Decisão Arbitral
I. RELATÓRIO
A…, S.A., pessoa colectiva n.º …, com sede na Rua …, n.º …, … – … Lisboa (doravante Requerente), veio, nos termos do artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico de Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral singular, em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante AT ou Requerida, com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação dos actos tributários de liquidação de Imposto Único de Circulação identificados na petição arbitral.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 25 de Junho de 2015.
Nos termos do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 26 de Agosto de 2015.
A AT respondeu, defendendo que o pedido deve ser julgado improcedente.
Em face do teor da matéria contida nos autos, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e a realização de alegações finais.
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária, são legítimas e estão representadas (artigo 4.º, e n.º 2 do artigo 10 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março).
Nos termos do artigo 3.º do RJAT, tendo em conta o princípio da simplificação e da economia processuais, a cumulação de pedidos é admissível, considerando que a procedência dos pedidos depende da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios e regras de direito.
Não ocorrem quaisquer nulidades, excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento imediato do mérito da causa.
II. MATÉRIA DE FACTO
Com base nos elementos que constam do processo e do processo administrativo junto aos autos, consideram-se provados os seguintes factos:
A. A Requerente é uma instituição de crédito com forte presença no mercado nacional;
B. De entre as suas áreas de actividade, assume especial relevância o financiamento ao sector automóvel; Uma parte substancial da sua actividade reconduz-se à celebração – entre outros – de contratos de locação financeira destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis;
C. Os veículos automóveis identificados na listagem junta como ANEXO A (cuja matrícula consta da coluna D) foram dados em locação financeira, pela Requerente aos clientes ali também identificados (na coluna M) – cf. os respectivos contratos, juntos como documentos n.º 27 a 52;
D. Durante a vigência destes Contratos, a utilização dos respectivos veículos automóveis esteve exclusivamente a cargo dos locatários;
E. Na data do termo destes Contratos, os locatários dos referidos veículos automóveis decidiram exercer a sua opção de compra, a qual lhes é legal e contratualmente assegurada,
F. Tendo-se tornado, pois, proprietários dos mencionados veículos (conforme resulta das facturas de venda juntas como documentos n.º 53 a 78, identificadas na coluna T) da tabela que consiste o ANEXO A, por referência à matrícula e procedido ao pagamento do respectivo valor residual;
G. Sendo certo que, num número reduzido de casos (concretamente, os n.º 7, 10, 11, 14, 15 e 31 do ANEXO A), os sujeitos que se tornaram proprietários dos veículos não coincidem com aqueles que originariamente celebraram o contrato de locação financeira;
H. A Requerente procedeu ao pagamento do IUC, a que respeitam os actos de liquidação adicional identificados na tabela junta como ANEXO A.
Não existem factos com relevo para a decisão da causa que devam considerar-se não provados.
Este Tribunal firmou a sua convicção na consideração dos documentos juntos aos autos pelas Partes.
III. MATÉRIA DE DIREITO
A principal questão que se coloca nos presentes autos prende-se com saber se a Requerente deve ser qualificada como sujeito passivo do IUC, quando à data a que se reportam os actos de liquidação de IUC em análise, a Requerente já não era proprietária daqueles veículos, embora a transmissão dos veículos não estivesse devidamente registada junto da Conservatória de Registo Automóvel.
Subsidiariamente será analisada a questão de saber se a Requerente deve ser qualificada como sujeito passivo do IUC, no que concerne aos veículos objecto de contratos de locação financeira.
A este propósito defende a Requerente, sinteticamente, o seguinte:
1. Nos anos (e, por maioria de razão, nos meses desses anos) a que se reportam os actos de liquidação de IUC Sub Judice, os veículos a que as mesmas correspondem já tinham saído da esfera jurídica da Requerente, pertencendo a respectiva propriedade a outrem;
2. Pelo que, nas datas a que se reportam os factos tributários que originaram as liquidações de IUC aqui em causa, a Requerente já não era proprietária dos veículos a que as mesmas se referem;
3. Consequentemente, não pode a Requerente assumir a qualidade de sujeito passivo do imposto que lhe foi liquidado.
4. De resto ainda que assim não se considerasse, o que não se admite senão em benefício da discussão, a verdade é que, em todos os casos identificados na tabela junta como ANEXO A, a Requerente – mesmo antes de alienar os respectivos veículos automóveis – não podia ser considerada sujeito passivo dos correspondentes IUC, porquanto sobre tais veículos incidiam contratos de locação financeira, o que determina que seja o locatário, e não o locador, o responsável pelo pagamento do aludido imposto;
5. A AT não se pode servir do argumento da falta de registo de transmissão para vir exigir o imposto em falta à aqui Requerente, não apenas porque, a não ser válida a transmissão, esta permaneceria a “mera” entidade locadora do veículo em questão – o que, como já se encontra pacificado entre nós e se desenvolverá infra, determina a sua ilegitimidade para assumir o encargo do IUC –, mas sobretudo porque a falta de registo não afecta a validade do contrato de compra e venda mas apenas a sua eficácia, e, mesmo esta, unicamente perante terceiros de boa-fé para efeitos do registo; qualificação que a AT indubitavelmente não assume no caso em apreço;
6. Em suma, as facturas juntas pela Requerente afiguram-se plenamente suficientes para comprovar a transmissão dos veículos automóveis subjacentes ao presente pedido de pronúncia arbitral, gozando aliás da presunção de veracidade.
7. E também não restam dúvidas que a transmissão da propriedade, nos casos aqui em apreço, sucedeu antes de vencidos os IUC cuja liquidação se contesta: ou em anos anteriores ao próprio ano cujo IUC está a ser exigido; ou em meses anteriores ao da exigibilidade do IUC;
8. Ainda que houvesse dúvidas, quanto a alguns dos veículos automóveis a circunstância de sobre os mesmos veículos incidir um contrato de locação financeira – que só terminou, justamente, com a sua transmissão – impunha que se alcançasse semelhante conclusão;
9. Com efeito, caso se entendesse que, quanto a alguns destes veículos, não houve transmissão da propriedade – no que não se concede, repita-se, e se equaciona em mero benefício da discussão –, tal determinaria que os respectivos contratos de locação financeira estariam ainda em vigor;
10. Assim sendo, a Requerente estaria colocada, quanto a esses mesmos veículos, na qualidade de entidade locadora, não sendo, por isso, sujeito passivo do correspondente IUC, cuja responsabilidade pelo pagamento recai sobre o locatário;
11. De acordo com o n.º 2 do artigo 3.º do Código do IUC, a regra é muito simples: cabendo às locatárias o gozo exclusivo do veículo automóvel sobre o qual recai o contrato, cabe-lhes também a obrigação de pagar o imposto;
12. No que respeita à locação financeira, é então evidente: reconhecendo-o o próprio legislador fiscal como “utilizador do veículo locado” (artigo 19.º), não restam dúvidas que deve pertencer ao locatário a responsabilidade por indemnizar os custos (ambientais e viários) associados ao potencial de utilização do respectivo veículo;
13. E esta regra é, salvo melhor opinião, a que se afigura mais consistente, justamente do ponto de vista da ratio da lei, a que acima se referiu: sabendo-se de antemão que o IUC visa imputar aos contribuintes a responsabilidade que lhes é assacada pelo potencial de utilização de veículos automóveis – no que respeita aos custos ambientais e viários que tal utilização acarreta – não pode o mesmo deixar de consistir encargo de quem efectivamente causa tais custos, que não há-de deixar de ser a pessoa a quem pertence o direito de utilizar o veículo em questão;
14. Nos dizeres de Diogo Leite de Campos: “O IUC é um imposto ambiental que leva em conta o uso do bem que se pressupõe. O proprietário é sujeito passivo por ser de pressupor que o proprietário usa o bem. Mas, mediante prova em contrário, no sentido de que o proprietário não usa o bem, havendo um outro com título a esse uso, o sujeito passivo passa a ser este, e só este” (in Parecer junto como ANEXO C);
15. Continuando: “uma vez que se prove que há um “não proprietário” com um título legítimo e exclusivo à utilização do veículo, então a “ratio legis” leva a que o sujeito passivo seja este e só este. É este o responsável efectivo pelos danos causados ao meio ambiente e às rodovias” (realce nosso);
16. Nos casos aqui em apreço – e caso se devesse considerar, por qualquer motivo que a Requerente não consegue descortinar, que não tinham ocorrido as transmissões da propriedade destes veículos –, por estarem então sujeitos a contratos de locação financeira, os veículos automóveis cujas liquidações de IUC se contestam não foram, em momento algum, utilizados pela Requerente, mas sim pelos respectivos locatários;
Por sua vez a AT alega, em síntese, o seguinte:
1. O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados;
2. Note-se que o legislador não usou a expressão “presumem-se”, como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados;
3. Em contrapartida, o normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do n.º 1 do artigo 3.º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, para efeitos de residência, de localização, entre muitos outros;
4. A título meramente exemplificativo, vejam-se os artigos 2.º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (Código do IMT), 2.º, 3.º e 4.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (Código do IRS) e 4.º, 17.º, 18.º e 20.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (Código do IRC).
5. No caso do artigo 2.º, n.º 3, a) do CIMT, por exemplo, o legislador tributário não presume que há lugar a transmissão onerosa na outorga do contrato-promessa de aquisição e alienação de bens imóveis em que seja clausulado no contrato ou posteriormente que o promitente adquirente pode ceder a sua posição contratual a terceiro; o legislador fiscal expressa e intencionalmente assimila este contrato a uma transmissão onerosa de bens para efeitos de IMT.
6. Do mesmo modo, no caso do artigo 17.º, n.º 2 do CIRC, o legislador, também não estabelece que os excedentes líquidos das cooperativas se presumem como resultado líquido do período, mas sim que estes se consideram como tal.
7. Aliás, grande parte das normas de incidência em sede de IRC têm como ratio subjacente determinar o que deve ser considerado como rendimento para efeitos deste imposto, por contraposição com o que de acordo com as normas contabilísticas é rendimento do período.
8. Pelo que, se se entendesse que ao usar a expressão “considera-se” o legislador fiscal teria consagrado uma presunção, praticamente todas as normas de incidência em sede de IRC seriam afastadas precisamente porque a contabilidade prescreve soluções diferentes das do CIRC, sendo exatamente o fim do legislador afastar tais regras contabilísticas.
9. A ser assim frustrar-se-ia todo o efeito útil das referidas normas.
10. Nestes termos, é imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas] as pessoas em nome das quais os mesmos [os veículos] se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal.
11. Entender que o legislador consagrou aqui uma presunção, seria inequivocamente efetuar uma interpretação contra legem.
12. Em face desta redação não é manifestamente possível invocar que se trata de uma presunção, conforme defende a Requerente.
13. Trata-se, sim, de uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção, adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários, aqueles que como tal constem do registo automóvel.
14. Em suma, o artigo 3.º do CIUC não comporta qualquer presunção legal.
15. Concretizemos: a Requerente defende, suportada na doutrina plasmada no parecer corporizado no Anexo C junto à p.i., que o Decreto-Lei 54/75 nada diz sobre o valor jurídico do registo de propriedade automóvel, pelo que à luz do disposto no artigo 7.º do Código do Registo Predial (diploma legal subsidiariamente aplicável àquele) necessariamente se há-de concluir que o registo constitui uma mera presunção.
16. Da articulação entre o âmbito da incidência subjetiva do IUC e o facto constitutivo da correspondente obrigação de imposto decorre inequivocamente que só as situações jurídicas objeto de registo (sem prejuízo, da permanência de um veículo em território nacional por mais período superior a 183 dias, previsto no n.º 2 do artigo 6.º) geram o nascimento da obrigação de imposto.
17. Por sua vez, dispõe o n.º 3 do mesmo artigo que «o imposto considera-se exigível no primeiro dia do período de tributação referido no n.º 2 do artigo 4.º».
18. Ou seja, o momento a partir do qual se constitui a obrigação de imposto apresenta uma relação direta com a emissão do certificado de matrícula, no qual devem constar os factos sujeitos a registo (Cfr. artigos 4.º, n.º 2 e 6.º, n.º 3 do Código do IUC, artigo 10.º, n.º 1 do Decreto-Lei 54/75, de 12 de fevereiro, e artigo 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis).
19. No mesmo sentido milita a solução legislativa adotada pelo legislador fiscal no artigo 3.º, n.º 2 do CIUC ao fazer coincidir as equiparações aí consagradas com as situações em que o registo automóvel obriga ao respetivo registo.
20. Mesmo admitindo que, do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial, a ausência de registo não afeta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real, nos termos estabelecidos no CIUC (que no caso em apreço constitui lei especial, a qual, nos termos gerais de direito derroga a norma geral), o legislador tributário quis intencional e expressamente que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados;
21. As facturas não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois tais documentos não revelam por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte dos pretensos adquirentes;
22. As facturas juntas pela Requerente apresentam no seu descritivo menções distintas; Assim, enquanto que nas facturas juntas sob a forma de páginas 8, 10, 20, 23, 24, 25 e 26 dos Documentos em PDF n.os 53 a 78 juntos à p.i. se pode ler no campo da descrição a menção “venda do bem”, nas facturas juntas sob a forma de páginas 3, 4, 5, 6, 7, 9, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 21 e 22 dos Documentos em PDF n.ºs 53 a 78 juntos à p.i. aparece no descritivo a menção “valor residual”.
Face ao exposto, relativamente à posição das Partes e aos argumentos apresentados, para determinar se a Requerente deve ser qualificada como sujeito passivo do IUC, em relação aos veículos já identificados, será necessário verificar:
a) Se a norma de incidência subjectiva constante do artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC estabelece ou não uma presunção;
b) Quem é o sujeito passivo de IUC, para efeitos do disposto o artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC:
a. Relativamente a veículos já alienados na data da verificação do respectivo facto gerador; e, subsidiariamente,
b. Quanto aos veículos objecto de contratos de locação financeira celebrados pela Requerente;
Vejamos o que deve ser entendido.
a) Interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC
Estabelece o artigo 3.º do Código do IUC o seguinte:
“1-São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
2 – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.”
Resulta do artigo 11.º da Lei Geral Tributária (LGT) que a interpretação da lei fiscal deve ser efectuada atendendo aos princípios gerais de interpretação.
Os principais gerais de interpretação estão estabelecidos no artigo 9.º do Código Civil (CC), nos seguintes termos:
“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
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Estabelece-se, assim, que são três os elementos de interpretação da Lei, a saber: o elemento literal, o elemento histórico e racional e o elemento sistemático.
Atendendo ao elemento literal da norma aqui em discussão, importará, em primeiro lugar, reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei. Diz-se no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.”
De acordo com a AT, a expressão “considerando-se” não constitui uma presunção legal, sendo intenção do legislador estabelecer expressa e intencionalmente que se consideram como tais (como proprietários) as pessoas em nome das quais os mesmos (veículos) se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal.
Sucede que, do ponto de vista literal, constata-se que a expressão “considerando-se” ou “considera-se” é muitas vezes utilizada com sentido equivalente à expressão “presumindo-se” ou “presume-se”.
Assim, a título exemplificativo, veja-se o artigo 191.º, n.º 6, do CPPT, entre outros artigos assinalados nas decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 14/2013-T, 27/2013-T, 73/2013-T ou 170/2013-T.
Deste modo, pode dizer-se que a expressão “considerando-se” tem “um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”, devendo reconhecer-se a tal vocábulo uma correspondência corrente e normal a esse sentido presuntivo (Vide decisão arbitral proferida, no âmbito do processo n.º 286/2013-T).
Não obstante, e tal como é salientado pela AT, o vocábulo “considerando” também é utilizado fora de contextos presuntivos – Vide artigo 18.º da sua resposta.
Por isso, importa submeter ao controlo dos demais elementos de interpretação de natureza lógica o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC.
Assim, atendendo ao elemento histórico de interpretação, importa considerar que a proposta de lei n.º 118/X, de 7.03.2007, subjacente à Lei n.º 22-A/2007, de 29.06 consagra “como elemento estruturante e unificador (…) o princípio da equivalência, deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os Requerentes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária.”
Neste contexto, parece-nos claro que o legislador pretendeu tributar o sujeito passivo real e efectivo causador de danos viários e ambientais e não um qualquer detentor de registo automóvel.
Tal como já foi por diversas vezes salientado em várias decisões arbitrais, o princípio da equivalência visa internalizar as externalidades ambientais negativas, decorrentes da utilização dos veículos automóveis, e foi erigido em princípio fundamental da tributação dos veículos automóveis em circulação.
Como defende Sérgio Vasques, in Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, Coimbra, 2001, p. 122, “Assim, um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também”, acrescentando que a concretização do dito princípio “(…) dita outras exigências ainda no tocante à incidência subjectiva do imposto (…)”.
Tendo em conta os fundamentos subjacentes à criação do actual Código do IUC, em especial, a erupção do princípio da equivalência em princípio estruturante e unificador da tributação dos veículos em circulação, parece-nos que o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC não pode ser interpretado como um comando fechado, mas antes como uma presunção ilidível, que tem por base a assunção de que na realidade o agente responsável pelos danos ambientais é, em regra, o proprietário registado do automóvel. Assunção essa que não poderá deixar de ser desconsiderada, caso na realidade seja outro o agente responsável, isto é, o sujeito passivo de IUC.
Do ponto de vista sistemático, importará reforçar novamente que logo no artigo 1.º do Código do IUC se estabelece que “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os Requerentes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.”
Como defende A. Brigas Afonso e Manuel T. Fernandes, in Imposto sobre Veículos e Imposto Único de Circulação, Códigos Anotados, pp. pág. 183, “o legislador procura legitimar a tributação dos veículos automóveis com base nas externalidades negativas por eles causadas (na saúde pública, no ambiente, na segurança rodoviária, no congestionamento das vias de comunicação e na paisagem urbana) desmistificando a ideia de que a tributação auto é muito elevada em Portugal.”
Segundo Batista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 183, o elemento sistemático “compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda ao lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.”
Esta é, aliás, a solução mais justa se considerarmos que a unidade do sistema fiscal não pode deixar de ser encontrada no princípio da verdade material e no princípio da proporcionalidade (Vide Saldanha Sanches, in Princípios do Contencioso Tributário, pp. pág. 21, e Alberto Xavier, in Conceito e Natureza do Acto Tributário, pp. 147 e seg.).
Pelo exposto não procedem os argumentos da AT, no sentido de que “a presunção da propriedade automóvel decorre única, directa e exclusivamente do próprio regime registal automóvel, e não da legislação fiscal sobre automóveis que constitui um aspecto colateral àquele regime.”
Na verdade, a interpretação aqui defendida é não só aquela que melhor de coaduna com o princípio da verdade material, como também a única que serve os propósitos de justiça fiscal.
De igual modo, contrariamente ao defendido pela AT, não nos parece defensável, à luz dos princípios constitucionais vigentes, a predominância do princípio da eficiência do sistema tributário sobre o princípio da justiça material. Embora não se possam deixar de compreender as dificuldades práticas que a elisão da presunção estabelecida no artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC possa provocar em termos de cobrança imediata de receitas pela AT, a interpretação da Lei não poderá ser ajustada a essas necessidades, antes devendo ser alterados de forma eficiente e em conformidade com a Lei, os procedimentos associados à cobrança deste imposto, não esquecendo a possibilidade legal de suspensão do prazo de caducidade dos impostos.
Considerando-se que o direito tributário existe para regular os conflitos de interesses entre as pretensões do Estado de prosseguir o interesse público de obter receitas e as pretensões dos contribuintes de manterem a integridade do seu património, não deverá, em regra, servir como critério interpretativo da norma tributária, a salvaguarda do interesse patrimonial ou financeiro do Estado.
Em suma: com base no artigo 9.º do CC, considera-se que todos os elementos de interpretação (literal, histórico e sistemático) apontam no sentido de que o artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC estabelece uma presunção ilidível. Tal significa que os sujeitos passivos de IUC sendo, em princípio, os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas em nome dos quais os mesmos se encontrem registados, poderão, afinal, ser outros, se forem efectivamente outros os provocadores dos danos ambientais, enquanto utilizadores dos veículos em circulação.
b) Sujeito passivo de IUC, para efeitos do disposto o artigo 3.º, n.º 1 e 2 do Código do IUC relativamente a:
· veículos já alienados na data da verificação do respectivo facto gerador;
· veículos objecto de contratos de locação financeira celebrados pela Requerente;
Tendo em conta o exposto em a) supra, entende-se que a disposição em análise estabelece uma presunção de propriedade em favor das pessoas em nome de quem se encontrem registados os veículos.
Nos termos do artigo 73.º da LGT, “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.”
Como defendem Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, pp. pág. 652, 4.ª Edição, “o que se pretende “sempre” é tributar rendimentos reais e não inexistentes e é por esta razão, de se querer sempre tributar valores reais, que o artigo 73.º da LGT permite “sempre” ilidir presunções.
É esta a interpretação que está em sintonia, por um lado, com o princípio enunciado no artigo 11.º, n.º 3, da LGT de que, nos casos de dúvida sobre a interpretação das normas tributárias "deve atender-se à substância económica dos factos tributários” e, por outro lado, com o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, que impõe que a tributação da generalidade dos contribuintes, sempre que possível, assente na realidade económica subjacente aos factos tributários e não se compagina com a existência de casos especiais de tributação com base em valores fictícios em situações em que é conhecido ou é apurável o valor real dos factos tributários.
Assim vejamos:
· veículos já alienados na data da verificação do respectivo facto gerador;
A Requerente manteve-se no registo, como proprietária dos veículos identificados no Anexo A, junto com a petição arbitral e documentos n.º 1 a 26, pretendendo, por isso, a AT imputar-lhe a responsabilidade pelo pagamento do IUC relativo ao ano 2013 e 2014, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC.
Alega, contudo, a Requerente que, na verdade, os veículos em questão já haviam sido alienados na data do aniversário das respectivas matrículas.
A Requerida alega, por sua vez, que as facturas juntas pela Requerente não são suficientes para abalar a (suposta) presunção legal estabelecida no artigo 3.º do CIUC.
Entende, no entanto, o Tribunal que os documentos juntos pela Requerente no seu todo, que constituem os contratos de locação financeira e as facturas/recibos das vendas realizadas na sequência do termo dos referidos contratos, quer através do pagamento do valor residual do bem, quer através do pagamento do valor do bem, fazem efectivamente supor a transferência da propriedade e uso dos veículos em causa para os adquirentes devidamente identificados.
Na verdade, da análise dos referidos documentos, é possível concluir que os veículos em questão foram objecto de contrato de locação financeira, tendo sido vendido antes ou no termo dos referidos contratos de locação financeira, resultando das facturas/recibos de venda a identificação clara dos veículos vendidos, dos contratos de locação financeira respectivo e dos novos proprietários.
Por isso, com base nos documentos juntos, considera-se que os actos de liquidação de IUC identificados nos documentos n.º 1 a 26 respeitam a veículos automóveis que já haviam sido transmitidos à data do facto gerador de IUC, sendo, portanto, a responsabilidade pelo seu pagamento imputável aos proprietários desses veículos e não à Requerente.
Está, por isso, este Tribunal convencido, pela prova produzida pela Requerente, que os actos de liquidação de IUC sub judice são ilegais, uma vez que a responsabilidade pelo seu pagamento não é imputável à Requerente, em face dos documentos juntos.
Tendo em conta o exposto, fica prejudicada a análise da questão subsidiária formulada pela Requerente de saber de quem é a responsabilidade pelo pagamento do IUC, no caso de terem sido celebrados contratos de locação financeira.
IV. DECISÃO
Assim, o Tribunal decide o seguinte:
A) Julgar procedente, por provado, o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência declarar ilegal e anular todos os actos de liquidação do Imposto Único de Circulação e de juros compensatórios, objecto do pedido;
B) Julgar improcedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios, conquanto, relativamente aos actos de liquidação ilegais, nada se apurou quer quanto ao registo dos contratos de locação financeira, quer quanto ao cumprimento pela Requerente da obrigação que lhe assistia, por força do artigo 19.º do Código do IUC;
C) Condenar a Requerida nas custas do presente processo, por ser a parte vencida.
V. VALOR DO PROCESSO
Em conformidade com o disposto no artigo 306.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, 97.º-A do CPPT, artigo 13.º do RJAT e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária o valor do pedido é fixado em €1.744,42.
VI. CUSTAS
Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT, e no artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €306, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerida, de acordo com o artigo 22.º, n.º 4 do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 20 de Outubro de 2015
A Árbitro
Magda Feliciano
(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, da alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990).