do IVA, utilizando para tanto o mecanismo de revisão oficiosa previsto no artigo 78.º da LGT.
g) Neste âmbito, o Requerente sustenta que o caso em apreço não configura uma errada transcrição de faturas, ou de erros na transcrição dos valores dos registos contabilísticos, por conseguinte, não se trata de um erro material ou de cálculo, subsumível no n.º 6 do artigo 78.º do Código do IVA, mas antes um “erro de direito”. E mesmo que por mera hipótese se considerasse um erro material ou de cálculo, o Requerente disporia de 4 anos para efetuar essa correção.
h) Assim, o Requerente reitera que suportou IVA em excesso durante os anos de 2009 e 2011, não o tendo deduzido porque errou na aplicação dos métodos de dedução (v.g. erro de direito) e não porque simplesmente optou por não o fazer.
i) Por conseguinte, defende que a revisão de atos tributários por iniciativa da administração tributária pode ter lugar no prazo de quatro anos a contar da liquidação com fundamento em erro imputável aos serviços, considerando-se como tal o erro na autoliquidação, nos termos do n.º 1 do art.º 78.º da LGT e do n.º 1 do artigo 98.º do Código do IVA.
j) Concluindo, retira-se do seu pedido, que seja declarada a ilegalidade dos atos de autoliquidação referentes ao ano de 2009 (declaração periódica de Dezembro de 2009) e ano de 2011 (declarações periódicas de janeiro a outubro de 2011), com a consequente anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, relativo aos referidos períodos, com as demais consequências legais, designadamente, o reembolso do IVA suportado em excesso no valor de € 52.056,45.
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A AT responde ao pedido do Requerente por exceção e por impugnação.
No âmbito da resposta por exceção é suscitada a incompetência do Tribunal Arbitral para apreciar e decidir o pedido de pronúncia alegando, em síntese, o seguinte:
a) O objecto do pedido de pronúncia arbitral consubstancia-se na decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, em que se peticionava a “autorização para dedução, ao abrigo do disposto no artigo 98.º do Código do IVA e do artigo 78.º da Lei geral Tributária, o IVA incorrido pelo A... na aquisição de recursos de utilização mista no montante de €52.956,45 (...)”, não sendo pedida a anulação de qualquer ato de autoliquidação. Por seu turno, a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, em causa nos presentes autos fundamentou-se no facto do pedido dever ser indeferido por intempestividade do direito à regularização, entendendo-se que não seria aplicável o prazo de 4 anos previsto no n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA e no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, nem sequer o prazo de dois anos previsto no n.º 1 de artigo 131.º do CPPT ou n.º 6 do artigo 78.º do Código do IVA. Porquanto, não foi apreciada a legalidade de qualquer ato tributário de liquidação, tanto mais que apenas em sede arbitral veio o Requerente deduzir tal pedido.
a) Por conseguinte, a AT começa por defender que a incompetência material do Tribunal Arbitral resulta da causa subjacente ao indeferimento do pedido de revisão oficiosa. Com efeito, o ato administrativo conducente ao indeferimento do pedido de revisão oficiosa teve por base a invocação da intempestividade da pretendida regularização de IVA, não sendo, por esse motivo, apreciada a legalidade de quaisquer atos de liquidação /autoliquidação, o que resultaria na insusceptibilidade do ato ser impugnado através de impugnação judicial, sendo certo que o processo arbitral tributário encontra-se estabelecido por referência e em tudo semelhante ao processo de impugnação judicial em relação ao qual deve constituir meio processual alternativo.
b) Assim, apoiando-se na linha em que vão também outras decisões do CAAD na matéria, em tudo semelhante à dos autos, nalguns casos interpostas por Municípios, refere a AT que a “sindicância do acto em questão está fora do âmbito das matérias susceptíveis de apreciação em sede arbitral conforme resulta do artigo 2.º do RJAT (...)”, invocando uma exceção dilatória que impede o conhecimento do mérito da causa, devendo determinar a absolvição da instância atendendo ao disposto nos artigos 576.º n.º 1 e 577.º alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º n.º 1, alínea e) do RJAT.
c) Em segundo lugar, a AT invoca a intempestividade do pedido de pronúncia arbitral decorrente do facto do ato tributário objecto do pedido se reconduzir à declaração de ilegalidade dos atos de autoliquidação de IVA referentes aos exercícios de 2009 e 2011, consubstanciados nas declarações periódicas de dezembro de 2009 e de janeiro a outubro de 2011. A este respeito, e admitindo-se que o objeto do pedido são os atos de autoliquidação atinentes aos períodos supra referidos, o prazo legal para a impugnação de atos em sede arbitral estaria claramente ultrapassado.
d) Ora, o artigo 10.º do RJAT estabelece, quanto a atos de liquidação e autoliquidação, que o prazo para apresentar o pedido de pronúncia arbitral é de 90 (noventa) dias, remetendo, quanto ao momento do início de contagem, para o preceituado no artigo 102.º nºs 1 e 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
e) Nestes termos, tendo o pedido de constituição do tribunal arbitral sido formulado apenas em 2015, e não estando este pedido fundado na existência de um qualquer meio de impugnação gracioso do ato de autoliquidação onde tivesse sido proferida decisão a indeferir, total ou parcialmente, as pretensões aí formuladas, (naquilo que constituiria um ato de segundo grau) conclui a AT pela intempestividade do mesmo, impondo-se a declaração de improcedência e a absolvição da instância da Requerida.
f) Além do referido, a AT invoca ainda a incompetência dos Tribunais Arbitrais que funcionam no CAAD para apreciar decisões de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa. Para o efeito, a AT entende que face ao disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 4.º, n.º 1, ambos do RJAT, e nos artigos 1.º e 2.º, alínea a), ambos da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03, verifica-se a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar e decidir o pedido supra (cf. artigos 576.º n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea a) do CPC, ex vi, artigo 29.º n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.
g) Tal impedimento, resultaria da remissão do n.°1 do artigo 4.° do RJAT, para a Portaria n.°112-A/2011, a qual estabelece a vinculação da AT à jurisdição dos Tribunais Arbitrais constituídos nos termos daquele diploma, designadamente, quanto ao tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.
h) Ora, nos termos do artigo 2º, alínea a) da Portaria 112-A/2011, a vinculação da AT à jurisdição dos Tribunais Arbitrais tem por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhe esteja cometida, referidas no nº 1 do artigo 2º do RJAT, “com exceção das pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”;
i) Por conseguinte, e atendendo aos termos de vinculação da AT, na situação em apreço impunha-se a precedência obrigatória de reclamação graciosa, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 131.º do CPPT, por se defender que a expressão “recurso à via administrativa” não referencia também a revisão oficiosa do ato tributário, literalmente excluída da competência material dos Tribunais Arbitrais e legalmente vedada em sede arbitral. Para este efeito, a AT invoca as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis, contidas no artigo 9º do Código Civil, por remissão do nº 1 do artigo 11º da LGT, alicerçando o essencial da sua interpretação no elemento literal da norma, ao concluir que “a letra da lei não pode ser afastada, sendo a principal referência e ponto de partida do intérprete.” Nestes termos, defende a exclusão da competência material dos tribunais arbitrais em litígios, como na situação sub judice, que tenham por objeto a declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, se não forem precedidos de reclamação graciosa nos termos do artigo 131.º do CPPT.
j) A AT conclui a sua tese referindo que uma interpretação literal do disposto na Portaria de Vinculação impõe-se face ao respeito pelos princípios constitucionais do Estado de Direito e da Separação de Poderes (cf. artigos 2.º e 111.º, ambos da C.R.P.) bem como da legalidade (cf. artigos 3.º n.º 2 e 266.º n.º 2, ambos da C.R.P.) como corolário do princípio da Indisponibilidade dos Créditos Tributários, ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT.
k) Adicionalmente a AT invoca a exceção por incompetência material face ao pedido de condenação do Requerente se dirigir “ao reembolso do IVA suportado em excesso nos períodos em causa, no valor de €52.056,45”. A este respeito, defende a AT que o âmbito de competência dos tribunais arbitrais constituídos ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro não contempla a possibilidade de apreciação de pedidos tendentes ao reconhecimento de direitos em matéria tributária, concluindo-se que também por esta via se verifica a existência de uma exceção dilatória, consubstanciada na incompetência material do tribunal arbitral, que obstando ao conhecimento do pedido deverá conduzir à absolvição da Requerida da instância.
l) AT respondeu ainda por impugnação. Sustentou uma posição contrária à apresentada pelo Requerente no que concerne à susceptibilidade do pedido de regularização de IVA apresentado ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º da LGT e do n.º 1 do artigo 98.º do Código do IVA poder merecer provimento.
m) Assim, a AT defendeu que a situação dos autos de omissão da dedução de imposto com custos comuns não configura um erro na autoliquidação mas uma opção legítima entre sujeitos passivos mistos pelo que, de todo o modo, nunca seria aplicável o prazo de 4 anos previsto n.º 1 do artigo 78.º da LGT e no n.º 1 do artigo 98.º do Código do IVA, porquanto a aplicação retroativa de um método de dedução só poderá ser efectuada nos termos do n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA.
n) Adicionalmente, considera que o Requerente em momento algum validou os montantes alegadamente deduzidos em defeito, visto que a análise dessa questão pela AT ficou prejudicada face à preclusão do prazo de dedução previsto no n.º 6 do artigo 78.º do Código do IVA.
o) Concluí a AT pela absolvição de todos os pedidos, porquanto o Requerente não junta prova do direito que se arroga nos autos, nomeadamente dos montantes de imposto a serem deduzidos mediante a apresentação dos documentos contabilísticos de suporte à sua pretensão.
Posteriormente, o tribunal notificou o Requerente para se pronunciar sobre a matéria de exceção, tendo este defendido a competência do tribunal arbitral e a tempestividade do pedido de pronúncia arbitral.
Saneamento do processo
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas, (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de Março).
Exceção ou questão prévia: da incompetência material do Tribunal Arbitral.
Suscita a AT, entre outras questões, a da incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar o pedido.
Tendo em conta que o âmbito da competência material do tribunal é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria (art.º.13.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos aplicável ex vi art.º 29.º, n.º 1, al. c) do RJAT), e que a infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, que é de conhecimento oficioso [art.º 16.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário aplicável ex vi art.º 29.º, n.º 1, al. a) e c) do RJAT], importará começar por apreciar a exceção dilatória suscitada pela Requerida sobre a incompetência do Tribunal Arbitral.
Vejamos, em primeiro lugar, os factos e, designadamente, os especialmente relevantes para a prolação da decisão quanto à competência material do Tribunal Arbitral.
II. FUNDAMENTAÇÃO
A. Factos provados:
Estão documentalmente comprovados e/ou aceites pelas partes nos respetivos articulados, os seguintes factos:
1) O Requerente é uma pessoa colectiva de direito público, de base territorial, cuja atividade consiste na prossecução das suas atribuições e na execução das respectivas competências municipais nas mais diversas áreas de atividade;
2) Para efeitos de IVA o Requerente está registado como sujeito passivo de IVA, enquadrado no regime normal de periodicidade mensal;
3) No exercício da atividade de “Administração Local” o Requerente realiza simultaneamente operações não sujeitas a imposto (as que resultam do exercício de poderes de autoridade), operações sujeitas mas isentas de IVA que não conferem direito à dedução e ainda operações sujeitas que conferem direito a dedução;
4) No âmbito de uma revisão de procedimentos internos aos anos de 2009 e de 2011, o Requerente verificou que na sua atividade suportou IVA em excesso, na medida em que apenas deduziu o IVA incorrido na aquisição de recursos associados à distribuição de água, pela aplicação do método da afetação real;
5) Em concreto, o Requerente procedeu a uma revisão dos métodos de dedução aplicados em 2009 da qual resultaram as seguintes alterações:
a. Possibilidade de dedução integral (através da aplicação do método da afetação real) de IVA de recursos associados à realização de operações tributadas (Campeonato..., Parque de Campismo..., venda de sacos na feira do fumeiro, limpeza de fossas e também distribuição de água – neste caso alguns recursos cujo o IVA não havia sido ainda deduzido, apesar de relacionados com a distribuição de água);
b. Possibilidade de dedução parcial (através da aplicação da afectação real com critérios) do IVA dos recursos simultaneamente afetos à distribuição de água (atividade tributada que confere direito à dedução) e ao saneamento de águas residuais (não tributada que não confere direito a dedução); e
c. Possibilidade de dedução parcial (através da aplicação do método do prorata) do IVA incorrido nos recursos de utilização “mista” (i.e. recursos utilizados indistintamente para a atividade do município como um todo, quer tributada quer não tributada em IVA, comummente designados também por recursos comuns)
6) Na sequência da referida revisão dos procedimentos internos nas vertentes supra mencionadas o Requerente apurou imposto suportado em excesso no valor de € 52.056,45;
7) Nos anos de 2009 e de 2011 o Requerente não procedeu a qualquer dedução de imposto relativa a bens de utilização mista;
8) Com vista a recuperar o IVA que suportou em excesso, correspondente a € 52.056,45 o Requerente apresentou, em 30.12.2013, ao abrigo do disposto no artigo 78.º da LGT e do artigo 98.° do Código do IVA, um pedido de revisão oficiosa da autoliquidação de IVA efectuada, solicitando autorização à Autoridade Tributária para regularizar o IVA liquidado em excesso durante os anos de 2009 (no montante de € 27.081,07), e de 2011 (no montante de 24.975,28) cf. doc. nº 2 do Pedido de Pronúncia Arbitral e PA;
9) No referido pedido de revisão oficiosa o Requerente expôs as razões de facto e de direito pelas quais considerava ter suportado IVA em excesso, afirmando que a sua pretensão encontra tutela no n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA, norma que autoriza que o direito à dedução do imposto entregue em excesso seja exercido até ao decurso de 4 anos após o nascimento desse direito. Sustenta ainda que se considera erro imputável aos serviços o erro na autoliquidação, circunstância que justifica a apresentação de um pedido de revisão oficiosa;
10) O Requerente termina o pedido de revisão oficiosa requerendo, ao abrigo do artigo 78.º da LGT conjugado com o artigo 98.º do Código do IVA, que seja “autorizado, a deduzir o IVA incorrido pelo A... na aquisição de recursos de utilização mista no montante de € 52.056,45 resultante da aplicação dos métodos do prorata de dedução e da afectação real com critérios objectivos, calculados nos termos do artigo 23.º do Código do IVA.” Cf. pedido formulado no pedido de revisão oficiosa apresentado.
11) O Pedido de Revisão Oficiosa foi indeferido,c– Dão de Administraçãoçde ransferencias artes. conforme Ofício nº ... de 14 de Abril de 2015, por despacho de 23.03.2015 proferido pelo Exmo. Subdirector – Geral, por delegação de competências da Divisão de Administração da Direção de Serviços do IVA, constando desse despacho, concordante com informação nesse sentido (Informação n.º...), além do mais, e em síntese, o seguinte [Cf. PA instrutor]:
“II. APRECIAÇÃO
1. Aplicação retroativa dos métodos de dedução e segregação de custos de sectores de atividade
9. Assim, nos anos de 2009 e 2011 apesar de não ter deduzido qualquer imposto relativo a bens de utilização mista nos termos do artigo 23.º do CIVA o Requerente pretende vir faze-lo com base num pedido de revisão oficiosa apresentado no final de 2013.
(...)
13.Ora entende-se que em qualquer das situações não é aplicável o prazo de quatro anos previsto no n.º 2 do artigo 98.º do CIVA e no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, nem sequer o prazo de dois anos previsto no n.º 1 do artigo 131.º do Código do Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) ou no n.º 6 do artigo 78.º do CIVA”
14. A situação descrita de omissão da dedução de imposto suportado com custos comuns, não configura um erro, mas uma opção legitima e comum entre sujeitos passivos mistos. (...).
(...)
17. Este entendimento foi veiculado no parecer do Centro de Estudos Fiscais e Aduaneiros (CEFA) n.º …/2013, de 2013-10-04, da autoria da Dr.ª … com despacho concordante do Diretor do CEFA de 2013-10-08
18. Como decorre das seguintes citações desse Parecer foi entendido que a alteração do método de dedução de imposto e a aplicação retroactiva de um método de dedução não encontram tutela nem no n.º 6 do art. 78.º, nem em qualquer outra norma do CIVA, na medida em que essa opção só pode ser feita nas condições do n.º 1 do artigo 20.º do n.º 1 do artigo 22.º e do art.º 23.º do CIVA.
(...)
2. Direito à dedução do art.º 98.º, n.º 2 do CIVA
24. O Requerente pretende demonstrar é que a sua pretensão pode ser conseguida no prazo de quatro anos invocando para tanto que esse é o prazo do direito à dedução previsto no n.º 2 do art.º 98.º do CIVA e que a pretensão pode ser aduzida através do pedido de revisão das autoliquidações realizadas, ao abrigo do n.º 1 do art.º 78.º da LGT.
25. Do n.º 2 do art. 98.º do CIVA resulta que, “Sem prejuízo de disposições especiais, o direito à dedução ou ao reembolso do imposto entregue em excesso só pode ser exercido até ao decurso de quatro anos após o nascimento do direito à dedução”. O que está em causa nesta norma é, pois, o exercício “pela primeira vez” do direito à dedução do imposto suportado.
26. O que o Requerente suscita é a regularização do imposto anteriormente deduzido e não a sua dedução inicial. A diferença é que a regularização de imposto consiste na retificação/correção do imposto (neste caso) autoliquidado em declaração periódica anterior. Está em causa a alteração de um ato anterior do sujeito passivo.
(...)
31. Como resulta do sumário do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), de 2011-05-18, processo 966/2010, “o n.º 2 do art. 98.º do CIVA, ao estabelecer que o direito à dedução só poderá ser exercido até ao limite de quatro anos após o nascimento do direito à dedução, não tem o alcance de atribuir ao sujeito passivo a liberdade de escolher qualquer momento dentro desse período para efectuar a dedução, mas sim de fixar um limite máximo que não pode ser excedido, mesmo nos casos em que a dedução se pode efetuar em momentos diferentes dos indicados naquele art. 22.º”.
32. Ou seja, na situação em apreço, pretendendo o Requerente regularizar imposto registado na contabilidade desde os anos de 2009 e 2011, nunca seria aplicável o prazo de quatro anos do n.º 2 do art.º 98.º do CIVA.
3. Regularização de imposto através da revisão do art. 78.º da LGT
33. Como exposto, o segundo argumento aduzido no sentido da aplicação do prazo de quatro anos à pretensão da Requerente tem por base a subsunção no n.º 1 do art. 78.º da LGT.
34. Ora, tendo-se concluído que, no caso em apreço, não existe um erro na autoliquidação, nunca poderia a pretensão do Requerente ser acolhida com base na revisão de imposto plasmada no n.º 1 do art.º 98.º do CIVA e no n.º 1 do art.º 78.º da LGT.
(...)
38. Afigura-se também que a situação de erro invocada pelo Requerente, a existir, não podia ser qualificada como erro na autoliquidação, não sendo consequentemente um erro imputável aos serviços.
(...)
41. Ou seja, o erro não é na autoliquidação, mas sim nas operações praticadas a montante, não se considerando legítimo estender o conceito de erro na autoliquidação a estas situações em que a autoliquidação de imposto se limita a refletir erros pré-existentes.
42. Erros na autoliquidação são aqueles que só ocorrem na declaração periódica, como é o caso típico de erros na transcrição das faturas ou dos registos para os campos das declarações periódicas de imposto.
47. Assim se demonstra que o erro na autoliquidação aludido no art.º 78.º da LGT, o qual é considerado imputável aos serviços é o erro que só ocorre na operação de autoliquidação de imposto, não sendo o conceito extensível a erros prévios que vêm a repercutir-se no preenchimento da declaração periódica de imposto apresentada pelo sujeito passivo.
(...)
III-INEXISTÊNCIA DE DILIGÊNCIAS INSTRUTÓRIAS
49. É de salientar que tendo sido considerado que, tal como alegadas, as pretensões do Requerente não tinham viabilidade jurídica, não se procedeu a qualquer diligência instrutória tendente ao apuramento dos factos que suportam os pedidos, designadamente no que concerne à metodologia de apuramento dos valores que pretende regularizar.
(...)
V – CONCLUSÃO
52. Em conclusão, sem que haja lugar a audição prévia do Requerente, propõe-se o indeferimento do pedido de revisão oficiosa das autoliquidações de IVA dos anos de 2009 e 2011, no montante de € 52.056,45.
12) A 10 de Julho de 2015 o Requerente deduziu o pedido tendente à constituição do tribunal arbitral, formulando os pedidos de pronúncia sobre a ilegalidade das autoliquidações de IVA referentes aos exercícios de 2009 e 2011, consubstanciadas nas declarações periódicas de dezembro de 2009 e de janeiro a outubro de 2011, com todas as consequências legais, designadamente a declaração de ilegalidade e anulação do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa de IVA, supra referido - Cf. requerimento electrónico submetido ao CAAD.
III. MOTIVAÇÃO
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, de resto consensualmente reconhecidos e aceites pelas partes.
IV. DO DIREITO
A incompetência material: termos da sua fundamentação pela AT
Previamente ao conhecimento do mérito do pedido formulado pelo Requerente, questiona a AT a competência da jurisdição Arbitral em razão da matéria.
Em causa, para apreciação da competência material deste Tribunal Arbitral, está tão só e apenas saber se, no quadro factual descrito, pode ou não concluir-se pela vinculação da AT à jurisdição arbitral.
Fundamentando a existência de uma exceção dilatória defende a AT que a incompetência material do Tribunal Arbitral resulta da causa subjacente ao indeferimento do pedido de revisão oficiosa. Com efeito, o ato administrativo conducente ao indeferimento do pedido de revisão oficiosa teve por base a invocação da intempestividade da pretendida regularização de IVA, tomando-se apenas posição a este respeito, não sendo feita qualquer apreciação relativa à legalidade de quaisquer atos de autoliquidação, o que resultaria na insusceptibilidade do ato ser impugnado através de impugnação judicial.
Neste sentido, considera a AT que o “pedido e pronúncia arbitral tem por objeto imediato a decisão de indeferimento da revisão oficiosa, não tendo como objeto mediato qualquer ato tributário de liquidação, uma vez que no procedimento de revisão oficiosa não foi apreciada a legalidade de qualquer ato de liquidação, tanto mais que apenas em sede de pronúncia arbitral veio o Requerente aduzir tal pedido”. Assim, não se apreciando ou discutindo a legalidade do ato de liquidação, por haver obstáculo a tal conhecimento, como por exemplo a intempestividade, a impugnação judicial não seria o meio processual adequado.
Ora, estando o processo arbitral estabelecido por referência e com objecto em tudo semelhante ao processo de impugnação judicial, a sindicância do ato em questão estaria fora das matérias susceptíveis de apreciação em sede arbitral, ocorrendo incompetência material da jurisdição arbitral, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, por ausência de apreciação da legalidade do ato de autoliquidação no âmbito do procedimento de revisão oficiosa.
Adicionalmente, a AT invoca incompetência material em virtude de não se verificar a precedência obrigatória de reclamação graciosa, alegando, em síntese, a impossibilidade de conhecimento do pedido do Requerente em face do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 4.º, n.º 1, ambos do RJAT, e nos artigos 1.º e 2.º, alínea a), ambos da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03, (cf. artigos 576.º, nºs 1 e 2 e 577.º, alínea a) do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT).
No âmbito dos fundamentos referidos, a AT invoca que a incompetência dos Tribunais Arbitrais que funcionam no CAAD para apreciar decisões de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa resulta de uma análise aos elementos interpretativos literal, sistemático, histórico e teleológico da Portaria n.º 112-A/2011 que vincula a AT à jurisdição dos tribunais arbitrais apenas se o pedido de declaração de ilegalidade do ato de autoliquidação tiver sido precedido de recurso à via administrativa por intermédio de reclamação graciosa.
Ora, nos termos do artigo 2.º alínea a), da Portaria 112-A/2011, a vinculação da AT à jurisdição dos Tribunais Arbitrais tem por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhe esteja cometida, referidas no nº 1 do artigo 2.º do RJAT, “com exceção das pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”;
Por conseguinte, e atendendo aos termos de vinculação da AT, na situação em apreço impunha-se a precedência obrigatória de reclamação graciosa, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 131.º do CPPT, por se defender que a expressão “recurso à via administrativa” não referencia também a revisão oficiosa do ato tributário, literalmente excluída da competência material dos Tribunais Arbitrais e legalmente vedada em sede arbitral.
Finalmente, a AT invoca a exceção de incompetência material face ao pedido formulado pelo Requerente de condenação da AT no “reembolso do IVA suportado em excesso nos períodos em causa, no valor de € 52.056,45”. Assim, a AT defende que o âmbito da jurisdição arbitral tributária está delimitado, em primeira linha, pelo disposto no artigo 2.º do RJAT que enuncia, no seu n.º 1, os critérios de repartição material da competência, abrangendo a apreciação de pretensões que se dirijam à declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, não tendo o legislador optado por contemplar a possibilidade de apreciação de pedidos tendentes ao reconhecimento de direitos em matéria tributária.
Vejamos então a questão.
A competência material dos Tribunais Arbitrais Tributários:
O âmbito da jurisdição arbitral tributária resulta, em primeira linha, do disposto no art.º 2.º, n.º 1 do RJAT, que enuncia os critérios de determinação material da competência dos tribunais arbitrais nos seguintes termos:
“A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais;
c) Revogada (pelo artigo 160.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2012).”
Em face deste dispositivo, deve-se entender que a competência dos tribunais arbitrais “restringe-se à atividade conexionada com atos de liquidação de tributos, ficando fora da sua competência a apreciação da legalidade de atos administrativos de indeferimento total ou parcial ou de revogação de isenções ou outros benefícios fiscais, quando dependentes de reconhecimento da Administração Tributária, bem como de outros atos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem apreciação do ato de liquidação, a que se refere a alínea p) do n.º 1 do art.º 97.º do CPPT”.[2]
A apreciação da competência do tribunal arbitral envolve um juízo sobre a adequação ao caso sub judice do meio processual da ação administrativa especial ou do processo de impugnação judicial, em atenção ao disposto no art.º 97.º do CPPT, que procede à definição dos respetivos campos de aplicação distinguindo a “impugnação dos atos administrativos em matéria tributária que comportem a apreciação da legalidade do ato de liquidação” (nos termos da alínea d) do n.º 1) e o “recurso contencioso do indeferimento total ou parcial ou da revogação de isenções ou outros benefícios fiscais, quando dependentes de reconhecimento da administração tributária, bem como de outros actos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem apreciação da legalidade do acto de liquidação” (nos termos da alínea p) do n.º 1), sendo que, nos termos do n.º 2 do art.º 97.º, o “recurso contencioso dos actos administrativos em matéria tributária, que não comportem a apreciação da legalidade do acto de liquidação, da autoria da administração tributária, compreendendo o governo central, os governos regionais e os seus membros, mesmo quando praticados por delegação, é regulado pelas normas sobre processo nos tribunais administrativos”.
Para concretizar tal distinção entre o âmbito de aplicação destes meios processuais, que por força da al. a) do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT, possui relevo na definição da competência dos tribunais arbitrais tributários, constitui orientação jurisprudencial consolidada o seguinte: “a utilização do processo de impugnação judicial ou do recurso contencioso (atualmente ação administrativa especial, por força do disposto no art.º 191.º do CPTA) depende do conteúdo do ato impugnado: se este comporta a apreciação da legalidade de um ato de liquidação será aplicável o processo de impugnação judicial e se não comporta uma apreciação desse tipo é aplicável o recurso contencioso/ação administrativa especial”.[3]
Desta forma, tendo presentes estes princípios básicos, para apurar a competência do tribunal arbitral cabe averiguar o conteúdo do ato impugnado, de modo a verificar se comportou a apreciação de um ato de liquidação ou autoliquidação.
Para o efeito, como resulta da expressão “apreciação” utilizada na alínea d) do n.º 1 do art.º 97.º do CPPT, basta que, no ato em apreço, se tenha avaliado ou examinado a “legalidade do ato de liquidação”, mesmo que essa apreciação não seja o fundamento da decisão administrativa.[4]
Subsunção:
Ora, como claramente resulta dos autos e do elenco de factos provados, está aqui em causa o indeferimento do pedido de revisão oficiosa de autoliquidação de IVA, apresentado pelo Requerente, em 30.12.2013, ao abrigo do disposto no artigo 78.º da LGT e do artigo 98.° do Código do IVA, solicitando autorização à AT para regularizar o IVA liquidado em excesso durante os anos de 2009 (no montante de € 27.081,07), e de 2011 (no montante de 24.975,28).
Este pedido foi indeferido com fundamento em intempestividade, citando o despacho, “(…) entende-se que em qualquer uma das situações, não é aplicável o prazo de quatro anos previsto no n.º 2 do art.º 98.º do CIVA e no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, nem sequer o prazo de dois anos previsto n.º 1 do art.º 131.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) ou no n.º 6 do art.º 78.º do CIVA.”
Encontra-se ainda na Informação que consubstancia a fundamentação do indeferimento do pedido de revisão oficiosa a seguinte conclusão: “49. É de salientar que tendo sido considerado que, tal como alegadas, as pretensões do Requerente não tinham viabilidade jurídica, não se procedeu a qualquer diligência instrutória tendente ao apuramento dos factos que suportam os pedidos, designadamente no que concerne à metodologia de apuramento dos valores que pretende regularizar.”
Do exposto resulta a conclusão óbvia de que a AT não apreciou a legalidade da liquidação.
O ato que se encontra em causa, que constitui o objeto imediato do presente processo, é, consequente e indubitavelmente, a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado.
Esta decisão de indeferimento, por seu turno, respeita à “revisão oficiosa da autoliquidação do IVA” pelo que incide sobre os atos de autoliquidação do imposto relativos a 2009 e 2011, sobre cuja ilegalidade o Requerente pretende fundar o seu direito à regularização do IVA liquidado em excesso.
Por conseguinte, e atendendo aos termos de vinculação da AT, na situação em apreço, impunha-se a precedência obrigatória de reclamação graciosa, com a consequente pronúncia sobre o mérito da pretensão apresentada, à luz do disposto no nº 1 do artigo 131.º do CPPT, porquanto e além do mais, a expressão “recurso à via administrativa” não referencia também a revisão oficiosa do ato tributário[5], literalmente excluída da competência material dos Tribunais Arbitrais e legalmente vedada em sede arbitral.
Ou seja, e dito doutro modo: estamos perante um ato administrativo em matéria tributária que, por não apreciar ou discutir a legalidade do ato de liquidação, não pode ser sindicável através de impugnação judicial, nos termos previstos na alínea a), do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT e do artigo 2.º do RJAT.[6]
Sufraga-se assim o entendimento da AT relativo à questão da incompetência material dos Tribunais Arbitrais para apreciação do objeto deste litígio.
Ou seja: considera-se, na esteira e com os fundamentos de anteriores decisões proferidas pelo Tribunal Arbitral[7], que não se insere no âmbito das competências arbitrais apreciar a legalidade ou ilegalidade de decisões de indeferimento de pedidos de regularização de IVA apresentados nos termos do 78º, da LGT nem, como pede o Requerente, proferir decisões anulatórias de atos de autoliquidação de IVA sem precedência de apreciação da legalidade desses atos pela AT, nos termos dos artigos 131.º a 133.º, do CPPT.
Naturalmente que podem ser discutíveis os fundamentos da decisão da AT quando conclui e decide pelo indeferimento do pedido de revisão, utilizando o argumento da intempestividade do direito à regularização/dedução do IVA suportado em excesso durante os anos 2009 e 2011.
A verdade, porém, é que, ainda que se indiciassem eventualmente nos fundamentos desse despacho, que o destino do pedido pudesse ser o deferimento se não ocorresse a intempestividade, tal não retirava ao despacho a sua natureza de não pronúncia sobre o mérito e, consequentemente, o não preenchimento do necessário pressuposto para a competência material dos Tribunais Arbitrais Tributários constituídos no âmbito do CAAD.
Não têm, por isso, sustentação legal os argumentos invocados pelo Requerente.
Relativamente à competência material dos tribunais arbitrais para apreciação de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do artigo 131.º do CPPT mas, tão só de revisão oficiosa nos termos do artigo 78.º da LGT, faz-se, nesta sede, referência ao entendimento propugnado num outro colectivo desta jurisdição arbitral concretamente o Acórdão n.º 148/2014 -T de 19 de Setembro.
A fórmula “declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”, utilizada na alínea a) do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT não restringe, numa mera interpretação declarativa e como se viu, o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado diretamente um ato de um daqueles tipos. Com efeito, a ilegalidade de atos de liquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um ato de segundo grau (reclamação graciosa) ou terceiro grau (recurso hierárquico), que confirme um ato de liquidação, incorporando a sua ilegalidade.
Por conseguinte, admite-se a inclusão nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD nos casos em que a declaração de ilegalidade dos atos aí indicados é efetuada através da declaração de ilegalidade de atos de segundo grau ou terceiro grau, que são o objeto imediato da pretensão impugnatória, por via da referência que é feita naquela norma aos atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, que expressamente se referem como incluídos entre as competências dos tribunais arbitrais.
Por outro lado, a pronúncia prévia da Administração Fiscal noutros procedimentos previstos na Lei, designadamente no processo de revisão dos atos tributários previsto no artigo 78.º, da LGT[8], só seria eventualmente de considerar [e há, pelo menos, fortes dúvidas, que o possa ser] como equivalente à exigência prevista no artigo 2º, da citada Portaria nº 112-A/2011, de prévio “ (…) recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131º a 133º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (…)” , no caso de efetiva e real pronúncia quanto ao mérito e/ou ilegalidade do ato de autoliquidação[9].
Ora, se o preenchimento desse pressuposto pudesse ser considerado independentemente de uma apreciação de mérito e, designadamente, quando fosse rejeitado ou indeferido liminarmente por intempestividade, estaria desse modo encontrada a forma de abertura da via arbitral: bastaria a apresentação dum pedido de reclamação ou revisão manifestamente extemporâneo e, denegado o pedido, apresentar o requerimento de pronúncia arbitral sem risco de inadmissibilidade por incompetência material do Tribunal Arbitral.
Não foi, naturalmente, esse o objetivo do legislador da citada Portaria quando redigiu a norma em causa, mas antes, e manifestamente, pretendeu excluir da jurisdição arbitral a apreciação e decisão sobre, designadamente, autoliquidação de impostos sem antes ter sido apreciado o mérito dessa pretensão pela AT através dos mecanismos de recurso nos termos dos artigos 131.º a 133.º, do CPPT.
Em face do exposto, considera-se que assiste razão à Requerida, sendo este Tribunal Arbitral materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido objeto do litígio sub juditio, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 4.º, n.º 1, ambos do RJAT e dos artigos 1.º e 2.º, alínea a), da Portaria n.º 112-A/2011, o que consubstancia uma exceção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa, levando à absolvição da instância, nos termos do disposto no artigo 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º alínea a) do CPC ex vi artigo 2º, alínea e) do CPPT e artigo 29.º, nº 1, alíneas a) e e) do RJAT.
IV. DECISÃO
Ponderando a fundamentação exposta, este Tribunal decide:
a) Julgar procedente a exceção de incompetência material deduzida pela Autoridade Tributária e Aduaneira e, em consequência, absolver a Requerida da instância;
b) Julgar, em consequência, prejudicado o conhecimento das demais exceções e da questão de mérito invocadas.
c) Condenar o Requerente no pagamento das custas (artigo 22.º n.º 4, do RJAT), fixando-se estas na importância de € 2.142,00 nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
*
Valor do processo:
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e artigo 3.º, n.º 1 e 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 52.056,45.
Lisboa, 26 de Janeiro de 2016
A Árbitro
(Filipa Barros)
[1] Acrónimo de Regime Jurídico da Arbitragem Tributária.
[2] Vide, Jorge Lopes de Sousa, Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária in Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, 2013, p. 105.
[3] Vide, Acórdão do STA de 25.6.2009, proc. n.º 0194/09.
[4] Neste sentido, o acórdão arbitral de 06.12.2013, proferido no processo n.º 117/2013-T.
[5] Conforme se referirá infra, poderá ser discutível a equivalência da pronúncia da AT em sede de reclamação graciosa à pronúncia, v. g., em sede do procedimento de revisão oficiosa previsto no artigo 78.º, da LGT.
[6] Cf. Acórdão do STA de 12-7-2006, processo n.º 402/06, no qual se refere que o procedimento de revisão “é admitido como complemento dos meios de impugnação administrativa e contenciosa desses atos, a deduzir nos prazos normais respetivos, que tem em vista possibilitar sanar injustiças de tributação tanto a favor do contribuinte como a favor da administração. Essencialmente, o regime do art.º 78.º, quando o pedido de revisão é formulado para além dos prazos de impugnação administrativa e contenciosa, reconduz-se a um meio de restituição do indevidamente pago, com revogação e cessação para o futuro dos efeitos do ato de liquidação, e não um meio anulatório, com destruição retroativa dos efeitos do ato. A esta luz, o meio procedimental de revisão do ato tributário não pode ser considerado como um meio excecional para reagir contra as consequências de um ato de liquidação, mas sim como um meio alternativo dos meios impugnatórios administrativos e contenciosos (quando usados em momento em que aqueles ainda podem ser utilizados) ou complementar deles (quando já estiverem esgotados os prazos para utilização dos meios impugnatórios do ato de liquidação). Trata-se de um regime reforçadamente garantístico, quando comparado com o regime de impugnação de atos administrativos, mas esse esforço encontra explicação na natureza fortemente agressiva da esfera jurídica dos particulares que têm os atos de liquidação de tributo.
E, prossegue tal aresto, (…) embora o art.º 78.º da LGT, no que concerne a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte, se refira apenas à que tem lugar dentro «do prazo de reclamação administrativa», no n.º 6 do mesmo artigo (na redação inicial, que é o n.º 7 na redação vigente) faz-se referência a «pedido do contribuinte», para a realização da revisão oficiosa, o que revela que esta, apesar da impropriedade da designação como «oficiosa», pode ter subjacente também a iniciativa do contribuinte. Idêntica referência é feita no n.º 1 do art.º 49.º da LGT, que fala em «pedido de revisão oficiosa», e na alínea a) do n.º 4 do art.º 86.º do CPPT, que refere a apresentação de «pedido de revisão oficiosa da liquidação do tributo, com fundamento em erro imputável aos serviços». É, assim, inequívoco que se admite, a par da denominada revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte (dentro do prazo de reclamação administrativa), que se faça, também na sequência e iniciativa sua, a «revisão oficiosa» (que a Administração deve realizar por sua iniciativa).Por outro lado, a alínea d) do n.º 2 do art.º 95.º da LGT refere os atos de indeferimento de pedidos de revisão entre os atos potencialmente lesivos, que são suscetíveis de serem impugnados contenciosamente. Não se faz, aqui qualquer distinção entre atos de indeferimento praticados na sequência de pedido do contribuinte efetuado no prazo da reclamação administrativa ou para além dele, pelo que a impugnabilidade contenciosa a atos de indeferimento de pedidos de revisão praticados em qualquer das situações, o que aliás, é corolário do princípio constitucional da impugnabilidade contenciosa de todos os atos que lesem direitos ou interesses legítimos dos administrados (art. 268.º, n.º 4, da CRP).
[7] Neste sentido, é extensa a jurisprudência emanada pelo Tribunal Arbitral, indicando-se a título meramente exemplificativo as seguintes decisões: Processos Arbitrais n.º 236/2013-T, n.º 244/2013-T, n.º148/2014-T, n.º 613/2014-T in www.caad.org.pt
[8] Ora, nos casos em que é formulado um pedido de revisão oficiosa de um ato de autoliquidação, como sucede no caso em apreço, é proporcionada à AT, com este pedido, uma oportunidade de se pronunciar sobre o mérito da pretensão do sujeito passivo antes de este recorrer à via jurisdicional, pelo que, em coerência com as soluções adotadas nos n.ºs 1 e 3 do artigo 131.º do CPPT, não pode ser exigível que, cumulativamente com a possibilidade de apreciação administrativa no âmbito desse procedimento de revisão oficiosa, se exija uma nova apreciação administrativa através de reclamação graciosa (cf., neste sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 12-7-2006, proferido no processo n.º 402/06, e de 14-11-2007, processo n.º 565/07 in http://www.dgsi.pt/)
[9] Tal como já foi entendido em diversas decisões de tribunais arbitrais deste CAAD (cf., por exemplo, os acórdãos de 06/12/2013, proferido no proc. n.º 117/2013-T e de 23/10/2012, proc. n.º 73/2012-T, onde se convoca outra jurisprudência), e não se desconhecendo, muito embora, a existência de entendimento em contrário (vd. o acórdão de 09/11/2012, proc. n.º 51/2012-T), este tribunal também entende que deve considerar-se incluída nas competências atribuídas aos tribunais arbitrais a apreciação de atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de atos de autoliquidação, pois, por um lado, a fórmula “declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”, utilizada na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, compreende quer os casos em que é impugnado diretamente um ato de um daqueles tipos, quer os casos em que é impugnado um ato de segundo grau, que mantenha um ato de liquidação, não declarando a sua ilegalidade, e, por outro lado, o teor da al. a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, para que remete o n.º 1 do artigo 4.º do RJAT, não deve ser interpretado, em atenção à sua ratio legis, no sentido de excluir o indeferimento de pedido de revisão oficiosa, dado que na revisão oficiosa é proporcionada à Administração Tributária a oportunidade de se pronunciar sobre o mérito da pretensão do sujeito passivo antes de este recorrer à via jurisdicional, não sendo razoável que, cumulativamente com a possibilidade de apreciação administrativa no âmbito desse procedimento de revisão oficiosa, se exija uma nova apreciação administrativa através de reclamação graciosa, pelo que não se justifica afastar a jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD nos casos em que é formulado um pedido de revisão oficiosa sem prévia reclamação graciosa, com o que se criaria, sem fundamento bastante, uma nova situação de reclamação graciosa necessária privativa da jurisdição arbitral. Todavia, insiste-se, não basta ser comprovado o recurso prévio à via administrativa por quaisquer dos meios mencionados, é também absolutamente necessário comprovar que houve efetiva apreciação pela Administração, do mérito dos pedidos, requisito que, para efeitos de competência do Tribunal Arbitral, não é preenchido quando e se essa apreciação de legalidade foi liminarmente denegada por, v. g., extemporaneidade do pedido de revisão oficiosa.